A paixão pelas formas
(para Antonio Candido)
Em 1992, o pesquisador e estudioso de cinema Carlos Augusto Calil fez uma
entrevista surpreendente com Gilda de Mello e Souza sobre o último filme de
Luchino Visconti, Conversation piece. Essa entrevista foi ao ar pela TVA e
teria permanecido nos arquivos da emissora não fosse a inclusão nos extras do
filme em formato DVD, disponível no Brasil como Violência e paixão. Graças à
iniciativa de Calil, os que não a conheceram pessoalmente e os que partilharam
a companhia dela e a admiraram como mulher e intelectual poderão revê-la em um
momento encantador.
Sob um fundo vermelho vazado de branco, Gilda de Mello Souza destaca-se pela
beleza e elegância. Vestida com um tailleur de tafetá branco perolado, blusa de
seda da mesma cor com apliques em alto-relevo e ligeiramente transparente no
colo, calçando um escarpin bicolor, bege e marrom, Gilda usa como adereços um
colar de pérolas e brincos que intensificam o prateado dos cabelos bem
penteados. Como maquiagem, apenas o batom vermelho que irradia luz às cores
discretas da vestimenta e aviva-lhe a fisionomia. Esse "elo de identidade e
concordância" que ela cria com a vestimenta e que a tornou conhecida como
mulher elegante, além de intelectual brilhante, é reforçado pelo movimento dos
olhos nos momentos em que seu pensamento alcança vôo e ouvimos o tilintar
discreto das pulseiras brancas que se movimentam pelos braços e dão às mãos a
segurança dos gestos suaves.
De início um pouco retraída e ligeiramente desconfortável diante da câmera,
Gilda vai ganhando a cena à medida que a entrevista avança e ela se torna
senhora de si. Transitando com desenvoltura pela obra de Visconti, descortina
dimensões inusitadas da personalidade do diretor e do filme em tela.
Conversation piece foi filmado em 1974, com os atores falando em inglês, quando
Visconti já estava doente. Versa sobre um intelectual maduro e solitário,
magistralmente interpretado por Burt Lancaster, que vê a intimidade invadida
por um grupo ruidoso que gira em torno de uma condessa riquíssima e vulgar,
papel que coube a Silvana Mangano. Tocado pela sinceridade da filha da condessa
e pela sensibilidade e beleza de seu jovem amante, interpretado por Helmut
Berger, o professor será arrastado, a contragosto, num tumulto de paixões.
Recusando-se a sublinhar a dimensão política do filme, tal como ressaltada pelo
entrevistador, Gilda propõe outra interpretação, lembrando-nos a posição de
crítica. "Toda visão que nós temos de uma obra de arte é uma visão muito
deformada pelo olhar do observador. Eu acho que a minha visão é muito deformada
pela minha personalidade e pela minha personalidade apolítica, em muitos
casos." Mas é justamente essa "deformação" que confere tônus à interpretação
que ela faz do filme. A começar pelo que descortina do título, Conversation
piece, alusão ao gênero pictórico das cenas domésticas e familiares da
aristocracia, tão bem captadas na pintura inglesa. Transposto para a trama do
filme, sinaliza "uma espécie de diálogo prolongado e aprofundado entre dois
grupos de famílias", disparado pela intrusão da condessa e seus próximos no
resguardo ciosamente cultivado pelo intelectual requintado. "O grupo de
famílias que está petrificado nos quadros e, que, portanto, já foi deslocado
para o mundo da arte" no qual se reconhece o personagem central e o "grupo
da família desordenada, caótica e sem moral pois pertence a um mundo de
passagem , que invade a casa do professor".
No conjunto da obra do diretor italiano, prossegue Gilda, este é o filme anti-
heróico por excelência, cujo personagem principal, um intelectual de posses,
colecionador de obras de arte. Nas palavras da entrevistada, o filme trata
"daqueles momentos em que se sabe que algo de decisivo vai ocorrer em breve e
que, por isso mesmo, se é forçado a passar de um patamar a outro, quando então
somos tomados pela rememoração de acontecimentos importantes da nossa vida
pessoal". Em síntese, é uma "meditação final sobre uma vida que está se
extinguindo". A do diretor e a do personagem principal do filme. Marcado pelo
sentimento da morte e pela consciência infeliz do intelectual num mundo de
escolhas políticas, o professor adere a valores cada vez mais em desuso no
mundo atual: da maneira como recebe as visitas à noção que tem de intimidade
como um domínio quase sagrado.
Noção que não é só dele. É também de Gilda de Mello e Souza e da geração a que
pertencia. Assim, talvez não seja descabido usar a leitura fulgurante de Gilda
como uma pista para abordamos alguns aspectos da obra dessa ensaísta
extraordinária. A paixão que detecta em Visconti pelas formas da vestimenta é
partilhada também por ela, pontuando momentos precisos e preciosos da sua
produção intelectual. No caso dos filmes do diretor italiano, ressalta Gilda,
"o exterior das pessoas que é dado pela vestimenta como o exterior da casa
que é dado pela decoração é tão importante quanto a narrativa".
Reciprocamente dependentes, a linha narrativa é "acompanhada pela roupa das
pessoas e pela maneira de estar dentro delas, pelo comportamento". Notável
nesse sentido é o uso que Visconti faz da vestimenta para projetar a
personalidade da condessa, interpretada por Silvana Mangano. "Uma personalidade
a um só tempo construída com muito bom gosto na roupa e extraordinariamente
vulgar, com uma certa baixeza no comportamento pessoal".
Essa atenção apaixonada pelas formas da vestimenta sobressai na obra de
Visconti. E também na de Gilda de Mello e Souza. Ela está presente no primeiro
trabalho acadêmico de fôlego da autora, A moda no século XIX, apresentado em
1950, e no último ensaio que publicou, "Notas sobre Fred Astaire". Incluído no
livro A idéia e o figurado (2005) graças à iniciativa editorial do crítico
literário Augusto Massi que também escreveu a (excelente) orelha , esse
ensaio encerra a produção de Gilda. No decorrer desses 55 anos, ela voltou de
muitas maneiras, sempre com paixão e rigor, ao tema das formas e do conteúdo
das vestimentas. Ora como chave para leituras renovadas da obra de escritores
brasileiros, como no ensaio "Macedo, Alencar, Machado e as roupas", de 1995.
Ora como pista e indício indiretos para abordar a produção cinematográfica de
diretores importantes, caso do artigo "Variações sobre Michelangelo Antonioni",
de 1998
1.
A MODA NO SÉCULO XIX VISTA DE FORMA ENVIESADA
2
Gilda tinha 31 anos quando escreveu A moda no século XIX: ensaio de sociologia
estética. Apresentado em 1950 sob a forma de tese de doutorado, defendida na
então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São
Paulo (USP), sob a orientação de Roger Bastide (de quem a autora era assistente
na cadeira de Sociologia I), o trabalho e a história da sua recepção dão pano
para manga. Sobretudo se, no lugar de nos atermos apenas (o que não é pouco) à
apreensão pormenorizada da análise sutilíssima e inovadora que a autora faz da
moda, ensaiarmos uma leitura enviesada do livro com o intuito de entrelaçá-lo à
situação mais geral das mulheres que, como Gilda, se profissionalizaram na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Simbólica e metonimicamente associada ao universo feminino, a moda ganhou nas
mãos de Gilda um tratamento estético e sociológico preciso que, se estava em
conformidade com o "espírito científico" vigente na época na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, dele destoava e se distanciava em muitos
aspectos. A começar pela forma de exposição do trabalho. Ensaio sociológico,
sem dúvida. Redigido, porém, com aquela prosa apurada de quem domina as manhas
da escrita, num momento em que "escrever bem" deixara de ser uma das qualidades
essenciais na atribuição de valor intelectual de um trabalho acadêmico. Se hoje
o estilo de exposição, a mescla da visada estética e sociológica mobilizada
para dar conta de um objeto complexo e multifacetado como a moda, as fontes
utilizadas (fotografias, gravuras, pinturas e trechos de romances e crônicas do
século XIX) e, sobretudo, a argúcia e desenvoltura da autora no andamento da
análise, conferem ao trabalho frescor e atualidade surpreendentes, nem sempre
esse conjunto de fatores foi ajuizado dessa maneira. Prova disso é a
receptividade discreta no início do decênio de 1950.
Concebido como um ensaio de sociologia estética, à boca pequena o tema da tese
de Gilda foi considerado como fútil. Coisa de mulher. Na hierarquia acadêmica e
científica da época, que presidia tanto a escolha dos objetos de estudo como a
forma de exposição e explicação dos mesmos, a tese de Gilda constituiu "uma
espécie de desvio em relação às normas predominantes"
3
. "Profana" e "plebéia", a moda, na escala de valor e legitimidade atribuídos
por esse sistema classificatório, encontrava-se em uma posição diametralmente
oposta ao tema da guerra, por exemplo, que Florestan Fernandes escolhera para a
tese de doutorado, atividade masculina por excelência, "sagrada" e "nobre"
4.
Sinal eloqüente de um duplo constrangimento. De um lado, da assimetria difusa
vivida pelas mulheres, no plano das relações intelectuais e institucionais que
estavam se construindo dentro e fora da universidade onde Gilda se formara em
1939 e se profissionalizara como professora universitária. De outro lado, do
constrangimento decorrente da concepção de sociologia dominante na época.
Animada por um "espírito" cientificista, afeita à idéia positivista de pesquisa
como sinônimo de análise sistemática da realidade, e "encarnada" de forma
exemplar na figura de Florestan Fernandes, ela "expulsou" de seus horizontes,
quando não de seus espaços de atuação institucional e de seu universo
discursivo, o ensaio e as dimensões estéticas dos fenômenos sociais. A
transferência de Gilda de Mello e Souza para a área de Estética e a de
Florestan para a cadeira de Sociologia I, no ano de 1954, bem como a mudança de
Antonio Candido, em 1958, para Assis, após dezesseis anos na cadeira de
Sociologia II (antes da sua volta em 1960 para a Universidade de São Paulo,
como professor de literatura e não mais de sociologia) são indícios
extremamente significativos da oposição entre ciência e cultura que se
estabelecera, na época, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP
5.
UM ESPÍRITO FEMININO INQUIETO
Publicada, de início, numa revista científica habituada a receber colaboração
muito diversa, a tese de Gilda teve que esperar mais de mais de trinta anos
para vir a público sob forma de livro (numa edição caprichada, com o sugestivo
título de O espírito das roupas) e para ganhar o reconhecimento intelectual
devido
6
. Em parte, de um lado como resultado da ampliação de temas e objetos
considerados "legítimos" no campo das ciências humanas, promovida em larga
medida pela antropologia, pela sociologia da cultura e pela história das
mentalidades. De outro lado, pela constituição de um novo público de leitores
interessados na moda como assunto profissional ou objeto de estudos acadêmicos.
Esse duplo movimento, somado à formação do campo da moda no Brasil, com tudo
que ele implica (estilistas, modelos, fotógrafos, revistas, críticos, cursos
superiores de moda, estudiosos do assunto), tornou possível a absorção e a
legitimação, numa escala mais ampla, do tema estudado por Gilda
7. Falar de moda, discutir a moda e escrever sobre a moda, aparentemente deixou
de ser assunto intelectualmente frívolo. E, para muitos, virou moda. Daí também
a clarividência do trabalho de Gilda. Não para promover uma recepção congelada
e acrítica do tema, mas para nos ajudar a mirar, com olhos bem abertos, toda
sorte de salamaleques discursivos, simplificações analíticas e exibicionismos
mundanos que costumam rondar o universo dos produtores e dos consumidores da
moda.
Para analisar a moda como fenômeno estético e sociológico, Gilda escolheu o
século XIX, por razões bem fundamentadas. Primeiro porque, não sendo um
fenômeno universal, a moda foi por muito tempo um domínio exclusivo da
sociedade ocidental, aguçado a partir do Renascimento com a expansão das
cidades e a organização das cortes
8 e amplamente revigorado no século XIX. Oposta aos costumes, dependente de um
sentimento especial de aprovação coletiva, indissociável da sociabilidade
urbana, do desejo de competir e do hábito de imitar, ela vai se alastrar num
ritmo vertiginoso, e não por acaso, no século XIX. É nesse momento que a "moda
se espalha por todas as camadas e a competição, ferindo-se a todos os momentos,
na rua, no passeio, nas visitas, nas estações de água, acelera a variação dos
estilos, que mudam em espaços de tempo cada vez mais breves" (p. 21).
É também nesse século que a diferenciação entre os sexos, expressa e
experimentada com o auxílio das roupas, dos adornos, dos cosméticos e de tudo o
mais que compõe a plasticidade simbólica da moda, atinge patamares inusitados,
inseparáveis, por sua vez, da competição entre as classes e frações de classe.
Com o advento da burguesia, da democracia (que anulou os privilégios de sangue
e eliminou as leis suntuárias no tocante ao uso de certos trajes, tecidos e
cores que até então tinham sido privilégio e apanágio das elites
aristocráticas), de novos espaços de sociabilidade burguesa (como o teatro, a
ópera, as festas, os salões), dos grandes magazins (que ajudaram a introduzir a
mulher burguesa no espaço público das cidades), da voga dos grandes costureiros
e da máquina de costura (que tornou possível a reprodução em série e a
popularização das vestimentas), a moda ganha relevância especial e, se bem
analisada, funciona como um poderoso meio de apreensão as dimensões sutis e
cruciais que conformam o jogo fascinante e impiedoso das interações sociais.
Isso e muito mais é revelado no livro de Gilda. Para além das evidências
históricas e sociológicas que pesaram na escolha do século XIX, outras, de
ordem metodológica, foram decisivas para dar sustentação à trama analítica do
trabalho. No entender da autora, voltar-se para um século distante do seu, com
o propósito de entender um fenômeno tão intricado e multifacetado como a moda,
é a maneira mais acertada de, sem abrir mão da análise de nenhuma das partes,
conceder atenção maior às ligações da moda com a estrutura social. Cíclica,
volúvel e plebéia, sujeita às vezes a aberrantes demonstrações de mau gosto, a
moda, quando vista de longe, com o auxílio do afastamento no tempo, mostra-nos
"até onde a aceitação ou rejeição dos valores estéticos depende das condições
sociais" (p. 23).
Longe de uma petição de princípio sociológico, é o passo mais acertado para
escarafunchar a moda a partir de sua tríplice e simultânea: estética,
psicológica e social. Mas antes disso é preciso destacar as fontes utilizadas
pela autora, arremate final para alinhavar a escolha do século XIX.
Fotografias, pranchas coloridas de moda, documentação pictórica, de um lado;
crônicas de jornal, estudos sobre a moda, testemunhos dos romancistas, de
outro. Tais são as fontes de informação privilegiadas. As primeiras, por
fornecerem um registro visual seguro da moda naquele século, eliminam uma série
de dificuldades enfrentadas pelos estudiosos que desbravaram o assunto nos
séculos anteriores, quando, na ausência das pranchas e da fotografia, podiam
fiar-se apenas nas pinturas, nas gravuras, nos textos escritos e nas "bonecas
de moda" como fonte de pesquisa
9. Com a fotografia, as incertezas quanto à "veracidade" das vestimentas
estampadas em quadros e gravuras se invenções do artista ou retrato fiel das
roupas usadas na época são postas de lado. As segundas fontes, escritas por
estudiosos do assunto, como Spencer, Tarde e Simmel (responsáveis pelos estudos
sociológicos mais importantes sobre a moda produzidos no século XIX), trazem o
estado da arte da questão para dentro do livro. Não sob a forma das costumeiras
discussões bibliográficas que acompanham os trabalhos escritos originalmente
como teses de doutorado, e sim como fios discretos que a autora vai desfiando
no andamento da análise, cujo acerto deriva também da maneira como mobiliza o
testemunho dos romancistas, a fonte indireta mais reveladora do assunto.
Balzac, Proust e os nossos romancistas Alencar, Macedo e Machado comparecem em
alguns dos momentos de maior acuidade analítica de Gilda. Atentos à
"significação expressiva dos detalhes", esses escritores captaram, com requinte
descritivo inigualável, o dimorfismo estético que tomou conta do século XIX no
domínio da moda e do vestuário. A diferença entre os sexos, materializando-se
nas vestimentas, aparece sob duas formas distintas: X para as mulheres, com a
cintura comprimida por espartilhos, e H para os homens, com o terno de fazenda
áspera e cores sóbrias. Distintas e complementares, as formas; distintos e
complementares os sexos que as trajam. O modelo é o casal burguês. "O encanto
feminino e a determinação masculina não se excluem mutuamente: na verdade, são
parcelas que se somam na contabilidade astuciosa da ascensão" (p. 83). Enquanto
os homens se cobrem de preto, as mulheres se enredam em cores, sedas, rendas,
babados, fricotes, laçarotes, xales e decotes. Com os corpos, movimentos e
vestimentas, ao contrariar qualquer racionalidade de ordem prática, elas
mostram literalmente quanto o domínio da moda é afeito às intempéries do
simbólico e aos imperativos das injunções sociais.
Exercendo uma "verdadeira volúpia de posse à distância" (p. 74), derramando-se
na descrição dos trajes femininos, contendo-se no trato da indumentária
masculina, os escritores, por sua vez, captam "melhor que ninguém, nos meios
elegantes, o acordo da matéria com a forma, da roupa com o movimento, enfim, a
perfeita simbiose em que a mulher vive com a moda" (p. 24). Perfeita porque
plenamente enlaçada nos constrangimentos sociais e psicológicos derivados do
duplo padrão de moralidade que regula a conduta de homens e mulheres na época.
De um lado, "uma moral 'contratual', um código de honra originado nos contratos
da vida pública, comercial, política e das atividades profissionais"; de outro,
"uma moral feminina, relacionada com a pessoa e os hábitos do corpo e ditada
por um único objetivo, agradar aos homens" (p. 58). Carreira, nem pensar. Casar
era a solução: única saída para evitar a condenação e o desprestígio social.
Nesse contexto burguês, "o casamento era então uma espécie de favor que o homem
conferia à mulher, o único meio de adquirir status econômico e social, pois
aquela que não se casava era a mulher fracassada e tinha de se conformar à vida
cinzenta de solteirona, acompanhando a mãe às visitas, entregando-se aos
bordados infindáveis, à educação dos sobrinhos" (p. 90).
Restrita aos interesses domésticos, as mulheres se aplicavam com esmero no
trato com as roupas. Desde muito cedo. Pois sabiam que a graça, o encanto, a
elegância e o frescor eram dos poucos recursos de que dispunham para conquistar
um lugar ao sol. Se o casamento era a meta, ao ser contraído, longe de atenuar,
ampliava o interesse delas pelas artimanhas da vestimenta. Uma vez que a "graça
de trazer o vestido, de exibir no baile os braços e os ombros, fazendo-os
melhores 'por meio de atitudes e gestos escolhidos' [era] simétrica ao talento
e à ambição, exigidos pela carreira [do marido]" (p. 83). Desse viver nos olhos
dos outros é que as roupas, os adornos, os cosméticos retiravam a força e a
significação. Nesse mostrar-se recusando-se, as mulheres eram especialistas,
tentando tirar o máximo partido do mínimo a que estavam confinadas em
decorrência dos imperativos implacáveis da dupla moralidade vigente na
interação entre os sexos.
Disso dão testemunho os escritores que Gilda utiliza no decorrer da análise.
Como Machado de Assis, por exemplo. Citando uma passagem admirável de uma
crônica do escritor, centrada na análise do comportamento de nossas elites no
Segundo Reinado, Gilda sublinha a "trama intricada de competição". Nela "cada
um de nós precisa acrescentar às vitórias pessoais, duramente conquistadas
que [Machado] chama com ironia as 'glórias de plena propriedade' 'as glórias
de empréstimo', isto é, as vitórias dos muitos próximos, que se refletem em
nós" (p. 83). E arremata a autora: "a análise dessa curiosa contaminação de
prestígio, em que o triunfo da mulher repercute vivamente na posição masculina
e vice-versa , representa, aliás, um dos fulcros principais do romance do
século XIX, tanto na Europa como no Brasil" (p. 83).
A intimidade de Gilda com o universo literário adquirida desde muito cedo,
como leitora compenetrada e reforçada por meio da longa e decisiva influência
de seu primo em segundo grau, Mário de Andrade seria revigorada, no período
em que escreveu a tese, pela convivência e troca intelectual intensa com o
marido, Antonio Candido (na época também ele às voltas com o século XIX e com a
elaboração de Formação da literatura brasileira) e pela orientação que recebera
de Roger Bastide, sociólogo interessado em todas as manifestações simbólicas da
vida social, entre elas as artes e a literatura
10. Advém daí um dos trunfos de Gilda, que tanto incomodou Florestan Fernandes.
Na resenha que publicou em 1952 na revista Anhembi, ele destaca de início a
qualidade da tese de Gilda, para em seguida lamentar a forma de exposição.
Tal como se apresenta, o trabalho da Dra. Gilda de Mello e Souza
revela duas coisas. Primeiro: o talento e a extraordinária
sensibilidade da autora para a investigação de um fenômeno tão
complexo, por causa das diversas facetas de que pode ser encarado e
explicado. Segundo, um seguro conhecimento do campo de sua
especialização, em um nível que até pouco tempo era raro no Brasil.
Essas qualidades se refletem na composição do trabalho, tornando a
sua leitura muito amena e instrutiva. Poder-se-ia lamentar, porém, a
exploração abusiva da liberdade de expressão (a qual não se coaduna
com a natureza de um ensaio sociológico) e a falta de fundamentação
empírica de algumas das explanações mais sugestivas e importantes.
11
Vistas de hoje, as restrições emitidas por Florestan em 1952 são justamente o
ponto alto do trabalho. De um lado, o estilo de exposição. De outro, a
desenvoltura com que a autora transita da sociologia para a estética. Valendo-
se, para tanto, não só da habilidade para enlaçar o testemunho dos escritores à
argumentação analítica autoral e sociológica que dá tônus ao livro, como
dos olhos de lince para perscrutar as dimensões estéticas do fenômeno em pauta.
Pois tendo ligação direta com a divisão sexual e a divisão em classes, nem por
isso a moda deixa de ser uma forma sutil de expressão de sentimentos pessoais.
Sobretudo daqueles que se ressentem da falta de espaços socialmente legitimados
para se expandir. Tal era o caso dos sentimentos da mulher burguesa (ou
aspirantes a) no século XIX.
Abandonada em si mesma, na ociosidade e submissão, e
tendo a moda como único meio lícito de expressão, a mulher atirou-se
à descoberta de sua individualidade, inquieta, a cada momento
insatisfeita, refazendo por si o próprio corpo, aumentando
exageradamente os quadris, comprimindo a cintura, violando o
movimento natural dos cabelos. Procurou em si já que não lhe
sobrava outro recurso a busca do seu ser, a pesquisa atenta de sua
alma. E aos poucos, como o artista que não se submete à natureza,
impôs à figura real uma forma fictícia, reunindo os traços esparsos
numa concordância necessária (p. 100).
Mostrando a complexidade de sentimentos que envolvem a moda, reconhecendo o
comprometimento com as injunções sociais e admitindo, de saída, que a "forma é
em larga medida sancionada pela sociedade", Gilda não abre mão da análise
estética. Pois, a seu ver, a moda é arte sim, e de um tipo especial. Para
decifrá-la nessa chave é necessário a um só tempo intimidade com o objeto em
pauta (a tal da simpatia sociológica?) e conhecimento amplo das formas
simbólicas expressas em diversos suportes artísticos. Gilda tinha ambos de
sobra.
A mais viva de todas as artes, a moda tal como a pintura, a escultura e a
arquitetura encontra na forma o seu veículo de expressão. Ou melhor, a moda é
forma. Valendo-se da materialidade dos tecidos, o costureiro (ou costureira)
enfrenta desafios análogos aos dos artistas em geral, ao lidar com as seguintes
dimensões estéticas: forma e cor. Mas, diferentemente dos demais artistas, seu
grande desafio é a mobilidade. Não por acaso uma das últimas dificuldades a
serem resolvidas na história do vestuário. De um lado, por injunções sociais:
durante muito tempo, a roupa hirta incômoda aos olhos de hoje era símbolo
de distinção social: "prova visível, oferecida a todos, de que o portador, não
se dedicando aos trabalhos manuais, desprezava o desembaraço dos membros e o
conforto das vestes" (p. 48). De outro, por constrangimentos internos à feitura
das vestimentas. Muito pano para manga foi gasto para chegar, por exemplo, à
simplicidade do vestido cavado em estilo tubinho.
Diferentemente de outras artes, a vestimenta, como mostra Gilda, só se completa
no movimento.
Arte por excelência de compromisso, o traje não existe independente
do movimento, pois está sujeito ao gesto, e a cada volta do corpo ou
ondular dos membros é a figura total que se recompõe, afetando novas
formas e tentando novos equilíbrios. Enquanto o quadro só pode ser
visto de frente e a estátua nos oferece sempre em sua face parada, a
vestimenta vive na plenitude não só do colorido, mas do movimento (p.
40).
Se assim é, talvez possamos arriscar uma hipótese sobre a relação entre arte,
movimento e atrizes, apenas insinuada no trabalho de Gilda. Em nota de rodapé,
ela cita Simmel para reter o que convém e duvidar do que lhe parece pouco
acertado:
Em seu ensaio Cultura feminina, Simmel defende o ponto de vista de
que a mulher é um ser unitário por excelência, faltando a ela "essa
qualidade tão masculina de manter intacta a essência pessoal mesmo
quando se dedica a uma produção especializada, que não implica a
unidade do espírito". Cada uma das atuações da mulher, ao contrário,
"põe em jogo a personalidade total e não separa o eu dos seus centros
sentimentais". Daí realizar-se plenamente apenas nas artes do espaço,
como a arte teatral, onde efetua a imersão integral da personalidade
toda na obra ou fenômeno artístico. Contudo pergunta-se Gilda
até onde esse temperamento unitário será fruto de fatores sociais?
12
A indagação é absolutamente pertinente e será respondida com maestria não só no
restante da nota, como no decorrer do capítulo em pauta não aleatoriamente
portador do mesmo título, Cultura feminina, do ensaio de Simmel. Certa na
observação mais geral, Gilda deixou de lado a hipótese mencionada acima, embora
me pareça repleta de sentidos a equação entre sociabilidade urbana + desejo de
imitação e de distinção + moda + arte do movimento + teatro + atrizes + a arte
do espaço. Se o teatro é um dos campos de produção simbólica que mais
conferiram notoriedade às mulheres que dele participam na condição de atrizes,
há algo a ser explorado no fato de as atrizes se notabilizarem na arte do
espaço e, ao mesmo tempo, na maneira desenvolta e desimpedida como portam os
trajes e as vestimentas das personagens. Basta lembrar, para tanto, que no
século XIX e em boa parte do XX, antes do advento e supremacia do cinema, eram
as atrizes de teatro as principais responsáveis pela difusão de novas modas.
"Coquetes e plebéias", elas estão para a moda assim como sua atuação no espaço
teatral está para o movimento que a vestimenta exige para se completar como
arte.
Se o movimento que confere vida à vestimenta é, a princípio, disponível a todos
pois basta usar uma roupa para que ela se movimente , nem todos conseguem o
plus que a singulariza e diferencia os seus portadores dos demais. Isto é, a
elegância, definida por Gilda como "elo de identidade e concordância" que se
estabelece entre a vestimenta e a pessoa. Claro que para adquiri-la o dinheiro
ajuda, como bem sabem os novos-ricos. Mas não basta. Como sabem também os bem-
nascidos, que transformam o aprendizado prolongado (sob a forma de habitus) da
elegância numa segunda natureza. Elegância que, por ser visível e estampada nos
movimentos e nas roupas dos bem-nascidos e elegantes, pode ser copiada pelos
que não pertencem ao círculo imediato dos privilegiados. Daí o movimento
espiralado da moda. Uma vez adotada pelos "mais iguais" entre os "iguais" (isto
é, pelos distintos círculos de elite), tende a ser imitada pelos que estão
"abaixo" (as classes médias) e pelos "muito abaixo", que, sequer chegam a
incomodar os "iguais" dos "muito acima", mas que são um problema e tanto para
os que estão medianamente "abaixo". Nessa busca incessante de diferenciação,
exacerbada pela vida urbana e pela democracia que aboliu os privilégios de
sangue, a vestimenta se torna o "sinal mais eficaz de inferência direta sobre o
próximo". Mas essa mesma "democracia que não estabelece barreiras nítidas entre
as classes inventa um novo suplício de Tântalo: permite que as elites usufruam
uma moda que a classe média persegue sem jamais alcançar e que os pequenos
funcionários e todos os párias sociais espiam nas vitrinas com o olhar
sequioso" (p. 141).
Apreendendo a moda como objeto complexo, um "todo harmonioso mais ou menos
indissolúvel", com múltiplas serventias "serve a estrutura social",
"reconcilia o conflito entre o impulso individualizador de cada um de nós e o
socializador", traduz uma linguagem artística, "exprime idéias e sentimentos"
(p. 29) , Gilda dá ao assunto a dimensão espiralada que lhe é própria
13. Ou seja, inicia o ensaio de sociologia estética pela abordagem da moda como
arte, passa pela ligação da moda com a divisão de classes, detém-se na ligação
da moda com a divisão entre os sexos, revira pelo avesso a cultura feminina e
fecha o livro com o "mito da borralheira". Exemplo vigoroso da profusão de
achados analíticos que podem ser garimpados nessa sociologia da festa, o
capítulo final mostra como as festas adquirem um "caráter de cerimonial de
iniciação, onde entram em jogo mais as qualidades pessoais de cada um que os
atributos de sua classe" (p. 166). Espaços de peneiramento e reorganização das
elites, as festas são, ao mesmo tempo, momentos privilegiados paro exercício
pleno do jogo de sedução entre os sexos pautado, não nos esqueçamos, pela
dupla moralidade própria do século XIX. Nelas, os adornos, as roupas e os
gestos ganham, junto com as maneiras e os modos dos portadores, significação
máxima na interação social. Sem eles e terminada a festa, alguns voltam à
condição de borralheira, outros permanecem onde estavam e alguns, poucos,
triunfam, "nessa longa cadeia de provas que [lhes] vão sendo antepostas e cuja
vitória final há de conferir aos neófitos a cidadania na classe mais alta" (p.
166).
RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO
O último ponto que gostaria de abordar aqui diz respeito a um aspecto menos
evidente do livro de Gilda, mas que me parece central para entender a sua
força: a maneira como a experiência complexa das mulheres da geração dela, que
inventaram para si mesmas um destino para o qual não haviam sido preparadas se
introduz no trabalho da autora. Migrando do registro biográfico para dar
suporte à empreitada analítica, essa experiência será indiretamente abordada no
final do terceiro capítulo, centrado na análise da cultura feminina. Para
arrematar o capítulo, Gilda puxa um fio discreto e arma uma trama nova,
deixando entrever as marcas decisivas do reprocessamento da experiência social
no trabalho intelectual. Vejamos como isso acontece.
Após mostrar que as mulheres, no século XIX, desenvolveram ao infinito as artes
relacionadas com sua pessoa, criarndo um estilo de vida que se expressava
simbolicamente por meio da moda, Gilda chama a atenção para a experiência das
mulheres que embaralharam esse esquema dualista. Entre elas, as suffragettes,
que, aspirando a uma existência diversa e vendo na carreira uma fonte de
realização pessoal, obrigavam-se ao desinteresse pelo adorno, pela vestimenta
rebuscada, pela preocupação com a moda. Mas, nas palavras de Gilda, "não se
desiste impunemente de velhos hábitos que anos de vida bloqueada desenvolveram
como uma segunda natureza" (p. 106).
Lançando-se no áspero mundo dos homens, a mulher viu-se, segundo a autora,
dilacerada entre dois pólos, vivendo simultaneamente em dois mundos,
com duas ordens diversas de valores. Para viver dentro da profissão
adaptou-se à mentalidade masculina da eficiência e do despojamento,
copiando os hábitos do grupo dominante, a sua maneira de vestir,
desgostando-se com tudo aquilo que, por ser característico do seu
sexo, surgia como símbolo de inferioridade: o brilho dos vestidos, a
graça dos movimentos, o ondulado do corpo. E se na profissão era
sempre olhada um pouco como um amador, dentro do seu grupo, onde os
valores ainda se relacionavam com a arte de seduzir, representava
verdadeiro fracasso. Não é de se espantar que esse dilaceramento
tenha levado a mulher ao estado de insegurança e dúvida que perdura
até hoje. Pois perdeu o seu elemento mais poderoso de afirmação e
ainda não adquiriu aquela confiança em si que séculos de trabalho
implantaram no homem (p. 106).
Essa longa citação é para mostrar que, embora a autora esteja abordando a
experiência das suffragettes, é também dela e das mulheres da sua geração que
está falando. Ou seja, das mulheres que, como ela, experimentaram uma transição
de modelos de comportamento, procurando novas formas de expressão simbólica da
feminilidade, ao mesmo tempo em que se lançaram profissionalmente em carreiras
até então consideradas masculinas. Por essa razão, elas viveram por inteiro um
momento fecundo e simultaneamente doído de transição social no domínio que hoje
se convencionou chamar de gênero. O acesso à formação intelectual que tiveram
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, somado à vivência inédita de uma
sociabilidade bastante ancorada na vida universitária, permitiu a várias delas
reorientar o papel social para o qual tinham sido educadas: mães e donas de
casa. O impacto dessa experiência renovadora propiciada pela faculdade foi
enorme, sobretudo para aquelas que efetivamente tentaram inventar para si um
novo destino, como foi o caso de Gilda. Mas isso se deu à custa de conflitos,
inseguranças e dilemas muito específicos.
Relembrando, em outra ocasião, o tempo de estudante, Gilda afirmou que
vivia dilacerada entre o estilo tradicional da casa que me recebia,
da família, do grupo que eu começava lentamente a abandonar e o apelo
da nova vida [....] O vento da rebeldia varreu rapidamente tudo:
crenças, hábitos piedosos, estilo de vida, fita de Filha de Maria,
tudo foi, enfim, mesmo as banalidades das antigas distrações. Só
havia no meu horizonte o interesse pela faculdade. A revelação das
aulas e o encantamento do novo convívio, aquela nova maneira de ser
que estava se desenhando ali, que eu ainda não sabia bem no que ia
dar
14.
O apelo de uma sociabilidade universitária, a sensação inquietante de estar,
senão na contramão, a léguas de distância do destino socialmente esperado e
previamente traçado para as mulheres de sua classe social, o dilaceramento
produzido pelo ir-e-vir entre dois estilos distintos de vida, um
tradicional e outro mais arrojado, que não lhe conferia ainda as insígnias
públicas de aprovação e reconhecimento tudo isso, somado, contribuiu para
gerar uma profusão de sentimentos tumultuados. Nas palavras de Gilda, "não se
pode abandonar assim, do dia para noite, os velhos hábitos pelos novos, sem
sofrer muito e sem sentimento de culpa"
15.
Decorrentes não só de uma experiência individual, esses sentimentos foram
ganhando forma em meio às interações intelectuais e pessoais que então tiveram
lugar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em parte, como resultado da
visão escandida que os colegas tinham sobre as reais potencialidades
intelectuais das colegas. "No fundo, eles não acreditavam muito na vocação
nossa de mulheres, na nossa vocação intelectual". Não é de espantar, então,
sintetiza Gilda, "que a opinião agressiva dos grupos conservadores que nós
tínhamos abandonado, e a opinião ambivalente e flutuante de nossos colegas
tenham contribuído para a elaboração de um ser frágil, tímido, dividido entre a
revolta e o medo, o desejo de afirmação e a dolorosa consciência do empecilho"
16.
A argúcia com que Gilda em O espírito das roupas reconstrói a vivência e, em
certo sentido, a posição em falso e cambiante das suffragettes, que despontaram
na cena política, tem a ver, portanto, com a maneira discreta com que mobiliza
e converte a própria experiência em chave sutil de inflexão analítica. Por meio
de um "olhar de esguelha"
17 que outra escritora, Vilma Arêas, já detectara na ficção da autora , Gilda
aproxima experiências distintas de mulheres diferentes: das suffragettes,
diretamente, e dela e de sua geração, indiretamente. Dessa aproximação,
sobressaem os traços mais abstratos que contornam a ambivalência funda que as
singulariza. Maneira inesperada de introduzir a relação sujeito-objeto sem o
enquadramento metodológico usual que essa relação costuma receber nas teses de
doutorado. No lugar de pôr um ponto final na análise da cultura feminina tal
como expressa no século XIX, Gilda abre com a questão da ambivalência um novo
campo de debate refratário a enquadramentos simplistas e polaridades redutoras.
O reprocessamento da experiência de transição vivida pelas mulheres de sua
geração permite a Gilda, como autora, uma lucidez particularmente aguda em
relação aos meandros da chamada cultura feminina, vista sempre em relação e
conexão com o universo masculino. Daí, sem dúvida, o fato de o alcance
analítico de O espírito das roupas ser maior e bem mais intrigante do que
várias das análises feitas, anos depois, sobre a chamada condição da mulher.
Aprisionada à lógica simplista de algozes e vítimas, uma parte da produção
feminista dos anos de 1970 e 1980 não foi capaz de perceber, e menos ainda de
aprofundar, aquilo que Gilda, de maneira discreta, quase sem alarde, detectou
como resultado da ambivalência vivida pelas mulheres. Apreendendo a moda como
linguagem simbólica, apta a dar plasticidade e expressão a idéias e sentimentos
difusos, e não só como meio de marcar pertencimentos e sublinhar distâncias e
distinções sociais, Gilda mostrou, muito antes da voga dos estudos de gênero,
que as sociabilidades distintas de homens e mulheres no século XIX (mas não
apenas nele) só podem ser entendidas como resultado de um engate simbólico que,
por ser estrutural, exige acionar uma análise de tipo relacional.
Advém daí o frescor desse livro, escrito há mais de meio século. Podemos dizer
então, e sem medo de errar, que o alcance e a atualidade desse trabalho
resultam não apenas da mobilização de instrumentos intelectuais agudos numa
prosa precisa e elegante, mas também da transmutação da situação social de
transição vivida pelas mulheres da geração da autora numa chave apta a renovar
o debate e a reflexão sobre as relações de gênero. Assim, talvez possamos dizer
sobre O espírito das roupas o mesmo que Gilda disse sobre outro grande livro da
nossa história intelectual: Macunaíma, de Mário de Andrade.
Livro típico de épocas de transição social, que não desejam a volta
ao passado, não sabem o que tem de vir e sentem o presente como uma
neblina vasta, Macunaíma
não deve ser tomado como uma fábula normativa. Ele é antes o campo
aberto e nevoento de um debate do que o marco definitivo de uma
certeza
18.
Aplicadas ao espírito da autora e a seu "espírito das roupas", essa citação nos
ajuda a refletir sobre as razões mais sutis e menos evidentes que garantem a
força do livro e sustentam sua armação conceitual e narrativa. Sendo menos a
marca de certezas e muito mais a incitação ao "campo aberto e nevoento do
debate", essas razões são inseparáveis da forma como ao longo do livro se molda
e costura o argumento analítico de Gilda em relação à moda e suas ligações com
a arte, as classes, os sexos e todas as injunções da vida social. Quero dizer
com isso que o conteúdo substantivo da análise é inseparável da forma como ele
é apresentado, ou seja, do ensaísmo e da prosa modernista da autora.
Forma e conteúdo, na escrita de Gilda, aludem também à escritora que ela
certamente teria sido se, no lugar da carreira universitária, tivesse
perseguido uma das vocações de juventude: a de contista, revelada nas páginas
da revista
Clima
19. Mas se isso tivesse acontecido, teríamos ganhado uma escritora e perdido,
isso sim, a ensaísta plena, dona de um estilo preciso e desimpedido, a um só
tempo clássico e modernista, responsável pelo corte impecável que soube
imprimir aos vários objetos culturais e estéticos com que se defrontou ao longo
de sua produção intelectual.
Portanto, não é descabido fazer uma analogia enviesada entre O espírito das
roupas de Gilda e o estilo de moda lançado por Chanel. Por um desses processos
extraordinários de alquimia social, responsáveis pela transmutação vigorosa do
valor simbólico do produto, proporcional à raridade do produtor, Chanel
conseguiu o trunfo máximo que um criador da moda pode alcançar. Isto é, a
"suspensão" do tempo, em um universo onde estar na moda é estar sempre na
"última moda", como mostram Pierre Bourdieu e Yvette Delsaut no notável estudo
sobre as grifes e os produtores da alta costura francesa
20.
Por caminhos diversos, Gilda conseguiu a mesma proeza de Chanel, só que no
campo intelectual, graças à acuidade analítica com que tratou a moda. A
suspensão do tempo na recepção desse livro, que, no lugar de envelhecer, ganhou
frescor e atualidade inquietantes, parece ser a contrapartida da manutenção do
tempo no andamento da análise. Tanto do tempo das mulheres de elite, às voltas
com a moda do seu tempo, quanto do tempo da autora, que, filtrando a
experiência social de sua geração, soube converter o tempo em fonte preciosa do
trabalho intelectual.
Transitando da história para a sociologia, desta para a antropologia e para a
estética, mobilizando fontes diversas e pontos de vista inesperados, Gilda
adensou o foco analítico sobre a moda e produziu essa jóia de ensaio estético e
sociológico.
O GRAU ZERO DA VESTIMENTA E A DANÇA DE FRED ASTAIRE
A atenção às formas e aos usos da vestimenta que Gilda descortina nas obras de
alguns de nossos escritores mais significativos, seria retomada em 1995 no
ensaio "Macedo, Alencar, Machado e as roupas"
21. Entre a tese de doutorado e esse ensaio transcorreram 45 anos. Mais madura
intelectualmente, Gilda volta ao tema das roupas com voltagem analítica
redobrada e economia máxima de linguagem para esquadrinhar o caminho percorrido
pelo erotismo na obra desses romancistas, a partir da maneira como eles
"vestiram" os personagens e "falaram" de suas roupas. Enquanto Macedo, no
romance Rosa (1849), descreve as vestimentas das mulheres com minúcia
documentária, mostrando-se um escritor "empenhado na transcrição do real"
(embora "sem imaginação", pontua Gilda), Alencar e Machado, "hábeis em
desentranhar do visível a verdade oculta das coisas", revelam os significados
das roupas em meio a procedimentos narrativos mais sutis. Em Lucíola (1875) e
em especial Senhora (1875), Alencar, "aparentemente frívolo na descrição
minuciosa" das vestimentas e adereços femininos, cerca o assunto com "acento
pessoal e cálida sensualidade" para "descrever simbolicamente a psicologia" de
suas protagonistas. Da acuidade da descrição, sobressai a "simbiose que reduz
corpos e vestimentas a uma realidade única, palpitante" (p. 76).
Em Machado a forma de pinçar o tema das roupas é mais complexa. A começar pela
rotação de eixo, do pólo feminino para o masculino. No lugar da atenção
detalhista nas roupas femininas, praticada por Macedo e Alencar, ele se volta
para a descrição dos trajes masculinos como via de acesso privilegiada para
caracterização psicológica e social de seus personagens. Dependente desse
"vínculo que une sujeito e vestimenta", a trama narrativa em Machado tem ritmos
distintos quando se trata de abordar os usos e significados das roupas para
homens e mulheres. "A tarefa que cabe à vestimenta das mulheres é acelerar o
impulso erótico através do negaceio constante entre o empecilho da roupa e o
desvendamento da nudez" (p. 83). Econômico na descrição dos trajes femininos,
Machado "jamais esquece que a sua função básica é destacar o encanto da dona"
e, com isso, o erotismo possível na época. A "simbiose" entre o corpo e a roupa
na mulher machadiana é "apenas um pretexto para ir descartando aos poucos o
inútil excessivo, até reencontrar, descobrir a verdade originária" (p. 84).
Mais que qualquer outro escritor da época, Machado compreendeu e mostrou nos
romances, principalmente em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), que "o
despojamento é sempre o traço definidor do ritual amoroso, que pode ocorrer em
duas versões: assumido pela mulher, como oferta simbólica, e pelo homem, como
momento preliminar da iniciação" (p. 86). Ao contrário de Alencar, que
"transfere a libido para a vestimenta, Machado enfrenta o problema sem
subterfúgio" (p. 84). E o faz por meio de sua inscrição, mediada pela forma
narrativa, no solo social das interações possíveis entre homens e mulheres no
Brasil do século XIX. Distinguindo as funções diversas da vestimenta para
homens e mulheres na sociedade da época, Machado evidencia a posição social
distinta de ambos. Para os homens, as roupas cumprem "sobretudo um papel civil,
definidor de status e instaurador de uma identidade fictícia, mas
pacificadora". Para as mulheres, a um só tempo "submissas e sequiosas de
correspondência afetiva", as roupas são um "auxiliar eficiente do jogo erótico,
num momento social instável, ambíguo, de conquistas recentes e aspirações
sufocadas" (p. 88).
Advém daí, arremata Gilda, a dificuldade da crítica do período em aceitar "a
naturalidade com que Machado de Assis iniciava entre nós o discernimento
misterioso e no entanto equilibrado do erotismo" (p. 89). "Viciada pelas
asperezas do naturalismo", ela não foi capaz de apreender a dimensão inovadora
da abordagem machadiana no plano do erotismo.
Essa leitura desempenada de Gilda faz ecoar a lição aprendida com seu
orientador, Roger Bastide, que publicou em 1940 um artigo sobre Machado de
Assis destoante do ramerrão corrente da crítica, que teimava em denunciar a
ausência da paisagem brasileira na obra do escritor
22
. Com o título, "Machado de Assis, paisagista", o artigo mostra que ela está
presente, mas não nos lugares estipulados pelas convenções naturalistas,
revelando-se por inteira nos olhos enevoados de Capitu
23.
Artigo capital para Gilda e os companheiros de geração, que naquela altura
davam os primeiros passos rumos ao empreendimento que os projetaria na cena
cultural da cidade de São Paulo (a revista Clima), o impacto causado pela
leitura do texto foi de tal ordem que "marcou uma reorientação na maneira de
conceber certos aspectos fundamentais da nossa literatura"
24
. Nas palavras de Antonio Candido, Bastide mostrou que "em Machado de Assis a
paisagem está presente de maneira mais poderosa, porque não é enquadramento
descrito, mas substância implícita da linguagem e da composição, inclusive como
suporte das metáforas. Em vez de procurar o 'tema' foi descobrir o modo de
elaborar o discurso, cuja latência mostrou de maneira moderna e forte para o
estado da crítica nos anos de 1940"
25.
Meio século depois, Gilda mostrou, também de forma definitiva, que o erotismo
em Machado é mais sutil e complexo porque, velado pelos constrangimentos
sociais da época, só se deixava descobrir no jogo de oferecimento e recusa
propiciado pela plasticidade simbólica das roupas.
Atenta aos significados distintos que os nossos romancistas insuflaram às
roupas das personagens, Gilda pinçou o jogo sinuoso do erotismo num compasso
analítico, interessado em perscrutar as ligações profundas entre forma e
conteúdo social. Esse mesmo movimento está presente no ensaio "Notas sobre Fred
Astaire", último escrito da autora e fecho do livro A idéia e o figurado. Entre
os textos que integram o volume, esse é o único que permanecera inédito. Um dos
pontos altos de sua produção intelectual, o ensaio é notável pelo que diz e
pela maneira como diz. Nele, o foco é deslocado das roupas e dos adereços
usados por Fred Astaire (1899-1987) que a autora considera o maior dançarino
moderno para o significado dos gestos e destes para a reflexão surpreendente
sobre o sentido da beleza ou de sua ausência na conformação do artista pleno. A
simplicidade do título "Notas sobre..." tem menos a ver com a idéia de
apontamentos e muito mais com a busca apaixonada pelas formas depuradas,
apreendidas pela ensaísta na dança do "super elegante" Fred Astaire, nos
quadros cubistas, na traço a lápis de Seurat.
A adesão à modernidade que Gilda flagra em Fred Astaire revela-se na maneira de
cantar, na seleção dos compositores (Cole Porter e George Gershwin), na escolha
dos trajes (a casaca preta, a cartola, a bengala, os sapatos pretos de verniz)
e, sobretudo, no modo como usa e ajusta o corpo à indumentária a leveza
desentranhada do figurino de gala. Instalado no "grau zero da vestimenta"
sublinhado pelo uso do preto e do branco , Fred Astaire é "um homem ancorado
no cotidiano, sem nostalgias nem ressentimentos", que, ao contrário do
bailarino tradicional, não "se destaca em nada do que o circunda, não se
diferencia na vestimenta, na gesticulação, na dinâmica corporal, na relação com
os objetos do cotidiano" (p. 171). Por isso, afirma Gilda, quando ele salta, "é
como se não houvesse pernas, pois o que apreendemos é o arabesco das abas da
casaca em pleno vôo, a nitidez gráfica do desenho, o preto no branco" (p. 176).
Assim, é possível (e desejável) compará-lo a outros artistas representativos do
mundo contemporâneo, como Chanel e Charles Chaplin. A primeira, pela busca das
formas simplificadas da vestimenta, o segundo, pelo "poder de transfigurar os
objetos com perícia de prestidigitador". Com a diferença de que a magia
promovida por Fred Astaire tem uma "dimensão lúdica e realiza uma admirável
transposição poética do mundo, fazendo do gesto tradução da metáfora", enquanto
a de Chaplin se faz no registro do caricaturista crítico das diferenças
sociais, para "sublinhar o lado trágico e chegar à representação do absurdo"
(p. 174).
Reduzindo o corpo "a um suporte do gesto, não simbolizando em nenhum momento a
beleza muscular e a plástica corporal, como fazem o balé clássico e Gene Kelly"
(p. 172), Fred Astaire libera e, ao mesmo tempo, encena a " beleza do gesto
pura, livre, autônoma e descarnada" (p. 172). Nessa química paradoxal, uma vez
que a beleza projetada pelo artista moderno só se manifesta integralmente
quando esbate o suporte corporal, reside a genialidade desse dançarino. Nas
palavras de Gilda,
Fred Astaire é um dos poucos gênios artísticos do século XX e foi bom
que não fosse bonito, como Robert Taylor, Clark Gable, Gary Cooper ou
Tyrone Power, porque, sendo como era, manteve-se gesto, gesto puro,
graça pura, libertando-se dos cacoetes da mocidade para se tornar na
dança um desenhista, um dançarino gráfico, puro arabesco sem cor (p.
177).
Nas mãos de Gilda, o gesto puro do dançarino converte-se em escrita plena,
liberta ela também dos cacoetes da linguagem acadêmica, para descartar o inútil
excessivo e reter o que importa. Nesse caso, a acuidade analítica da autora,
que, inseparável de sua paixão pelas formas, entrelaça-se à maneira como se
expressou ao longo da vida e "vestiu" os assuntos de sua predileção.
[
1] Os três ensaios mencionados neste parágrafo foram incluídos no livro de
Gilda de Mello e Souza, A idéia e o figurado (São Paulo: Duas Cidades/Editora
34, 2005).
[2
] Partes deste artigo desenvolvem os pontos principais da apresentação que fiz
ao livro O espírito das roupas, de Gilda de Mello e Souza, no seminário As
Ciências Sociais em São Paulo: Obras Decisivas, promovido pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da USP, em junho de 2001. Agradeço aos organizadores do
evento, Leopoldo Waizbort, Luiz Jackson e Fernando Pinheiro, pelo convite e
pela oportunidade de discutir o livro em pauta na presença da autora. Nesse
evento, Gilda fez um depoimento fascinante sobre o objeto de seu doutorado e
sobre sua relação com Roger Bastide. Agradeço ainda, e especialmente, a Mariza
Corrêa, pelo incentivo para transformar essa fala em texto (publicado nos
Cadernos Pagu, no 22, 2003) e a Sergio Miceli pela leitura aguda, como sempre.
[
3
] Cf. Souza, Gilda de Mello e. O espírito das roupas, p. 7[ STANDARDIZEDENDPARAG]
[
4
] Não foi por acaso e muito menos por razões intrínsecas às qualidades,
inegáveis, da tese de doutorado de Florestan que ele ganhou a "guerra" (quer
como objeto de estudo, quer como posição institucional) travada naquele momento
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de forma às vezes veladas, outras
nem tanto, para obter os direitos de sucessão na "linhagem" acadêmica
instaurada pelos professores estrangeiros. Com a volta de Bastide para a
França, em 1954, Florestan se tornaria o "herdeiro" da cadeira onde Gilda
trabalhara até então como assistente e que se converteria, graças à sua
atuação, em verdadeira "instituição dentro da instituição", responsável pela
criação da chamada Escola Paulista de Sociologia. Para detalhamento maior da
carreira de Florestan e de Gilda (bem como de outros integrantes do círculo de
juventude da autora), ver o meu livro Destinos mistos: os críticos do Grupo
Clima em São Paulo, 1940-68 (São Paulo, Companhia das Letras, 1998). Para uma
análise circunstanciada da trajetória e da obra de Florestan, ver: Arruda,
Maria Arminda do Nascimento. "A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a
'escola paulista'. In: Miceli, Sergio (org.). História das ciências sociais no
Brasil, São Paulo: Sumaré/Fapesp, 1995, vol. 2, pp.107-231; Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no
meio século XX. Bauru: Edusc, 2001; e Sylvia Garcia, Destino
Impar, São Paulo, Editora 34, 2002. Sobre a relação de
Florestan Fernandes e Roger Bastide e as implicações na obra de ambos,
consultar Peixoto, Fernanda. Diálogos brasileiros. Uma análise da obra de Roger
Bastide. São Paulo: Edusp, 2000.
[
5
] As implicações dessa oposição na "formatação" das ciências sociais e na vida
intelectual brasileira, por extrapolarem o âmbito dessa instituição, vêm
despertando a atenção dos pesquisadores nos últimos anos. Nessa direção,
conferir os trabalhos de Jackson, Luiz. A tradição esquecida. Os parceiros do
Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2002; Ramassote, Rodrigo. Antonio Candido e a construção
social da crítica literária moderna na USP. São Carlos, monografia de conclusão
de curso apresentada à Universidade Federal de São Carlos, 2003; e Schwarz, Roberto. "Saudação a Antonio Candido". In: Antonio Candido
& Roberto Schwarz: a homenagem na Unicamp, Campinas, Editora da Unicamp,
1988, pp. 9-23. Leopoldo Waizbort, em trabalho ainda inédito
centrado na análise densa e bastante sofisticada da obra literária de Antonio
Candido, achou por bem não deixar de lado as implicações produzidas pela
concepção de sociologia no trabalho e na carreira do autor. Mesmo não sendo o
ponto central da análise de Waizbort, essa questão aparece sob a forma de um
(certeiro) excurso. A seu ver, para entendermos a posição e a situação de
Antonio Candido nos domínios da cultura e do saber, é essencial compreender o
que ele entende por crítica, literatura e história literária e também por
sociologia. "Seu trabalho só é, ou deixa de ser, sociologia frente a uma certa
sociologia, o que vale dizer que os domínios só ganham identidade
contrastivamente, mediante processos de auto-identificações e
autodiferenciações mútuas". Cf. Waizbort, Leopoldo. O Asmodeu dialético. São
Paulo, tese de livre-docência apresentada à Universidade de São Paulo, 2003, p.
65.
[
6
] Cf. Souza, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987. O prefácio de Alexandre
Eulálio ao livro, intitulado "Pano para manga" e o ensaio de Joaquim Alves de
Aguiar, "Anotações à margem de um belo livro" (Literatura e Sociedade, no 4,
1999, pp.129-40) são, salvo engano, os textos mais consistentes produzidos
sobre o livro de Gilda no âmbito da crítica literária.
[
7
] Talvez seja mais que uma simples coincidência que O espírito das roupas tenha
sido publicado como livro no mesmo ano em que se fundou o primeiro curso
universitário de moda no país, instalado na Faculdade Santa Marcelina em São
Paulo, em 1987.
[
8
] Em O olhar renascente, o historiador da arte Michael Baxandall mostra, entre
muitas outras coisas, que a adoção, no século XV, da cor preta nas vestimentas
dos integrantes das cortes foi simultânea à ruptura com o dourado no plano da
pintura. A razão para adotar o preto sóbrio, longe de poder ser encontrada em
pretensas qualidades internas de cor ou tecido, explica-se por critérios
eminentemente sociais. Isto é, pelo fato de ter sido adotado pela elite de
Nápoles, que tinha como centro de sociabilidade a corte do rei Afonso. Para se
diferenciar dos novos-ricos da época, essa elite criou formas de ostentar a
riqueza, avessas, por exemplo, à exibição de brocados, cores fortes ou ouro nos
trajes. O must da época em termos de vestimenta era o corte enviesado. O
"desperdício" de tecido provocado por esse tipo de corte tornou-se um símbolo
muito mais eloqüente de distinção social do que o uso de tecidos esplendorosos
e dourados, que tinham sido moda até então. Ao relacionar a escolha da cor, dos
trajes e dos cortes das roupas com outras dimensões centrais da cultura
italiana da época, Baxandall se mune de instrumentos analíticos poderosos para
destrinchar o sistema de percepção visual no período. Cf. Baxandall, Michael. O
olhar renascente: pintura e experiência social na Renascença. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1991. Outro trabalho importante nessa direção é o
clássico livro de Jacob Burckhardt, A cultura do renascimento na Itália (São
Paulo: Companhia das Letras, 1991), publicado em 1860 e citado por Gilda na
edição inglesa de 1944.
[
9
] "As bonecas de moda" segundo Maria do Carmo Rainho (cujo trabalho tem uma
dívida intelectual expressa para com o livro de Gilda) eram "manequins de
cera, de madeira ou porcelana, dos quais se trocavam as vestimentas de acordo
com a estação". Nas cortes, "príncipes e princesas tinham por hábito fazer o
intercâmbio dos modelos de roupas vestidas" por meio dessas bonecas. Ao longo
do século XVIII, "entretanto, as 'bonecas de moda' vão perdendo a utilidade a
partir do aparecimento de gravuras publicadas nos jornais, que logo se tornam
uma fonte de informação essencial. Mais econômicas e com maior mobilidade
graças à multiplicação das tipografias as gravuras de moda rapidamente
atingem um público mais amplo, que ia além dos círculos aristocráticos". Cf.
Rainho, Maria do Carmo. A cidade e a moda. Brasília, Editorada UnB, 2002, p.
71.
[
10
] Sobre o amplo interesse intelectual de Bastide, ver Fernanda Peixoto,
Diálogos brasileiros.
[
11
] Trechos de resenha que Florestan Fernandes publicou na revista Anhembi (dez.
1952, no 25, pp. 139-40, realces da autora deste artigo). Devo a Luis Jackson a
indicação dessa resenha.
[
12
] Citação retirada da nota 31, do capítulo 3 do livro de Gilda, p. 229, realces
adicionais da autora deste artigo.
[
13
] Conferir, nessa direção, o ensaio de Simmel, Georg. "La moda". In: Sobre la
aventura: ensayos filosóficos. Barcelona: Ediciones Península, 1988, pp. 26-55.
[
14
] Trechos do depoimento que Gilda de Mello e Souza fez na USP, em julho de
1984, por ocasião da 36a Reunião da SBPC e por iniciativa do Centro de Estudos
Rurais que promoveu o encontro A Mulher nos Primeiros Tempos da Universidade de
São Paulo. Transcrito no artigo de Blay, Eva e Lang, Alice Gordo. "A mulher nos
primeiros tempos da Universidade de São Paulo", Ciência e Cultura, no 36 (12),
dez. 1984, p. 2137. Para uma análise exaustiva da situação das
mulheres na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ver Trigo, Maria Helena
Bueno. Espaços e tempos vividos: estudo sobre os códigos de sociabilidade e
relações de gênero na Faculdade de Filosofia da Usp (1934-1970). Tese de
doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de São
Paulo, 1997.
[
15
] Trechos do depoimento de Gilda de Mello e Souza, p. 2137.
[
16
] Idem.
[
17
] Cf. Arêas, Vilma. "Prosa Branca". Discurso, no 26, 1996, p. 26.
[
18
] Cf. Souza, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades,
1979.
[
19
] Para uma análise sofisticada dos contos escritos por Gilda de Mello e Souza,
conferir o ensaio de Arêas, Vilma.
[
20
] Cf. Bourdieu, Pierre e Delsaut, Yvette. "Le couturier et sa griffe:
contribuition à une théorie de la magie". Actes de la Recherce en Sciences
Sociales, no1, 1975, pp. 7-36.
[
21
] Originalmente publicado nesta revista (no 41, mar. 1995), esse ensaio foi
incluído no livro de Gilda de Mello e Souza, A idéia e o figurado. As citações
feitas no decorrer desse segmento foram retiradas do livro.
[
22
] Cf. Bastide, Roger. "Machado de Assis, paisagista". Revista do Brasil, Rio de
Janeiro, 3a fase, no 29, 1940, pp. 3-14. O texto foi
republicado com o mesmo título na Revista da USP, no 56, dez.-fev. 2002-2003.
[
23
] Segundo Bastide, "se na Europa, o poeta pode dizer que'les yeux des femmes
sont des Méditerranée'", os olhos das heroínas de Machado de Assis, olhos
verdes, olhos de ressaca, olhos de escuma com reflexos irisados, são feitos da
própria cor do oceano que banha as praias do Brasil, guardando em suas vagas o
encanto de Yemanjá, o apelo dos abismos, a carícia e a traição". Reproduzido de
Bastide, Roger. "Machado de Assis, paisagista", p. 199.
[
24
] Cf. Candido, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.
103.
[
25] Idem, p.109.