POR QUE AGOSTINHO NÃO É UM FILÓSOFO MEDIEVAL (E POR QUE É IMPORTANTE
COMPREENDER ISSO)
I
A tese é simples: Agostinho é um filósofo antigo, não um filósofo medieval,
porque ele pertence ao mundo antigo. Ela é estabelecida por fatos bem
conhecidos, mesmo se algum cuidado na sua apresentação é necessário. Ela é
suposta por algumas das principais histórias da filosofia medieval recentes,
que começam sua narrativa depois de Agostinho,1 mas não por todas.2 Não é
simples encontrar uma defesa claramente articulada de uma resposta ou outra.
Talvez a razão deste fato venha da irrelevância para a compreensão de Agostinho
da resposta a esta questão: sua importância reside em preocupações
historiográficas, não na interpretação de teorias filosóficas e, em particular,
uma ou outra escolha não afeta a compreensão de Agostinho ele mesmo.
É possível, no entanto, encontrar argumentos a favor da tese que situa
Agostinho entre os medievais. Steven Marrone a defende num capítulo do
"Cambridge Companion to Medieval Philosophy".3 Outra linha argumentativa se
deve a Peter Seele, que situa Agostinho entre a Antiguidade e a Idade Média.
Segundo Marrone, Agostinho é responsável pela "acomodação" entre o pensamento
cristão e a filosofia antiga, que é o que caracteriza na filosofia medieval.4 A
hipótese de Seele é teoricamente mais ambiciosa: o autor aplica o conceito de
"limiar de épocas" (Epochenschwelle) de Hans Blumenberg à transição entre a
Antiguidade e a Idade Média. A mudança de época em questão, associada tanto à
mudança de paradigmas de Kuhn quanto a mudanças institucionais, explica-se por
uma crise de traços fundamentais na cultura, que é resolvida por uma ampla
reconfiguração na qual Agostinho desempenha um papel central.
Vou partir da crítica à tese mais simples de Marrone. Este primeiro movimento
permitirá o reconhecimento dos fatos pertinentes, acerca dos quais não há
realmente controvérsia, e o estabelecimento de explananda que parecem razoáveis
para a periodização em história da filosofia aplicados à separação entre as
filosofias antiga e medieval. À luz deste percurso inicial, examinarei as
consequências da proposta de Blumenberg-Seele para a divisão entre os mundos
antigo e medieval e, finalmente, farei outra proposta para um quadro teórico
que me parece mais adequado para a periodização em história da filosofia. Minha
sugestão é a utilização da epidemiologia cultural proposta por Dan Sperber, que
permite o acolhimento de explananda que podem ser motivados de maneira
independente e coloca a história da filosofia no quadro da história de mudanças
culturais, da qual ela é apenas uma parte. Há uma tese mais geral e mais
neutra, que não envolve a aceitação das teses da epidemiologia cultural: que
Agostinho seja um filósofo medieval segue-se da aceitação da filosofia como
parte da cultura e de haver uma enorme diferença cultural entre os séculos IV e
V e os séculos XI-XIV.
II
Marrone divide a filosofia medieval em três fases: a primeira entre o século II
(ou antes) ao século V. A segunda começa no século V e se estende até o século
XI, a terceira vai da segunda metade do século XI e até o século XIII, ou
talvez o século XIV. A segunda fase é um hiato de seis séculos de "dormência",5
depois deste período a filosofia surge como um novo modelo, com grande ênfase
na lógica. A mera descrição da proposta deve mostrar que há um problema nesta
periodização – o hiato de seis séculos parece grande demais para o período de
onze séculos.
As teses de que a filosofia medieval seja o resultado da "síntese" entre a
filosofia antiga e as tradições judaica e cristã, e que esta síntese tenha sido
feita por Agostinho, são o ponto central da classificação do bispo de Hipona
como um filósofo medieval.6 Marrone defende explicitamente o primeiro
componente deste argumento:
[...] o que conhecemos como filosofia medieval surgiu no Império
Romano tardio de uma surpreendentemente completa acomodação mútua
entre a crença cristã e o pensamento clássico. (Morrone,_2003, p. 10)
Esta descrição não está correta. Inicialmente, os adjetivos e o advérbio
escolhidos por Marrone não se justificam. As influências não parecem ser
mútuas, ou pelo menos não são simétricas. A filosofia antiga forneceu o quadro
teórico que foi assumido pelas religiões monoteístas e não é claro que tenha
ocorrido o movimento no sentido inverso.7 Além disso, a associação entre a
filosofia antiga e o pensamento cristão não se fez apenas em termos teóricos,
mas em função das estruturas de poder que também são assimétricas.8
Não há sentido tampouco em se falar em "acomodação completa": nos dois polos
apontados por Marrone, há quem não aceite as teses "acomodadas", cada passo
envolve escolhas teóricas que deixam outras alternativas de lado.9 Finalmente,
na medida em que a acomodação não é nem mútua, nem completa, não parece fazer
sentido dizer que há nela algo de "surpreendente": de fato, não parece haver
nada de extraordinário na afirmação de que, quando duas (ou mais) tradições
diferentes se encontram num mesmo espaço, haja tanto pessoas dispostas a adotar
uma mescla de cada uma das tradições envolvidas quanto aquelas inclinadas antes
a rejeitar aquela que não é a sua. Esta associação é tanto mais provável quando
existem razões para a adoção de uma tradição nova.10
A infeliz escolha das qualificações por Marrone não são, no entanto, o
principal problema. O ponto central é que as relações entre a filosofia antiga
não cristã e o cristianismo nos séculos III-V e nos séculos XI-XIII são muito
diferentes. A proximidade entre o cristianismo e os diferentes tipos de
filosofia nos séculos III-V é sem dúvida importante, mas é falsa para o período
que começa no XI (não é muito claro por que Marrone escolhe os séculos XI e
XIII como limites da filosofia medieval, mas isso não modifica meu argumento):
não há então convergência entre cristianismo e qualquer outra doutrina, porque
não há outra doutrina disponível – como diz G. R. Evans, ser filósofo não era,
no século XI, "uma alternativa prática a ser cristão".11 Na Antiguidade tardia,
inversamente, cristãos e pagãos conviviam. Agostinho ele mesmo percorreu
diferentes filosofias até se decidir pelo cristianismo, que era uma das opções
abertas a ele. Nenhuma dessas figuras pode ser encontrada nos séculos XI-XIII,
o percurso agostiniano não seria possível nos séculos XII ou XIII.12
A descrição mesma da "acomodação" entre pensamento cristão e grego é
enganadora, já que esta dinâmica inclui os pensamentos judaico e islâmico – o
que torna os adjetivos "mútua", "completa" e "surpreendente" ainda mais
suspeitos. Se essas três religiões são parte da dinâmica à qual Marrone faz
alusão, elas não o fazem num único espaço, nem num único tempo, o que as torna
pouco aptas a servir de critério à periodização filosófica. Vamos partir de
outra pergunta: como podemos comparar a primeira e a terceira fases da
filosofia medieval segundo Marrone?
III
A queda do Império Romano do Ocidente, no último quarto do século V, não marca
uma ruptura absoluta do modo de vida romano das elites. Ao contrário, reis
Godos, Lombardos e outros pensavam dever governar à maneira dos romanos e, para
isso, empregavam precisamente a elite letrada romana. Isso garante alguma
continuidade da atividade letrada sob a dominação dos "bárbaros". Este é o
caso, por exemplo, de Boécio, um aristocrata romano cristão que teve um alto
cargo administrativo no governo do ostrogodo Teodorico. No entanto, nas
palavras de Chris Wickham, "a cultura secular das elites do Império Romano
deixou de ser uma marca de status. [...] conhecer Virgílio e outros autores
clássicos seculares de cor, ser capaz compor versos e escrever numa prosa
complexa [...] deixa de ser importante" (Wickham,_2009, p. 106). Uma
consequência interessante desta dispersão cultural é desaparecimento de
controvérsias doutrinais, que tanto marcaram a época e a vida de Agostinho.13 A
cultura letrada desaparece em todos os estratos sociais, assim como a motivação
mesma para se aprender a ler e a escrever.14 O que começa no século V não é um
período durante o qual assistimos a uma renovação progressiva da atividade
filosófica, mas um período no qual esta atividade virtualmente desaparece. Esta
descontinuidade explica alguns traços importantes da filosofia dos séculos XI-
XIII (assumindo que estes são os séculos da filosofia tipicamente medieval,
como sugere Marrone).
1. O primeiro destes traços é o lugar da filosofia na cultura. Inicialmente, a
rarefação da atividade filosófica no período de "dormência" é tal que, ao
ressurgir, ela pode ser localizada em lugares específicos, sempre, ou quase
sempre ligados a uma instituição, a Igreja: em mosteiros ou em escolas
associadas a catedrais ou a cortes, etc. As universidades, que desempenham um
papel central a partir do século XIII, são um desenvolvimento desta história de
organização institucional da transmissão do saber.15 Nada disso é verdadeiro no
século IV, tanto pela relativa diversidade de saídas para aqueles que têm uma
formação filosófica, que revela uma presença mais diversa da filosofia na
sociedade (advogado, professor etc.),16 como pela ausência de algo análogo à
centralização institucional da difusão da filosofia, como foi o caso das
universidades a partir do século XIII.
2. Associada a esta rarefação está a concentração quase exclusiva da atividade
filosófica, como da atividade letrada em geral, em torno da Igreja. Mesmo se
isso não vale em geral,17 esta concessão pouco muda o quadro geral: a filosofia
não se apresenta como uma alternativa à doutrina da Igreja. Este é um traço que
opõe o lugar que a filosofia pôde ocupar nas vidas atribuladas de Agostinho e
Boécio e nas histórias de filósofos tão diferentes quanto Abelardo e Tomás de
Aquino: a estes não se apresentou uma alternativa a ser cristão e mesmo os
modos como se devia ser cristão eram muito mais restritos do que o que se
apresentava na Antiguidade tardia, caracterizada pelos extraordinários alcance
e variedade do que é chamado de maneira vaga "Platonismo Cristão" (Armstrong,
1967, p. 8). É claro que Abelardo e Tomás conheceram polêmicas doutrinárias,
mas dentro de um quadro institucional que regulava a forma mesma da discussão.
Não há, sobretudo, no século XI ocidental, alguém que se torne cristão depois
de ter percorrido outras alternativas filosóficas, i.e., depois de ter sido não
cristão, como é precisamente o caso de Agostinho. Este fato é fundamental na
prática filosófica. Não há escolha pelo cristianismo e, mesmo se há, dentro de
certos limites, diferentes opções teóricas, ser cristão é um elemento fixo.18
3. Um outro traço importante que se explica pela descontinuidade entre os
séculos V e XI é o desenvolvimento ritmado pela tradução de textos gregos e
árabes.19 O que importa aqui não é o papel da atividade do comentário nem a
centralidade da materialidade dos textos no desenvolvimento das discussões
filosóficas, já cruciais na Antiguidade tardia, mas o fato de a progressão da
filosofia se explicar pelo ritmo de entrada dos textos. Isto é claro no modo
como desenvolvimentos teóricos se organizam em torno dos textos aristotélicos
traduzidos e comentados por Boécio e na importância da chegada massiva das
traduções de Aristóteles e comentadores entre o fim do século XII e o início do
século XIII. Esta observação nos lembra do caráter local da periodização: os
textos de Aristóteles traduzidos do grego para o latim chegam de algum outro
lugar e já haviam sido traduzidos para outras línguas. Não há nada desta ordem
no século V, nem, claro, nos séculos anteriores, porque há uma continuidade
muito maior na transmissão da filosofia de Platão e Aristóteles a Proclo e
Siriano.20
4. A dinâmica linguística é ela mesma muito diferente nos séculos V e XI.
Aqueles que escreveram filosofia no ocidente entre os séculos XI e XIII não
tinham o latim como língua materna, diferentemente de Agostinho. Além das
claras diferenças no latim entre os séculos V e XI, há uma dinâmica linguística
própria do ocidente medieval latino, entre a língua referencial, as línguas
locais e as línguas da corte, que dá não apenas a forma específica na qual boa
parte da produção filosófica medieval se faz, mas também resulta em percepções
diferentes acerca dos diferentes domínios linguísticos.21
IV
Todos esses fatos são bem conhecidos. O problema reside em saber se eles têm
alguma importância para a periodização filosófica. Minha primeira sugestão é
que a periodização filosófica deve nos permitir classificar a atividade de
filósofos ao longo do tempo de maneira informativa em duas dimensões: (a) as
semelhanças e diferenças nos modos como se faz filosofia e (b) uma narrativa da
constituição destes modos. Sobre (a), os quatro pontos expostos acima
constituem diferenças cruciais entre a atividade filosófica nos séculos II-VI e
nos séculos XI-XIII: (i) o lugar da filosofia na cultura, (ii) sua relação com
a religião, (iii) o modo como seus temas de estudo evoluem e (iv) o modo como
se constrói e é percebida a língua na qual a filosofia se escreve. O segundo
ponto também é importante: é claro que não podemos exigir que a classificação
em períodos resulte em características absolutamente uniformes, o que é
provavelmente verdadeiro de qualquer classificação. O que me parece razoável
esperar de uma classificação em períodos históricos é que ela nos forneça
razões propriamente históricas para as mudanças. Existe, por exemplo, uma
narrativa contínua, i.e., com transformações progressivas, de como as
universidades surgiram a partir de um crescimento na cultura letrada a partir
do século XI. Há também uma história de seu surgimento como um exemplo de
organização corporativa de uma profissão e da dinâmica própria que leva da
busca de estabilidade e liberdade diante de poderes locais junto a instâncias
mais amplas, em particular o Papado, à restrição ainda maior de seu
desenvolvimento por estas mesmas instâncias.22 Ambas as histórias são parte da
explicação de (i)-(iv). Não há uma dinâmica com este grau de continuidade
ligando o século V ao século XI – ao contrário, há uma ruptura nos traços
identificados em (i)-(iv).
É claro que existem continuidades entre os séculos V e XIII e rupturas entre os
séculos XI e XIII. Pode-se, sobretudo, construir outras narrativas, a partir de
outros interesses, que tenham resultados distintos. Alain de Libera, por
exemplo, identifica a "episteme alexandrina" com o conjunto de problemas em
torno da questão dos universais delimitado por sua interpretação por Alexandre
de Afrodísia, ou, mais precisamente, pela sua transmissão textual, do século II
ao século XII.23 Este recorte não corresponde a limite algum do tipo discutido
aqui, nem é esta a intenção de De Libera; trata-se antes de identificar um
conjunto de problemas específicos e a história de sua transmissão através de
textos interligados, de uma rede textual, segundo sua expressão. Ainda mais
central para nossos propósitos, a "Cambridge History of Later Greek and Early
Medieval Philosophy" se dedica precisamente a descrever como o pensamento
clássico foi absorvido pelas religiões monoteístas – existe, portanto, uma
narrativa coerente a ser oferecida sobre este problema preciso. Segundo o
editor deste volume, divisões da história da filosofia são arbitrárias e este
problema específico fornece uma unidade suficiente para uma narrativa longa e
com alguma unidade.24 Não me parece que o termo "arbitrário" seja o mais
adequado, se ele indica que qualquer divisão é possível; talvez seja melhor
dizer que há uma pluralidade de narrativas possíveis segundo o que se pretende
explicar, com as diferentes divisões que delas resultam. Devemos nos perguntar
então se existe uma narrativa central que sirva como base para a periodização
da atividade filosófica de uma dada época. A suspeita, claro, é que cada
interesse levará uma narrativa particular e que não há razão para se propor uma
narrativa mestra.25
A pista vem, mais uma vez, de De Libera. Desde "La Philosophie Médievale"
(1993; 1998), De Libera tem insistido sobre a importância da compreensão da
história da filosofia como um amplo movimento de transferência cultural. O
elemento central está no fato de a filosofia ser uma parte da cultura, a
história de suas continuidades e rupturas é parte da história mais geral, da
história dos livros e do público que por eles se interessa, das instituições
que a transmitem, da história das línguas, da história política e econômica
etc. Esta compreensão leva a uma outra visão do encontro entre a filosofia
antiga e a filosofia medieval:
[…] como se fez o trabalho medieval sobre o arquivo, ou, se se
preferir, como a Idade Média encontrou a Antiguidade? Este é o
terreno no qual se situa o problema das permanências, recorrências e
esquecimentos: não o terreno de uma metafísica ou de uma teologia da
história, mas de uma teoria da condição textual. (De_Libera,_1999, p.
11)
Tudo isso é provavelmente evidente. No entanto, mais uma vez, os fatos que
separam a Antiguidade tardia do período medieval são também conhecidos. A
narrativa central da história da filosofia é aquela que a conecta com outros
aspectos da história da qual faz parte. Ao puxar os fios da condição textual da
filosofia, encontraremos tudo o que separa economicamente, politicamente,
culturalmente, a Antiguidade tardia da Idade Média, desde a diminuição da
difusão da escrita26 até a redução no número de bibliotecas. Sobre este último
ponto, Lionel Casson descreve a situação na Itália do seguinte modo:
Nos prósperos dias do Império Romano, a Itália tinha bibliotecas
municipais distribuídas em toda península; estas bibliotecas
desapareceram quando, cidade após cidade, ela caiu sob o domínio
ostrogodo no século VI. [...] Na época de Augusto e Trajano, [Roma]
tinha bibliotecas públicas esplêndidas, tinha uma população de mais
de um milhão de habitantes; nos sangrentos anos [de Justiniano (527-
565)], sua população caiu a 30.000. Encolhida e destruída, Roma não
tinha nem os fundos para sustentar bibliotecas nem público para
utilizá-las.27
A narrativa central da história da filosofia é aquela que a conecta com a
história das bibliotecas e com a história da difusão da escrita, mas também com
outras mudanças não diretamente ligadas à atividade intelectual, que são, no
entanto, partes das mudanças na Europa entre o fim do Império Romano e os
séculos centrais da Idade Média.28 Podemos reformular a tese central deste
artigo de maneira negativa: considerar Agostinho como um filósofo medieval
significa separar a história da filosofia das histórias política, cultural e
econômica, ou ainda das histórias das bibliotecas, das cidades, do letramento
etc. O quadro geral de compreensão da história da filosofia é o da translatio
studiorum, como propõe De Libera, não porque devemos comprar o aparato
ideológico que forjou este tipo de tema na Idade Média,mas porque ele nos leva
a considerar os movimentos culturais amplos nos quais a filosofia se constrói e
o modo como eles são pensados em cada época.29 Esta é a importância crucial do
tema da translatio studiorum na história da filosofia: considerar a história da
filosofia como parte da história da cultura.
Para cada um dos pontos (i)-(iv) apontados acima, não há apenas um enorme hiato
que se abre entre o mundo de Agostinho e Boécio e aquele de Abelardo e Tomás. A
dinâmica que os explica foi desencadeada por acontecimentos que, como diz
Wickham, "não eram inevitáveis e não foram percebidos como tais por aqueles que
os viveram" (Wickham,_2009, p. 79). Parece difícil pensar que a forma que a
filosofia tomou no século XIII estivesse de algum modo contida na filosofia do
século V, supondo que haja algum sentido em dizer isso. De maneira talvez menos
metafórica: o conjunto de acontecimentos que levam aos traços (i)-(iv) se
explica pelo virtual desaparecimento e pelo ressurgimento da atividade letrada
em geral, que não podem ser explicados por elementos já existentes no século V.
Como pensar, por exemplo, que a dinâmica linguística do Ocidente medieval, ou
as associações entre pares que marcam o surgimento da universidade, ou mesmo a
forma particular de transmissão da filosofia grega, na qual comentários de
filósofos muçulmanos têm um papel central, estivessem de alguma forma presentes
no Ocidente do século V? Como negar, por outro lado, que estes elementos sejam
constitutivos da história da filosofia medieval?
A sugestão não é então que exista apenas uma história a ser contada acerca da
filosofia entre os séculos I e XIII, mas que existe uma narrativa central para
este período e que esta narrativa coloca Agostinho como parte da filosofia
antiga. Esta narrativa é aquela que coloca a filosofia como parte da história
geral e leva a uma periodização que é compatível com outros traços da história
europeia.
V
Mas será que não se pode propor outra caracterização de uma mudança de época na
filosofia? Blumenberg dá uma resposta deste tipo. Segundo ele, "a formação da
Idade Média só pode ser compreendida como uma tentativa de proteção definitiva
contra a síndrome gnóstica" (Blumenberg,_1999_(19882), p. 141). A tese é que há
um princípio teórico central, ou um pequeno conjunto de princípios que unifica
e dá o significado a toda uma época. No caso da IM, este princípio é, segundo
Blumenberg, a resposta agostiniana ao problema do mal no mundo levantado pela
Gnose: Agostinho tomou uma decisão para a IM, a de situar o mal no homem, não
no mundo.30 Seele segue este tipo de abordagem. Como se poderia esperar, a vida
atribulada de Agostinho, em particular a passagem do Maniqueísmo ao
Cristianismo, representa precisamente esta escolha. A conversão de Agostinho é,
assim, um marco fundamental de mudança de época, uma mudança no mundo interior
que espelha e explica a mudança no mundo exterior. Com esta posição, Agostinho
se torna um intérprete central e uma marca da passagem do mundo Antigo para o
mundo medieval.31
Podemos explicar a transição da filosofia antiga à filosofia medieval a partir
de uma escolha deste tipo? Vamos redescrever os quatro pontos expostos acima:
1. o lugar da filosofia na cultura: a localização mais restrita da filosofia
na cultura a partir do século XI (ou antes) e sua absorção no quadro
universitário no século XIII, em oposição à presença mais diversificada
da filosofia na cultura na Antiguidade tardia e à ausência de um quadro
institucional tão bem delimitado e central;
2. a relação entre filosofia e religião: a onipresença da Igreja católica em
virtualmente toda a atividade filosófica e a ausência de uma alternativa
a ser cristão, em oposição à diversidade do "Platonismo Cristão" da
Antiguidade tardia e, claro, à possibilidade de não ser cristão;
3. a evolução dos temas filosóficosdecorrendo das diferentes levas de textos
disponíveis, em oposição à relativa continuidade da atividade filosófica
no mundo antigo;
4. a língua da filosofia: o contraste entre as línguas vernaculares e
línguas de referência, em particular, para o ocidente, o latim, que dá
uma forma muito particular à linguagem filosófica, em oposição ao latim
como língua vernacular para Agostinho.
Nenhum desses traços pode ser explicado ou previsto a partir de decisões
teóricas que Agostinho ou outro filósofo qualquer pode ter tomado – a se supor
que 'decisão' seja um termo adequado aqui. Se estes forem elementos que
esperamos categorizar numa periodização filosófica, Blumenberg e Seele não têm
as categorias adequadas para fazê-lo.
O modelo de Blumenberg não é adequado porque ele não capta as dinâmicas
culturais que são pertinentes para a explicação do desenvolvimento da atividade
filosófica. Inicialmente, mesmo se nos concentrarmos numa explicação puramente
temática da história da filosofia, a sugestão que "decisões" agostinianas sejam
decisivas não é correta em muitos casos. Agostinho não tem papel algum, por
exemplo, no desenvolvimento da teoria da suposição, um produto tão importante
quanto típico da filosofia medieval. Ele não é central tampouco na também
típica e importante querela dos Universais. Na longa narrativa deste problema
por De Libera, Agostinho é muito pouco presente; no index nominum da "Querelle
des Universaux", o Bispo de Hipona tem menos da metade de entradas de Averróis
e Boécio e menos de um terço de Avicena e Porfírio; no "L'Art des Généralités"
são meras duas entradas. No domínio da lógica modal, Simo Knuuttila diz que
Agostinho adere à compreensão estatística das modalidades, e que a ideia de
possíveis não realizados aparece de maneira marginal em sua teoria.32 Este
domínio é crucial porque ele é parte central do problema que, segundo
Blumenberg, marca a passagem da filosofia medieval à filosofia moderna. Nesse
caso, Agostinho desempenha um papel mais importante do que nos exemplos
anteriores, mas que ainda fica aquém da ideia de possibilidades sincrônicas,
tão importante a partir do final do século XIII. De qualquer modo, não tem
sentido falar-se em decisão, se por isso se quer dizer que uma posição teórica
sua determinou desenvolvimentos teóricos posteriores (e este é o único modo que
consigo entender esta posição). Cada filósofo representa um elo numa complexa
história. Knuuttila sugere que Agostinho deu um passo importante numa longa
história que levará à aceitação plena de uma nova concepção de modalidades
apenas no século XIII – não se trata, portanto, de alguma "decisão" que ele
tenha tomado.
Mas mesmo esta descrição é enganadora. Agostinho não tomou a decisão
constitutiva da IM não porque outro pensador o tenha feito – ninguém o fez.
Esta ideia não tem utilidade alguma na explicação da dinâmica descrita
parcialmente nos traços acima, são as "condições textuais" que levam teorias de
um ponto a outro, e estas condições são apenas parcialmente explicadas, se
tanto, por aspectos eles mesmos teóricos. Escolhas teóricas de um filósofo só
têm importância para a periodização filosófica se elas forem assumidas nos
movimentos que explicam dinâmicas mais amplas de transmissão de problemas
filosóficos.
VI
O que devemos buscar então? Minha sugestão é que devemos buscar, inicialmente,
os mecanismos de transmissão e estabilidade de teses e temas filosóficos. Vou
fazer muito brevemente uma proposta que visa inserir a história da filosofia no
quadro geral de transmissão de ideias e, em seguida, propor como este quadro
geral pode auxiliar na compreensão do que pode ser captado por sua
periodização.
Um modelo de tratamento que me parece frutífero é o da epidemiologia de
representações, proposto por Dan Sperber. A ideia é buscar a explicação do
surgimento, da expansão, da fusão, da divisão e da morte de estirpes de
representações em fatores que explicam sua transmissão de indivíduo a
indivíduo. A primeira observação é que buscamos a explicação de por que
indivíduos aceitam determinada teoria, ou antes por que eles têm a oportunidade
de aceitar determinada teoria. Lembremos que um dos aspectos cruciais que
separa Agostinho de filósofos dos séculos XII e XIII é que ele pôde aceitar
teorias não cristãs, o que não é o caso de Tomás de Aquino e Abelardo.
A diferença se situa nos ambientes nos quais diferentes ideias circulam. Esta
dinâmica pode ser pelo menos parcialmente explicada pelo que Sperber descreve
como os fatores ambientais, que incluem
[...] as recorrências de situações nas quais a representação leva ou
contribui para a ação apropriada, a disponibilidade de fontes
externas de memória (em particular escritas) e a existência de
instituições que se dedicam à transmissão da representação. (Sperber,
1996, p. 84)
Enunciada de maneira direta, eis a sugestão: as teses filosóficas discutidas e
aceitas tipicamente por filósofos medievais são aquelas cuja aceitação é
promovida por instituições dedicadas a sua transmissão, que estão representadas
em textos disponíveis a estes filósofos e cuja defesa é aceita, ou cuja recusa
é penalizada, nos contextos nos quais se encontram esses filósofos.
Uma vez que se coloca a questão desse modo, parece claro que os fatores
ambientais de difusão de representações filosóficas mudam entre os séculos V e
XI nestas três dimensões: (i) o que conta como uma ação apropriada, (ii) a
existência de instituições dedicadas à transmissão de ideias e (iii) a
disponibilidade de fontes externas.
(i) A aceitação de ideias não cristãs é um caminho aberto no tempo de
Agostinho, caminho que ele mesmo percorreu. Este caminho já está fechado há
muito no Ocidente no século XI. Se é claro que no XIII no Ocidente não era dada
a um filósofo a possibilidade de não ser cristão, versões alternativas do
cristianismo mesmo eram combatidas, o que seleciona as ações adequadas em cada
contexto. Luca Bianchi escreve assim sobre a censura na universidade medieval:
Os filósofos e teólogos que trabalhavam em Paris eram submetidos a
entraves muito mais numerosos e diversos do que normalmente se
imagina. (Bianchi,_1999, p. 13) A luta contra as heresias nos meios
acadêmicos é apenas um aspecto de um fenômeno muito mais amplo, a
repressão a toda forma de dissidência intelectual. O que caracteriza
a censura nos séculos XIII e XIV é justamente a ampliação da esfera
de ação. (Bianchi,_1999, p. 15)
Olivier Morin observa, assim, como a motivação para a transmissão é um fator
para a transmissão de saberes.33 Um aspecto da motivação se situa no ambiente
que penaliza ou premia a transmissão ou, ao contrário, sua não transmissão, mas
também que os indivíduos pensem que devem ou podem fazê-lo.
(ii) As instituições dedicadas à transmissão de textos são muito distintas
entre os séculos V e o que se desenha a partir do século XI. Como já
observamos, há uma enorme diferença entre as bibliotecas no mundo antigo e no
início da IM. AUniversidade, que desempenhará um papel central no século XIII,
com suas tensões entre o controle pela Igreja e a vontade dos mestres de
abertura ao novo, com a diversidade de estudantes e professores vindos de toda
a Europa, com a forma tão rígida de seu ensino e, consequentemente, de seus
textos, simplesmente inexiste na Antiguidade Tardia. A educação pagã que
Agostinho recebeu teria sido impossível nos séculos XII ou XIII.34 As
instituições respondem por um aspecto crucial na transmissão de tradições, a
robustez:
Sabemos que a redundância e a repetição podem estabilizar tradições mesmo
quando a transmissão não é muito fiel. Uma certa dose de repetição e
redundância é mesmo indispensável: se um item cultural só pode ser apreendido
de um único modelo, em uma vez, ele desaparecerá, mesmo se representar uma
vantagem adaptativa para os que o adotarem, e mesmo se ele puder ser recuperado
facilmente por um aprendizado individual (Morin,_2011, p. 139).
Reconhecemos aqui, por um lado, como a transmissão de temas filosóficos pôde se
interromper em torno do século V, mas também como a existência de instituições,
como a universidade, desempenha um papel central na estabilização de tradições
filosóficas a partir do século XIII.
(iii) Os textos disponíveis também são muito diferentes num caso e no outro –
não apenas aqueles que Agostinho de fato leu, mas aqueles que estavam
disponíveis a seus contemporâneos que liam grego. A filosofia medieval se
forja, entre os séculos XI e XIII, pelo ritmo de chegada de traduções de textos
gregos e de seus comentadores dos mundos grego e árabe. Boécio, um pouco
posterior a Agostinho, é precisamente um dos tradutores de alguns dos textos
mais importantes para a IM e está num mundo no qual a literatura grega está
disponível e tem leitores – estas duas condições, claro, não são independentes.
Minha sugestão é que o que explica o surgimento de estirpes de representações
propriamente medievais, que são versões mais ou menos estáveis de estirpes de
representações gregas ou monoteístas, com um grau de especificidade própria que
merece uma divisão histórica, são precisamente estas mudanças nas condições de
transmissão de ideias.
Esta associação é compatível com a experiência do historiador da filosofia
medieval, que não apenas reconhece estes três fatores ambientais como típicos
da Idade Média, diferentes dos ambientes que a precedem e que se seguem a ela,
como é capaz de reconhecer o misto de continuidade e rupturas das quais ela se
faz. Fatores ambientais explicam, inicialmente, a profunda ruptura que se
desenha desde o final do século V e explicam também quais representações
filosóficas serão retomadas a partir do século IX. A identificação puramente
abstrata de teses filosóficas, como fazem Marrone, Blumenberg e Steele, não é
suficiente para explicar este padrão de continuidades e rupturas. Também não
chega a ser surpreendente que uma periodização histórica seja sensível a um
acontecimento do porte da queda do Império Romano do ocidente.
A separação entre o mundo antigo e o mundo medieval não é um teste interessante
para esta sugestão acerca da periodização em história da filosofia. Adiferença
entre estes momentos na história do ocidente é muito grande, talvez seja mais
importante perguntar por que razão se pôde perder uma fronteira tão evidente,
i.e., por que se pode considerar Agostinho um filósofo medieval. Interessa mais
buscar o que a tese de Sperber poderia nos dizer sobre a passagem da filosofia
medieval ao Renascimento e à filosofia moderna. Aqui serei muito breve.
Retomemos os traços centrais que caracterizam ambientes de difusão de ideias:
(i) o que conta como uma ação apropriada, (ii) a disponibilidade de fontes
externas e (iii) a existência de instituições dedicadas à transmissão de
ideias. Nessas três dimensões, também mudanças importantes começam a ocorrer a
partir do século XIV e, de maneira mais clara, do século XV em diante.
Inicialmente, a possibilidade de uma atividade intelectual fora do controle da
Igreja aumenta, o que aumenta o espaço das ações apropriadas. Há uma maior
disponibilidade de fontes externas, tanto pela tradução de novos textos antigos
quanto pela circulação de textos contemporâneos também fora do controle
universitário. Finalmente, a modificação do ambiente institucional ele mesmo,
em particular pela possibilidade da existência de uma atividade intelectual
fora da universidade.35
O que há de particular agora é que esta mudança coincide temporalmente com uma
filosofia que ainda se desenvolve dentro dos condicionamentos próprios da
filosofia medieval, a assim chamada escolástica tardia. Aqui há de fato um
problema de periodização: será que Montaigne (1533-1592) e Pedro da Fonseca
(1528-1599) pertencem à mesma época filosófica? E o que dizer de Descartes
(1596-1650) e João Poinsot (1589-1644)? Talvez aqui deixe de fazer sentido
falar de épocas diferentes e o interesse da aplicação dos mecanismos propostos
por Sperber apareça mais claramente. Por um lado, há uma grande continuidade de
problemas entre a filosofia tardo-medieval e a primeira filosofia moderna, que
depende da continuidade das condições textuais.36 Por outro lado, há uma não
menos clara diferença em muitos dos mecanismos que garantem esta transmissão –
o leitor a quem os textos filosóficos são dirigidos, as instituições nas quais
se encontram seus autores, as línguas nas quais escrevem etc. Uma vez que temos
ferramentas mais finas de compreensão das modificações da história da
filosofia, podemos evitar classificações estanques que tornariam opacas estas
continuidades, como alertam Dominik_Perler_(2008) e Robert_Pasnau_(2011,_pp._1-
5) sem perder as mudanças nas condições da atividade filosófica que
classificações históricas buscam captar.
Há outro aspecto importante que deve ser trazido à baila aqui. Ambientes de
difusão de ideias são parcialmente constituídos pelas ideias elas mesmas acerca
do que deve ser aceito ou não – o que conta ou não como uma ação apropriada,
assim como o que motiva a criação de instituições e a busca de fontes que
garantem a transmissão destas ideias. Talvez parte do que ocorra a partir do
século XV seja uma mudança no que Sperber chama de "crenças reflexivas", que
são aceitas "em virtude de crenças de segunda ordem sobre as crenças elas
mesmas" (Sperber,_1996, p. 89).
Como se poderia esperar, fatores psicológicos e ambientais são eles
mesmos afetados pela distribuição de representações. Representações
previamente internalizadas são um fator chave na susceptibilidade que
uma pessoa tem para novas representações. O ambiente humano é, em
grande medida, feito pelo homem, e feito a partir de representações
culturais. Como consequência, a retroalimentação (feedback loops)
deve ser esperada tanto em modelos que explicam famílias particulares
[de representações] quanto entre modelos. A complexidade resultante é
ecológica, mais do que orgânica. (Sperber,_1996, pp. 83-84)
Por que uma tese deve ser aceita? O fato de ela ser uma tese cristã, ou
aprovada pela Igreja, ou aristotélica, é um fator para sua recusa ou para sua
aceitação? Parece que parte do que está em jogo na passagem da filosofia
medieval à filosofia moderna – muito mais complicada e nuançada do que a
transição que nos ocupa – é precisamente que diferentes grupos sociais passaram
a dar respostas diferentes a estas perguntas, mesmo quando defendem teses
próximas, e, portanto, a selecionar de maneira diferente quais ideias que devem
ser difundidas e de que modo.
VII
Como fatos tão conhecidos podem dar lugar a respostas opostas em relação à
pergunta "é Agostinho um filósofo medieval?". A razão é que as perguntas feitas
são na verdade distintas. A classificação de Agostinho como um filósofo
medieval vem da resposta à pergunta sobre como as diferentes filosofias gregas
foram absorvidas no quadro de religiões monoteístas – dito de outro modo, é uma
pergunta acerca da formação de um sistema de crenças. Nesse caso, Agostinho
desempenha sem dúvida um papel central. Podemos chamar esta pergunta o "modelo
teórico de periodização em história da filosofia", já que ele identifica uma
época – a medieval – por um problema, ou um pequeno conjunto de problemas, que
pode ser descrito teoricamente. É claro que existe aqui uma história a ser
contada; no entanto, por pelo menos duas razões, devemos resistir a utilizá-la
como a narrativa central a identificar o período medieval.
Inicialmente, a história da absorção da filosofia grega num quadro cristão faz
mais sentido se considerarmos as três religiões monoteístas como tendo um
conjunto de problemas comuns a resolver, cujas soluções influenciam umas às
outras: isto é claro pela prolongação de discussões que surgiram na Antiguidade
Tardia e no Islã no Ocidente cristão, mas também pela participação de
pensadores judeus, como Filo de Alexandria e Maimônides. Ora, esta história
cobre momentos muitos distintos e lugares diferentes. Por um lado, não parece
razoável pensar que um mesmo período histórico cubra a Alexandria do século I,
Bagdá do século X e Paris do século XIII. Por outro lado, escolher apenas parte
desta história, digamos, apenas a sua face cristã, não faz sentido, se o que
nos interessa é a constituição de um determinado sistema de crenças. Esta
última observação deve ser clara a qualquer um que tenha familiaridade com os
textos de filósofos do século XIII, recheados de referências a filósofos
islâmicos; este é o caso, por exemplo, de "De ente et essentia", de Tomás de
Aquino, que tanto deve, a começar pela distinção que lhe dá o título, ao persa
muçulmano Avicena. Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados.
A segunda razão para se recusar esta classificação é mais importante. Ao buscar
uma periodização na história da filosofia, devemos buscar o que explica quando
e como o que conta como filosofia parece mudar, quando e como a linguagem mesma
da filosofia, quando não sua língua, parece ser outra – o que sentimos na
passagem da filosofia medieval para a filosofia moderna, por exemplo. Bem,
parece-me que este tipo de mudança ocorre entre o século IV e o século XIII,
como procurei argumentar acima, mas dizer isso é uma petição de princípio.
Minha sugestão é que mudanças desse tipo não se explicam pela execução de algum
projeto teórico, não importa qual seja sua centralidade na cultura. O que
explica mudanças desse tipo?
Expus acima minha hipótese sobre essas mudanças, utilizando o quadro teórico de
Sperber, para explicar como as ideias filosóficas se difundem ao longo do
espaço e do tempo e como esta dinâmica de difusão de ideias conheceu uma
ruptura crucial com o fim do mundo antigo. Gostaria de propor uma apresentação
mais neutra das razões para a recusa deste modelo teórico de periodização da
filosofia, que pode ser apresentada por outra pergunta: como a história da
filosofia é parte da história da cultura? É precisamente esta pergunta cuja
resposta coloca Agostinho do lado da filosofia antiga, e não da filosofia
medieval. Uma vez que colocamos a pergunta dessa maneira, a resposta é que a
filosofia faz parte da história da cultura porque os mecanismos de transmissão,
de estabilidade e transformação dependem dos mesmos fatores que explicam a
transmissão e a estabilidade de outras formas culturais: o que está disponível,
de que modo, qual a motivação para transmissão de seus textos, em suma, pelos
mecanismos de transmissão de tradições humanas. A narrativa central que fornece
a periodização na história da filosofia é precisamente aquela que a torna parte
da história da cultura.
Por que é importante compreender que Agostinho é um filósofo medieval? Bem,
inicialmente, para que a resposta a esta pergunta não é importante: ela não tem
importância alguma para compreender Agostinho ele mesmo.37 O trabalho do
intérprete permanece o mesmo, qualquer que seja a resposta que dê a essa
pergunta: ele ainda trabalha sobre os mesmos textos, avalia as fontes de
Agostinho, com quem estudou etc. A principal razão de se compreender que
Agostinho é um filósofo antigo, e não medieval, é ver que a filosofia é parte
da cultura e sua periodização não pode ser tão estranha ao conjunto de
fenômenos culturais do qual ela faz parte.38
1"A filosofia medieval surge depois do declínio da Grécia e da Roma antigas,
quando novas culturas começam a produzir trabalhos de filosofia que, ao mesmo
tempo, são inspirados pelo legado antigo e respondem a novas circunstâncias
culturais e religiosas. Existe hoje um certo consenso acerca de quando e onde
localizar os inícios da filosofia medieval, compreendida como um projeto de
pesquisa filosófica independente: ela começa em Bagdá, no meio do século VIII,
e na França, na corte itinerante de Carlos Magno, no último quarto do século
VIII". Pasnau, 2010, 1. Pasnau acrescenta em nota a este texto:
"Tradicionalmente, Agostinho (354-430) e Boécio (ca. 475-526) eram incluídos no
currículo medieval, mas eles são claramente parte do mundo antigo. Esta
tradição tem sua origem em parte na antiga tendência de classicistas de
negligenciar a Antiguidade tardia, e em parte na antiga tendência de
medievalistas de assimilar a filosofia medieval à filosofia cristã". De_Libera,
1993; Marenbon,_1983; Flasch,_1992_(1987); Gauvard,_Claude,_Libera_e_Zink,
2002.
2Kenny,_2008_(2005); McGrade,_2003; Lagerlund,_2011; Martin,_1996.
3Marrone,_2003.
4Marrone,_2003, p. 10.
5Marrone,_2003, p. 16.
6Martin dá uma formulação típica desta compreensão: "Foi Agostinho que realizou
uma síntese triunfal do ensinamento grego da filosofia antiga e das tradições
judaicas e cristãs que ele também aceitou, e assim estabeleceu o padrão para
mil anos de desenvolvimento intelectual: um feito sem paralelo no Ocidente para
alguém que se dizia uma mera autoridade humana" (Martin,_1996, p. 10).
7"Procuramos mostrar como a filosofia grega atingiu sua fase última e,
provavelmente, mais influente, aquela que historiadores da filosofia antiga
chamam Neoplatonismo, e como ela foi assumida e adaptada de diferentes
maneiras, de acordo com os propósitos de cada um, por judeus, cristãos e
muçulmanos" (Pasnau,_2010, p. 1). "Mesmo se, de um ponto de vista técnico, suas
formas são amplamente tomadas, como uma simples transposição, desta tradição
clássica cuja vitalidade procuramos destacar, devemos ver que esta cultura
cristã também é, como sua homóloga judaica, uma cultura de inspiração e
finalidade essencialmente religiosas" (Marrou,_1977, p. 71). Ambas as citações
indicam que a contribuição teórica foi da cultura grega para as culturas
monoteístas, e não no sentido inverso.
8Sobre este ponto, ver Veyne,_2007.
9Que a acomodação não seja completa aparece na seguinte descrição das
diferentes atitudes de neoplatônicos em relação ao cristianismo: "[…] neo-
platônicos atenienses seguiam a tradição de Jâmblico de praticar ritos mágicos
associados aos Oráculos Caldeus; eles incorporaram a teoria da simpatia cósmica
sobre a qual a Teiurgia se funda em seu sistema filosófico e a viam como um
caminho possível para a união com o divino. [...] Amônio, no entanto, nada diz
sobre a Teiurgia e os Oráculos Caldeus. Isto pode ser o reflexo de suas
atitudes pessoais, claro, mas eu acho provável que seu acordo com Patriarca era
um acordo para manter o silêncio sobre aquilo que os cristãos veriam como uma
mágica perniciosa. Damáscio teria desprezado este acordo do mesmo modo que
desprezaria a restrição de se ensinar Platão. Se isto estiver certo, Amônio fez
concessões ao Cristianismo em um domínio importante. [...] Olimpiodoro era um
pagão. Ele defendia a eternidade do mundo e acreditava na reencarnação. Ele
também menciona o culto de imagens, a Teiurgia e os Oráculos Caldeus. Como
Proclo e Damáscio, ele faz por vezes alusões à religião cristã dominante em
termos velados e pouco respeitosos. Sua atitude em relação ao Cristianismo é no
entanto mais conciliatória e discreta do que a de Proclo e Damáscio. [...] Na
Alexandria do século VI, paganismo e Cristianismo parecem coexistir
confortavelmente [...]" (Sheppard,_2000, p. 848-850). A história posterior da
filosofia medieval mostra que sempre houve restos e conflitos na associação
entre duas tradições, ou antes entre as muitas tradições que informam a
filosofia praticada nos século XIII; para uma história de alguns destes
conflitos, ver De_Libera,_1991.
10Paul Veyne descreve do seguinte modo a adoção do cristianismo na Antiguidade
tardia: "Parece claro que a cristianização das massas não se deveu nem à
perseguição, nem, na maioria das vezes, à evangelização, mas a um conformismo
que lhes foi ditado por uma autoridade agora reconhecida, a dos bispos: o peso
de uma autoridade moral e o dever virtuoso de 'fazer como todo mundo'" (Veyne,
2007, p. 201). A pergunta a ser feita aqui é: o que há de surpreendente nesta
difusão?
11"Cristãos que falavam de 'filosofia' não tinham em mente a mesma coisa no
século V e mil anos depois. Leitores medievais utilizavam em boa medida os
mesmos textos que já eram vistos como clássicos sobre o tema nos tempos de
Agostinho. Mas eles não viviam mais num mundo no qual 'ser filósofo' era uma
alternativa prática a ser cristão, e no qual era possível encontrar e conversar
com homens que tinham feito esta escolha. A filosofia na Idade Média era em
grande medida um estudo acadêmico, com seu alcance confinado sobretudo aos
temas e tópicos acerca dos quais os livros antigos que restavam traziam algum
ensinamento. Era uma disciplina viva e em expansão, mas não mais do mesmo modo
que havia sido nos primeiros séculos cristãos, quando escolas e facções rivais
surgiam e morriam, e havia sempre tentativas de novas permutações de idéias
platônicas, aristotélicas e estóicas. Isto não quer dizer que os medievais não
tenham feito um trabalho novo e significante em filosofia. Mas eles os fizeram
de maneira pontual, avançando fronteiras em pontos particulares, e não como um
modo de criar novos sistemas de vida e de pensamento" (Evans,_1993, p. 3).
12"Esta concepção da filosofia como uma atividade abarcando tudo, preocupando-
se com todas as coisas relevantes para a realização do último propósito da vida
humana, tem ela mesma sua origem na Antiguidade. Agostinho refere-se ao manual
de filosofia de Varrão, hoje perdido, no qual foram identificadas 288
'filosofias' diferentes, distinguidas precisamente pelos tipos de resposta
possíveis à questão sobre como se chegar à vida feliz. Todas concordavam com o
propósito e divergiam entre si apenas quanto aos meios pelos quais podia ser
atingido. Segundo este uso, o Cristianismo era claramente uma 'filosofia', e
nos trabalhos escritos na época de sua conversão e imediatamente subsequentes,
Agostinho interpretou sua conversão como o resultado de sua busca pela
sabedoria e frequentemente diz de ter chegado ao 'porto da filosofia'" (Markus,
1967, p. 344).
13"Na Espanha, a ortodoxia religiosa ainda era importante, como a perseguição
aos judeus no final do século VII mostra. Os bispos espanhóis perseguiram até
os Priscilianistas, uma seita de muito pouca importância. [...] Mas heresias
não voltaram a aparecer mesmo na Espanha até o final do século VIII, e na
França, e mais tarde na Inglaterra, a controvérsia religiosa raramente estava
ligada a questões doutrinais. Apenas a data da páscoa trazia dificuldades, e
assim mesmo apenas nas Igrejas da Irlanda e do País de Gales [...] A falta de
discussões teológicas intensas neste período provavelmente reflete uma massa
crítica menor de homens da Igreja educados. [...] A fragmentação política da
Igreja ocidental e a ausência de heresias estavam conectadas: as pessoas
simplesmente não tinham informações regulares sobre o que estava acontecendo
fora de seus próprios circuitos locais e regionais" (Wickham,_2009, pp. 172-
174).
14"Reis e papas recorriam frequentemente ao passado romano, e os aristocratas
sub-romanos que os rodeavam continuavam a antiga tradição literária. Ainda
assim, por trás desta fachada de continuidade, muito havia mudado. Ao longo do
século V, a maior parte das grandes escolas urbanas de gramática e retórica
parecem ter desaparecido. [...]. Em torno de 500, as escolas de Autun e
Bordeaux desaparecem de vista. Em outros lugares da Gália, não há registros
senão de um ou outro orador isolado. Na medida em que sobrevive, a oratória
aparece em homilias de clérigos que cultivam deliberadamente um estilo
literário simples, como o Bispo Cesário de Arles (502-542), respondendo aos
padrões do tempo. [...] Certamente as instituições que empregavam os oradores
treinados estavam elas mesmas desmoronando. Com o declínio e o colapso da corte
imperial e com a ruptura do império, houve uma ruptura dos empregos
governamentais, trabalhos que requeriam habilidades retóricas. Como resultado,
não houve mais incentivo para o domínio das regras da retórica latina. Embora a
educação ainda continuasse em algumas famílias, ela foi cada vez associada à
igreja. A leitura era ensinada principalmente em paróquias, com a Bíblia,
especialmente o livro dos Salmos. O ensino mais avançado podia ser encontrado
em torno dos bispos e, cada vez mais, de monastérios" (Wood,_2001, p. 175).
15Ver Verger,_1997, pp. 43-59.
16Como Moorhead observa em sua apresentação da vida de Boécio, "como as
maneiras de se compreender o tema da filosofia e sua prática propostos por
Agostinho sugerem, as preocupações da filosofia na sociedade do mundo antigo
eram mais amplas do que elas serão em seguida na tradição ocidental" (Moorhead,
2009, p. 23).
17Os príncipes laicos, "preocupados em afirmar a dimensão soberana de seu
poder, não podiam permanecer inteiramente alheios aos problemas da educação. É
verdade que Frederico II foi o único a criar uma instituição de ensino superior
da qual a Igreja foi inteiramente afastada, o studium generale de Nápoles
(1224) – instituição que teve, de resto, um destino medíocre. Em todos os
outros lugares, os príncipes respeitaram o antigo monopólio da Igreja em
questões de ensino e o direito do papa de atribuir a certas escolas de seu
reino privilégios excepcionais" (Verger,_1997, p. 54).
18"É difícil saber ao certo quanto das crenças e práticas pagãs sobreviveram no
ocidente cristão. Elas persistiram em algumas regiões recentemente convertidas,
como a Noruega e a Hungria, mas nas áreas nas quais o cristianismo estava bem
estabelecido, o paganismo parece ter se fundido no folclore [...] Embora a
imaginação das pessoas no ocidente cristão possa ter guardado uma dimensão
pagã, todas as evidências sugerem que, em torno do século XI, a Igreja tinha
ganhado a batalha intelectual e que, em termos gerais, todo mundo aceitava a
visão de mundo cristã" (Hamilton,_2008a, p. 500). É claro que houve heresias,
como a dos bogomilos e a dos cátaros, que tiveram sua importância na história
medieval, mas elas não são parte das possibilidades abertas aos filósofos
medievais – as ordens mendicantes, tão importantes na história das
universidades medievais, têm o papel de inquisição em relação aos cátaros; ver
Hamilton_2008b, pp. 172-174. Devemos contrastar aqui o percurso agostiniano,
que passa pelo maniqueísmo antes de chegar ao cristianismo, e a marginalidade
dos cátaros, que tinham uma doutrina similar, nos séculos XII-XIV. Note-se
ainda que estes casos são mais versões dissidentes do cristianismo do que
propriamente alternativas a ele.
19"A Idade Média aqui apresentada ainda não conhece as distinções modernas
entre 'escolástica', 'mística' e 'filosofia'; o movimento das ideias não está
separado da organização da vida intelectual; o ritmo do pensamento segue o
ritmo das traduções e introduz nesse tempo a sua própria cadência; seus
pensadores são seres vivos que lêem, escrevem e ensinam em mundos definidos"
(De_Libera,_1990_(1989), p. 8).
20"É útil ter alguns indicadores, mesmo se eles demandarem alguma correção,
como acontece a indicadores. O século e meio entre a morte de Plotino (270) e o
meio do reinado de Constantino será dominado pelas figuras de Porfírio e do
sírio Jâmblico (morto em 326). Pupilos de Jâmblico continuaram a ensinar na
Síria, mas quase não há mais traço de sua contribuição para a filosofia;
provavelmente eles não têm contribuição alguma. Vamos assim a Atenas, onde
também era muito influente. A Escola de Atenas tinha uma história contínua
deste Platão, mas nada sabemos de sua filosofia de algum tempo antes do grande
século do Neoplatonismo ateniense. Este começa com um homem chamado Plutarco em
torno do final do século IV, mas consiste substancialmente no trio Siriano,
Proclo e Damáscio. Na verdade, seu ensinamento parece estático o bastante para
ser examinado apenas na forma como aparece em Proclo, de quem pelo menos quatro
das principais obras sobreviveram. Sua influência parou quando Justiniano
fechou a Escola em 529, mas teve uma volta inesperada, pois a filosofia por
trás dos comentários aristotélicos de Simplício na década de 530 vem de Proclo"
(Lloyd,_1967, p. 272). Não há uma história contínua ligando o final da
Antiguidade Tardia ao século XI, o início da última fase da filosofia medieval
segundo Marrone.
21"[Isidoro de Sevilha] descreve no início do livro IX a evolução do latim de
um modo compatível com nossa visão científica. A língua é sucessivamente
arcaica sob Janus e Saturno, latina sob os reis, romana sob a República e
Augusto, e enfim mista depois da extensão do Império [...] Esta capacidade de
modelização decorre de duas vantagens que não terão seus sucessores: o acesso a
obras lingüísticas e gramáticas perdidas nos séculos posteriores e a
possibilidade de projetar a variação dos diversos estados do latim ordenados
cronologicamente na sua percepção dos registros sociolingüísticos em uso na sua
época. Nesta ótica, a língua fixa da latinidade clássica [...] aparece como a
norma imposta no apogeu de uma romanidade que continua sem verdadeira
interrupção através do latim degradado dos povos do imperium visigodo. Bem
diferentes são os problemas que encontram os teóricos dos séculos XIII e XIV. A
variedade infinita dos dialetos locais e suas elaborações nas cortes, agora
concebidas como línguas autônomas, se opõe de maneira muito brutal à fixidez do
latim, do grego e do hebreu para que não se crie uma dissociação conceitual. Os
primeiros são pensados sob o signo da dispersão segundo as categorias
cambiantes de habitus sociais e físicos associados à influência do meio natural
submetido às leis de uma física ptolomaica. Eles são naturalizados. As línguas
da Cruz, por outro lado, são postas no centro de um conjunto de falares que,
incluindo o árabe e o aramaico e talvez outros falares misteriosos, estão mais
no domínio do artificial. Elas resultam do trabalho de um artesão, divino ou
divinamente inspirado, que fixou suas leis uma vez por todas, de maneira que
elas têm virtudes que as colocam ao abrigo da corrupção humana" (Grévin,_2012,
pp. 131-132).
22Ver, por exemplo, Verger, 1998.
23Cf. De_Libera,_1999.
24"Todas divisões da história da filosofia em períodos são em alguma medida
arbitrárias, mas os pontos escolhidos para concluir as últimas partes deste
volume nos pareceram bons pontos de paradas, e o pensamento coberto no volume
como um todo nos parece ter um certo grau de unidade, como está mais amplamente
explicado no capítulo introdutório" (Armstrong,_1967, p. xiv).
25Devo esta observação a Claude Panaccio.
26"Nós temos [...] muitos objetos domésticos [da Antiguidade e da Alta Idade
Media]. Eles são uma importante fonte de letras e nomes rabiscados do período
romano, assim como de eventuais mensagens [...]. Na alta IM, estes objetos são
quase sempre mudos. Eles têm eventualmente o nome gravado, mas quase sempre de
maneira muito limpa, sugerindo que foram aplicados com muito cuidado, talvez
mesmo por um especialista na escrita, e não pelos proprietários eles mesmos.
[...] Em um mundo muito mais simples, a necessidade urgente de ler e escrever
diminui, e com ela a pressão social para a elite ser letrada. A difusão da
cultura letrada no Ocidente pós-romano está definitivamente confinada ao clero.
Uma análise detalhada de quase 1000 assinaturas em contratos na Itália do
século VIII mostra que pouco menos de um terço era capaz de escrever seu nome,
o resto fazendo apenas uma marca (identificada pelo escriba do contrato). A
grande maioria do que sabia assinar pertencia ao clero (71 %). Dos 633 leigos,
apenas 93, ou 14%, escreveram seu próprio nome. Como testemunhos de contratos
eram geralmente pessoas "importantes" da sociedade local, e como escrever o
próprio nome não requer habilidades literárias muito grandes, estes números
sugerem que mesmo o letramento mais básico era raro no público laico como um
todo" (Ward-Perkins,_2006, p. 166). Michael Clanchy propõe uma visão mais
positiva da difusão do letramento na Inglaterra a partir do século XI, notando,
por exemplo, que a capacidade de ler pode ser mais difundida do que a de
escrever, e descrevendo seu crescimento "a partir da burocracia, mais do que
por algum desejo abstrato pela educação e pela literatura" (Clanchy,_19932, p.
19). Mesmo com esta correção, ele descreve o ressurgimento do letramento da
partir do século XI, muito distante, portanto, do final da Antiguidade tardia.
27Casson, 2001, p. 137. Deve-se contrastar ainda o tamanho da biblioteca do
monastério de Patmos que contava, em 1201, com 330 livros (Casson,_2001, p.
142), ou aquela da Abadia de Corbie, com cerca de 300 livros no século IX
(Smith,_2005, p. 49) – monastérios importantes na retomada da atividade
filosófica no Ocidente –, com bibliotecas do mundo antigo, não apenas a célebre
biblioteca de Alexandra, com 490.000 volumes na biblioteca principal e 42.800,
na biblioteca secundária (Casson,_2001, p. 36), mas ainda com bibliotecas de
cidades provinciais, como Herculano, cuja Villa dei Papiri contém cerca de
1.800 papiros (Casson,_2001, p. 74). Não é apenas o tamanho que importa, mas
também a diversidade: enquanto dos 330 livros de Patmos, 314 eram de teologia
(Casson,_2001, p. 142), a biblioteca romana de Varro continha "livros e
monografias sobre todos os temas possíveis – agricultura, a língua latina, a
história do povo romano, religião, filosofia, geografia, tecnologia" (Casson,
2001, p. 70).
28Para uma visão geral das mudanças radicais que se seguiram à queda do Império
Romano do ocidente, ver Ward-Perkins,_2006.
29"A ideia da 'translação dos estudos', evidentemente associada à 'translação
do Império', foi um poderoso instrumento da propaganda ocidental cristã, na
época de Carlos Magno e do reino da França [...] De qualquer modo, ideológica
ou não, a noção de 'translação dos centros de estudo' tem inegável valor para
pensar a história da filosofia nos confins da Antiguidade tardia e da Idade
Média, e posteriormente. Com efeito, esta translação permite expressar ao mesmo
tempo a realidade e sua distorção" (De_Libera,_1999_(1993), pp. 15-17).
30"A resposta que Agostinho havia dado à questão [do Mal] foi a que teve mais
conseqüências dentre as decisões que ele tomou para a IM" (Blumenberg,_1999
(19882), p. 143).
31"Agostinho representa, aí, aquele caso especial, que é constitutivo para a
afirmação das transições, na medida em que ele criou, por um lado, algo novo no
pensamento e na linguagem, mas se tornou, para além dessa ruptura com o que era
conhecido pela Idade Média europeia, o mediador e intérprete central da
filosofia antiga" (Seele,_2008, p. 249).
32"Seguindo a tradição platônica, Agostinho pensava que as formas genéricas do
ser pertenciam a uma escala perfeita e que Deus não deixa parte alguma
irrealizada. Neste sentido, ele afirmava uma equivalência entre possibilidades
e suas realizações, i.e., ele aceitava uma forma da ideia chamada por Lovejoy
de "princípio de plenitude". No entanto, ele também dizia que algumas
possibilidades divinas nunca são realizadas. Embora este ponto de vista fique
na periferia de seu pensamento, ela é historicamente importante, porque motivou
teólogos posteriores a repensarem o significado de noções modais" (Knuuttila,
1993, p. 68).
33"Ao se ler os trabalhos dos historiadores das ciências que se ocuparam da
evolução dos saberes antes da Idade Média, é notável o número de começos
infrutíferos (faux départs) e de descobertas que a nada levaram, porque não
existia a vontade de transmissão (mesmo se todas as outras condições estavam
reunidas)" (Morin,_2011, p. 188).
34Sobre a educação de Agostinho, ver Brown_2000_(1967), pp. 23-34.
35Hankins dá uma descrição desta história que ilustra muitos destes pontos: "Da
segunda metade do século XIV em diante, a justificação intelectual e moral da
filosofia na cultura cristã estava mudando, tornando-se menos vital para sua
sobrevivência. Enquanto disciplina, a filosofia estava se tornando
progressivamente mais autônoma, tanto institucionalmente quando
intelectualmente, era cada vez mais comum que mestres passassem toda sua
carreira ensinando filosofia e temas correlatos nas faculdades de artes e
medicina. [...] O prestígio pessoal de alguns filósofos famosos era tanto que
colégios e conselhos de cidadãos que contratavam filósofos estavam dispostos a
considerar preocupações relativas à ortodoxia como irrelevantes para as
necessidades reais dos estudantes. Na Itália, universidades eram instituições
cívicas sobre as quais as autoridades religiosas tinham pouco poder real e as
carreiras na medicina e no direito civil eram muito menos dependentes do
incentivo da Igreja do que na Europa do norte. O que contava para a contratação
de professores era seu conhecimento e sua capacidade de trazer prestígio para a
universidade. Esta atitude era favorecida pelo fato do número de universidades
estar crescendo exponencialmente a partir do final do século XIV. A riqueza
pessoal maior, a fama, a segurança institucional e a independência das pressões
eclesiásticas facilitou aos filósofos desenvolverem sua própria posição com
maior liberdade. Assim, durante o Renascimento, uma ampla gama de posições
filosóficas se expressaram, algumas compatíveis com a doutrina cristã, outras
não. Algumas surgiram do estudo renovado de Averróis, outras do estudo de novas
fontes filosóficas que os humanistas tornaram disponíveis, como os antigos
comentadores gregos de Aristóteles, outras a partir de novas traduções
humanistas de Aristóteles. A filosofia estava surgindo como uma disciplina
secular" (Hankins,_2007, p. 39).
36Ver o excepcional trabalho de Pasnau_(2011), que mostra em detalhes a
continuidade de diversas discussões metafísicas entre os séculos XIII e XVII.
37Este é o sentido da observação de Perler: "Considerando as diferenças
gritantes entre as tentativas de se definir um período [i.e., a filosofia
medieval], fazer distinções estanques entre diferentes períodos e procurar por
etiquetas sob as quais autores de uma dada época podem ser classificados é
inútil. Deve-se antes olhar para cada autor individualmente e perguntar como
ele lidou com problemas específicos dentro do quadro teórico do seu tempo"
(Perler,_2008, p. 229). Parece-me, no entanto, que a lição não é abandonar toda
categorização histórica, como parece sugerir Pasnau_(2011,_3n), mas compreender
que tipo de explicação as categorias historiográficas podem fornecer: não
chaves de leitura para filósofos individuais, mas uma narrativa das
transformações pelas quais a filosofia passou ao longo dos séculos.
38O argumento que apresentei neste artigo surgiu ao longo dos anos como aula
introdutória da disciplina História da Filosofia Medieval, no curso de
graduação em Filosofia da UFMG. Procurei articular de maneira mais precisa o
argumento para o colóquio do CEPAME realizado em novembro de 2012, na USP.
Agradeço aos alunos que escutaram estas ideias em suas diferentes versões e à
audiência do colóquio pelo interesse e pelo ceticismo quanto à relevância da
pergunta que procurei responder, assim como quanto à resposta que propus. Ambos
me fizeram buscar uma formulação mais precisa para o argumento. Agradeço ainda
Claude Panaccio, Henrique Estrada Rodrigues, Katharine Tachau e Newton
Bignotto, pela paciência em ler o texto, pelas sugestões e pelo estímulo.
Finalmente, agradeço ao CNPq, pelo apoio recebido.