A trilha de Morales: novo movimento social indígena na Bolívia
PRÓLOGO2
A Bolívia vive uma situação paradoxal. Enquanto a economia mostra sinais de
recuperação e forte crescimento, na esfera política passamos por momentos de
violência simbólica e física, demagogia, populismo e insegurança. A influência
de Hugo Chávez sobre o governo boliviano definitivamente causa inquietação à
comunidade internacional e a muitos bolivianos. O presidente venezuelano deseja
governar por decreto, e recentemente impôs uma medida que suspende a
independência do Banco Central da Venezuela.
A pretensão de Chávez é organizar seu socialismo usando o Banco Central como
caixa do governo. Caso Evo Morales pretenda tomar medidas semelhantes,
certamente estaria demonstrando desequilíbrio. Esperemos pelo melhor: que o
desenvolvimento boliviano, cujo objetivo é beneficiar a todos, imponha a
racionalidade econômica.
Não é redundante enfatizar que o movimento social responsável por levar Morales
ao poder se deve mais a uma tradição contenciosa do que a uma tradição de
democracia participativa e legal na Bolívia. Pode-se observar o fato claramente
diante dos acontecimentos de Cochabamba, os quais lastimavelmente assumiram
características próprias do vandalismo político. A tomada do poder por Morales
se deve, também, à incompetência e ao fracasso dos partidos políticos e da
classe política tradicional deste país isolado no que tange a resolver os
perenes problemas de uma sociedade subdesenvolvida, com alto grau de pobreza e
exclusão onipresente.
As políticas econômicas adotadas nos últimos anos não eram sustentáveis ou
adequadas para superar o atraso nacional. As reformas estruturais que
terminaram introduzidas estavam subjugadas à lógica da idolatria ao mercado. Os
responsáveis políticos, insensíveis à lógica liberalizante que suas idéias
mesmas acarretavam, não quiseram aceitar que na prática seu modelo não ofereceu
respostas contundentes aos problemas sociais, políticos e culturais agudos e
crescentes.
O modelo que eles propuseram terminou estrangulado pelas correntes mesmas com
que preservava a exclusão. Entre os anos de 2000 e 2005, a situação se tornou
dramática, a economia boliviana rapidamente se tornou inviável e o sistema
político perdeu sua legitimidade e credibilidade. O modelo de governo e de
desenvolvimento aplicado na Bolívia nas últimas duas décadas não conseguiu
digerir as próprias irregularidades e defasagens. Assim, a marca pedagógica,
psicológica e moral dos 20 anos é que tornou possível a ascensão do movimento
social indígena, e a eleição de Morales à Presidência.
Este triunfo das "maiorias bolivianas", apoiado igualmente pela classe média e
pelos intelectuais, não deixa de merecer, ainda assim, uma série de
interrogações e advertências. Até o momento, não está claro que tipo de Estado
ou sociedade o governo de Morales pretende propor. O que existe é uma figura em
construção, ou seja, um "olho sociológico de poder" que oferece muitas
contradições.
As oscilações pendulares do discurso e das propostas do governo e de seus
integrantes vão desde um Estado para todos, inclusivo, tolerante e respeitador
das liberdades e dos direitos humanos, até um modelo incendiário, que exibe a
máscara horripilante do racismo etnocêntrico e vingativo, promovendo a guerra
cultural, a subordinação a novas relações de poder que serão impostas, a
subordinação da classe média e a condução do país na direção de uma divisão
perigosa.
A duplicidade do discurso é um risco, porque o objetivo parece ser desmantelar
o Estado atual por meio da violência simbólica e prática. Caso as regras e
valores democráticos universais sejam desrespeitados, o desmonte da democracia
será apenas questão de tempo.
Não só a oposição questiona a gestão do MAS (Movimento ao Socialismo) e seu
plano de elaborar uma nova Constituição, mas diversos setores da sociedade
boliviana não percebem, na atuação do governo, a disposição de criar com a nova
Constituição um instrumento jurídico que promova a igualdade de oportunidades,
a equanimidade necessária para mudar a Bolívia e a inclusão para todos os
bolivianos, não importa quais sejam suas origens étnicas. A consciência étnica
um tanto romântica que reina no governo não consegue perceber que, devido a
complexos e distintos processos econômicos, políticos, culturais, sociais e
psicológicos, autonomia como a que está sendo proposta resultaria em fazer da
Bolívia uma Iugoslávia.
Ao ouvir o discurso de alguns dos líderes políticos, a impressão que surge é a
de que um espírito de fanatismo flana por certas esferas do poder. Não se deve
utilizar os movimentos sociais como escudo e ponta de lança. E os movimentos
sociais não deveriam, por sua conta e de sua parte, agir dessa maneira. Em uma
união instrumentalizada, é possível anular o legal e o legítimo.
O governo deve ter bem claro que, caso elimine o diálogo público, estará de
fato eliminando a democracia, ou seja, surgirá uma simbiose perigosa, sempre à
beira do descontrole. Os cidadãos não devem ser apenas os receptores das regras
promulgadas, mas seus artífices. Não existem regras nem valores para esse novo
tipo de "democracia instrumentalizada e subjugada", tal como desejam os
movimentos sociais.
Estudos já determinaram que a Bolívia é pobre e fraca porque não tem um Estado
sólido, com capacidade financeira e política para operar isoladamente. Um
Estado forte em termos econômicos significa não só um Estado regulador e
determinado a democratizar a economia de mercado, mas sim um Estado democrático
que englobe todos os setores da sociedade boliviana, um Estado onde desapareçam
não só as injustiças sociais mas as discriminações de "procedência", e que se
prove capaz de desenvolver perspectivas melhores para nós, bolivianos. Um
Estado que se identifique com sua realidade social e cultural, ou seja, com a
diversidade e a mistura, cuja política cultural rechace totalmente, na prática
e na retórica, o etnocentrismo fanático e o racismo apocalíptico. Um Estado que
recupere viabilidade, credibilidade e legitimidade não só do ponto de vista
econômico mas também do social, para dentro e para fora.3
*
"O que está acontecendo na Bolívia é um dos espetáculos políticos mais
fascinantes de nossos tempos. Com Evo Morales, a imensa maioria aborígene e
andina assume a gestão do país."4 No dia 22 de janeiro de 2006, o aimará Evo
Morales Aima tomou posse como presidente constitucional da República da
Bolívia. Embora tenha sido eleito por 53,7% do total dos votos numa eleição
democrática, pode-se afirmar que esse acontecimento tem sua origem numa
tradição de mobilização social muito arraigada na Bolívia, que supera a débil
tradição do legalismo e do constitucionalismo. Os responsáveis pelas diversas
coalizões de governo até o final dos anos 1990 interpretaram mal essa forma
política de protesto. Não foi uma insurgência para preparar um golpe de Estado;
não foi um levante das massas ao estilo bolchevique, não foi um fenômeno nem
líbio, nem colombiano, nem chinês. Foi um fenômeno bem boliviano.
Chega-se a essa conclusão quando se faz o rastreamento dos fatos nos últimos
cinco anos. Este novo governo deve seu trunfo mais à crescente oposição ao
Parlamento na forma de protesto político-social do que ao próprio processo
constitucional iniciado em 1982. Esse movimento nutre-se numa das correntes
mais fortes, na Bolívia "invisível" que permaneceu calada por mais de meio
século e que começa a expressar-se por si própria. Evo Morales em seu discurso
de posse reconheceu essa verdade e afirmou: "Graças ao movimento popular, ao
movimento indígena da Bolívia estou onde estou"5. A tradição do movimento
social no comportamento da sociedade boliviana deve-se como bem afirma John
Crabtree ao fato de a Bolívia ser "um país com um Estado relativamente fraco
e uma sociedade civil forte, cujas raízes encontram-se nas tradições
comunitárias da sociedade camponesa andina, em sua longa história de
resistência à invasão dos valores ocidentais, como a propriedade privada, o
individualismo e o lucro"6.
DEBILIDADE DO ESTADO
A debilidade do Estado na Bolívia é reflexo de uma economia subdesenvolvida,
demasiado dependente da ajuda externa e socialmente excludente. Apesar da
implementação rigorosa das diretrizes do Consenso de Washington desde a segunda
metade dos anos 1980,7 não se formularam processos de criação de renda
relevantes para fomentar uma coesão social. Por esse e outros equívocos
políticos, o movimento social, de longa tradição na Bolívia, toma um novo
impulso e adquire um caráter distinto.
A Bolívia, sobretudo após a Revolução de 1952, sobressaiu entre os países
latino-americanos por seu movimento "operário" combativo8. A importância desse
movimento diminuiu quando Paz Estenssoro deu o golpe de misericórdia no setor
estatal de mineração, com o Decreto nº 21.060 em 1985, com o qual se iniciou o
processo de estabilização. Esse golpe na mineração estatal debilitou o
movimento social liderado pela Central Obrera Boliviana (COB). Foi imposta uma
democracia liberal que deu certa estabilidade ao funcionamento institucional do
país, porém não conseguiu nem soube evitar o impacto negativo de uma crise
político-econômica e social. Os desempregados das minas (25 mil) foram
realocados para outros setores, entre os quais o agrário. Em sua metamorfose de
mineiros para trabalhadores rurais, começaram a ampliar o cultivo da coca na
região do Chapare (Cochabamba). A situação tornou-se conflituosa com a
introdução dos programas de erradicação da folha de coca. Ainda assim, a
pobreza aumentou no campo, especialmente no altiplano e nas cidades de
mineração, como Oruro e Potosí. Em termos de geração de emprego e renda, a
situação em geral se agravou para muitos. A falta de interlocução entre os
clamores legítimos da maioria da população em crescente pobreza e pauperização
e um programa político-econômico e social capaz de unir a sociedade cimentaram
estruturas oligárquicas, prebendais e elitistas.
A história política da Bolívia mostra que não se pode governar contra quase
todo o povo. As demandas e os protestos se intensificaram, circunstâncias em
que foram os indígenas e não a COB os principais atores. Dessa forma, as
mobilizações sociais adquiriram cada vez mais um caráter étnico. Do ponto de
vista político-econômico, o movimento "indígena" baseia-se nos despossuídos e
perdedores das políticas neoliberais, os que rápida e eficazmente souberam
coordenar ações que adquiriram em alguns casos características corporativistas
e clientelistas. Pode-se afirmar com toda firmeza e rigor que esse movimento
social também é reflexo da opressão de séculos, de gerações, da marginalização
e pauperização dos povos aimarás e quíchuas, em suma, de todas as culturas
existentes na Bolívia, por elites mestiças e crioulas inaptas para governar
para todos, indiferentes à realidade, senhoriais em sua visão de sociedade,
racistas, reacionárias e chauvinistas. As ações políticas adquiriram uma nova
envergadura por meio das mobilizações dos indígenas. Um sem-número de
acontecimentos, marchas, bloqueios, a guerra da água em Cochabamba, o movimento
dos cocaleiros no Chapare, o problema da terra no altiplano, o El Alto9 e a
guerra do gás sucederam-se continuamente em cinco anos e ainda que esses
acontecimentos tenham mobilizado diferentes atores sociais, foi o movimento
"indígena", onde se concentram 65% dos bolivianos que vivem na pobreza, que
canalizou a maioria do descontentamento. Os ativistas políticos do movimento de
protesto encontraram uma válvula de escape na política da água e do gás,
intensificando sua profunda desconfiança na classe política tradicional, de
serem novamente enganados. É de surpreender? O engano tem uma longa tradição na
política da Bolívia.
SINDICALIZAÇÃO E MOVIMENTO SOCIAL
A cultura da sindicalização na Bolívia remonta ao início do século XX, quando
diferentes grupos sociais, entre eles os artesãos, se libertaram dos cercos
assistencialistas das associações mútuas. Nasceu assim a tradição de luta por
meio dos sindicatos ou federações, sob os modelos ocidentais, diferenciando-se
por seus atores e interesses.10 Essas organizações passaram rapidamente da luta
por reivindicações sociais à luta política, que em muitas ocasiões e
conjunturas desempenharam um papel mais eficaz do que o dos partidos políticos.
Essa forma de luta chegou aos indígenas nos anos 1970, quando organizaram os
primeiros sindicatos e partidos de camponeses.11 Nesse mesmo período iniciou-se
o processo de libertação do dito campesinato dos partidos populistas ou das
ditaduras militares. Entre os primeiros estava o MNR, que instrumentalizou o
campesinato, desde a Reforma Agrária em 1953 até 1964, com fins políticos,12
apesar de ter-se entendido a relação como um pacto entre os camponeses e o
Estado, ou seja, um pacto social para a entrega das terras, o voto universal, a
reforma na área da educação. Posteriormente, os governos militares organizaram
o pacto militar camponês, pacto que se revelou prebendal e clientelista.13 Este
se rompeu com os assassinatos de camponeses em Tolata e Epizana (regiões do
vale boliviano) em 1974. Dessa forma, o movimento indígena adquiriu
independência política e formou seus primeiros organismos. Em 1975, havia mais
ou menos 15 mil sindicatos de base de camponeses no país.14 Nessa década se
organizou a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia
(CSUTCB), e os partidos mais importantes eram o Movimento Revolucionário Tupac
Katari (MRTK) e o Movimento Índio Tupac Katari (MITKA). Contudo, continuaram
funcionando sob a hegemonia da COB. É necessário assinalar, porém, que as
organizações de camponeses não tardaram em adquirir autonomia graças à
"capacidade de as bases manterem sua soberania nos níveis comunitários".15
Evidentemente esse novo movimento indígena utilizou nos acontecimentos futuros,
com muito êxito, as bases organizadoras dos ayllus16 e das comunidades. Alguns
sociólogos vêem nessa tradição a origem da cultura corporativista nas lutas
sociais na Bolívia. Entretanto, não se pode ignorar que nessa tradição da
cultura corporativista também existe uma linha sindicalista que se ligou a
muitos setores da sociedade boliviana quando se introduz o sindicalismo
ocidental. O que poderia ter-se mesclado à tradição comunitária? Xavier Albo e
Joseph Barnadas escrevem: "há duas tendências: a mais sindicalista', existente
sobretudo em regiões de colonizações17 e algumas áreas de ex-fazendas, onde já
se havia perdido toda referência à antiga organização comunitária; e a mais
autóctone', mais forte nos partidos indígenas e nas áreas onde o sindicato
nunca havia penetrado com força".
IDENTIFICAÇÃO COLETIVA
A chegada de multidões de camponeses às cidades, o enfraquecimento da COB, o
acesso à educação, a perda das ideologias forâneas, os movimentos por autonomia
no mundo, o processo de descentralização do Estado e a persistência da pobreza
na maioria da sociedade fizeram renascer nos indígenas sentimentos de
identificação coletivos. Começam a evocar e criar nações "inexistentes" como a
aimará, a quíchua, entre outras, que os levaram ao mesmo tempo a propor um
retorno aos reinos do Tawantisuyu.18 Ainda que existam, por exemplo, os grupos
étnicos de aimarás e de quíchuas, eles nunca haviam se constituído em nações,
foram reinos. Atualmente, a maioria das novas gerações de "indígenas" e
"brancos" possui elementos culturais comuns. São um amálgama19 cultural com
fortes déficits em sua identificação. Para os indígenas, o papel social nesse
processo deve ser gerido pelas comunidades de camponeses e pelo ayllu. A
comunidade e o ayllu são os que definem os limites territoriais, ou seja,
estabelecem laços culturais entre a comunidade e a terra20. O ayllu é para o
movimento social indígena a base para sua identificação histórica, que vem
desde o Tawantisuyu. Teria sobrevivido à colonização e subsistiria na
República. Levando alguns a argumentar "que por ser a potência, o passado
potencial, é o recurso histórico-político indispensável para resolver os
problemas do presente"21.
Contudo, com a adesão de novos elementos culturais e experiências político-
sociais, as instituições sociais mudam ao longo da história. Portanto, entende-
se que o ayllu ancestral teve de sofrer transformações relevantes ao longo dos
séculos. E para compreender sua estrutura, seria preciso conceber sua
organização pelo menos há um milênio. Essa intenção necessariamente cairá no
hipotético e na lenda, o que, além de refletir uma subjetividade histórica
dessa instituição, tem uma forte tendência em desembocar numa altaneria
cultural desmesurada como base de um etnocentrismo purista politicamente
perigoso essas tendências são latentes em algumas correntes do movimento
social. Porém, alguns desses movimentos se apegam à idéia de sua validade na
atualidade social indígena, considerando o ayllu a base e a essência de suas
nações. Politicamente seria possível falar do ayllu atual, interpretando-o como
a instituição social que cumpre a função do sindicato ocidental no movimento
"operário". O transcurso da história serviu, em muitos aspectos, para mudar ou
eliminar vestígios culturais. A colonização como em quase todos os países
latino-americanos trouxe, por meio da força da cruz e da espada, a imposição
de uma cultura sobre a outra, impondo novos elementos. Ainda assim, o europeu
mesclado ao nativo dá características próprias à atual sociedade boliviana.
José Albo (antropólogo jesuíta) sustenta que a população rural na Bolívia é
indígena em termos de identidade e tradições culturais, podendo-se afirmar o
mesmo da população urbana, que se identifica com o outro, o que traz consigo o
problema da identificação dos bolivianos. Sem considerar a mistura tanto étnica
quanto cultural como parte da realidade.
De todo modo, não se deve deixar de reconhecer que os movimentos "indígenas"
nutrem-se de uma herança histórica de desigualdades e injustiças. Esses
movimentos desconfiam da idéia da razão individual e se inclinam para um
igualitarismo comunitário que os aproximaria de seu passado cultural homogêneo.
Isso explicaria também o repúdio que há em relação às instituições modernas,
entre as quais a propriedade privada. Porém, ainda que mobilize multidões, esse
discurso está mais em pensamentos do que na vida cotidiana, que já não reflete
a realidade da práxis globalizante. Os indígenas bolivianos compartilham, com
muitas de suas atividades, o mundo da modernidade, praticam a livre troca de
seus produtos no mercado utilizando papel-moeda, possuem muitos artefatos
modernos como tratores, caminhões, bicicletas, automóveis ou aparelhos
eletrônicos e, onde a infra-estrutura permite, participam ativamente do mundo
da internet. Esse contato se intensifica com a ida para as cidades e com o
fenômeno da globalização cultural.
Apesar de sua identificação como indígenas, esses movimentos sociais não são
homogêneos e apresentam uma série de variantes. Diferenciam-se, por exemplo,
por sua procedência e origem aimará no altiplano ou quíchua em Cochabamba,
Sucre, os dois grupos étnicos mais numerosos na Bolívia; por sua localização
regional, como o movimento dos cocaleiros no Chapare, que lutam para conservar
seu espaço no mercado da folha de coca e pelo nível de renda alcançado com a
comercialização da coca, ou o movimento das comunidades do altiplano, que lutam
pela preservação de suas terras diante da modernização, primeiro da fazenda
como produtora mais ágil para o mercado interno, ou anos depois, com a reforma
agrária, que acelerou a repartição privada (minifúndios) das terras de
comunidade no altiplano; e pela linguagem. Apesar do uso de conceitos
ancestrais, distintos em cada movimento pelas diversas línguas étnicas,
empregam-se também termos e categorias ocidentais, ou seja, tomados das
diferentes correntes chegadas da Europa, tais como o socialismo, liberalismo ou
nacionalismo conservador. Não é pouco freqüente encontrar uma indígena em El
Alto, partidária do Movimento ao Socialismo, dizer: "A pobreza deve acabar. O
sistema capitalista deve acabar na América Latina. É hora da justiça social.
Morte ao capitalismo"22. Ou um discurso claramente antiamericano (vestígio de
um antiimperalismo marxista) nas manifestações realizadas em La Paz, onde se
repete de forma reiterada: "Morte ao imperialismo ianque".
Os líderes do Movimento Índio Pachakuti (MIP), entre eles Mallku23, preferem
denominar de ayllu suas organizações em vez de sindicato, ou marka24 em vez de
povo, expressões ancestrais conservadas em sua linguagem e segundo eles de
algumas formas sobreviventes de sua organização social.
FORÇAS, MOVIMENTOS
"Os movimentos sociais enaltecem o povo, constituem o instrumento mais
importante para a conquista de seus direitos individuais e coletivos e, como
tais, são parte fundamental do capital social boliviano. São atualmente o
instrumento mais potente de geração de cidadania."25 Em contextos
socioeconômicos e culturais como na Bolívia, a construção da democracia e da
cidadania, a inclusão social e a cidadania universal estão intimamente ligadas
à organização e à mobilização social. A forte crise causada pelas novas
políticas liberais voltou a reforçar o surgimento dos movimentos sociais que
provocam uma mudança profunda no panorama político do país.
A guerra da água
Como ponto de partida, pode-se tomar a guerra da água em Cochabamba.26 Ela se
deu quando se resolveu privatizar27 a Aguas del Tunari, plano elaborado pelo
governo do general Banzer. Cochabamba, que conta com uma população de 500 mil
habitantes mais os municípios limítrofes como Sacaba, Vinto e Quillacollo,
absorve a distribuição desse elemento vital especialmente em épocas de seca,
privando os agricultores e colonos de água para suas terras irrigadas. Todavia,
metade das residências na cidade não tem acesso ao sistema público de
distribuição de água potável e rede de esgoto equitativa28. Essa situação, que
remonta a anos anteriores, havia causado diversos conflitos entre a população
rural e a urbana, mas diante da entrega pelo governo de Banzer ao consórcio
Aguas del Tunari (ADT)29, ou seja, a mãos privadas para administrar esse
recurso, que quis elevar as tarifas desse elemento em 300%, desencadeou-se uma
luta violenta em que se aliaram a população rural e a urbana para forçar o
governo a revogar a medida. O protesto mobilizou diversos setores da sociedade.
John Crabtree afirmou: "Pela primeira vez uniram forças com outros consumidores
principalmente da população urbana e cocaleiros do Chapare no que haveria de
tornar-se uma longa campanha amarga e violenta, mas finalmente exitosa que
obrigaria o governo a recuar".30
O consórcio ADT, que pretendia monopolizar o comércio desse elemento vital,
exigiu uma arbitragem internacional nos Estados Unidos para obter uma
indenização de 25 milhões de dólares, o que naturalmente trouxe problemas para
o governo de Jorge Quiroga.31 A pressão da população em defesa dos recursos
vitais se intensificou e finalmente conseguiu a vitória. O jornal de
Cochabamba, Los Tiempos, estampou: "O protesto público e a comoção civil na
cidade de Cochabamba em abril de 2000 foi a verdadeira causa para o afastamento
da ADT".
O movimento indígena teve ampla participação na guerra da água, os cocaleiros
bloquearam a rodovia de Cochabamba ao Chapare32 para evitar o transporte de
produtos. O governo respondeu com o Estado de Sítio e com o Exército. Mortos e
feridos foram o saldo desse enfrentamento. A meta desse movimento tanto urbano
como rural foi alcançada, ou seja, evitar que um recurso de primeira
necessidade fosse privatizado. Na verdade, a intenção de comercializar a água,
elevando o preço de forma desmedida, não foi aceita pela população em geral.
Os cocaleiros
O germe do movimento nasceu entre os desempregados, especialmente mineiros,33
que buscaram novas formas de sobrevivência e a encontraram no mercado da folha
de coca. A planta, cujas folhas servem de base para a produção de cocaína,
passou de seu cultivo tradicional dos Yungas até o Chapare e naturalmente esse
acontecimento contribuiu para o aumento também da produção dessa droga. A
campanha "coca zero" de erradicação forçada dessas novas plantações começou em
1997 com o governo de Banzer. A intenção de erradicar o produto levou à
resistência e organização dos cocaleiros, cujo dirigente máximo foi o atual
presidente boliviano Evo Morales34. A guerra iniciada não apenas pelo exército
nacional, mas também pela Drug Enforcement Administration para erradicar a
"folha" do Chapare, continuou até o governo de transição de Rodriguez Veltzé e
provocou um sem-número de episódios sangrentos. Tentou-se incentivar projetos
alternativos, financiados pelos norte-americanos e pela União Européia, para o
cultivo de diversos produtos que substituíssem o da coca, mas até o momento sem
o êxito esperado. Essa luta abriu caminho ao "índio" Evo Morales, tal como o
chamava a imprensa européia, para atuar na política nacional. Crabtree
ressalta: "A campanha de erradicação contribuiu para elevar em âmbito nacional
Evo Morales e seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS)"35. A folha de coca,
que, segundo vários estudos, teria propriedades nutritivas comparáveis às do
leite e da carne, é mastigada com fins terapêuticos e religiosos pelos
indígenas andinos há um milênio e seu uso tradicional é legal na Bolívia. Desde
os anos 1960, no entanto, a coca figura numa lista de substâncias proibidas da
ONU que limita severamente seu comércio internacional. Ainda assim, a "Coca-
Cola" utiliza essa matéria-prima em processo industrial, e seu cultivo alimenta
também o multimilionário negócio ilícito do narcotráfico.
A promessa de retirar a folha de coca da lista negra e reverter a política
americana de "coca zero" foi fundamental na campanha de Morales. Agora, como
presidente da Bolívia, ele quer legalizar o cultivo da coca, permitindo um
"cato"36 por afiliado nos sindicatos dos cocaleiros do Chapare, declarando-se a
favor da guerra contra a cocaína. Seu lema é "cocaína zero".
O problema da terra
O movimento indígena no altiplano de La Paz tem origem no problema da posse da
terra. Começa no primeiro século da República com a lei de desapropriação das
terras de comunidade, na época de Melgarejo (1864-1871). Continua com uma série
de medidas tomadas no período liberal (1900-1920), época em que se produz o
aumento das propriedades, a privatização da terra que serviria para agilizar a
agricultura e se dota o mercado interno de mais produtos. O resultado é a
monopolização das terras por uma minoria urbana, o que, em 1953, justifica a
reforma agrária. Em algumas regiões, ela resulta no minifúndio improdutivo, que
afeta as comunidades do altiplano de La Paz e provoca a emigração dos
habitantes do campo altiplânico, sobretudo para as cidades. A maioria dos
aimarás que permaneceram no campo vive na pobreza. O governo de Sánchez de
Lozada baixou a Lei do Instituto Nacional de Reforma Agrária, em 1996, para a
reformulação da propriedade das terras distribuídas pela reforma, a qual foi
interpretada pelos indígenas aimarás como uma nova lei para eliminar o que
denominam "comunidades de origem". Outras leis, como a de participação popular,
deram maior autonomia às autoridades locais. O grupo aimará se organizou em um
novo movimento, em que se enaltecem a etnicidade e as nações indígenas.
Índio Pachakuti
Trata-se do movimento étnico mais radical no início do século XXI na Bolívia.
Seu líder, Felipe Quispe ou Mallku, tornou-se importante ao organizar com muita
habilidade uma série de mobilizações no âmbito aimará. Sua força foi
demonstrada por meio dos bloqueios de estradas que, em diversas ocasiões,
deixaram a parte oeste do país paralisada e, especialmente, a cidade de La Paz
sem abastecimento de gêneros alimentícios, água, gás e eletricidade. Esse
movimento se opõe a tudo que tem origem no mundo ocidental. O MIP manifesta
muitas vezes em seus discursos expressões racistas, insiste na diferença
entrek'aras37 e índios, aos quais a "nação" pertence. Não se aceita a mistura,
nem a idéia da mestiçagem que, durante os séculos transcorridos desde a
conquista, indubitavelmente existe. O perigo desse movimento é o uso do
discurso racista, em que se ressalta que a Bolívia é dos índios e os brancos
devem ir embora ou ser exterminados, como também seu clamor por violência por
meio de insurreições ou luta armada. "A Whipala38 entrará no palácio do governo
para expulsar os inquilinos"39. Há intelectuais, entre eles os membros do
Centro de Investigação e Promoção do Campesinato, que interpretam essa
linguagem racista como um protesto contra a injustiça social. Quispe esteve
preso, no início dos anos 1990, por integrar um movimento guerrilheiro que
nunca prosperou , o exército guerrilheiro Tupak Katari. Entretanto, participou
do processo eleitoral de 2002 e sua organização obteve seis cadeiras no
Parlamento. Nas eleições de dezembro de 2005, o MIP não obteve nenhum assento
no Parlamento. Isso demonstrou que o movimento indígena racista na Bolívia tem
poucos partidários. Derrotado, Mallku desculpa-se com Evo Morales pelos
enfrentamentos verbais e políticos que tiveram e opina com arrogância sobre o
convite do novo presidente para unir-se à nova Bolívia: "Evo Morales vai tomar
o comando, mas não vai tomar o poder". Ao mesmo tempo, admite que "Evo é um
presidente indígena".40 Seu radicalismo para tranqüilidade da maioria dos
bolivianos não teve eco nem mesmo nas maiorias indígenas e enfraquece aos
poucos.
O "fenômeno" El Alto
El Alto, vizinha à sede do governo, é o lugar estratégico para a luta do
movimento indígena. A cidade começou há trinta anos como vilarejo nas alturas
limítrofes à cidade de La Paz, com a imigração especialmente de camponeses
aimarás. Hoje, converteu-se numa urbe de quase 700 mil habitantes. Capital
aimará, por ela passam várias rodovias que interligam a sede do governo
nacional, La Paz, com o resto do país ou do mundo.41 Ali se misturam dois
mundos diferentes com traços opostos: comunidades de camponeses indígenas que,
desde a revolução de 1952, vivem numa economia de subsistência convivem com uma
atividade econômica frenética no comércio, artesanato, microempresas e alguma
produção industrial de maior envergadura, com o desenvolvimento do transporte
tumultuado de microônibus, caminhões, carros. A cidade, contudo, revela duas
faces da modernidade: uma população majoritária de pobres, que luta pela
sobrevivência, e outra menor, de ricos. Nesse último grupo se concentra a
atividade econômica crescente, cujo resultado é em alguns casos o
enriquecimento por meio da via informal. Esse subgrupo é intitulado por alguns
analistas de "burguesia chola",42 que convive entre a legalidade e a
ilegalidade econômica. As leis do Estado, em muitos aspectos, não são
respeitadas e tampouco cumpridas as obrigações trabalhistas e tributárias.
As mobilizações nessa cidade foram determinantes para a derrubada de dois
presidentes constitucionais. Diante das medidas de comercialização do gás, as
armas foram os bloqueios que isolaram a sede do governo. O primeiro foi em
outubro de 2003 quando Sánchez de Lozada,43 encurralado, abandonou
clandestinamente suas funções como presidente constitucional e o segundo,
Carlos Mesa,44 obrigado a renunciar em junho de 2005. As mobilizações de El
Alto organizadas pelos diversos movimentos indígenas e organizações locais45
foram a chave para a nova situação política. O trabalho dos partidos nas
eleições de autoridades locais permaneceu obscuro. Segundo Crabtree, em El
Alto, como no resto da Bolívia, "a maior parte das pessoas está absolutamente
saturada dos partidos políticos, mesmo os de base mais popular como o MAS".46
Contudo, esse último movimento recebeu apoio maciço da cidade de El Alto nas
eleições de 2005. Foi aí que se deram as lutas por reivindicações sociais para
os indígenas, assim como por recursos naturais como o gás e a água.47
O MAS
Os antecessores do MAS estão na luta dos cocaleiros por meio da Confederação
Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia, do Conselho Nacional de
Marcas e Ayllus do Collasuyo, da Federação de Mulheres Bartolina Sisa e da
Confederação Sindical de Colonizadores da Bolívia.48 A partir de 1999, quando
conseguiu uma aliança política com pequenos grupos de esquerda, estabeleceu-se
como movimento político nacional. O caleidoscópio político da Bolívia começou a
ser canalizado pelo MAS. Desde então, observa-se uma simbiose: por um lado, "a
luta pelos explorados" e, por outro, "a luta pelos povos indígenas". Equipara-
se a situação de exploração dos assalariados à exploração dos indígenas durante
séculos. Seu programa e metas incluem um Estado forte, anulação dos contratos
de privatização, reversão dos recursos naturais, nacionalização do gás
boliviano, supressão de entidades que não "contribuem para o desenvolvimento
nacional", oposição às empresas transnacionais. Com seu discurso, o MAS em
pouco tempo conseguiu reunir aliados tanto no setor "indígena" como em outros
grupos sociais, como a classe média. Nas eleições de 2000, ganhou com maioria
simples de votos.
Dessa forma, o epicentro da política na Bolívia após a eleição geral em
dezembro de 2005 apresentou uma guinada para a esquerda. Esse fenômeno, não
único na América Latina, deve-se à crise deflagrada pelas políticas econômicas,
aos partidos políticos tradicionais, que caíram em descrédito pelos maus
governos, ao fracasso de suas políticas de desenvolvimento econômico e social e
à extensa corrupção em suas fileiras, que não puderam levar adiante com clareza
as novas medidas, dando novas perspectivas de melhoria econômica e social à
população apesar da estabilização monetária. O MAS, com seu presidente
indígena, se converteu para uma maioria do movimento social indígena
boliviano , por enquanto, na esperança de uma alternativa. Como ele ressalta:
"O começo de uma nova era". As expectativas são enormes.
ECONOMIA, EXCLUSÃO SOCIAL E MOVIMENTOS SOCIAIS
A Bolívia implementou todas as recomendações de reformas do Estado:
liberalização do comércio exterior, descentralização, privatizações na forma de
capitalizações, reforma da educação e da saúde, terceirização dos serviços,
criação dos sistemas de regulação, reformas tributárias e institucionalização
do Estado (alfândega, impostos internos, serviço nacional de estradas),
redistribuição do investimento público em favor da área rural. Converteu-se num
modelo para a realização de reformas em outros países em desenvolvimento na
América Latina e África. Em reconhecimento, a Cooperação Bilateral e
Multilateral forneceu apoio com cerca de 500 milhões de dólares por ano de
cooperação e perdoou em duas ocasiões a dívida externa mediante os programas
HIPC49 (1998) e HIPC Ampliado50 (2000) num valor total de 1,7 bilhão de
dólares.
Superado o período de hiperinflação (1982-85), somente se conseguiu recuperar a
renda per capita de 1980, já que 65% dos cerca de 8 milhões de bolivianos vivem
abaixo da linha de pobreza, 40% em níveis de extrema pobreza e 70% da população
ativa trabalha no setor informal da economia (Udape, 2002). A economia informal
da Bolívia se encontra fortemente vinculada ao processo de modernização
implementado sob os pressupostos do Consenso de Washington e a outros fatores
complexos, como o colapso da indústria de mineração, os processos de erosão dos
solos agrícolas e a crescente terceirização da economia. A maioria dos
trabalhadores informais é composta por mulheres e autônomos, grupos que recebem
renda inferior à média nacional.
Do ponto de vista macroeconômico, na Bolívia existe uma discrepância entre o
uso e a origem da renda, ou seja, entre o consumo adicional de bens e serviços
e a produção do país.51 O modelo econômico baseia-se na entrada de capitais,
mediante a ampliação da dívida externa e da cooperação internacional para o
desenvolvimento. Os recursos da cooperação internacional atingem cerca de 10%
do Produto Interno Bruto. A entrada de capitais externos resulta em persistente
valorização da moeda, o que faz com que os atores econômicos domésticos tenham
expectativas de desvalorização latentes ou crescentes. Isso evidencia também
que a Bolívia não atingiu a meta implícita do Consenso de Washington:
redirecionar os recursos para o setor exportador e lograr um sólido balanço de
pagamentos. O modelo implementado na Bolívia foi um fracasso em termos de
desenvolvimento econômico, criação de renda, redistribuição da riqueza e
emprego. A Bolívia continua sendo o país mais pobre da região, apesar de sua
estratégia de redução da pobreza, cuja meta certamente ilusória é reduzi-la
pela metade até 2015. Nos últimos dois anos, o número de pessoas abaixo da
linha da pobreza aumentou, em vez de diminuir.
Depois de anos de crise (1999-2002), a Bolívia chegou ao final de 2002, ano em
que se intensificaram os protestos sociais, com déficit público de 7,6%52,
redução de sua baixa competitividade devido às megadesvalorizações dos países
da região, perda de divisas, taxa de desemprego aberto de 20% e acentuada
convulsão político-social. A situação fiscal deteriorada, gerada ao longo da
década de 1990 e agravada nos últimos anos devido a choques externos causados
pelas megadesvalorizações dos principais parceiros comerciais da Bolívia, ao
lado da incapacidade econômico-financeira para dotar a economia de
competitividade, deixou o país sem instrumentos de política fiscal e monetária
em meio a um círculo vicioso de valorização da moeda, atividade econômica
precária e perda sistemática de divisas.
A experiência do modelo boliviano com base no Decreto nº 21.060, em vigor desde
29 de agosto de 1985 e cujo autor foi o economista Jeffrey Sachs, mostra
implicações e conseqüências importantes de um programa de reforma para o
conjunto da sociedade. A introdução de pressupostos válidos para qualquer
economia de mercado, como a liberalização dos preços e comércio ou a redução do
gasto fiscal, não são por si mesmos os elementos que tornam uma estratégia de
desenvolvimento bem-sucedida. Sobretudo quando se ignoram fundamentos
essenciais para o desenvolvimento econômico, quais sejam, a cotação da moeda
nacional para garantir a competitividade das exportações e a promoção de
investimentos e geração de renda.
Em meados de fevereiro de 2003, após negociações com o Fundo Monetário
Internacional, o governo quis introduzir um imposto sobre a renda pessoal,53 o
que gerou uma forte convulsão social que custou a morte de 38 pessoas, antes
que o presidente anulasse a medida e reformulasse seu gabinete.
O risco de comprometer a estabilidade monetária fez com que os responsáveis
pelas políticas econômicas se tornassem conservadores e se mantivessem presos
de maneira dogmática aos fundamentos básicos da reforma, apesar de seus efeitos
sociais e econômicos negativos.54 Nenhum governo gerou políticas sérias,
conseqüentes e eficazes com fortes corretivos para reduzir o nível da
dolarização, recuperando a taxa de câmbio como instrumento de política
econômica e de desenvolvimento. Também não se uniram esforços para iniciar
processos de geração de emprego e lutar de frente contra a exclusão social e a
corrupção. Os efeitos da repressão política e militar contra a economia da coca
sobre a demanda tampouco foram superados pela ajuda internacional. Com as
medidas de liberalização da economia, aumentaram as diferenças entre ricos e
pobres, ao que se somou a mudança nas diversas regiões, beneficiando umas e
empobrecendo outras, ocasionando conflitos sociais e regionais.55 Entre os anos
de 2000 e 2005, a situação foi dramática: a economia da Bolívia foi perdendo
viabilidade a grandes passos. O sistema político perdeu legitimidade e
credibilidade; e a sociedade, suas bases de paz social. Os movimentos sociais
adquiriram dinâmica na luta por reivindicações, ou seja, tiveram sua base no
conflito ou nos conflitos não resolvidos.
EVO MORALES
Evo Morales foi empossado presidente da Bolívia em janeiro de 2006. De acordo
com suas palavras, iniciou-se na Bolívia "a era indígena", como anunciado em
Tiwanaku.56 Seu vice-presidente, Álvaro Garcia Lineras, um intelectual
"branco", afirmou: "Queremos um Estado em que a saia e a pollera57 sejam a
mesma coisa".58 O gabinete nomeado é constituído de ex-dirigentes e ativistas59
que criticaram duramente a política anterior. Gente que usa capacete de
mineiro, manta e pollera; além de Casimira Rodríguez, dirigente de uma
organização de trabalhadoras do lar. Pela primeira vez uma mulher, Alicia
Muñoz, ocupa a pasta do Ministério do Interior. E há ainda um ministro das
Relações Exteriores que defende os direitos dos indígenas, David Choquehuanca.
Não obstante, um empresário, Salvador Ric Riera, é responsável pelo Ministério
de Serviços e Obras Públicas.60
As interrogações sobre o futuro governo boliviano são muitas. O núcleo de seu
programa de governo é:
1. Nacionalização dos hidrocarbonetos;
2. Assembléia Constituinte;
3. Lei Andrés Ibáñez para as Autonomias, isto significa a
descentralização política e administrativa da República para que os
povos indígenas, municípios e regiões tenham poder de decisão
político-financeira e gestão;
4. Plano de desenvolvimento produtivo, cujos pontos principais
incluem: anulação do Decreto Supremo 21.060, criação da matriz de
desenvolvimento produtivo para a geração de empregos estáveis, renda
e excedente econômico, pacto social para o emprego digno e permanente
com as empresas privadas nacionais e os investimentos estrangeiros
que estejam dispostos a garantir direitos trabalhistas, obrigações
tributárias e ambientais;
5. Garantia jurídica aos investimentos nacionais e estrangeiros que
ingressem na Bolívia para fins produtivos e não-especulativos;
6. Criação do Banco de Desenvolvimento Produtivo Urbano Rural para
artesãos e micro e pequenos produtores;
7. Lei contra a corrupção e a impunidade;
8. Lei da Austeridade Fiscal, em que se destaca a eliminação dos
gastos excessivos nas instituições estatais e a super-remuneração de
assessores das entidades públicas e das despesas reservadas ou
confidenciais;
9. Lei da Terra Produtiva, com a qual se quer acabar com o latifúndio
e o uso especulativo de terras, acelerar o Programa de Distribuição
de Terras e de títulos de propriedade aos camponeses e povos
indígenas e a segurança jurídica para todos os que trabalham na
terra;
10. Segurança pública;
11. Soberania social, na qual se quer criar um novo Sistema de
Seguridade Social para dar cobertura de saúde em três níveis;
12. Educação e cultura, se pretende revogar a Lei da Reforma
Educacional, garantir a vigência e a qualidade da educação gratuita
em um sistema educacional único, criar uma educação comunitária
baseada na intraculturalidade, respeitando-se a plurinacionalidade e
o plurilingüismo.
O novo governo tem de dar respostas urgentes, eficientes e em consenso com a
sociedade civil no contexto de uma estratégia global que exija de todos os
setores um esforço por vários anos, para evitar que o processo econômico aliado
à dolarização da economia leve novamente a uma estagnação e se converta em um
infarto econômico e político. O êxito do governo de Evo Morales será medido em
função de sua capacidade de reverter a aflitiva situação econômica e social na
Bolívia. A firmeza, a legitimidade e a credibilidade das ações do governo
diante dos movimentos sociais e políticos, do conjunto de interesses
corporativistas e corporativos e dos atores econômicos serão decisivas para o
êxito ou não das reformas econômicas planejadas pelo novo governo.
O sistema econômico boliviano poderia ser considerado um conjunto de interesses
corporativistas e corporativos instalado em um equilíbrio que não é nem
eficiente, nem equitativo. Esse tipo de corporativismo econômico é parente
inevitável do clientelismo político e, apesar de núcleos tão poderosos e
diversos, como motoristas e professores, sua capacidade de resistência e
desestabilização apenas se dá em relação a governos fracos, o que não será o
caso do MAS.63
Além disso, em uma economia com participação maior do Estado, como pretende o
governo Evo Morales, as reformas estruturais não podem ser indefinidamente
postergadas. Isso implicaria um aprofundamento ainda maior da crise social nos
anos vindouros, gerando por sua vez um ambiente ainda mais hostil contra as
reformas e custo maior no momento de serem implementadas. Nesse processo de
mudança, a oposição política também não pode, nem deve esquivar-se de sua
responsabilidade. Ela tem de apresentar alternativas de reforma viáveis,
dialogar ou apoiar as do governo, para evitar que a Bolívia se mova para uma
estagnação política e econômica.
Entretanto, dificilmente64 a elite "branca" aceitará a idéia de que um indígena
seja capaz de governar. Em relação ao gabinete em que há indígenas, ativistas e
analistas, segundo pesquisa de janeiro de 2006, 65,87% da população
consideravam essa equipe ruim e somente 30,63%, boa.65 Morales está consciente
desse aspecto. Ao mesmo tempo, reconhece que o futuro da Bolívia está na união
e o movimento indígena não pode ser excludente. "Estamos aqui numa democracia e
quero que saibam sobretudo a comunidade internacional que queremos mudar a
Bolívia não com bala, mas com voto e essa é a revolução democrática".66
Contudo, a mentalidade colonial tão acentuada na sociedade boliviana em todos
os setores não é fácil de apagar por meio de um discurso.67 Caso consiga
iniciar mudanças na mentalidade do boliviano, seria um grande passo, uma tarefa
não realizada em centenas de anos. Entretanto, há críticas também nos setores
populares sobre algumas nomeações, por exemplo, a de Abel Mamani como ministro
sem pasta da Água. O dirigente da Federação das Juntas Vicinais da cidade de El
Alto, Jorge Chura, afirmou que o presidente se equivocou ao fazer tal
nomeação.69 Na verdade, Morales colocou como responsáveis de muitos ministérios
dirigentes indígenas que lideraram conflitos, defensores da corrente
indigenista, que desde já podem causar fortes contradições e desavenças entre a
idéia da união e do entendimento que ele propõe e a idéia etnocentrista
ortodoxa e autóctone.
Entre suas primeiras medidas, ratificadas pelo Parlamento, estiveram a nomeação
dos novos chefes das Forças Armadas, transferindo para a reserva dois graus de
generais, e a redução de 50% dos salários das autoridades de instituições
estatais. Também quer introduzir a disciplina nos setores públicos, alterando
para as 5 horas da manhã o início do expediente. A Bolívia, um país acostumado
ao caos, presta-se a esse tipo de medidas.
O governo de Evo Morales ainda tem de encontrar equilíbrio e ritmo, evitando
cair no autoritarismo prebendal de regimes passados ou num populismo social
clientelista aplicado pela força. Evo Morales também tem de superar
urgentemente sua dupla função, a de presidente de uma nação e dirigente dos
cocaleiros.
Morales planeja refundar a Bolívia por meio da Assembléia Constituinte para
discutir e promulgar uma nova Constituição.71 Ela pode converter-se no
instrumento democrático de correção das anomalias na política boliviana.
Depende de como se organizarem e se interpretarem as funções dessa Assembléia.
Depende de saber preservar antes de tudo os princípios democráticos e o
parlamentarismo. Tarefa difícil de cumprir na Bolívia, visto que a tradição no
campo político de ilegalidades e instabilidade é demasiado forte, embora o país
viva desde 1982 num regime "democrático". A interpretação de Morales sobre
política é a seguinte: "A política significa uma ciência de serviço ao povo, há
de servir ao povo, não viver do povo, essa é a política. Há de viver para a
política e não da política".72
O resultado de uma nova constituição política do Estado tem de abrir, como
perspectiva real, a possibilidade e a capacidade de gerar, com instituições
transparentes e honestas, trabalho, investimentos, produção, estabilidade e
crescimento, educação para todos, justiça para todos, segurança, ciência,
saúde, cultura e um meio ambiente saudável, uma Bolívia econômica, social e
culturalmente forte, unida em sua diversidade e respeitada. Para a construção e
o aprofundamento de projetos de integração regional e para uma inserção bem-
sucedida na economia mundial é necessário um país forte.
EXPECTATIVAS DE MUDANÇA
A sociedade civil, decepcionada com o fracasso dos mecanismos institucionais de
negociação, buscou alcançar o poder por meio de novas formas de mobilização.
Assim, a nova modalidade na luta indígena converteu-se no instrumento político
mais eficaz de Evo Morales e do MAS para conquistar o governo. Esse
acontecimento não significa que tenha terminado a etapa de conflitos entre a
sociedade e o Estado ou que tenham sido superadas as tradições de mobilização e
enfrentamento. Os movimentos sociais estão impacientes e esperam respostas
eficazes, práticas, claras e em linha com a oferta político-eleitoral do MAS.
O governo de Evo Morales tomou uma medida significativa, que estabelece avanços
importantes no setor de hidrocarbonetos na Bolívia. O controle estatal do setor
de hidrocarbonetos não é exceção no mercado internacional. Com essa medida, Evo
Morales cumpre uma de suas promessas eleitorais. A nacionalização sem
expropriação a que se referia Evo Morales ocorreu, para surpresa dos grupos
mais radicais,73 sem afetar o patrimônio das empresas petrolíferas.74 O Decreto
Supremo nº 28.701, "Heróis do Chaco", de 1º de maio de 2006, contém nove
artigos. A nacionalização dos hidrocarbonetos estabelecida nesse decreto não
tem muito a ver com as nacionalizações anteriormente realizadas na Bolívia,
como a de 1969, já que no sentido estrito da palavra o país não recupera a
indústria petrolífera privatizada. A nacionalização de Evo Morales tem como
fundamento a maior participação do Estado na indústria de hidrocarbonetos por
meio de sociedades mistas, em que convivem e interagem os interesses do Estado
e os das empresas transnacionais.
As implicações econômicas do decreto não são claras.75 O governo calcula um
ingresso adicional de cerca de 300 milhões de dólares por ano. Esse ingresso
adicional seria obtido por meio dos 82% de impostos sobre os grandes poços San
Alberto e Sábalo.76 Desses 82%, apenas 32% seriam recursos adicionais para o
Tesouro Geral da Nação, visto que os 50% restantes constituem o Imposto Direto
sobre os Hidrocarbonetos e as regalias, ambos em vigência desde 2005. Por um
lado e como parte da nova política de hidrocarbonetos da Bolívia, a YPFB
anunciou o aumento do preço do gás exportado para a Argentina e o Brasil. Na
reunião de cúpula de Foz de Iguaçu no mês de maio de 2006, os presidentes do
Brasil, Argentina e Bolívia aceitaram discutir os novos preços da forma mais
democrática possível entre as partes envolvidas. Os presidentes concordaram
sobre a necessidade de preservar e garantir o abastecimento de gás, favorecendo
um desenvolvimento equilibrado nos países produtores e consumidores. Por outro
lado, a discussão sobre os preços do gás deve ocorrer num contexto "racional e
equitativo que viabilize os empreendimentos". Evo Morales declarou que
garantirá o abastecimento, mas seu governo quer renegociar os preços que ambos
os países pagam.
Um setor econômico tão importante como o do gás é politicamente muito
inflexível. Apesar da rigidez que a gestão estatal traz consigo, o
profissionalismo tem de primar nas decisões técnicas e na criação e adaptação
de estruturas organizacionais. Por outro lado, não se devem negligenciar os
investimentos externos. Eles são importantes para alcançar competitividade do
setor gasífero em âmbito internacional. Atualmente, os investimentos externos
apresentam forte tendência à redução, devido à percepção de uma (latente)
política nacionalizante excessiva no governo de Evo Morales.
A renda do petróleo e do gás traz problemas macroeconômicos difíceis de mudar
por razões meramente políticas. Os altos impostos provenientes da venda do gás
não devem resultar em políticas lassas no orçamento fiscal. O déficit
estrutural tem de ser superado. Isso só é possível por meio de cortes nas
despesas. Cortes no orçamento em uma economia, com elevados ingressos
provenientes dos hidrocarbonetos, não são populares. Com um setor econômico tão
importante para a economia como o do gás, não é possível manter a longo prazo
apenas uma estratégia de políticas de estabilização. O setor de hidrocarbonetos
em auge contínuo leva uma economia pequena a ciclos conjunturais de alta, com
todos os efeitos negativos para os preços, salários, taxa de câmbio e
competitividade dos outros setores da economia. As políticas monetárias,
financeiras e tributárias superam a capacidade de gestão da economia, tendo
grandes dificuldades para estabilizá-la. O governo de Evo Morales também tem de
encontrar uma resposta para esse desafio macroeconômico.
O êxito da mudança política será medido em função de sua capacidade de reverter
a situação econômica precária em que se encontra a Bolívia e dar respostas que
tenham uma perspectiva clara de melhora da questão social. Isso também
significa manter a estabilidade macroeconômica, conseguir viabilizar processos
sustentáveis de criação de renda e emprego.
A Bolívia é pobre e fraca porque não tem um Estado sólido, com capacidade
financeira e política para atuar. Um Estado forte na economia não significa
apenas um Estado regulador com a intenção de democratizar a economia de
mercado, mas essencialmente um Estado que disponha de meios próprios para
materializar políticas solidárias para o bem comum. É fato que não se pode
construir um país sobre fundamentos sólidos nem fortalecer o Estado sem ter
pelo menos uma estratégia de políticas fiscais que adote entre outros
elementos políticas austeras, além de introduzir o universo impositivo. O
outro lado da moeda de uma sociedade com demasiados infratores e sonegadores de
impostos é um Estado incapaz de cumprir suas tarefas. Os movimentos sociais têm
de compreender essa lógica, caso desejem que seu projeto de mudança tenha
perspectiva. O universo impositivo tem de abarcar todos os que recebem renda e
têm patrimônio, sem exceção de cultura, raça, cor da pele e afiliação político-
partidária e sindical. O nível de renda a partir do qual se tributa de forma
impositiva é essencialmente uma decisão política.
Todos os responsáveis, do governo ou da oposição, têm necessariamente de
responder às seguintes questões: que tipo de Estado querem? Com uma sociedade
solidária? Como financiar tudo isso? Com "dádivas" de fora e com dívida
externa? Ou construindo um aparato produtivo competitivo em âmbito
internacional? Como as autonomias departamentais se organizarão? Esse problema
encerra o perigo de uma confrontação e divisão da Bolívia. O presidente do
Comitê pró-Santa Cruz, Germán Antello, disse que os habitantes desse
departamento não permitirão que o MAS, com mais de 50% da preferência
eleitoral, se sinta dono e amo do país, e tente definir o que acredita ser o
mais correto, sem levar em consideração os habitantes dos nove departamentos
que têm ideais, culturas e identidades diferentes77. Nenhum partido político ou
organização da sociedade civil, tampouco o governo atual pode dar-se ao luxo,
nas circunstâncias em que a Bolívia se encontra, de bloquear consensos por
clientelismo ou populismo. Não se devem hipotecar as gerações futuras, fazendo
fracassar uma dinâmica de mudança que oferece à Bolívia um leque único de
oportunidades.
A política deve preocupar-se em obter as bases de uma cultura boliviana que
desterre posições discriminatórias, segundo a qual a identificação seja
encontrada não apenas nas culturas ancestrais, mas também na cultura ocidental.
As políticas culturais devem ter como finalidade apagar a dicotomia índio/
branco presente em grande parte da mentalidade de seus habitantes, posição que
não combina com a realidade social. A sociedade boliviana precisa entender que
as estruturas sociais e culturais vão além dessa oposição dualista. Não se pode
duvidar que séculos de convivência engendraram novos frutos mesclados tanto
étnica como culturalmente. "No momento da Conquista nem os chamados índios'
nem os pretensos espanhóis' podiam prever como resultante de seu encontro o
nascimento de um homem que não fosse nem índio' nem espanhol', mas sim um
híbrido em si, um novo ser".78
Nesse sentido, existe uma necessidade imperiosa de que o governo Evo Morales,
ao lado dos movimentos sociais que o apóiam, tome um rumo coerente com
programas e propostas políticas inovadoras e integradoras. Deve deixar de lado
os simbolismos, que por mais tradicionais que sejam, não substituem as
políticas capazes de solucionar os problemas mais devastadores e de levar ao
progresso e à integração.
[1] Este trabalho foi escrito em janeiro de 2006, poucos dias após a ascensão
de Evo Morales à presidência. Transcorridos mais de doze meses de governo,
algumas medidas estebelecidas no programa eleitoral, como a nacionalização dos
hidrocarbonetos, se implementaram; outras, como a reforma da educação, se
iniciaram. A Assembléia Constituinte foi instalada. Até o momento, dada a
estagnação política em que se encontra, não dá sinais de iniciar o trabalho
para o qual foi fundadada.
[2] O prólogo foi escrito em fevereiro de 2007, a título de atualização da
argumentação. Apesar dos meses transcorridos desde sua elaboração, pela análise
que faz das causas sociais, políticas e econômicas para o surgimento desta nova
"era" na Bolivia, assim como pelas advertências sobre possíveis desvios
(resultado da própria lógica dos movimentos sociais empenhados em inverter as
relações de dominação), este texto permanece atual.
[3] Do asterisco em diante a tradução é de Marta Helena de Macedo e Cintra. A
tradução do prólogo foi gentilmente cedida pela Folha de S. Paulo.
[4] Posse, Abel. La Nación, Buenos Aires, 10/02/06.
[5] La Prensa, La Paz, 22/01/2006.
[6] Crabtree, John. Perfiles de la protesta: política y movimientos sociales en
Bolivia. Plural, La Paz, Bolivia, 2005, p. XVIII.
[7] Os postulados do Consenso de Washington eram: (i) disciplina fiscal; (ii)
nova ordenação do gasto público; (iii) ampliação da base tributária e redução
de impostos; (iv) liberalização financeira; (v) câmbio único; (vi)
liberalização do comércio exterior; (vii) igualdade de condições para os
investimentos domésticos e estrangeiros; (viii) privatização; (ix)
desregulamentação e descentralização; (x) garantia para os direitos da
propriedade; (xi) liberalização do mercado de trabalho.
[8] O termo "operário" é colocado entre aspas, pois a Bolívia nunca teve nem
tem um proletariado numeroso com as dimensões dos países industrializados. O
movimento denominado "operário" foi formado por artesãos, mineiros, empregados
de fábricas, ferroviários, motoristas, gráficos, professores, médicos etc. Ou
seja, abarca diferentes setores da sociedade, mas foi liderado em muitas
ocasiões pelo setor de trabalhadores mineiros.
[9] Cidade vizinha a La Paz com cerca de 700 mil habitantes.
[10] Lorini, Irma. El movimiento socialista "embrionario" en Bolivia. Entre
nuevas ideas y resabios de la sociedad tradicional. Amigos del Libro, La Paz,
Bolívia, 1994, pp.105-126.
[11] O termo "camponês" foi introduzido pelo MNR quando fez a Reforma Agrária
em 1953 (Cf. Hurtado, Javier. El katarismo. HISBOL, La Paz, Bolívia, 1986, p.
23).
[12] Em 1963, quando os mineiros ameaçaram marchar sobre La Paz em resposta aos
planos de racionalização do MNR, o governo isolou as minas, associando as
forças do Exército às de milícias de camponeses.
[13] Alcoreza, Raúl Prada. Largo Octubre: genealogía de los movimientos
sociales en Bolivia. Plural, La Paz, Bolívia, 2004, p. 73.
[14] Hurtado, J. op. cit., p. 66.
[15] Idem.
[16] Unidade social andina a que se atribui um passado comum pelo lado paterno
(Barnadas, Joseph, in: Barnadas, J. Diccionario histórico. Grupo de Estudios
Históricos, Sucre, 2002, p. 233.
[17] Xavier Albo e Joseph Barnadas se referem aos colonos que vivem nas regiões
onde foram implementados programas de colonização após 1952, como no Vale de
Cochabamba e no norte de La Paz (Albo, Xavier & Barnadas, Joseph. La cara
india y campesina de nuestra historia. 3ª. ed. UNITAS-CIPCA, La Paz, Bolívia,
1990, p. 294 esclarecimento dos autores).
[18] O termo faz alusão à divisão territorial do Império Inca em quatro suyos
(regiões) ou macroprovíncias, que eram vagamente identificadas com as quatro
direções dos pontos cardeais e que confluíam na capital, Cusco, origem de
caminhos, origem das quatro direções, das quatro províncias e centro do
universo, segundo a cosmovisão indígena. As quatro províncias (suyos) do
Tawantinsuyu eram: Chinchaysuyu, a província do norte; Quntisuyu, a do oeste;
Antisuyu, a do oriente; Qullasuyu, a do sul. Tawantinsuyu é o nome original
dado pelos incas e pela historiografia andina ao conjunto dos territórios
governados por sua monarquia e ao Estado inca. O termo Tawantinsuyu também se
estende a um período da história de países, como o Peru e a Bolívia
principalmente.
[19] Em outro contexto teórico, Fred W. Riggs, um dos mais proeminentes
estudiosos americanos de ciências da administração, introduziu em 1964, em seu
famoso livro Administration in developing countries. The theory of prismatic
society , a categoria de sociedades prismáticas para explicar a administração
pública de "sociedades amálgamas" em um determinado contexto cultural, político
e histórico.
[20] Crabtree, J., op. cit., p. XIX.
[21] Alcoreza, R. P., op. cit., p. 70.
[22] La Razón, La Paz, 2005.
[23] Mallku significa condor. Esse nome foi adotado pelo líder do Movimento
Índio Pachakuti.
[24] Interpretado pelos "indígenas" como povo.
[25] Prats, Joan. El proyecto del poder de Evo Morales. Fundación para la
Democracia Multipartidaria en La Paz, 2006. Disponível em <http:/
/_www.iigov.org>.
[26] Começou em 1999 e terminou em abril de 2000.
[27] Por meio da Lei nº 2.029.
[28]Laserna, Roberto. Conflictos y movimientos sociales en Bolivia, La Paz,
Bolivia, 2004, p. 7.
[29] Empresa constituída na Bolívia por capitais dos Estados Unidos, Espanha,
Inglaterra e domésticos a que se deu o nome de Aguas del Tunari.
[30] Crabtree, J., op. cit., p. 2.
[31] Jorge Quiroga, vice-presidente, assumiu a presidência quando Banzer,
doente, teve de afastar-se.
[32] Rodovia importante que se estende até Santa Cruz. Interliga as regiões
leste e oeste do país.
[33] Eles levaram para o Chapare não apenas sua mão-de-obra, mas também seu
elevado grau de organização e luta.
[34] Nasceu na zona rural e exerceu, entre outras atividades, a de mineiro;
afetado pelo Decreto nº 21.060, dirigiu-se para o Chapare, onde iniciou sua
carreira sindical e política.
[35] Crabtree, J., op. cit., p. 22.
[36] Um "cato" equivale a 1.600 metros quadrados para cada produtor. Convênio
firmado com os cocaleiros durante o governo de Carlos Mesa.
[37] "K'ara", palavra aimará que significa "branco".
[38] Bandeira indígena, símbolo utilizado politicamente pelo MAS.
[39] Los Tiempos, Cochabamba, 17/04/2001.
[40] La Prensa, La Paz, 23/01/2006.
[41] O Aeroporto Internacional de La Paz está localizado no meio da população
de El Alto.
[42] O termo cholo era utilizado para designar os filhos de mestiços e de
índios e os "mestiços" em geral. Rossana Barragán (Barragán, R. "Entre
polleras, llipllas y ñañacas. Los mestiyos y la emergencia de la tercera
República", in: Etnicidad, economía y simbolismo en los Andes. HISBOL-IFEA/SBH-
ASUR, La Paz, Bolívia, p. 90) sustenta que o termo tem
possivelmente várias origens: do espanhol viria de "chulo", utilizado para
denominar a classe mais baixa; do aimará viria de "chhulu", que significa
"mestiço", ou seja, nem espanhol, nem índio; pode significar ainda um tecido de
seda utilizado na vestimenta feminina no século XVIII.
[43] Membro do MNR e partidário fervoroso do livre mercado e da capitalização.
[44] Foi eleito vice-presidente de Sánchez de Lozada, sucedendo-o no cargo
quando o presidente abandonou o governo. Sua inaptidão política agravou a crise
política e social na Bolívia.
[45] Além do MIP e do MAS, desempenharam um papel importante a Federação de
Mulheres; a Central Operária Regional formada por comerciantes e algumas
indústrias, setores informais; os estudantes da Universidade del Alto e ex-
trabalhadores mineiros.
[46] Crabtree, J., op. cit., p. 82.
[47] Também ocorreu um problema em El Alto com relação à água em 2004 e 2005.
Na década de 1990, ocorreu o monopólio por trinta anos da gestão da água
potável e da rede de esgoto, para a empresa mista Aguas del Illimani (capitais
franceses 35%, domésticos 20%, argentinos 18% e outros). As mobilizações contra
essa empresa começaram quando não cumpriu seus planos. O conflito persiste.
[48] Cf. Discurso de Evo Morales na posse presidencial, La Prensa, La Paz, 26/
01/2006.
[49] Iniciativa de Redução da Dívida de Países Pobres muito Endividados, sigla
em inglês HIPC (Heavily Indebted Poor Countries).
[50] Depois do perdão da dívida da Bolívia, ocorrido em 2001, o financiamento
externo para o país foi se limitando, de forma que o estoque de dívida externa
(medida no valor presente) permanecesse inferior a 50% do valor de suas
exportações, registrado nos últimos três anos, e a 250% da arrecadação fiscal.
Para o endividamento interno, que o governo utilizou para financiar seus gastos
nos últimos anos, estranhamente não foram definidos limites. Uma explicação
detalhada sobre os efeitos da Iniciativa HIPC para a Bolívia pode ser
encontrada em Pando (Pando, E. Capacidad de endeudamiento de los gobiernos
locales en Bolivia Caso de estudio: Gobierno Municipal de La Paz. La Paz:
Universidad Católica Boliviana, 2001)
[51] Pando, Eduardo & Gutierrez, Carlos Jahnsen. "El agotamiento del modelo
boliviano apreciación de la moneda y crisis económica". Economia e Sociedade,
vol. 13, no 1 (22). Campinas: Instituto de Economia/Unicamp, Brasil, jan./jun.,
pp. 21-60, 2004.
[52] Ainda que os dados oficiais apontem um déficit do setor público de 7,6%,
vários analistas e meios da imprensa trabalham com a cifra de 8,5% a 9%. A
dívida do Estado atingiu 62,3% do PIB em 2002. O serviço da dívida corrente
alcançou 38% da arrecadação do Estado ou quase 18% das exportações.
[53] O imposto sobre a renda pessoal proposto pelo governo de Sánchez de Lozada
foi do tipo proporcional e direto de 12,5% ao mês a partir de 880 bolivianos,
aproximadamente 114 dólares. Esse imposto apresenta a desvantagem de não
considerar uma justiça impositiva vertical.
[54] A Argentina se aferrou de forma irracional e dogmática ao sistema de
paridade desde o final de 1998, cuja sustentabilidade a médio prazo e,
principalmente, a longo prazo não era possível e cujo custo foi vários anos de
recessão econômica e ampliação da crise.
[55] Em Santa Cruz, Tarija, surgiram movimentos separatistas e por autonomia.
[56] Ruínas pré-colombinas no altiplano boliviano.
[57] Vestimenta que o vice-rei Toledo introduziu em 1570. Para os indígenas
simboliza a vestimenta típica. [Saia ampla e longa usada tradicionalmente pelas
mulheres andinas das classes populares.]
[58] La Razón, La Paz, 23/01/2006.
[59] O chefe das Juntas Vicinais do El Alto, Abel Mamani, atual ministro sem
pasta e responsável pela política da água, comandou os bloqueios na guerra do
gás contra a política de Sánchez de Lozada. Walter Villarroel, cooperativista
mineiro, com participação ativa na renúncia de Carlos Mesa, foi nomeado
ministro de Mineração e Metalurgia. O jornalista Andrés Solís Rada, partidário
de que os recursos nacionais permaneçam nas mãos de bolivianos, é ministro de
Hidrocarbonetos. O cochabambino de Aiquile, Juan Ramón de la Quintana e Carlos
Villegas, economista, ocupam os cargos de superministros. A cholita Casimira
Rodríguez, ministra sem pasta, se ocupará da Justiça na Bolívia. Todos
opositores da política neoliberal.
[60] Diante dessa nomeação La Razón escreve: "Um sinal de aliança entre o
Executivo e o empresariado" (La Paz, 24/01/2006).
[62] Süddeutsche Zeitung, Munique, 29/01/2006.
[63] Prats, J., op. cit.
[64] Refere-se ao Latifúndio do Oriente Boliviano formado depois de 1952
(Discurso, 22/01/2006).
[65] La Razón, La Paz, 31/01/2006.
[66] Discurso, 22/01/2006.
[67] Entende-se por mentalidade colonial aquela cheia de preconceitos formada
em épocas passadas que não aceita a igualdade de direitos e deveres para
todos os cidadãos. Que dá espaço à discriminação, ao racismo, ao
patrimonialismo e a uma atitude de dependência.
[69] La Razón, La Paz, 24/01/2006.
[71] El Diario, La Paz, 20/02/2006.
[72] Discurso, 22/01/2006.
[73] Segundo seus críticos mais radicais, o governo do presidente Evo Morales
deu neste 1º. de maio outra demonstração de sua vocação para pôr o marcador
para a esquerda e marchar para a direita. (Econoticias, La Paz, 03/05/2006).
[74] O Nobel de Economia Joseph Stiglitz, em uma declaração à imprensa na
Bolívia, afirmou que a figura de nacionalização se aplica quando há
propriedade. No caso dos hidrocarbonetos da Bolívia, os contratos de petróleo
não foram respaldados pelo Congresso da República, portanto, a Bolívia apenas
recupera o que lhe pertence (Bolpress, La Paz/ Santa Cruz, Bolivia, 14/06/
2006).
[75] Na gestão de Gonzalo Sánchez de Lozada, os tributos provenientes dos
hidrocarbonetos garantiam ao Estado 140 milhões de dólares. Com a Lei de
Hidrocarbonetos de 2005, esse valor aumentou para 460 milhões.
[76] Os campos petrolíferos de San Alberto e Sábalo produzem 70% do gás
exportado.
[77] El Diario, La Paz, 02/03/2006.
[78] Bouyssee-Cassgne, Thérese & Saignes, Thierry. "El cholo: actor
olvidado de la historia", in: Etnicidad, economía y simbolismo en los Andes. La
Paz, Bolivia, 1992, p. 130.