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BrBRHUHu0100-512X2014000100013

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variedadeBr
ano2014
fonteScielo

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Haverá uma antinomia na doutrina kantiana do direito público?

Introdução Que na doutrina kantiana do direito privado haja uma antinomia é algo sabido por qualquer leitor da "Metafísica dos costumes", pois esse é o objeto do §7 da "Doutrina do Direito". Que haja, porém, uma antinomia na "Doutrina do Direito" público parece inverossímil, pois não apenas inexiste reconhecimento expresso desse ponto na obra kantiana, como também parece ser muito escasso o registro de sua possibilidade nos comentários da "Doutrina do Direito".1 Contudo, o modo como Kant analisa o ato pelo qual o povo se constitui em um Estado,2 se adequadamente entendido, parece implicar a existência de uma tal antinomia, a qual, ainda que não reconhecida expressamente, é insinuada em várias passagens dos textos que o filósofo dedicou aos fundamentos da política e do direito. Para melhor introduzir esta hipótese, uma preliminar indispensável é ter presente que no que tange à origem do status civilis essa doutrina complexa compreende duas séries analíticas inteiramente distintas, as quais, a despeito de que desenvolvidas de modo desigual, têm importância teórica equivalente.

A primeira, de caráter puramente normativo, tem como ponto de partida o denominado postulado do direito público - expresso nos seguintes termos: como é inevitável o convívio lado a lado com os demais, deves abandonar o estado de natureza e ingressar em um estado jurídico3 -, cujo estatuto é o de uma Ideia da razão.4 Neste plano, o direito público é visto como assentado em princípios racionais de caráter a priori que implicam, inter alia, as teses de que a "idéia de uma constituição civil é um comando absoluto da razão prática"5 e de que muito embora se possa conceber "uma legislação exterior que contenha somente leis positivas", deve-se também admitir que "ela deveria ser precedida por uma lei natural que fundamentasse a autoridade do legislador (quer dizer, a faculdade de obrigar outros apenas mediante seu arbítrio)".6 a segunda ordem de análise atenta ao que se pode denominar de condições reais de instituição de uma ordem jurídica.7 Kant a desdobra de maneira admitidamente concisa, às vezes como que a latere, em textos que, aliás, parecem ser cuidadosamente evitados por muitos intérpretes. A lição dessas passagens é que, muito embora, do ponto de vista prático, a origem do Estado deva, para os súditos - para os súditos, não para os teóricos e seus leitores! - permanecer como algo inescrutável,8 não cabendo indagar se "houve de antemão em termos factuais um contrato efetivo de submissão ao Chefe de Estado (pactum subjectionis civilis), ou se a violência foi anterior e a lei veio interveio depois",9 é, contudo, incontroverso que a: submissão incondicional da vontade do povo (que está em si desunida, sem lei portanto) a uma vontade soberana (que une a todos mediante uma lei) é um fato (Tat) que pode com a tomada do poder supremo pode ter início e que funda, assim, em primeira mão, um direito público.10 O deslinde, não propriamente do desdobramento dessas duas séries analíticas, mas do modo como deve ser entendida sua relação requer, contudo, atenção e é em função dos resultados do exame que se fizer desse ponto que se poderá melhor entender, ou, pelo menos, discutir a hipótese levantada acima de que cabe pelo menos cogitar da existência de uma antinomia na doutrina kantiana do direito público.

I A teoria normativa da origem do Estado segundo Kant A análise normativa da origem do direito público é desdobrada no longo argumento em que Kant trata de demonstrar a priori a necessidade e a legitimidade do Estado. Essa análise faz do direito privado a origem necessária do direito público e tem como base a teoria kantiana da posse. Seu ponto de partida é a concepção da liberdade, a qual, neste contexto, deve ser entendida como o direito único, originário, pertencente a cada homem por força de sua humanidade, de ser seu próprio senhor (princípio da igualdade), de ser irreprochável antes da celebração de qualquer ato jurídico, de fazer contra os outros tudo que não lhes diminua o direito, assim como o de expressar-se como bem quiser, inclusive falsamente.11 Esse único direito inato, além de fundar o direito privado - pois dele decorrerá o primeiro direito adquirido, o direito ao apossamento de bens externos12 - constitui-se também no ponto de partida da constituição do direito público, uma vez que o meu e o teu externos, como Kant costuma dizer, podem ter estabilidade depois da passagem ao estado civil, isto é, ao estado em que uma vontade coletiva-universal (comum) e detentora do poder garantirá o seu de cada um.13 Esta é a razão pela qual toda exposição consequente da doutrina kantiana do direito público precisa começar pela consideração do direito privado e mais precisamente pela restituição da complexa análise kantiana do conceito de posse e é o que faremos aqui de modo tão conciso quanto possível.

A teoria kantiana da posse Kant distingue dois regimes ou modos em que a posse pode ser exercida. O primeiro é o da chamada posse empírica, o segundo o da posse inteligível. Ambas devem ser entendidas como implicadas pela liberdade, eis que o uso de bens externos é uma forma básica e fundamental do agir livre.

A legitimidade de tal uso - isto é, a possibilidade de "ter como o meu qualquer objeto externo de meu arbítrio",14 como diz o "Postulado jurídico da razão prática" - é defendida por Kant mediante um argumento a contrario no qual se argui que, se fosse vedada a apropriação dos bens externos, a liberdade "privaria a si mesma do uso de seu arbítrio em vista de um objeto do mesmo [...]" e, nesse sentido, se autocontradiria.15 o exercício desse direito originário se faz primeiramente por meio da posse empírica, cuja nota própria, a detenção, é a ligação física de uma pessoa com um determinado objeto. Segundo Kant, a demonstração de que sempre que alguém tiver um objeto em mãos16 será seu legítimo detentor pode ser feita com base no simples princípio de não contradição.17 Todavia, por que o desrespeito da posse alheia viola o princípio de não contradição não está suficientemente esclarecido no texto kantiano. Creio que se entenderá melhor o que o filósofo teve em mente se levarmos em conta a ideia de que a legitimação da posse com base na mera detenção resulta de que se tenha o apoderamento físico da coisa como título suficiente para justificação da pretensão do detentor de prevenir e impedir o contato alheio não autorizado com ela. É que não é difícil perceber que o turbador da detenção, ao querer apossar-se do possuído, simplesmente nega o direito que quer afirmar mediante o gesto agressor. Ou, para dizê-lo em termos contemporâneos: que aquele que quiser tomar posse de algo mediante o esbulho da posse alheia incorrerá em uma contradição performativa, pois essa conduta implicará recusar que a detenção da coisa seja título e legitimação suficientes para sua posse, de modo que quem assim agir, sob pena de autocontradição, normativamente, não se poderá opor à agressão que eventualmente venha ele próprio a sofrer.

No entanto, essa primeira e primária forma do direito de posse é, segundo Kant, imperfeita,18 pois cabe falar de maneira plenamente apropriada da posse como um direito sob a condição de "admitir que me poderia causar dano o uso que outrem pudesse fazer de uma coisa, mesmo quando não a tenho em minha posse."19 20 Neste caso, o da posse inteligível, a demonstração de que a posse se estende para além do que é objeto de detenção imediata não poderá ser estabelecida analiticamente. Aqui o ato de um terceiro de apoderar-se do que não está sob controle imediato e físico de outrem não nega imediatamente o próprio conceito de posse, nem parece atingir a liberdade alheia, pois o objeto encontra-se fisicamente desligado e, portanto, pelo menos empírica e sensivelmente, jacente. Esta a razão pela qual a demonstração de que o sentido mais próprio da posse exige compreendê-la como independente do vínculo físico do possuidor à coisa terá que ser feita com base em um argumento sintético.21 Este terá como base a observação de que, além das relações físicas que temos com os objetos, podemos nos relacionar com estes também racionalmente. Ao fazê-lo consideramos as coisas como nossas com base no conceito racional puro de uma posse em geral, o que implica que em lugar da detenção (detentio), como uma representação empírica da posse, seja pensado o conceito do ter (Begriff des Habens), que abstrai de todas as condições do espaço e do tempo, e o objeto seja pensado apenas como estando sob meu domínio (in potestate mea positum esse).22 23 A prova desse direito baseado no pensamento, na vontade, na decisão e na ação unilaterais de apossar-se de algo - ou, nas palavras de Kant: "Aquilo que submeto a meu poder segundo leis da liberdade exterior e quero que seja meu é meu."24 - é justificada, como observado por Bernd Ludwig, "tão somente porqueos outros não têm nenhum direito a opor a essa pretensão".25 Essa justificativa à primeira vista desconcertante precisa, contudo, ser ela própria justificada.

Sua defesa será apresentada mediante o argumento desenvolvido no "Postulado jurídico da razão prática", referido acima, de acordo com o qual, a liberdade se autocontradiria, pois [...] privaria a si mesma do usar o seu arbítrio em vista de um objeto do mesmo, por colocar fora de toda possibilidade de uso os objetos úteis, quer dizer, ao eliminá-los de um ponto de vista prático e torná-los sem dono (res nullius) [...].26 Bem entendido, o exercício particularizado desse direito geral dos homens de possuírem e usarem as coisas do mundo, do qual a propriedade comum inata do solo é a expressão paradigmática,27 a que Kant o nome de lex permissiva,28 deve regular-se pelo Princípio universal do direito, isto é, deve satisfazer a condição de que a máxima que regular cada ato concreto de tomada de posse possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal.29 A garantia e segurança da posse e da propriedade como bases da passagem ao direito público É preciso ter bem claro, porém, que a admissão da existência da posse legítima previamente à instituição do status juridicus, longe de dispensar, exige a passagem a este último, pois antes disso toda posse efetiva é precária, instável, inelutavelmente sujeita a disputas e controvérsias. Este é o ponto feito no §15, quando ao voltar à consideração das posses no estado de natureza, Kant introduz, em contraste com o caráter provisório daquelas, o conceito de posse peremptória,30 existente no âmbito do status juridicus, sustentado pela ideia de uma vontade de todos unida a priori, capaz, assim, de servir de base racional para todo título de propriedade.31 A razão é que anteriormente à instituição do Estado jurídico os homens nunca podem estar seguros contra a violência de uns contra os outros, e isto por causa do direito próprio de cada um de fazer o que lhe parece justo e bom.32 Importa notar que nesta formulação se superpõem a justificativa prudencial para o imperativo de passagem ao estado jurídico - a imperiosa conveniência de prevenir e controlar a multiplicação de contenciosos - e a injunção, estritamente normativa, que Kant apresentara, no §8 da "Doutrina do Direito", ao declarar que a vontade unilateral em vista de uma posse exterior não pode servir de lei coercitiva para todos, porque isso prejudicaria a liberdade segundo as leis universais.33 Ou como se no §15: [...] por intermédio de uma vontade unilateral não pode impor-se aos demais uma obrigação que de outro modo sobre eles não impenderia.34 Ora, isso implica afirmar não apenas que a série das declarações individuais de direito não tem a força necessária para impor o respeito aos direitos alegados, mas também que somente uma vontade comum é legítima para impor a indivíduos autônomos e livres obrigações universais e incondicionadas. No §42 Kant enuncia formalmente o princípio dessa transição do direito privado ao direito público ao dizer: Do direito privado no estado de natureza surge, então, o postulado do direito público: deves, em vista da relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico, quer dizer, num estado de uma justiça distributiva.35 Ao analisar a estrutura interna dessa justificativa para a necessidade da passagem ao estado jurídico, o Prof. Kersting judiciosamente enfatiza que a agregação do argumento normativo à motivação prudencial torna forçosa a conclusão de que somente "uma vontade omnilateral não contingente, mas a priori"36 tem legitimidade para impor a todos a efetividade de seus respectivos direitos. O que é também dizer que o caráter obrigatório e a força vinculante dos atos de tomada de posse " podem resultar do acordo daqueles que são afetados pelo ato de aquisição do direito".37 Para os fins que perseguimos aqui, de tudo isto o fundamental a reter é, contudo, que, no desdobramento da série analítica que estamos a examinar, o imperativo exeundum e statu naturali e o conceito de vontade unificada do povo, bases da estabilização prática e jurídica das relações humanas na esfera privada, não remetem nem à celebração real do pactum unionis civilis, nem à formação voluntária e efetiva de uma vontade geral, à maneira teorizada por Rousseau.

Com efeito, no §47 da "Doutrina do Direito", ao falar dos atos de formação do Estado, Kant deixa claro que a remissão ao contrato originário tem em vista não a celebração real de pactos sociais, mas antes a ideia desse contrato.38 No escrito "Sobre a expressão corrente: Isso pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática" Kant apresenta o mesmo ponto ainda mais claramente quando diz: Se, antes de mais, se tivesse inquirido o que incumbe ao direito [...] a idéia de Contrato Social teria conservado seu incontestável crédito; não, porém, enquanto fato (Faktum) [...], mas somente como o princípio racional que permite apreciar toda constituição jurídica pública em geral.39 Importa também notar, seguindo ainda a lição de Kersting, que o ancoramento do mandado de abandono do estado de natureza na própria razão "transforma o contrato de fundação do Estado dos contratualistas em um Ideal do direito estatal [Ideal des Staatsrechts]".40 41 A consequência, precisa o mesmo autor, é que se Kant fosse perguntado pelo fundamento da obrigação de obediência às instituições públicas vigentes, ele não remeteria aos atos nos quais as vontades individuais pactuaram entre si e fundaram o Estado, mas antes, simplesmente, lembraria ao interlocutor o comando da razão prática de sair do Estado de natureza e de ingressar no Estado jurídico, em cujo âmbito o dever de obediência "pertence ao tipo dos 'oficia connata', dos deveres inatos, e não ao tipo dos 'oficia a se ipso contracta', dos deveres voluntários."42 Em vista desses pontos, não estranha, portanto, que Kant, ao dar início ao exame do direito público, não tenha corrido a tratar do contrato social originário, mas tenha se ocupado, logo e antes, de examinar as relações entre o Estado e o Direito. Na verdade, creio que o ponto de fundo subjacente à análise kantiana é a percepção de que, do ponto de vista real, a ideia do contrato chega sempre tarde, sua função não podendo ser mais do que a de estabelecer um padrão de medida para avaliação da legitimidade dos governos existentes e para orientação dos soberanos.

Isso obviamente não quer dizer, porém, que Kant ignore que os Estados que conhecemos têm uma gênese real independente desses princípios normativos, nem que ele rejeite entender o modo como o Estado é efetivamente fundado. Antes o contrário e é, portanto, sobre essa segunda linha de análise que agora precisamos nos debruçar.

II A origem real do Estado segundo Kant ou sobre as condições reais de instituição de uma ordem jurídica Conforme antecipado no início desta comunicação, a primeira das referências textuais para interpretação do modo como Kant analisa as condições reais de instituição de uma ordem jurídica encontra-se na abertura do longo texto que Kant introduz entre os parágrafos 49 e 50 da "Doutrina do Direito", intitulado "Observação Geral - Dos efeitos que se seguem da natureza da associação civil".

Refiro-me à passagem, na qual Kant - depois de dizer que a origem do poder supremo é, do ponto de vista prático, inescrutável para o povo que a ele se encontra submetido43 - abre um espectro de possibilidades quanto ao modo como o Estado foi instituído ao dizer: Se originariamente precedeu, como um fato, um contrato efetivo de submissão ao mesmo (pactum subjectionis civilis), ou se precedeu a violência e a lei veio depois, ou mesmo se devia seguir-se nesta ordem, isso são questões sofísticas inteiramente despropositadas para um povo que está submetido à lei civil, mas que constituem uma ameaça ao Estado; pois, se o súdito que tivesse finalmente descoberto a origem última quisesse se opor àquela autoridade atualmente dominante, seria castigado, destruído ou expulso (como fora da lei, ex lex) de acordo com as leis da mesma, i. é, com todo o direito.44 Ao registro das duas possiblidades abertas aqui com relação ao modo como pode ter tido lugar a instituição do Estado - por um contrato efetivo de submissão ou por ação violenta do fundador do Estado, seguida do estabelecimento da lei - Kant acrescenta ainda, como que en passant, uma consideração hipotética e inconclusiva a respeito de se o sequenciamento inerente a este segundo modo de instituição do Estado seria o mais natural. No entanto, ao retomar essa discussão na conclusão das "Observações explicitativas sobre os Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito", Kant claramente endossa a hipótese a que acabamos de aludir pois então, tomando mais claramente posição sobre as condições reais de instituição do Estado, escreve: A submissão incondicional da vontade do povo (que está em si desunida, sem lei, portanto) a uma vontade soberana (que une a todos mediante uma lei) é um fato que com a tomada do poder supremo pode ter início e que funda assim, em primeira mão, um direito público.45 Importa notar, todavia, que essa tomada de posição - esta admissão de que os atos de força são a inevitável origem do estado jurídico - não pode ser tida meramente como um juízo factual a respeito do modo como contingentemente se passam as coisas na vida política real. Na verdade é preciso ver nesta declaração de Kant uma consequência necessária do modo como ele concebe o estatuto dos conceitos fundamentais do direito público.

Com efeito se o contrato social não é um fato mas uma simples ideia da razão,46 se, como lemos em "O conflito das faculdades", a ideia de uma constituição em consonância com o direito natural deve ser tida como um Ideal platônico e como a norma eterna para toda constituição política em geral,47 se, enfim, o próprio poder soberano, enquanto expressão da vontade coletiva de um povo inteiro, tem, ele também, um estatuto puramente ideal,48 segue-se necessariamente que a vida política real, as comunidades humanas realmente existentes, além de se estruturarem segundo forças e motivos independentes desses princípios ideais, são as destinatárias dessas prescrições normativas, constituindo-se, assim, no domínio, único e próprio, em que essa estrutura normativa pode adquirir realidade objetiva.

Sendo assim, face a essa tripla determinação do caráter necessária e constitutivamente ideal dos conceitos fundamentais do direito público, segue-se que as comunidades humanas organizadas politicamente no curso da história são as inevitáveis portadoras dessa estrutura ideal, a qual, ao ser assim tomada como referência normativa da ação concreta dos homens, ganha corpo e existência. É ao considerar o conceito de poder soberano, ou, como Kant costuma dizer, o conceito da suprema autoridade do Estado, que este ponto é expresso com maior clareza e contundência. Com efeito, no início do §51, em uma passagem referida, mas que convém agora citar por inteiro, Kant diz: Os três poderes no Estado, que derivam do conceito de uma república em geral (res publica latius dicta), são apenas outras tantas relações da vontade unificada do povo, procedente a priori da razão, e uma idéia pura de um chefe de Estado, que possui realidade objetiva prática. Este chefe (o soberano) é, contudo, apenas um ente de razão (que representa o povo todo), enquanto faltar ainda uma pessoa física que represente o poder supremo no Estado, conferindo àquela idéia eficácia sobre a vontade do povo.49 À luz deste texto, torna-se forçoso admitir que a soberania efetiva envolve necessariamente, para empregar a expressão que utilizamos acima, a existência de um portador, isto é, de "uma pessoa física", que seja capaz de "representar a suprema autoridade do Estado" e de conferir-lhe "eficácia sobre a vontade popular" (idem).

Ora, este último ponto nos desloca do terreno das ideias da razão prática para o terreno das relações políticas reais e nos obriga a suplementar e misturar as considerações a priori com elementos factuais e empíricos. Ao fazê-lo, torna forçoso não apenas reconhecer que a relação do poder estatal à vontade do povo pode se determinar de maneira contingente e até certo ponto indiferente em termos autocráticos, aristocráticos ou democráticos (idem) -, mas também admitir que nenhum dos conceitos fundamentais do direito público terá efetividade enquanto não tiverem lugar os atos de práticos de imposição de um centro de poder incontrastado e a decisão existencial, para tomar de empréstimo uma expressão de Carl Schmitt, de declarar a própria soberania. Esta é a lição do último parágrafo da "Doutrina do Direito", do texto derradeiro e decisivo acima citado.50 A estas teses se ajunta a de que esse gesto fundador, sob pena de autocontraditória desobediência ao prescrito pelo postulado do direito público, deve permanecer insondável. Ponto que, expresso positivamente, vem a ser o reconhecimento de que a frase da "Carta aos romanos" que nos diz que "não autoridade que não venha de Deus"51 deve ser entendido como um "princípio prático da razão: o de dever obedecer ao poder legislador atualmente vigente, seja qual for sua origem".52 Consequência imediata dessa análise será a conclusão de que: Contra a suprema autoridade legisladora do Estado não , portanto, resistência legítima do povo; pois que mediante a submissão a uma vontade universalmente legisladora é possível um estado jurídico [...].53 A demonstração analítica da verdade dessa tese Kant a apresenta na sequência imediata do texto dizendo: A razão pela qual o povo deve suportar, apesar de tudo, um abuso do poder supremo, mesmo um abuso considerado como intolerável, é a de que a sua resistência contra a legislação suprema em-si de conceber-se como ilegal, como destruidora mesmo da constituição legal. Pois que para estar para tal capacitado teria de existir uma lei pública que autorizasse esta resistência do povo, quer dizer, que a legislação suprema contivesse uma determinação de acordo com a qual não fosse suprema e convertesse o povo como súdito, num e no mesmo juízo, em soberano daquele a que está submetido; o que é em si contraditório [...].54

III A dupla determinação da origem do Estado como expressão da antinomia do direito público Em resumo, portanto, apreciadas conjuntamente, as referências até aqui consideradas nos apresentam duas análises e duas concepções do modo como tem lugar a constituição do Estado que se mostram antinômicas.

Com efeito, a primeira nos diz que o ingresso em um Estado jurídico se perfaz mediante (i) a obediência ao postulado do direito público que nos ordena sair do estado de natureza e (ii) a observância da prescrição, imediatamente consequente, de união de cada um "a todos os demais para se submeter a uma coerção externa legal e pública",55 isto é, mediante a celebração do contrato originário no qual tem lugar a "coligação de todas as vontades particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública".56 Conforme visto acima, essa é a solução para o problema da instabilidade do direito de posse e propriedade decorrente da inequívoca validade da proposição que nos diz que uma vontade unilateral não pode por os demais sob obrigações que de outro modo não teriam.57 Mas, de outra parte, os textos nos apresentam uma segunda concepção do modo como devemos entender a origem do Estado. De acordo com esta, o contrato originário não deve ser entendido como um fato, como se "um povo [...] tivesse um dia de haver realizado um tal ato".58 Ademais disso, somos aqui advertidos de que, enquanto faltar uma pessoa física que represente o poder supremo no Estado, o soberano, a cuja vontade geral e pública devem os cidadãos submeter- se para concretizar essa saída, não será mais do que um ente de razão. Ora, em vista destes pontos, segue-se a conclusão forçosa de que a união de todos com o intuito de se submeter a uma coação externa legal pública pode ocorrer mediante a submissão a quem tomar o poder e assim fundar primeiramente o direito público.

A Friedrich Bouterwek - o "fino recenseador", como diz Kant,59 que foi quem primeiro resenhou e comentou a "Os Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito", mas cujo agudo questionamento, permitam-me observar en passant, é espantosamente ignorado pelos intérpretes da "Doutrina do Direito" - a grande e evidente dificuldade envolvida nesta dualidade de enfoques não escapou.60 Conforme informado pelo próprio Kant, Bouterwek observou: Nenhum filósofo, tanto quanto nos é dado saber, reconheceu ainda a mais paradoxal de todas as proposições paradoxais, a proposição: que a mera idéia de soberania deveria constranger-me a obedecer como meu senhor àquele que se arvora em meu senhor, sem questionar sobre quem é que lhe deu o direito de comandar-me. É uma e a mesma coisa ter de reconhecer a soberania e o soberano e considerar a priori como senhor este ou aquele, cuja existência não é dada sequer a priori?61 Bouterwek distingue, portanto, (i) o imperativo de reconhecimento do poder soberano do (ii) imperativo de reconhecimento de um soberano e qualifica a proposição que confunde esses dois planos como a mais paradoxal das proposições paradoxais. Em outros termos, ele a Kant como sustentando que a obrigatoriedade da obediência ao poder soberano deve ser entendida como incondicional não apenas de dicto, mas de re, ou, como nos é dito na conclusão do Apêndice: devemos tomar por senhor aquele que tiver de fato poder suficiente para impor-se aos demais.62 Hermann Cohen, na mesma linha, mas sem fazer referência a Bouterwek e tendo em vista não exatamente as passagens aludidas por este, aponta também uma clamorosa confusão do soberano com a soberania na análise kantiana.63 Kant não contestou a interpretação dada por Bouterwek de sua posição e admitiu expressamente o pensamento culminativamente paradoxal que lhe é atribuído - o que, convenhamos, não é pouco admitir!64 -, embora tenha alegado que nem por isso se o haveria de acusar de heterodoxia.65 Mais, Kant ocupou-se de precisar as razões de escândalo de seu crítico e comentou: Mas não é apenas este princípio que parece chocar a razão do autor da recensão, princípio esse que toma por base um fato (a tomada do poder) como condição do direito, mas também que a mera idéia de soberania sobre um povo me obrigue a mim, que a ele pertenço, a obedecer sem previamente investigar o direito que é reivindicado.66 O que é dizer que o filósofo entendeu perfeitamente que a dificuldade de Bouterwek estava não apenas em admitir que a instituição do estado jurídico, definida, como sabido, pela formação de uma vontade geral e pública, possa ter começado, prosaica e tortamente, sem que um povo tivesse um dia de haver realizado efetivamente um tal ato,67 mas sobretudo na tese de que a mera ideia de soberania legitima por si , automaticamente, por assim dizer, o exercício do poder por quem o detiver incontrastadamente. Kant, no entanto, não recuou em vista desses dois pontos de escândalo para seu crítico, mas antes reiterou e radicalizou sua posição tratando de mostrar que é indispensável que se admita a ambos se se quiser efetivamente entender o fundamento do direito público. Com efeito, Kant diz na sequência do texto: O comando "Obedecei a autoridade que detém poder sobre vós" não indaga como essa autoridade chegou a esse poder [...], pois a autoridade sob cuja alçada viveis, está agora na posse do poder legislativo, e, embora possais arrazoar publicamente acerca de sua legislação, não podeis arvorar-vos em legisladores que a contrariem.68 A impassibilidade de Kant frente à crítica explica-se, em última análise, pelo caráter analítico do argumento que sustenta sua posição, cuja formulação no presente contexto, como repetidamente observado e abonado acima, é que permitir qualquer resistência ao poder instituído seria contraditório pois um poder supremo a que se pudesse legitimamente resistir não seria um poder supremo.

Neste passo, embora meu propósito aqui não seja o de abrir controvérsias exegéticas, é impossível deixar de notar que o mais recente dos comentários à "Doutrina do Direito", sem fazer referência à conclusão das "Observações explicitativas sobre os Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito", de maneira desconcertantemente arbitrária, qualifica este argumento como de caráter meramente formal69 e sustenta que ele se aplica unicamente ao estado jurídico e não a qualquer estado.70 Ora, a admitir-se essa leitura não não como entender a discussão de Kant com Bouterwek, nem a razão de ser da Conclusão das "Observações explicitativas".71 Na verdade, uma melhor interpretação para a dificuldade em pauta talvez possa ser formulada se prestarmos atenção à seguinte passagem da resposta que Kant deu ao resenhador do "Jornal de Göttingen": Todo e qualquer fato [Ein jedes Factum (Thatsache)] é um objeto no fenômeno (para os sentidos); em contrapartida, aquilo que pode ser representado pela razão pura tem que ser contado entre as idéias, não podendo para estas dar-se de modo adequado nenhum objeto na experiência, como é o caso de uma Constituição perfeita entre os homens, que a própria coisa em si.72 O que estou sugerindo é que se entenderá melhor Kant se considerarmos que os dois planos em que a "Doutrina do Direito" analisa o processo de instituição e ingresso em uma condição civil estão em uma posição análoga àquela em que se encontram tese e antítese nas antinomias dinâmicas, com relação às quais é possível que tese e antítese sejam ambas verdadeiras. Com efeito, se, seguindo essa sugestão hermenêutica, procurarmos reconstruir o paradoxo admitido por Kant na forma de uma antinomia teríamos como tese e antítese o seguinte: TESE: Somente a coligação de todas as vontades particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública pode constituir um poder soberano,73 legitimamente autorizado a por a todos sob obrigações que de outro modo não teriam74 e exigir a submissão incondicional da vontade do povo.75 ANTÍTESE: Quem quer que se encontre de posse do poder supremo de comandar e de legiferar sobre um povo constitui um poder soberano, legitimamente autorizado a por a todos sob obrigações que de outro modo não teriam e exigir a submissão incondicional da vontade do povo.

Ora, se nos colocarmos na perspectiva do realismo transcendental, estas duas proposições parecem irremediavelmente contraditórias, porque ou bem o soberano foi e é constituído pela coligação de todas as vontades particulares cuja vontade geral ele expressa, sendo então provido de legitimidade plena, ou bem não, e, neste segundo caso, o comando que ele vier a exercer será expressão de sua vontade particularizada e parcial, normativamente passível de contestação por parte de cada um e de todos aqueles a quem ela estiver sendo coercitiva e ilegitimamente imposta. Se, no entanto, nos colocarmos na perspectiva do idealismo transcendental e entendermos que uma constituição perfeitamente jurídica é da ordem das coisas em si, de sorte que nenhum objeto dado na experiência lhe poderá ser plenamente adequado, então poderemos entender também que, no plano dos fenômenos, a tomada do poder possa constituir uma vontade soberana capaz de exigir e impor a submissão incondicional da vontade do povo, a qual lhe deve obediência.

É inegável, no entanto, que, apresentada desse modo, a solução da antinomia é meramente aparente, pois enquanto a tese é apresentada em termos normativos, a antítese ou é um enunciado descritivo, ou, na melhor das hipóteses, uma máxima de caráter prudencial, na qual a recomendação de obediência é uma advertência contra os riscos de opor-se a um poder dotado com a força necessária ao exercício efetivo do poder legislativo e executivo. Ou, por outra: colocada nos termos apresentados até aqui é possível considerar que, introduzida a perspectiva do idealismo transcendental, distinguidos fenômenos e coisas em si, tese e antítese podem ser - analogamente ao que ocorre no caso das antinomias dinâmicas da "Crítica da razão pura" - ambas verdadeiras. Do ponto de vista prático, contudo, esta solução não tem interesse pois a posição expressa na antítese é normativamente nula, as duas ordens de análise da formação e da legitimidade do poder político permanecendo divorciadas e irremediavelmente paralelas. Bem consideradas as coisas, é preciso reconhecer, assim, que, segundo a razão prática, a antinomia permaneceria absolutamente não solucionada pois a tese é normativamente válida e a antítese normativamente inválida.

Para avançar na análise do ponto é preciso, pois, prestar atenção à diferença do modo em que a razão pura e a razão prática determinam a relação do condicionado ao incondicionado. Do ponto de vista da razão pura, a síntese necessária à passagem cognitiva do condicionado ao incondicionado é impossível.

Do ponto de vista da razão prática, contudo, como Kant diz, aliás, na própria "Crítica da razão pura", na medida em que a razão é causa capaz de produzir as ações, encontramos outra regra e outra ordem.76 Com efeito, no domínio prático, uma vez admitido que os homens como seres racionais podem ter "um fundamento puramente intelectual [como] determinante de sua causalidade no mundo sensível",77 não subsiste a inacessibilidade do condicionado, cuja realização, ao contrário, torna-se uma obrigação para os sujeitos práticos.78 Ou, como Kant diz em "Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática": em uma teoria que se funda no conceito de dever, está deslocada a apreensão por causa da idealidade vazia desse conceito. Pois, não seria um dever intentar um certo efeito de nossa vontade, se ele não fosse possível também na experiência (quer ele se pense como realizado ou como aproximando-se constantemente de seu cumprimento) [...].79 Por isso, uma vez existente "um povo unido por lei sob uma autoridade" - o que compreende o despotismo, conforme a tipologia das formas de sociedade civil enumeradas na Antropologia80 - "ainda que possa padecer de grandes falhas e erros graves"81 e "a organização do Estado seja em si mesmo deficiente"82 e conquanto ocorra que governante proceda contra a lei,83 configurando o que pode ser "tido como um abuso considerado como intolerável da autoridade suprema",84 o povo deve tomar tal autoridade como legítima e a legislação que dela emanar como sendo o passo concreto necessário à saída do estado de natureza e a precária forma de estabelecimento de uma vontade pública.

Este ponto Kant o demonstra argumentando que obedecer a tal autoridade soberana é obrigatório, pois a "[...] resistência à legislação maior nunca pode ser considerada como algo distinto daquilo que contraria a lei e, com efeito, como algo que suprime toda constituição."85 O que não é senão dizer que resistir a autoridade que detém efetivamente o poder de Estado é contrariar diretamente o postulado do direito público e retornar ao estado de natureza. Por conseguinte, o estabelecimento fático de uma vontade soberana, mesmo que ainda introdutora tão somente da lei, mas não da liberdade, deve ser entendida como normativamente aceitável na medida em que é um, talvez o meio de saída do estado de natureza.

Em resumo, muito embora uma constituição perfeitamente jurídica seja uma coisa em si e, como tal seja, nem mais nem menos, a norma eterna para toda constituição política em geral,86 à qual nenhuma das sociedades históricas pode ser inteiramente adequada e cuja aproximação com aquele ideal " pode conseguir-se penosamente após múltiplas hostilidade e guerras",87 as "enfermidades que lhe são imputadas tendo de ser paulatinamente suprimidas por reformas efetuadas pelo próprio Estado",88 não é menos verdade que "o poder legislativo atualmente existente deve ser obedecido seja qual for a sua origem"89 sendo absolutamente interdito e punível90 opor-se a ele.

Ora, voltando a olhar esta posição à luz da teoria das antinomias, torna-se claro que uma vez reconhecida a diferença entre os fenômenos e as coisas em si, segue-se a possibilidade de admitir que não apenas a ideia de uma constituição puramente republicana deve ser tida como normativamente válida, mas também a de que o podem ser as constituições civis reais, que, embora defectivas e distanciadas desse ideal, têm normativamente subjacentes a si a ideia de uma tal perfeita constituição.91 Nesta altura, convém, no entanto, tomar cuidado com o modo como estamos a nos expressar, pois sendo a distância entre as prescrições da razão prática e as ações humanas algo inevitável e, num certo sentido, trivial, posto que nossa vontade humana "não é em si plenamente conforme a razão",92 daí, contudo, não se segue, de modo algum, que, no âmbito da moralidade estrita, caiba cogitar da existência de uma antinomia entre o imperativo categórico e as ações humanas efetivas.93 No caso da fundação do Estado, no entanto, o que ocorre é algo completamente diverso desse desajuste inevitável e corrente entre o normativo e o fático, pois ali a afirmação e imposição de uma vontade unilateral é a incontornável condição inicial de estabelecimento de um querer público e de um direito estrito.94 O que é dizer que não pode haver uma vontade omnilateral e não contingente, uma vontade verdadeiramente republicana, se não houver, ou, pelo menos, se não tiver havido, uma vontade particular e contingente que tenha imposto incontrastadamente seu domínio. É, portanto, a afirmação simultânea de que a fundação do Estado e o estabelecimento do direito público são possíveis, segundo a tese, com base em uma vontade universal, não contingente e a priori e, segundo, a antítese com base em uma vontade particular e contingente, que nos autoriza a cogitar e a falar de uma verdadeira antinomia do direito público.

Convém ainda notar que essa dualidade na reconstrução dos fundamentos do direito político não nos deve surpreender. Com efeito, dada a ligação imediata entre coerção e direito95 e a tese de que as obrigações jurídicas "requerem", como sublinhou recentemente J.-F. Kervegan "um 'impulso exterior', por exemplo o temor da sanção",96 torna-se evidente que o conceito de direito pode ser concebido sob a pressuposição de que existe uma autoridade real, efetivamente existente, capaz de impor externamente, nos fatos, as sanções jurídicas. Aqui, porém, convém refinar a visão das modalidades, cabendo observar, para dar satisfação à objeção de Bouterwek, que mesmo se a existência de um soberano, portador do nome próprio tal ou qual, não é, e não pode ser dada a priori, conforme alegado por ele em sua crítica a Kant, não é menos verdade que a existência de algum sujeito real que porte e represente a soberania é, ela, necessária e certamente dada a priori, aliás conjuntamente com o conceito de direito público.

Na verdade, é exatamente isso que permite a Kant sustentar, ao mesmo tempo, (i) que a representação de uma constituição perfeitamente jurídica é uma Ideia e que seu objeto é da ordem das coisas em si e (ii) que: Quando existe um povo unido por leis sob a alçada de uma autoridade, então está dado como objeto da experiência em conformidade com a Idéia de sua unidade em geral sob a alçada de uma vontade suprema detentora do poder; mas, obviamente, na aparência; quer dizer, existe uma Constituição jurídica no sentido geral do termo existe, [...] ainda que portadora de grandes defeitos [...].97 O segredo e o sentido mais profundo da afirmação simultânea dessas duas teses - isto é, da resolução da antinomia do direito público -, se deixa revelar, no entanto, se admitirmos que aqui, no domínio prático-jurídico, contrariamente ao que se diz na refutação do argumento ontológico (CRP, A 600/B 628), a adição da existência a um conceito inteiramente defectivo do ponto de vista do direito público - o de um poder despótico - ter-lhe-á agregado a primeira das notas constituintes da perfeição jurídica: a de unificação de uma multidão de homens sob uma autoridade suprema, inequívoco, embora incoativo, modo de satisfação do postulado fundamental do direito público.


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