"En el sueño del hombre que soñaba, el soñado se despertó": ação e história em
Jorge Luis Borges
Nuestro destino (a diferencia del infierno de Swedenborg y del
infierno de la mitología tibetana) no es espantoso por irreal; es
espantoso porque es irreversible y de hierro. El tiempo es la
substancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata,
pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el
tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo,
desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges.
Jorge Luis Borges "Nueva refutación del tiempo"
Introdução
Em seu ensaio autobiográfico ditado1 no início da década de 1970, o escritor
argentino Jorge Luis Borges diz que "como la mayoría de mis parientes habían
sido soldados y yo sabía que nunca lo sería, desde muy joven me avergonzó ser
una persona destinada a los libros y no a la vida de acción".2 Leitores atentos
de Borges podem estranhar essa passagem por algumas razões. A "autodetermin-
ação" pessoal que está presente neste trecho revela uma concepção do agir
humano e da estrutura que o circunscreve que pode ser repensada à luz da
leitura de alguns contos escritos pelo próprio Borges. Pois, envolvendo o
leitor um de seus labirintos, Borges é capaz de expor essa perspectiva sobre o
seu destino como predeterminado, mas, ao mesmo tempo, ser reconhecido como
alguém que conseguiu abstrair as marcas pessoais de sua história3 por meio da
criação de um universo literário-filosófico revelador. Partindo dessa discussão
sobre a autodestinação do próprio Borges, argumentamos neste artigo que a
estratégia que o autor utiliza em seu esquema para o debate entre ação e
estrutura está próximo do que propõe as revisões das ideias estruturalistas que
ganharam força na segunda metade do século XX, sobretudo com Jacques Derrida e
outros filósofos franceses e, em outro campo e espaço, com Marshall Sahlins.4
Borges desenha em seus contos homens que têm objetivos e que os perseguem como
se fossem a única coisa que importasse, desde o momento que a pretensão surge.
O homem que age e que consegue alcançar seus objetivos é aquele que abandona
todas as fórmulas de cálculo racional preestabelecido. Do ponto de vista
filosófico, o homem que aparece nos contos de Borges, é visto como essência e
experiência - conceito que transcende a própria subjetividade -, sua existência
é algo que decorre desses dois princípios. Transparece por meio da leitura do
conto "El Inmortal", por exemplo, que a existência concreta desse ser genérico
é algo que pouco ajuda a compreender o que o homem "é". O realismo fantástico
do autor pode ser visto como uma expressão da nostalgia que o autor sentia pela
forma como a metafísica inseriu o homem no mundo e que, depois de corroído esse
terreno, vê-se perdido em seus labirintos ainda não decifrados.5 Porém, como
veremos, a metafísica que Borges reclama seria a de tipo "primordial", que se
volta simplesmente para o que está além do concreto.6
Um exemplo desse tipo de personagem que busca alguma coisa e se entrega
completamente à busca está no conto "Las Ruinas Circulares", que faz parte do
livro "Ficciones"(original de 1944). O protagonista do conto é um "hombre
taciturno" que "venía del Sur" e que percorreu um longo caminho simplesmente
para sonhar com um homem "con integridad minuciosa y impornelo a la realidad".7
O protagonista só consegue alcançar seu objetivo quando declina de qualquer
método que lhe possibilite, deliberadamente, atingi-lo.8 Em outro momento, não
escapando de um dos principais debates que acometia o mundo na década de 1940,
Borges trata, no conto "Deustsches Requiem", do livro "El Aleph" (original de
1949), do complicado tema da ação política, tendo como referência o nazismo. Ao
contrário do que acontece nos outros contos discutidos, o protagonista de
"Deustsches Requiem", Otto Dietrich zur Linde é um homem que não precisava de
valores ou motivos para orientar suas ações, mas sim de justificativas. Ao
compararmos esse conto aos outros, podemos perceber que o sonhar um homem com
integridade minuciosa não precisa de justificativa. Otto é um dos raros
personagens de Borges que precisava encontrar uma justificativa moral para o
seu agir. Se não o fizesse, agir seria pena, perseguição insignificante de um
objetivo que ele mesmo não traçou.9
Um tema que ganha relevância no pensamento de Borges e que é vital para inserir
o pensamento do autor no debate que se consolidou com os termos estrutura e
ação na segunda metade do século XX diz respeito à "história". Para pensar como
a questão é tratada no pensamento do autor, recorremos ao texto "La doctrina de
los Ciclos", que foi publicado no livro "Historia de la Eternidad" (original de
1936). Nesse trabalho percebemos a rejeição de Borges, que era um grande
admirador de Schopenhauer,10 ao pensamento do "eterno retorno" de Nietzsche
aplicado à história. Para ele, se o que existe é só uma repetição do que
transcorreu em outro momento, não há espaço para a inovação e a capacidade de
se criar coisas novas a partir de um novo momento.
[...] atribuir la menor influencia moral, vale decír práctica, a la
tesis del eterno retorno, es negar la tesis - pues equivale a
imaginar que algo puede acontecer de otro modo. [...] 'Basta que la
doctrina de la repetición circular sea problable o posible. La imagen
de uma mera posibilidad nos puede estremecer y rehacer. [...] En el
instante en que se presenta esa idea, varían todos los colores - y
hay otra historia'.11
A história como repetição, segundo Borges, é cabível em um mundo, ou em uma
parte dele, reservado aos "inmortais". Mundo esse em que a monotonia e não a
inovação constante seria a regra principal. No conto "El Inmortal", que faz
parte do livro "El Aleph",12 essa percepção da história dos "mortais", que é
inventiva e sempre surpreendente, aparece de forma mais nítida.
Trataremos dos temas da história e da ação por meio da discussão, sobretudo de
três contos do livro "Ficciones":13 "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", "Las Ruinas
Circulares" e "El Milagro Secreto". Do livro "El Aleph",14 uma atenção
principal será dada aos contos "El Inmortal" e "Los Teólogos". Neste livro, "el
tiempo", que seria o "motivo principal del pensamiento y de la estética
borgeana",15 aparece como sendo um componente a mais para refletir sobre o
homem e sua temporalidade. Interessa-nos pensar como, no universo criado por
Borges, a ação e a história aparecem originando um resultado que é uma síntese
filosófica e literária de problemas vivenciados em seu tempo que, ao contrário
do que algumas análises indicam, coloca limitações para o enquadramento fácil
do pensamento do autor como "estruturalista"16 predominante no tempo em que os
contos foram escritos. Sustentamos que, na realidade, é só com algumas revisões
do estruturalismo que acontecem nas últimas décadas do século XX é que algumas
saídas já apontadas pelo labirinto de Borges ficarão mais claras.
Labirintos da ação e história: partes de um quadro borgeano e contribuições
posteriores
"Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" narra o que seria a primeira "intrusión del mundo
fantástico en el mundo real".17 Embora o que constitua a ação para Borges não
esteja trabalhado de maneira direta nesse conto - a saber, uma atitude que,
depois de iniciada, direciona a vida do sujeito que iniciou o movimento, embora
este sujeito nunca saiba, primeiramente, se seu objetivo é ou não possível de
ser realizado e quais os meios que os possibilitaria atingi-los -, vemos que
ele nos possibilita tratar elementos que são base para entrar nos temas da ação
e da história. Uqbar, que primeiramente aparece como um país forjado no século
XVII, é fruto de uma sociedade secreta que planejou sua criação em uma noite
qualquer, também, incidentalmente, em um lugar qualquer, "Londres ou Lucerna".
Por meio de alguns discípulos do grupo original, as ideias dessa sociedade
chegaram à América no século XIX, porém como no Novo Mundo "es absurdo inventar
un país", o responsável pela perpetuação desse movimento iniciado na Europa
"propone la invención de un planeta".18 Foi a partir dessa iniciativa que
surgiu a "Primeira Enciclopédia Tlön" em solo americano. Posteriormente, depois
dessa invasão do mundo fantástico no mundo real, a sociedade secreta coordena
uma empreitada mais audaciosa para lançar o que seria a obra mais detalhada
sobre Tlön: a enciclopédia "Orbis Tertius". Escrita já não mais em inglês ou em
qualquer outra língua falada pelos seres deste planeta, mas sim em várias das
línguas faladas em Tlön.
Um dos traços que marca esse planeta inventado é dado por uma das únicas
exigências do receptor americano responsável pela perpetuação da ideia: não
permitir que essa obra pactue "con el impostor Jesucristo".19 Ao comparar esse
conto com outros de Borges, no qual ele aprofunda na questão da história linear
cristã, podemos ver que a negação do Cristianismo é uma característica que
aponta não somente para os temas ontologia e cosmologia humana, mas para a
própria possibilidade de inserção e atuação do homem no mundo, sem uma
preocupação com um fim que transcenda o momento concreto de sua existência.
Embora Borges não seja um adepto da visão da história como "eterno retorno" e
tenha trabalhado no conto "Los Teólogos" com um suposto embate entre a história
linear cristã e a história circular, ele não compartilha integralmente de
nenhuma dessas visões sobre o que seria a história.
Outra característica desse planeta seria que Tlön não poderia ser ordenado
racionalmente e as relações causais ali hipoteticamente estabelecidas seriam
problemáticas, dada a irredutibilidade dos estados mentais:
[...] los hombres de ese planeta conciben el universo como una serie
de procesos mentales, que no se desenvuelven en el espacio sino de
modo sucesivo en el tiempo. [...] La percepción de una humareda en el
horizonte y después del campo incendiado y después del cigarro a
medio apagar que produjo la quemazón es considerada un ejemplo de
asociación de ideas. [...] Explicar (o juzgar) un hecho es unirlo a
otro; esa vinculación, en Tlön, es un estado posterior del sujeto,
que no puede iluminar el estado anterior. Todo estado mental es
irreductible. [...] Los metafísicos de Tlön no buscan la verdad ni
siquiera la verosimilitud: buscan el asombro. Juzgan que la
metafísica es una rama de la literatura [...]. Una de las escuelas de
Tlön llega a negar el tiempo: razona que el presente es indefinido,
que el futuro no tiene realidad sino como esperanza presente, que el
pasado no tiene realidad sino como recuerdo presente".20
"Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" pode ser visto como um conto que narra como a
realidade vai cedendo espaço para o irreal, considerando que ambas são criadas
pelo mesmo elemento, o homem, e impulsionadas por um mesmo movimento, a ação,
que, por sua vez, ocorrem no único tempo possível, o presente. A indefinição do
presente nesse conto de Borges, argumentamos, está na base da maneira como ele
nos propõe pensar a história e uma despretensiosa "filosofia da história" que
se tornou central no pensamento da segunda metade do século XX - esse que não
compartilha das mesmas pretensões dos germinadores da ideia no século XVIII.
Como Arendt diz, "a incerteza, e não a fragilidade, passa a ser a principal
característica dos negócios humanos".21 Aspecto caro a Borges, pois, no quadro
pintado pelo autor, a ação humana deixou de ser orientada pela projeção do
telos na história e a consequente diluição da orientação metafísica desse agir.
Muitas das ansiedades perceptíveis nos personagens criados, tanto no que se
refere ao significado das ações que os precederam, quanto ao que suas ações
podem representar no futuro, demonstram essa transformação que Borges sentia e
expressava. Em seu universo, as ações criam uma rede ilimitada de novas ações
que fogem completamente ao controle daquele que empreendeu o suposto primeiro
movimento. Porém, novamente, compondo um labirinto mais do que um caminho
linear, isso se dá em uma conjuntura na qual também possível pensar que
[...] todos los hechos que pueden ocurrirle a un hombre, desde el
instante de su nacimiento hasta el de su muerte, han sido prefijados
por él. Así, toda negligencia es deliberada, todo casual encuentro
una cita, toda humillación una penitencia, todo fracaso una
misteriosa victoria, toda muerte un suicidio.22
Quiçá se aproximando de Borges neste ponto, para Sartre, o homem é o único
culpado e também único herói, de seus atos. Ao contrário de Arendt, segundo
Sartre, a relação entre o existencialismo e história só ocorre porque as coisas
são aquilo que o homem decidiu que elas fossem. Para Sartre "só há realidade na
ação. [...] o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que ser
realiza, não é, portanto, nada mais do que o conjunto dos seus atos".23 No
universo literário-filosófico borgeano, a resposta para esse problema poderia
ser encontrada na maneira como o autor trabalha com a ideia de destino -
"destin-ação".
Na singularidade de cada destino - que pode ser pensado por meio da metáfora do
rio que leva e que, ao mesmo tempo, é levado - é que ação e estrutura se
encontram. Colocando os problemas em termos de ação e história, evento e
estrutura, os debates literalizados por Borges estiveram na base de uma das
principais discussões que transformou as ciências sociais e filosóficas na
segunda metade do século XX. Esse debate, da maneira desenvolvida por Sahlins,
mas anteriormente promovido por Arendt e Sartre, pode ser refletido por meio da
ideia de incorporação de elementos diacrônicos internos nas noções
estabelecidas de estrutura.24 Para Sahlins, estruturas podem ser entendidas
como formas de organização sistemática de circunstâncias contingentes e, ao
mesmo tempo, a relação simbólica de um ordenamento cultural, que é histórico.25
Essa visão nos ajuda a transpor as dificuldades colocadas pela proposta de
Saussure na qual as "instabilidades lógicas" das categorias culturais são
frutos do foco na ideia de sincronia estrutural.26 Colocando o ponto de maneira
mais clara,
In a certain structuralism, history and structure are antinomies; the
one is supposed to negate the other. Whereas, in the nature of
symbolic action, diachrony and synchrony coexist in an indissoluble
synthesis. Symbolic action is a duplex compound made up of an
inescapable past and an irreducible present. An inescapable past
because the concepts by which experience is organized and
communicated proceed from the received cultural scheme. An
irreducible present because of the world-uniqueness of any action.27
Ser conduzido pelo rio e, ao mesmo tempo, ser o rio que conduz é mostrar como
circunstâncias particulares e contingentes são estruturadas. Os sujeitos que
são singulares, devido à própria forma como chegam ao mundo, tornam-se, na
perspectiva de Arendt,28 o fundamento da política que é plural e condição
humana da ação. A igualdade é o aspecto que garante a possibilidade de
compreensão mútua entre os homens; e a diferença é o aspecto que determina a
necessidade do discurso e da ação para que o entendimento entre os homens seja
possível. A pluralidade é percebida como o fundamento da política,
especificamente, e também como a própria condição humana da ação. Com isso, a
autora propõe que somente no homem e através do homem - portador da indelével
característica de ser, simultaneamente, igual e diferente -, pela possibilidade
de manifestação explícita de suas características, é que se garante a vida
pública, fazendo com que seja possível que os homens deixem de ser meros
objetos físicos para que se tornem, efetivamente, homem - ser humano.29 Sendo
resgatado no calor desse debate filosófico-antropológico, ser o fogo que
consome e ao mesmo tempo o próprio fogo, para Borges, pode ser uma manifestação
dessa condição de pluralidade e singularidade; da maneira como, em seu esquema,
o destino e a capacidade criativa se entrecruzam, de ser parte e tomar parte em
conjunturas que são estruturadas e que podem se transformar a cada momento.
Com o seu empiricismo antropológico, o que Sahlins nos mostra é que, cada vez
que colocamos nossas categorias recebidas de maneira prática no mundo, elas
colocam em risco essas mesmas categorias. Inserir-se no mundo é colocar as
categorias que recebemos em risco, inclusive nosso destino, desde o momento em
que nascemos, lição que os personagens borgeanos parecem ter aprendido na
prática.30
O conto "El Inmortal" fala da busca de um homem, Flaminio Rufo, para chegar até
a cidade dos imortais. O que interessa notar é que, independentemente da crença
na existência ou não dessa cidade, a vontade de encontrá-la era a única
motivação que levou o personagem à ação - "Ignoro si creí alguna vez en la
Ciudad de los Inmortales: pienso que entonces me bastó la tarea de buscarla".31
Borges mostra que a mortalidade é que confere capacidade criativa ao homem, a
imortalidade é completamente fútil. É esse fato, morte e nascimento dos homens,
que dá início a uma nova ação, que os torna singulares.32 Nesse conto, a busca
pela Cidade dos Imortais foi longa e exigiu de Flaminio Rufo muita resistência
e força para superar todos os obstáculos físicos e psicológicos que enfrentou
no trajeto. Depois de atravessar dificuldades de diversos tipos, a tão buscada
cidade onde viviam apenas trogloditas - "hombres de piel gris, de barba
negligente y desnudos"33 - que não falavam e se alimentavam de cobras, foi,
enfim, encontrada. Apesar das dificuldades do trajeto, decepcionado, Flaminio
ficou pouco tempo no local. Um dos trogloditas o seguiu até a saída da Cidade
dos Imortais. Depois de se ver completamente frustrado em todas as tentativas
propedêuticas de ensinar comportamentos básicos que até um "cachorro"
aprenderia ao seu seguidor, Flaminio se viu instigado por uma, enfim,
manifestação. O troglodita, chamado por ele de Argos, nome inspirado no "viejo
perro moribundo de la Odisea", depois de uma chuva que os acometeu e fez com
que "el perro" recordasse alguma coisa de humano que existira nele, disse a
Flaminio: "Argos, perro de Ulises. [...] Este perro tirado en el estiércol".34
Na continuidade do diálogo, enfim, estabelecido, o protagonista nos diz que
Fácilmente aceptamos la realidad, acaso porque intuimos que nada es
real. Le pregunté qué sabía de la Odisea. La práctica del griego le
era penosa; tuve que repetir la pregunta. 'Muy poco', dijo. 'Menos
que el rapsoda más pobre. Ya habrán pasado mil cien años desde que la
inventé'.35
A conexão mais nítida entre a visão borgeana sobre ação e a história e a
proposta de Arendt de colocar o problema em termos de singularidade e
pluralidade aparece nessa passagem em que Flaminio descobre que troglodita era
Homero. O encontro com Homero em tais circunstâncias fez com que o protagonista
reafirmasse sua visão de que a imortalidade é um castigo para os homens, pois
caem no ostracismo até de si mesmos e desistem de agir por terem chegado à
conclusão de que tudo é uma mera repetição do que ocorrera anteriormente. A
aceitação de que a história é circular, o que na visão de Borges só é aplicável
aos imortais, pode originar somente monotonia, inação e esquecimento. A
singularidade se perde.
Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las criaturas lo son,
pues ignoran la muerte; lo divino, lo terrible, lo incomprensible es
saberse inmortal. [...] Adoctrinada por un ejercicio de siglos, la
república de los hombres inmortales habría logrado la perfección de
la tolerancia y casi del desdén. Sabía que en un plazo infinito le
ocurren a todos los hombres todas las cosas. Por sus pasadas o
futuras virtudes, todo hombre es acreedor a toda bondad, pero también
a toda traición, por sus infamias del pasado o del porvenir.36
O embate entre diferentes concepções filosóficas de qual a melhor metáfora
descreve o funcionamento da história fica mais nítida no conto "Los Teólogos".
Essa é uma narrativa que trata da luta entre a roda - história circular - e a
cruz - história que termina e se cumpre em cada ser humano -, a partir do
embate entre dois estudiosos da relação dos homens com o universo divino.
Aureliano, um dos teólogos, assim como Nietzsche, tentava provar a tese da
"circularidade" da história. Para ele, "la historia es un círculo y que nada es
que no haya sido y que no será".37 Sua tese, no conto, é refutada pela de Juan
de Panonia, que defendia que "El tiempo no rehace lo que perdemos; la eternidad
lo guarda para la gloria y también para el fuego".38 Assim, em um primeiro
momento, "Cayó la Rueda ante la Cruz", porém, para Borges, o resultado final
dessa briga só pode ser referido em metáforas, pois ela se passa "en el reino
de los cielos, donde no hay tiempo".39
A concepção de estrutura presente na obra de Borges parte da constatação de que
ela mesma só pode ser pensada em um terreno no qual a ação humana, a inovação e
a contingência fazem parte da própria gênese histórica. A história é
contingência e invenção, não no sentido de que, na ausência de uma aceitação
irrefutável da fórmula historia magistra vitae atribui-se um status
subjetivista extremamente pretensioso.40 Esse caráter da história se origina no
fato de ela ser feita por homens. E, com Arendt, vimos que o grande enigma da
história residiria justamente nesse jogo entre singularidade e pluralidade.
O fato de que toda vida individual, compreendida entre o nascimento e
a morte, pode vir a ser narrada como uma história com princípio e
fim, é a condição pré-política e pré-histórica da História, a grande
história sem começo e sem fim. Mas o motivo pelo qual toda vida
humana constitui uma história e pelo qual a História vem a ser,
posteriormente, o livro de histórias da humanidade, com muitos atores
e narradores, mas sem autores tangíveis, é que ambas resultam da
ação. Pois a grande incógnita da História, que vem desafiando a
filosofia da História na era moderna, não surge somente quando
consideramos a História como um todo e descobrimos que o seu sujeito,
a humanidade, é uma abstração que jamais pode ser um agente ativo.41
No conto "Las Ruinas Circulares", Borges explora a busca de outro personagem
cujo único objetivo, que não pode ser caracterizado como "imposible, aunque sí
sobrenatural",42 era sonhar um homem e submetê-lo à realidade. Tanto nesse
conto, quanto em "El Inmortal", os protagonistas executam ações que são
importantes e devem ser postas em marcha, independentemente da possibilidade
concreta de realização dos objetivos a que eles se propõem. Nos dois contos, os
projetos traçados consumiram a vida dos protagonistas. Em "Las Ruinas
Circulares", o protagonista esqueceu o seu próprio nome e qualquer outra
característica que dissesse respeito à sua personalidade antes de se propor a
esse objetivo. Ele viajou até um local distante, que ficava ao norte de sua
terra original, para poder encontrar um espaço sagrado ou algo semelhante a
isso, onde sonhar um homem íntegro fosse possível. O sonhador fracassou na
primeira tentativa deliberada de dormir profundamente para poder sonhar com
esse homem. Assim, ele
comprendió que el empeño de modelar la materia incoherente y
vertiginosa de que se componen los sueños es el más arduo que puede
acometer un varón, aunque penetre todos los enigmas del orden
superior y del inferior [...]. Comprendió que un fracaso inicial era
inevitable. Juró olvidar la enorme alucinación que lo había desviado
al principio y buscó otro método de trabajo. [...] Abandonó toda
premeditación de soñar y casi acto continuo logró dormir un trecho
razonable del día. [...] Luego, en la tarde, se purificó en las aguas
del río, adoró los dioses planetarios, pronunció las sílabas lícitas
de un nombre poderoso y durmió. Casi inmediatamente, soñó con un
corazón que latía.43
Seria possível dizer que essa narrativa é, ao mesmo tempo, uma ode à natureza
eminentemente "essencial" do ser humano e à abertura do acaso, transformação do
tempo "irreversível" em cada um dos eventos que lhe perpassam. Além de uma
aproximação entre Borges e Sartre, por meio desse conto é possível resgatar
elementos do debate estabelecido entre Sartre e Heidegger44 sobre o humanismo e
o existencialismo, lembrando-nos a posição de Heidegger sobre a tentativa
sempre fracassada de o ente conseguir chegar ao Ser de maneira deliberada,
dispensando qualquer subjetivismo como sendo o responsável por se construir
algo novo. O existencialismo sartreano advoga que a existência subjetiva do
homem precede a sua essência e que
[...] o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no
domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade sobre
sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si
próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua
própria individualidade, mas que é responsável por todos os homens.45
Para Heidegger, ao contrário, a essência do agir é consumar algo que já é, "O
pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a
efetua".46 Assim como o protagonista do conto se frustrou na primeira tentativa
deliberada de alcançar seu objetivo, para Heidegger, o pensamento deve se
deixar livre para pensar, sem as amarras restritivas da técnica. Sempre que uma
intenção deliberada de se alcançar o Ser for empreendida, Ele se esconderá. É
de sua própria natureza se desvelar quando o pensamento estiver livre, sem
rédeas. Para Heidegger, Sartre, ao dizer que a existência (existentia) precede
a essência (essentia), adota um sentido metafísico, modo de "pensar" que
Heidegger recusa.47 Entretanto, como vimos, no emaranhado borgeano, existe
espaço para o resgate saudosista de uma metafísica de "tipo básico"
subjacentemente à adoção da ideia de que o pensamento que deve ser livre, sem
constrangimentos calculistas, para ser o que já é.
No conto de Borges, "el corazón que latía", em cada sonho, o sonhador ganhava
concretude humana e uma integridade que não correspondia às persistentes
deficiências físicas que possuía. Depois de feitos os devidos ritos que o
inseririam no universo, "en el sueño del hombre que soñaba, el soñado se
despertó".48 Apesar de esse processo ter sido desejado e perseguido, foi muito
difícil aceitar o fato. Embora fosse esse o objetivo inicial do homem que
sonhava, para ele não foi fácil deixar de "possuir" o homem sonhado. Pretextos
pedagógicos e de correção das imperfeições físicas foram criados para fazer com
que a dor de se distanciar do seu "hijo" não chegasse de maneira tão abrupta.
Porém, o sonhador progressivamente foi se acostumando com o feito de que uma
hora o homem sonhado deixaria de depender dele para existir. Em uma determinada
noite, o sonhador "lo besó por primera vez y lo envió a otro templo [...].
Antes (para que no supiera que era un fantasma, para que se creyera un hombre
como los otros) le infundió el olvido total de sus años de aprendizaje".49 A
magia maior do conto está no dia em que o sonhador se descobre também sonhado
por outro homem.
Debates contemporâneos sobre história e ação: palavras finais
De acordo com Bodei, "A atual crise do telosda história, em que se proclama a
perda de visibilidade de qualquer meta, está na realidade latente há pelo menos
150 anos, desde o tempo dos primeiros discípulos e adversários de Hegel até
Dilthey e Nietzsche".50 Porém, uma discussão crítica mais explícita sobre o
tema só aparecerá na segunda metade do século XX. Nesse mesmo debate, mas
levando a discussão para outro terreno, Koselleck,51 no texto "Terror e Sonho",
trata da diferenciação e aproximação entre os elementos que ligam a res factae
- "realidade dos fatos ou ocorrência" - e a res fictae - "realidade das ações
inventadas". Segundo o autor, essa separação entre história e poesia, que
reconhecia a importância de cada um dos campos, preponderou até o século XVIII.
"A poesia visa ao possível e ao geral, se aproxima da filosofia, ao passo que a
história (Historie) se orienta unicamente pelo decurso do tempo".52 O
Iluminismo teria sido o responsável por inaugurar novo momento, no qual as
fronteiras que tendiam a demarcar os campos de atuação da res factae e da res
fictae não seriam mais tão nítidas. "Logo que se viu forçado a construir com
arte sua história, a dar-lhe fundamentos morais e racionais, o historiador
passou a depender dos recursos da ficção".53 A construção de teorias, que
marcaria a forma como o historiador deveria olhar para a história, também
marcou esse período e contribuiu decisivamente para essa dissolução das
fronteiras.
A ação, o homem e a história estão completamente entrelaçados no pensamento que
mistura a res factae e a res fictae de Borges. Nos contos discutidos, o homem
aparece enquanto essência - conceito não redutível apenas à subjetividade -
mais do que existência - concretude -, e as ações que empreendem bem como os
cursos possíveis a que tais ações podem conduzir são contingentes, mas, nem por
isso, desestruturados. Ao contrário, o que é fascinante nesses contos é que os
personagens principais sempre buscam alguma coisa independentemente de qualquer
garantia ou controle sobre os resultados aos quais suas ações podem levar. Eles
seguem buscando e veem na própria busca formas significativas de se inserir no
mundo. Como os personagens criados por Borges demonstram, a ação possibilita
que projetos sejam consumados, porém não enquanto projetos com fins em sim, mas
como coisas que consumam algo que já existia, aspecto que fica nítido nos
contos "Los Inmortales", no qual o personagem principal descobre o fascínio da
mortalidade, e "Las Ruinas Circulares", cujo protagonista conseguiu realizar
uma suposta grande invenção, a qual, contudo, levou-o ao descobrimento do que
ele mesmo era.
A negação de uma ideia de história circular, como sendo algo que ceifaria
qualquer possibilidade de ação criativa do homem no mundo, e também de um
sentido teleológico na história que orientaria as ações humanas, embora não
seja aspecto tão excepcional que tornaria a obra de Borges única, é uma
característica que ajuda a vislumbramos certo vanguardismo no pensamento que o
autor nos transmite. Assim, contudo seja verdade que "hoje são poucos os que
creem, por raciocínio e não por fé, que a história tenha um sentido",54 não
sendo, portanto, grande novidade pensar nesses termos, Borges conseguiu tratar
desse aspecto englobando uma visão filosófica de homem e de ação de forma
diferenciada nesse contexto no qual o pensamento estruturalista se via
fortificado. A opção por escrever contos a partir da década de 1930, como
consta na sua autobiografia, foi tomada por Borges, pois ele gostaria de
escrever de forma mais livre do que os poemas e os romances permitiam, mas, ao
mesmo tempo, garantindo que a sistematicidade das grandes narrativas não fosse
perdida, o que, seguramente, encaixava-se bem nessa maneira de discutir os
temas do humano e de sua ação através do tempo.
Borges pode ser encaixado na definição de Bodei55 do que seria um libertino:
aquele que pensa de forma "espontânea" e "livre", que não tem pretensão nenhuma
de se adaptar às convenções de seu tempo, sobre temas importantes para a
filosofia, como a história, a humanidade e o mundo. O papel que esses sujeitos
desempenham é de grande importância para que os paradigmas sejam quebrados e
novas possibilidades de interpretação e reflexão sobre o mundo sejam possíveis.
Na releitura dos contos de Borges, talvez possamos ver uma manifestação daquilo
que Heidegger56 chama do pensamento livre para pensar, sendo, portanto, uma
forma de compreender que um processo tem sido refletido dentro das amarras da
técnica científica, por um viés, talvez, menos constrangido.
Nos contos trabalhados, observamos vários elementos da discussão sobre a quebra
do paradigma da história enquanto um curso racional orientado por um fim
perceptível e necessário, e o tema das ações humanas. Ao contrário do que os
propulsores do movimento que ficou conhecido como "Nova História", para os
quais "escrever a História significa fazer História",57 nos contos borgeanos,
pensados à luz de propostas filosóficas e antropológicas discutidas
subjacentemente neste artigo, sentir a quebra do paradigma estrutural da
história é trazer a contingência e a arbitrariedade para o primeiro plano, mas
sem assumir a superpotência dos sujeitos e de suas ações. Essa superpotência
dos sujeitos, argumentamos, é diminuída no pensamento de Borges por meio do uso
literário da temática da "destinação". Nos contos analisados, talvez, o que
esteja na base da busca incessante e incontrolável que marca a vida dos
personagens seria que eles agem, pois não há outra opção. Estão inseridos em
teias que os levam a isso. Porém, e sobretudo, o espaço para ação criativa não
é apagado. É possível se decepcionar com a cidade encontrada e deixá-la; é
possível, por meio da experiência, saber qual o melhor "método" para se sonhar
o sonho buscado etc. Embora esse seja um esforço de síntese arriscado e, pela
própria natureza, incompleto, podemos ver que o argumento levantado na
introdução ao artigo - de que o labirinto borgeano nos leva a todo momento para
cenários nos quais o debate entre ação e história se apresenta como enigma -
vemos que o universo do autor se aproxima das contribuições arendtianas, que
apareceram no mesmo momento em que Borges escrevia, e foram avançadas por
autores como Koselleck e Sahlins, para ficar somente com os discutidos neste
artigo, em momento posterior trabalhando nos campos da filosofia da história e
da antropologia. Agir é colocar as categorias em risco e, como nosso destino é
seguir agindo, as estruturas históricas são sempre sujeitas à ousadia criativa
humana.