Filiação intensiva e aliança demoníaca
C'est en intensité qu' il faut tout interpréter
G. Deleuze & F. Guattari, L'Anti-dipe
I
DELEUZE E A ANTROPOLOGIA
Para a minha geração, o nome de Gilles Deleuze evoca de pronto a mudança de
orientação no pensamento que marcou os anos em torno de 1968, durante os quais
alguns elementos-chave de nossa presente apercepção cultural foram inventados1.
O significado, as conseqüências e a própria realidade dessa mudança são objeto
de uma controvérsia que ainda grassa. Para os servidores espirituais da ordem,
aquelas muitas "petites mains" que trabalham pela Maioria2, a mudança
representou sobretudo algo de que foi e continua a ser preciso proteger as
gerações futuras ' os protetores de hoje tendo sido os protegidos de ontem e
vice-versa e assim por diante ', difundindo a convicção de que o evento-68 se
consumiu sem se consumar, ou seja, que na verdade nada aconteceu. A verdadeira
revolução se fez contra o evento e foi ganha pela razão (para usarmos o
eufemismo de praxe), força que firmou o Império como a máquina planetária em
cujas entranhas realiza-se a união mística do Capital com a Terra ' a
"globalização" ' e a sua transfiguração gloriosa em Noosfera ' a "economia da
informação", ou "capitalismo cognitivo". (Se o capital não está sempre com a
razão, dir-se-ia que a razão está sempre com o capital.) Para muitos outros, ao
contrário, os inservíveis que não conseguiram não escolher uma trajetória
minoritária, insistindo romanticamente (para usarmos o insulto de praxe) que um
outro mundo é possível, a propagação da peste neoliberal e a consolidação
tecnopolítica das sociedades de controle só poderão ser enfrentadas se
continuarmos capazes de conectar com os fluxos de desejo que subiram à
superfície por um brilhante e fugaz momento; já lá vão quase quarenta anos.
Para esses outros, o evento puro que foi 68 ainda não terminou, e ao mesmo
tempo talvez nem sequer tenha começado, inscrito como parece estar em uma
espécie de futuro do subjuntivo histórico.3
Gostaria de me incluir, com ou sem razão, entre esses outros. Por isso, diria a
mesma coisa da influência de Deleuze e de seu parceiro Félix Guattari, autores
da obra mais radicalmente consistente, do ponto de vista conceitual, e mais
consistentemente radical, do ponto de vista político, produzida na filosofia da
segunda metade do século XX: que essa influência está longe de ter atualizado
todo o seu potencial. A presença dos conceitos deleuzianos (e deleuzo-
guattarianos) em certas disciplinas ou campos de investigação contemporâneos é,
com efeito, bem menos evidente ou direta do que se deveria esperar,
manifestando-se ali antes por meio de seus efeitos sistêmicos difusos no
ambiente cultural das últimas décadas. Uma disciplina em que essa presença
ainda se mostra demasiado tímida é aquela que pratico, a antropologia social.
A relevância para a antropologia da obra de Deleuze e Guattari é no mínimo tão
grande quanto a de pensadores como Michel Foucault ou Jacques Derrida, cujos
trabalhos já foram extensivamente absorvidos (ainda que freqüentemente mal
entendidos) pelo que poderíamos chamar de contracorrentes dominantes do
pensamento social contemporâneo, na antropologia inclusive; contracorrentes
que, note-se, não correm na França. As relações entre antropologia e filosofia
se intensificaram sobremaneira no último quartel do século passado, mas o
processo se desenrolou essencialmente na academia anglo-saxã, na qual a
antropologia, como outras humanities, tem se mostrado muito mais aberta à
"filosofia continental" que a antropologia francesa ela própria. A analítica
existencial de Heidegger, a fenomenologia da corporalidade de Merleau-Ponty, a
microfísica do poder de Foucault e o método da desconstrução de Derrida vieram
se somar, nos anos 1980 e 1990, aos ventos continentais que já sopravam na
década de 1970, responsáveis pela popularidade, na antropologia americana e
britânica, de diferentes sabores do marxismo velho-europeu ' uma sucessão de
influências que podem ser vistas, aliás, como reações imunológicas ao
estruturalismo lévi-straussiano, a ameaça continental dominante na década de
1960. Na Velha Europa, em particular na França, as relações entre antropologia
e filosofia foram-se esgarçando no mesmo passo em que o estruturalismo perdia
seu ímpeto paradigmático, ou foram sendo reconfiguradas em bases antes pré- que
pós-estruturalistas4. O pós-estruturalismo filosófico, a "French theory" por
excelência5, teve pouco efeito sobre a antropologia feita naquele país,
enquanto foi, ao contrário, o principal responsável pela aproximação entre as
duas disciplinas nos países de língua inglesa (não sem reações violentas, é
claro, da parte ' de boa parte ' do cardinalato epistêmico nativo).
Um curioso entrecruzamento, pois: a melhor antropologia anglo-saxã atual faz
amplo uso da filosofia francesa oriunda de 68, enxertando-a de modo inventivo
no arraigado habitus empiriopragmatista indígena; a antropologia francesa, em
troca ' com as exceções de praxe, a mais notável sendo a de Bruno Latour, cuja
condição de antropólogo é, talvez por isso mesmo, localmente questionada ',
mostra ao contrário sinais de franca reabsorção por seu substrato geológico
durkheimiano, o que não a impede (impossible n'est pas français) de andar
estudando propostas de casamento com diversas filiais locais da tradição
analítica e logicista hegemônica no mundo anglo, que conhece uma expansão, na
França de hoje, tão rápida e inexplicável como a da rede McDonald's.
A novidade da filosofia de Deleuze foi logo percebida pelas múltiplas políticas
contraculturais que emergiram de 68, pela arte experimental e pelos movimentos
de minorias, em particular por algumas correntes do mais importante de todos
eles, o feminismo. Não muito mais tarde, ela foi incorporada ao repertório
conceitual de novos projetos estratégicos de antropologia simétrico-reflexiva,
como os science studies, e foi reivindicada por algumas disquisições influentes
sobre a dinâmica do capitalismo tardio. Em contrapartida, as tentativas de
articulação entre a antropologia social clássica (o estudo dos sujeitos e
objetos minoritários, em todos os sentidos dessas três palavras) e os conceitos
deleuzianos ainda são relativamente raras, e quase sempre tímidas, ao contrário
do que se poderia esperar. Afinal, o díptico Capitalismo e esquizofrenia6 apóia
muitos de seus argumentos em uma vasta bibliografia sobre povos não-ocidentais,
dos Guayaki aos Kachin e dos Nuer aos mongóis, desenvolvendo a partir dela
teses ricas em implicações antropológicas ' ricas demais, talvez, para certas
constituições teóricas mais delicadas. Por outro lado, o trabalho de alguns dos
antropólogos mais inovadores nas últimas duas décadas, como Roy Wagner, Marilyn
Strathern ou Bruno Latour, mostra conexões muito sugestivas, que ainda não
creio tenham sido registradas, com as idéias de Deleuze; conexões que ainda não
foram, sobretudo, conectadas entre si. No caso de Wagner, elas parecem ser
puramente virtuais, fruto de uma "evolução aparalela" (no sentido de Deleuze)
ou uma "invenção" (no sentido de Wagner) independente; nem por isso são menos
reais, ou menos surpreendentes. Em Strathern, as conexões são parciais (et pour
cause)7, ou indiretas; mas a antropóloga de Cambridge compartilha com Deleuze
uma teia de termos conceitualmente densos, como multiplicidade, perspectiva,
dividual, fractalidade. Sob diversos aspectos, Strathern é o antropólogo mais
"molecularmente" deleuziano, dentre os três citados. No caso de Latour, as
conexões são atuais e explícitas, "molares", constituindo um dos alicerces da
infra-estrutura teórica deste pensador; ao mesmo tempo, há porções
significativas da obra de Latour alheias ao espírito da filosofia deleuziana.8
Não é acidental que os três antropólogos acima estejam entre os poucos que
poderiam ser rotulados de pós-estruturalistas (antes que, por exemplo, de pós-
modernos) com alguma propriedade. Eles assimilaram o que havia de novo no
estruturalismo e seguiram adiante, em vez de, como tantos de seus colegas,
embarcar em projetos teóricos francamente retrógrados, como o pseudo-
imanentismo sentimental dos mundos vividos, das moradas existenciais e das
práticas incorporadas, ou a truculência macho-positivista de Teorias de Tudo,
tais o sociologismo bourdivino, o cognitivismo high-tech ou a psicologia
evolucionária. Da mesma forma, o pensamento de Deleuze, desde pelo menos os
dois livros decisivos de 1968 e 1969, Diferença e repetição e Lógica do
sentido, pode ser visto como um projeto de desterritorialização sistemática do
estruturalismo, movimento de que Deleuze extraiu as intuições mais originais,
para com a ajuda delas partir em outras direções9. Esses dois livros, com
efeito, marcam ao mesmo tempo a expressão mais sofisticada do estruturalismo
filosófico e sua mais ousada radicalização, sua torção teórica até um ponto de
ruptura. Tal ruptura se tornará explícita com o Anti-Édipo, livro que foi um
dos principais eixos de cristalização de um pós-estruturalismo em sentido
próprio, isto é, um estilo de pensamento que se desenvolveu como magnificação
dos aspectos mais inovadores do estruturalismo em relação ao que "vinha antes",
mas também como abandono (muitas vezes barulhento) de seus aspectos mais
conservadores.10
O antropólogo que decide ler ou reler Deleuze e Guattari, depois de anos de
imersão na literatura de sua própria disciplina, não pode deixar de
experimentar uma curiosa sensação, como um déjà vu às avessas: já vi isso
escrito depois Muitas das perspectivas teóricas e técnicas descritivas que
apenas recentemente, na antropologia, começaram a perder seu perfume de
escândalo "fazem rizoma" poderosamente com os textos deleuzo-guattarianos de
quinze ou vinte anos antes11. Para situar com precisão o valor antropológico
destes textos, seria preciso descrever em detalhe a constelação de forças em
que a antropologia social se vê hoje implicada, algo que ultrapassa o âmbito de
minha competência. Se quisermos ser genéricos, entretanto, não é difícil
assinalar a participação de Deleuze na sedimentação de uma certa estética
conceitual contemporânea. Essa nova estética pode ser caracterizada com o
auxílio do vocabulário binário do estruturalismo, até porque ela é uma resposta
a esta outra estética, ou melhor, é uma reproblematização interna dela. Assim,
observa-se já há algum tempo um deslocamento do foco de interesse, nas ciências
humanas, para processos semióticos como a metonímia, a indicialidade e a
literalidade ' três modos de recusar a metáfora e a representação (a metáfora
como essência da representação), de privilegiar a pragmática sobre a semântica,
e de valorizar a parataxe sobre a sintaxe (a coordenação sobre a subordinação).
A "virada lingüística" que, no século passado, foi o foco virtual de
convergência de temperamentos, projetos e sistemas filosóficos tão diversos,
parece estar começando a virar para outros lados, para longe da lingüística e,
até certo ponto, da linguagem enquanto macroparadigma antropológico: as ênfases
acima sugeridas mostram como as linhas de escape da linguagem como modelo foram
sendo divisadas de dentro mesmo do modelo da linguagem.
Dito de outra forma, o antigo postulado da descontinuidade ontológica entre o
signo e o referente, a linguagem e o mundo, que garantia a realidade da
primeira e a inteligibilidade do segundo e vice-versa, e que serviu de
fundamento e pretexto para tantas outras descontinuidades e exclusões ' entre
mito e filosofia, magia e ciência, primitivos e civilizados ' parece estar em
via de se tornar metafisicamente obsoleto; é por aqui que estamos deixando de
ser, ou melhor, que estamos jamais-tendo-sido modernos. Do lado do "mundo" (um
lado que não tem mais outro lado, pois que agora feito ele próprio apenas de
lados), a mudança de ênfase correspondente veio privilegiar o fracionário-
fractal e o diferencial em detrimento do unitário-inteiro e do combinatório, as
multiplicidades planas ali onde se valorizavam as totalidades hierárquicas, a
conexão transcategorial de elementos heterogêneos mais que a correspondência
entre séries internamente homogêneas, a continuidade (ondulatória ou
topológica) das forças antes que a descontinuidade (corpuscular ou geométrica)
das formas. "Eis o que gostaríamos de dizer: um cromatismo generalizado [ ]"12.
A descontinuidade massiva (molar) entre as duas séries internamente homogêneas
do significante e do significado, por um lado ' elas mesmas em descontinuidade
estrutural ', e a série fenomenologicamente contínua do real, por outro,
desmancha-se em descontinuidades moleculares ou fractais, em auto-similaridades
transeriais que potenciam a diferença e a revelam como variação contínua ' ou,
antes, que revelam a continuidade como intrinsecamente diferencial e
heterogênea (distinção entre as idéias de contínuo e de indiferenciado). Uma
ontologia "plana" e uma correspondente epistemologia "simétrica" ; o colapso,
na verdade, da distinção entre epistemologia (linguagem) e ontologia (mundo), e
a progressiva emergência de uma "ontologia prática"13, dentro da qual o
conhecer não é mais um modo de representar o (des)conhecido mas de interagir
com ele, isto é, um modo de criar antes que um modo de contemplar, de refletir
ou de comunicar14. A tarefa do conhecimento deixa de ser a de unificar o
diverso sob a representação, passando a ser a de "multiplicar o número de
agências que povoam o mundo" (Latour). Os harmônicos deleuzianos são audíveis.
Uma nova imagem do pensamento. Nomadologia. Multinaturalismo.15
O presente artigo pretende explorar um setor muito limitado dessa estética
conceitual . A título de exemplo mais que qualquer outra coisa, ele sugere duas
direções para o aprofundamento de um diálogo possível entre Deleuze e a
antropologia. Nesta primeira parte, o artigo traça alguns paralelos
esquemáticos entre conceitos deleuzianos e temas analíticos influentes na
antropologia de hoje; na segunda, examina uma incidência específica da
antropologia social clássica ' a teoria do parentesco ' sobre a concepção
deleuzo-guattariana da máquina territorial primitiva, ou semiótica pré-
significante.
UMA ANTI-SOCIOLOGIA DAS MULTIPLICIDADES
No Anti-Édipo (1972), primeiro livro de Capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e
Guattari derrubam o pilar central do templo da psicanálise, a saber, a
concepção reacionária do desejo como falta, substituindo-o por uma teoria das
máquinas desejantes enquanto pura produtividade positiva que deve ser
codificada pelo socius, a máquina de produção social. Essa teoria passa por um
amplo panorama da história universal, pintado no capítulo central do livro em
um estilo provocativamente arcaizante, que talvez assuste de início o leitor
antropólogo. Não só os autores empregam a seqüência tradicional selvageria-
barbárie-civilização na função de moldura expositiva, como as abundantes
referências etnográficas são tratadas de um modo que se poderia chamar de
"comparação descontrolada"16. Mas o mesmo leitor não demorará a se dar conta de
que o topos dos três estágios é ali submetido a uma interpretação que pode ser
tudo, menos tradicional, e que a impressão de descontrole comparativo deriva do
fato de os controles usados pelos autores serem outros que os usuais ' de tipo
"diferenciante" antes que "coletivizante", nos termos de Roy Wagner17. Anti-
Édipo é o resultado, com efeito, de um "prodigioso esforço para se pensar
diferente"18; seu propósito não é meramente denunciar os paralogismos
repressivos do Édipo e da psicanálise, mas instaurar uma verdadeira "anti-
sociologia".19 Um projeto como esse deveria certamente interessar à
antropologia contemporânea, pelo menos àquela que não se considera como um ramo
menor, exótico e inofensivo, da sociologia, mas que ao contrário toma esta
última como constituindo (via de regra ) uma modalidade particularmente
confusa, e político-epistemologicamente duvidosa, de "auto-antropologia"20.
O segundo livro do díptico, Mil platôs (1981), distancia-se das preocupações
psicanalíticas do Anti-Édipo. O projeto de escrever uma "história universal da
contingência"21 é aqui levado adiante de um modo decididamente não-linear, pela
visitação de diversos "platôs" de intensidade (noção inspirada em Gregory
Bateson) ocupados por formações semiótico-materiais as mais diversas, bem como
por uma desconcertante quantidade de conceitos novos.22
O livro expõe e ilustra uma teoria das multiplicidades, talvez o tema
deleuziano de maior repercussão na antropologia contemporânea. A multiplicidade
deleuziana é o constructo que melhor parece descrever não só as práticas
contemporâneas de conhecimento antropológico como os fenômenos de que elas se
ocupam. Seu efeito é, antes de tudo, liberador. Ele consiste em fazer passar
uma linha de fuga por entre os dois dualismos que formam como as paredes da
prisão epistemológica em que a antropologia se acha encerrada (para a própria
proteção, bem entendido) desde sua incepção: Natureza e Cultura, de um lado,
Indivíduo e Sociedade, do outro, os "quadros mentais últimos" da disciplina,
aqueles que não podemos pensar que estão errados porque é através deles que
pensamos. Não podemos? Pensamos? As coisas mudam, e com elas as possibilidades
de pensamento; muda a idéia do que é pensar, e do que é pensável. O conceito de
multiplicidade talvez só tenha se tornado, antropologicamente, pensável ' e
portanto, pensável antropologicamente ' porque ingressamos em um mundo não-
merológico e pós-plural, um mundo em que jamais fomos modernos: o mundo que
deixou para trás, por desinteresse antes que por sublação, a alternativa
infernal entre o Um e o Múltiplo, o grande dualismo que preside aos dois
dualismos supramencionados, e a múltiplos outros.23
Multiplicidade é assim o meta-conceito que define um certo tipo de entidade, do
qual o famoso "rizoma" da Introdução de Mil platôs é a imagem concreta24. Como
observou Manuel DeLanda25, a idéia de multiplicidade é o fruto de uma decisão
inaugural de natureza anti-essencialista e anti-taxonomista: com sua criação,
Deleuze pretende destronar as noções metafísicas clássicas de essência e de
tipo26. Ela é o instrumento principal de um "prodigioso esforço" para pensar o
pensamento como uma atividade outra que a de reconhecer, classificar e julgar,
e para determinar o que há a pensar como diferença intensiva antes que como
substância extensiva. As intenções ou implicações filosófico-políticas desta
decisão são claras: transformar a multiplicidade em conceito e o conceito em
multiplicidade visa cortar o vínculo natal entre o Conceito e o Estado.27
Uma multiplicidade é diferente de uma essência; as dimensões que a compõem não
são propriedades constitutivas ou critérios de inclusão classificatória. Um dos
componentes principais do conceito de multiplicidade é, ao contrário, uma noção
de individuação como diferenciação não-taxonômica ' um processo de atualização
do virtual diverso de uma realização do possível por limitação, e refratário às
categorias tipológicas da semelhança, da oposição, da analogia e da identidade.
A multiplicidade é o modo de existência da diferença intensiva pura, "a
irredutível desigualdade que forma a condição do mundo"28. As noções de tipo e
de entidade se mostram, em geral, completamente inadequadas para definir as
multiplicidades rizomáticas. Se "não há entidade sem identidade", como Quine
famosamente rimou, então deve-se concluir que as multiplicidades realmente não
podem pretender tal estatuto. Um rizoma não se comporta como uma entidade, nem
instancia um tipo; ele é um sistema reticular acentrado formado por relações
intensivas ("devires") entre singularidades heterogêneas que correspondem a
individuações extra-substantivas, ou eventos (as "hecceidades"). Assim, uma
multiplicidade rizomática não é realmente um ser, um "ente", mas um
agenciamento de devires, um "entre": um difference engine (mas não exatamente a
máquina de Babbage), ou, antes, o diagrama intensivo de seu funcionamento.
Bruno Latour, que assinala a dívida da teoria do ator-rede para com o conceito
de rizoma, é particularmente explícito: uma rede não é uma coisa, porque
qualquer coisa pode ser descrita como uma rede29. Uma rede é uma perspectiva,
um modo de inscrição e de descrição, "o movimento registrado de uma coisa à
medida que ela vai se associando com muitos outros elementos"30. Mas essa
perspectiva é interna ou imanente; as diferentes associações da "coisa" fazem-
na ir diferindo de si mesma ' "é a coisa ela própria que passou a ser percebida
como múltipla"31. Em suma, não há pontos de vista sobre as coisas; as coisas e
os seres é que são os pontos de vista32. Se não há entidade sem identidade, não
há multiplicidade sem perspectivismo.
Se ele não é um ser, um rizoma tampouco é um ser ' nem, aliás, muitos. A
multiplicidade não é algo maior que um, algo como uma pluralidade ou uma
unidade superior; ela é, antes, algo menor que um, surgindo por subtração
(importância da idéia de menor, minoria, minoração em Deleuze). Toda
multiplicidade se furta à coordenação extrínseca imposta por uma dimensão
suplementar (n+1:n e seu "princípio", n e seu "contexto" etc.); a imanência da
multiplicidade é auto-posição, anterioridade ao próprio contexto. As
multiplicidades são tautegóricas, como os símbolos wagnerianos que "representam
a si mesmos"33, possuindo sua própria medida interna.34 Uma multiplicidade é um
sistema de n-1 dimensões35, em que o Um opera apenas como aquilo que deve ser
retirado para produzir o múltiplo, que é então criado por "destranscendência";
ela manifesta uma organização "que pertence ao múltiplo como tal, e que não tem
nenhuma necessidade da unidade para formar um sistema".36
As multiplicidades são assim sistemas cuja complexidade é "lateral", refratária
à hierarquia ou a qualquer outra forma de unificação transcendente ' uma
complexidade de aliança antes que de descendência, para anteciparmos o
argumento da segunda parte deste artigo. Formando-se quando e onde linhas
intensivas abertas (linhas de força, não linhas de contorno37) conectam
elementos heterogêneos, os rizomas projetam uma ontologia fractal que ignora a
distinção entre "parte" e "todo"38. Uma concepção barroca antes que romântica
de complexidade, como Kwa39 persuasivamente argumentou. A multiplicidade é o
quase-objeto que vem substituir aquelas totalidades orgânicas ("românticas") e
aquelas associações atômicas ("iluministas") que pareciam esgotar as
possibilidades à disposição dos antropólogos; com isso, ele sugere uma
interpretação completamente diferente dos mega-conceitos emblemáticos da
disciplina, a Cultura ou a Sociedade, a ponto de torná-los, em um sentido não
trivial, "teoricamente obsoletos".40
A pessoa fractal de Wagner, as conexões parciais de Strathern, as redes
sociotécnicas de Callon e Latour são alguns exemplos antropológicos bem
conhecidos de multiplicidade plana. "Uma pessoa fractal nunca é uma unidade que
está em relação com um agregado, ou um agregado em relação com uma unidade, mas
sempre uma entidade com a relacionalidade [relationship] integralmente
implicada".41 A imbricação dos conceitos de multiplicidade, implicação e
intensidade é, como se sabe, um ponto longamente elaborado por Deleuze42.
François Zourabichvili, o mais perceptivo comentador deste filósofo, observa
que "a implicação é o movimento lógico fundamental da filosofia de Deleuze"43;
alhures, ele sublinha que o pluralismo deleuziano supõe um "primado da
relação"44. A filosofia da diferença é uma filosofia da relação.
Mas não se trata de "qualquer" relação. A multiplicidade é um sistema formado
por uma modalidade de síntese relacional diferente de uma conexão ou conjunção
de termos. Trata-se da operação que Deleuze chama de síntese disjuntiva ou
disjunção inclusiva, modo relacional que não tem a semelhança ou a identidade
como causa (formal ou final), mas a divergência ou a distância; um outro nome
deste modo relacional é "devir". A síntese disjuntiva ou devir é "o operador
principal da filosofia de Deleuze"45, na medida em que é o movimento da
diferença como tal ' o movimento centrífugo pelo qual a diferença escapa ao
poderoso atrator circular da contradição e sublação dialéticas. Diferença
positiva antes que opositiva, indiscernibilidade de heterogêneos antes que
conciliação de contrários, a síntese disjuntiva faz da disjunção "a natureza
mesma da relação"46, e da relação um movimento de "implicação recíproca
assimétrica"47 entre os termos ou perspectivas ligados pela síntese, a qual não
se resolve nem em equivalência nem em identidade superior:
A idéia mais profunda de Deleuze é talvez esta: que a diferença é
também comunicação e contágio entre heterogêneos; que, em outras
palavras, uma divergência não surge jamais sem contaminação recíproca
dos pontos de vista.[ ]Conectar é sempre fazer comunicar os dois
extremos de uma distância, mediante própria heterogeneidade dos
termos.48
Voltando aos paralelos com a teoria antropológica contemporânea, recorde-se que
o tema da separação relacionante é característico da antropologia de Marilyn
Strathern. A concepção da relação como "compreendendo disjunção e conexão ao
mesmo tempo [together]"49 é a base de uma teoria que afirma que as "relações
fazem uma diferença entre as pessoas"50. Pode-se dizer que o célebre "sistema
M", a descrição stratherniana da socialidade melanésia como uma troca de
perspectivas e um processo de implicação-explicação relacional, é uma teoria
antropologicamente simétrica da síntese disjuntiva51. Do ponto de vista
antropológico reflexivo, por sua vez, poderíamos dizer que a multiplicidade
subtrativa (n-1) antes que aditiva do rizoma faz dele uma figura analítica
radicalmente não-merológica e "pós-plural"52, que dessa forma indica uma linha
de fuga à alternativa entre o um e o múltiplo que Marilyn Strathern, com sua
usual visada certeira, aponta como o impasse característico da antropologia:
Os antropólogos em geral têm sido encorajados a pensar que a
alternativa ao um é o múltiplo. Em conseqüência disso, ora estamos às
voltas com uns, a saber, com sociedades ou atributos singulares, ora
com uma multiplicidade de uns [ ]Um mundo obcecado por uns e pelas
multiplicações e divisões de uns tem problemas com a conceitualização
de relações.53
Faz-se então necessária uma terapia de desobsessão. Comparar multiplicidades é
outra coisa que fazer convergir particularidades em torno de generalidades,
como no caso usual das análises antropológicas que buscam semelhanças
substanciais por baixo de diferenças acidentais: "em toda sociedade humana ".
Recorde-se uma observação pontual de Albert Lautmann (o autor referencial de
Deleuze para a matemática):
A constituição, por Gauss e Riemann, de uma geometria diferencial que
estuda as propriedades intrínsecas de uma variedade,
independentemente de qualquer espaço em que esta variedade estaria
mergulhada, elimina qualquer referência a um continente universal ou
a um centro de coordenadas privilegiadas.54
Se onde se lê geometria puser-se antropologia, as implicações são óbvias. (O
que faria as vezes de uma variedade para a antropologia? Não é difícil
imaginar.) Tudo aquilo que costuma ser ritualmente denunciado como uma
contradição e um escândalo ' descrever ou comparar variações sem pressupor um
fundo invariável? mas onde estão os universais? que é da constituição biológica
da espécie, das leis do simbólico, dos princípios da economia política? (para
não falarmos da chamada realidade exterior) ' torna-se subitamente concebível.
Concebível em potência, não em ato, por suposto; mas ganha-se ao menos o
direito de especular nessa direção. Não se diga que a antropologia estaria com
isso praticando o contrabando de bens intelectuais alheios (a geometria
diferencial); eles não são mais estrangeiros que aqueles que alimentam a
ortodoxia antropológica sobre a comparação e a generalização, tributária que
esta é de uma metafísica bimilenar ' aquela mesma metafísica, recorde-se, que
não admitia em seus domínios quem não fosse geômetra.55
Mas comparar multiplicidades também é outra coisa que estabelecer invariantes
correlacionais por meio de analogias formais entre diferenças extensivas
(oposições), como no caso das comparações estruturalistas, nas quais "não são
as semelhanças, mas as diferenças que se assemelham"56. Comparar
multiplicidades ' sistemas de comparação em si mesmas e de si mesmas ' é
determinar seus modos característicos de divergirem, suas distâncias internas e
externas; aqui, a "análise comparativa" é uma "síntese separativa" (ou
"disparativa"57). No que concerne às multiplicidades, não são as relações
(extensivas) que variam, são as variações (intensivas) que relacionam: são as
diferenças que diferem.58 Como escrevia há mais de um século o estranho
sociólogo molecular Gabriel Tarde: "A verdade é que a diferença vai diferindo,
e que a mudança vai mudando, e que, ao se darem assim como fim de si mesmas, a
mudança e a diferença atestam seu caráter necessário e absoluto".59
As idéias do ultraleibniziano Gabriel Tarde, o grande adversário do
ultrakantiano Durkheim, foram resgatadas da Terra das Teorias Perdidas por
Deleuze60. Elas estão sendo desenvolvidas hoje por Bruno Latour e Maurizio
Lazzarato, entre outros; Tarde conhece um renascimento. Chunglin Kwa, no artigo
já citado, observava a "diferença fundamental entre a concepção romântica da
sociedade como organismo e a concepção barroca do organismo como uma
sociedade"61. Ora, esta é uma perfeita descrição da diferença entre as
sociologias de Durkheim e de Tarde. Contra o caráter sui generis dos fatos
sociais do primeiro, o "ponto de vista sociológico universal" do segundo afirma
que "toda coisa é uma sociedade, todo fenômeno é um fato social"62. Posição que
recusa qualquer validade à distinção entre indivíduo e sociedade, parte e todo,
assim como ignora a pertinência de toda diferença entre o humano e o não-
humano, o animado e o inanimado, a pessoa e a coisa. A ontologia fractal
("existir é diferir") e o sociologismo irrestrito de Tarde se acompanham de um
"psicomorfismo universal": tudo são pessoas, "pequenas pessoas"63, pessoas
dentro de pessoas ' all the way down.
Diferença intensiva, diferença de perspectiva, diferença de diferenças.
Nietzsche observava que o ponto de vista da saúde sobre a doença difere do
ponto de vista da doença sobre a saúde.64 Talvez tenha sido essa observação que
inspirou Roy Wagner a dizer, sobre suas relações iniciais com os Daribi: "o
modo como eles não me compreendiam não era o mesmo modo como eu não os
compreendia"65 ' talvez a melhor definição antropológica de cultura já
proposta.66 Pois a diferença nunca é a mesma, "o trajeto não é o mesmo nos dois
sentidos": "Uma meditação sobre o perspectivismo nietzschiano dá a consistência
positiva ao conceito [deleuziano] de disjunção: distância entre pontos de vista
ao mesmo tempo indecomponível e desigual a si mesma, pois o trajeto não é o
mesmo nos dois sentidos [ ]".67
A comparação de multiplicidades ' em outras palavras, a comparação enquanto
produção de multiplicidade (ou "invenção da cultura") ' é sempre uma síntese
disjuntiva, justo como as relações que relaciona.
DUALIDADES PARCIAIS
Os textos deleuzianos parecem se comprazer na multiplicação de díades
conceituais: diferença e repetição, intensivo e extensivo, nomádico e
sedentário, virtual e atual, linha e segmento, fluxos e quanta, código e
axiomática, desterritorialização e reterritorialização, menor e maior,
molecular e molar, liso e estriado ' a lista é longa, o vocabulário é
luxuriante. Devido a tal assinatura estilística, Deleuze já foi classificado
como filósofo dualista68, o que é, para dizê-lo educadamente, uma leitura
apressada do modo de funcionamento de sua conceitualidade.69
É importante notar como a marcha expositiva dos dois livros de Capitalismo e
esquizofrenia, nos quais pululam as dualidades, é a todo momento interrompida
por cláusulas adversativas, modalizações, especificações, involuções,
subdivisões e outros deslocamentos argumentativos das distinções duais (ou
outras) que tinham acabado de ser propostas pelos próprios autores. Tais
interrupções metódicas são precisamente isso, uma questão de método, não de
arrependimento após o pecado binário; elas são momentos perfeitamente
determinados da construção conceitual.70 Nem princípios nem fins, as díades
deleuzianas são sempre meios para se chegar alhures. O caso exemplar aqui é,
ainda, a distinção entre a raiz e o rizoma. Naquele que é talvez o trecho mais
citado de Mil platôs, pode-se ler:
O que importa é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como
dois modelos; a primeira age como modelo e como decalque
transcendentes, ainda que engendre suas próprias fugas; o outro age
como processo imanente que subverte o modelo e esboça um mapa, ainda
que constitua suas próprias hierarquias, mesmo se suscita um canal
despótico. Não se trata deste ou daquele lugar na terra, nem de um
momento dado na história, menos ainda de tal ou qual categoria no
espírito. Trata-se do modelo enquanto tal, que não cessa de se erguer
e de desmoronar, e do processo enquanto tal, que não cessa de se
prolongar, de se romper, e de recomeçar. Não se trata de um outro, de
um novo dualismo. Problema da escrita [ ]. Não invocamos um dualismo
senão para recusar um outro. Servimo-nos de um dualismo de modelos
apenas para atingir um processo que rejeita qualquer modelo. É
preciso, a cada passo, corretores cerebrais que desfaçam os dualismos
que não quisemos erguer mas pelos quais temos de passar. Chegar à
fórmula mágica que buscamos todos: PLURALISMO = MONISMO, por via de
todos os dualismos que são o inimigo, mas o inimigo absolutamente
necessário, o móvel que não paramos de mudar de lugar.71
Além de descartar de passagem as leituras que reduzem sua filosofia a mais uma
teoria do Grande Divisor,72 os autores ilustram aqui dois procedimentos
característicos. Primeiramente, o tratamento dos conceitos de um modo "menor"
ou pragmático, como instrumentos, pontes ou veículos antes que como objetos,
significações ou destinações últimas; o filósofo como penseur sauvage. Daí o
realismo com que Deleuze e Guattari lidam com as propensões dualistas do
pensamento em modo inercial. No Anti-Édipo, afirmam uma concepção monista da
produção desejante; noMil platôs, desenvolvem uma teoria pós-pluralista das
multiplicidades ' duas empresas marcadamente não-dualistas. Nem por isso,
entretanto, eles supõem que os dualismos sejam um obstáculo negociável apenas
pela boa vontade.73 Os dualismos são reais, não imaginários; não são o mero
efeito de um viés "ideológico", mas o resultado de um funcionamento ou estado
específico da máquina abstrata, a segmentação dura ou sobrecodificante. É
necessário desfazer os dualismos porque, antes de tudo, eles foram feitos. E é
possível desfazê-los pela mesma razão, porque eles foram feitos; pois os
autores tampouco pensam que os dualismos sejam o horizonte de eventos da
metafísica ocidental, o limite absoluto que só pode ser exposto (desconstruído)
mas jamais atravessado pelos prisioneiros da Caverna. Para desfazê-los, porém,
é importante evitar a armadilha circular que consistiria em negá-los ou
contradizê-los; é preciso sair deles "calculadamente", ou seja, sempre pela
tangente ' por uma linha de fuga.
Isto nos leva ao segundo procedimento. As dualidades deleuzianas são
construídas e transformadas segundo um padrão recorrente, que as determina como
multiplicidades mínimas ' como dualidades parciais, diria um leitor de
Strathern74. Assim, toda distinção conceitual começa pelo estabelecimento de um
pólo atual-extensivo e de um pólo virtual-intensivo. A análise subseqüente
consiste em mostrar como a dualidade muda de natureza conforme se a tome do
ponto de vista de um pólo ou do outro. Do ponto de vista do pólo extensivo
(arborescente, molar, rígido, estriado etc.), a relação que o distingue do
segundo é tipicamente uma oposição: uma disjunção exclusiva e uma síntese
limitativa, isto é, uma relação ela própria extensiva, molar e atual. Da
perspectiva do outro pólo (intensivo, rizomático, molecular, dúctil, liso),
porém, não há oposição, mas diferença intensiva, implicação ou inclusão
disjuntiva do pólo extensivo pelo pólo intensivo ou virtual; a dualidade posta
pelo primeiro pólo é revelada como a face, a fase ou o eco molar de uma
multiplicidade molecular situada no outro pólo75. É como se cada pólo
"apreendesse" sua relação com o outro segundo sua própria natureza; ou, dito de
outro modo, como se a relação entre os pólos pertencesse necessária e
alternativamente ao regime de um ou de outro pólo, o regime da contradição ou o
regime da linha de fuga76; ela não pode ser traçada de fora, a partir de um
terceiro pólo englobante. O perspectivismo ' a dualidade como multiplicidade '
é aquilo que a dialética ' a dualidade como unidade ' precisa negar para se
impor como lei universal.
Os dois pólos ou aspectos de uma dualidade qualquer são sempre ditos estar
presentes e ativos em todo fenômeno ou processo. Sua relação é tipicamente
conceitualizada como sendo de "pressuposição recíproca", uma noção
repetidamente avançada no Mil platôs77 no lugar da causalidade, linear ou
dialética, da redução macro-micro, ou dos esquema hilemórficos e expressivos.
De um ponto de vista antropológico, pode-se aproximar a pressuposição recíproca
da dupla semiótica wagneriana da invenção e da convenção, em que cada modo de
simbolização precipita ou "contra-inventa" o outro, segundo um esquema de
alternância figura-fundo78. Ou ainda, do modo de funcionamento de certas
dualidades analíticas centrais de The gender of the gift (1988), de Strathern,
como aquelas que presidem à economia lógica do gênero ou à articulação entre os
modos de troca melanésios, em que um pólo ' masculino ou feminino, mesmo ' sexo
ou sexo ' oposto, troca mediata ou imediata ' é sempre descrito como uma versão
ou transformação do outro, "cada um fornece[ndo] o contexto e a base do outro",
como resumiu Strathern em um contexto (justamente) muito diferente.79
Um ponto de grande importância é que a pressuposição recíproca determina os
dois pólos de qualquer dualidade como igualmente necessários, visto que
mutuamente condicionantes, mas não faz deles pólos simétricos ou equivalentes.
A inter-pressuposição é uma relação de implicação recíproca assimétrica: "o
trajeto não é o mesmo nos dois sentidos". Assim, ao distinguir os mapas
rizomáticos dos decalques arborescentes, Deleuze e Guattari observam que os
mapas estão constantemente sendo totalizados, unificados e estabilizados pelos
decalques, os quais por sua vez estão sujeitos a toda sorte de deformações
anárquicas induzidas pelo processo rizomático. Mas, no final das contas, "o
decalque deve sempre ser projetado de volta no mapa. Esta operação e a
precedente não são de modo algum simétricas"80. E elas não são simétricas
porque uma das operações trabalha em sentido contrário ao devir, que é o
processo do desejo81, enquanto a outra trabalha a seu favor. O decalque é
"perigoso", porque ele "injeta redundâncias" no mapa, organizando e
neutralizando a multiplicidade rizomática:
O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma são sempre seus
impasses, bloqueios, germes de enraizamento pivotante ou pontos de
estruturação[ ] Quando um rizoma é obstruído, arborificado, acabou, o
desejo não flui mais; pois é sempre por rizoma que o desejo se move e
produz.82
Essa relação assimétrica entre processos e modelos em pressuposição recíproca
(na qual o rizoma é processo, precisamente, enquanto a árvore é modelo) recorda
de perto a distinção entre a diferença e a negação desenvolvida em Diferença e
repetição: a negação é real, mas sua realidade é puramente negativa; ela é
apenas a diferença invertida, extensivizada, limitada e opositivizada83. Assim,
apesar de Deleuze e Guattari advertirem mais de uma vez que não se trata de
estabelecer um contraste axiológico entre o rizoma e a árvore, a segmentaridade
flexível-molecular e a segmentaridade dura-molar e assim por diante84, resta
que há sempre uma tendência e uma contra-tendência, dois movimentos
inteiramente diferentes: a atualização e a contra-efetuação (ou cristalização)
do virtual. O primeiro movimento consiste no decaimento das diferenças de
potencial ou de intensidade, na medida em que estas se desdobram (se ex-plicam)
na extensão e se encarnam em estados de coisas empíricos. O segundo é criador
ou "implicador" da diferença, e, se é um movimento de retorno ou de causalidade
reversa85, uma "involução criativa", nem por isso deixa de ser estritamente
contemporâneo do primeiro, sendo sua condição transcendental, e enquanto tal
inanulável. Este último movimento é o Evento ou Devir, pura reserva de
intensidade ' a parte, em tudo que acontece, que escapa à sua própria
atualização86.
Mais uma vez, é inevitável aproximar essa assimetria de processos inter-
implicados de certos aspectos da semiótica de Roy Wagner87. A natureza dita
"dialética" ou obviacional da relação entre os dois modos wagnerianos de
simbolização remete a um dos modos, a diferenciação-invenção, ao passo que o
contraste opositivo entre os dois modos é, enquanto tal, o resultado da
operação do outro modo, a coletivização-convencionalização. E além disso,
embora os dois modos estejam simultânea e reciprocamente ativos em todo ato de
simbolização (eles operam um sobre o outro, pois não há nada além deles), há
"toda a diferença do mundo"88 entre as culturas cujo "contexto de controle" '
nos termos de Mil platôs, a territorialização ' é o modo convencional e aquelas
em que o controle é o modo diferenciante. Se o contraste entre os modos não é,
em si, axiológico, a cultura que favorece a simbolização convencional e
coletivizante ' a cultura que gerou a teoria da cultura enquanto "representação
coletiva" ' orienta-se na direção do decalque, bloqueando ou reprimindo a
dialética da invenção, e por isso deve, em última análise, "ser projetada de
volta no mapa". Do mesmo modo, o contraste avançado em The gender of the gift
entre as socialidades do "dom" e da "mercadoria" é explicitamente assumido como
interno ao mundo da mercadoria89, mas ao mesmo tempo tudo se passa como se a
forma-mercadoria fosse uma transformação (ou deformação) da forma-dom antes que
o contrário, na medida em que a análise de uma socialidade do dom nos obriga,
como antropólogos, a apreendermos a particularidade dos pressupostos culturais
da antropologia ela própria, e a decompor nossas próprias metáforas
capitalísticas90. O ponto de vista do dom sobre a mercadoria não é o mesmo que
o ponto de vista da mercadoria sobre o dom. Implicação recíproca assimétrica.91
II
O ANTI-ÉDIPO E A CRÍTICA DO PARENTESCO
Se há efetivamente uma assimetria implicativa que pode ser dita primária dentro
do sistema conceitual deleuziano, ela reside na distinção entre o intensivo e o
extensivo. A segunda parte deste artigo discute a relevância dessa distinção
para a releitura feita em Capitalismo e esquizofrenia de duas categorias-chave
da teoria clássica do parentesco, a aliança e a filiação. A escolha se
justifica, em primeiro lugar, porque o tratamento dado por Deleuze e Guattari a
essas duas noções exprime com especial clareza um importante deslocamento
teórico que ocorre entre Anti-Édipo e Mil platôs; em segundo lugar, porque ele
sugere a possibilidade de uma transformação da antropologia do parentesco, de
modo a alinhá-la com os desenvolvimentos "não-humanistas" (preferiria chamá-los
de "pós-ocidentais") que hoje ocorrem em outros campos de investigação92. Pois
a questão é, efetivamente, a da possibilidade de conversão das noções de
aliança e de filiação, classicamente tomadas como as coordenadas básicas da
sociogênese humana tal como efetuada em e pelo parentesco, em modalidades de
abertura para o extra-humano. Em outras palavras, trata-se de saber como
transformar essas noções, de operadores intra-antropológicos, em operadores
trans-ontológicos. Se o humano não é mais uma essência, o que fazer do
parentesco?
Após terem desempenhado um papel quase-totêmico na antropologia entre os anos
1950 e 1970, quando designavam duas concepções diametralmente opostas do
parentesco93, as noções de aliança e de filiação, seguindo o destino geral do
paradigma morganiano em que se inseriam, perderam subitamente seu valor
sinóptico, assumindo a função mais modesta de meras convenções analíticas, isso
quando não encerraram sua carreira ativa passando do uso à menção94. As páginas
a seguir propõem uma interrupção reflexiva desse movimento, sugerindo que
algumas partes da teoria clássica podem ser recicladas. Certamente não é o caso
de se voltar ao statu quo ante e recomeçar os modelismos formais da aliança
prescritiva, ou regredir à metafísica substancialista dos grupos de
descendência. Trata-se, ao contrário, de imaginar os delineamentos possíveis de
uma concepção rizomática do parentesco capaz de extrair todas as conseqüências
da premissa segundo a qual "as pessoas são integradas por relações" (persons
have relations integral to them95). Se a teoria dos grupos de descendência
tinha como seu arquétipo abstrato as idéias de substância e identidade (o grupo
enquanto indivíduo metafísico), e a teoria da aliança matrimonial, as idéias de
oposição e totalização (a sociedade como totalidade dialética), a perspectiva
aqui sugerida busca na filosofia de Deleuze alguns elementos para uma teoria do
parentesco enquanto diferença e multiplicidade (a relação como disjunção
inclusiva).
A antropologia social ocupa um lugar destacado em Capitalismo &
esquizofrenia. Começando por Bachofen e Morgan,A origem da famíliaeTotem e
tabu, até chegar a Lévi-Strauss e Leach (estávamos em 1972), o primeiro livro
do díptico reescreve do zero, por assim dizer, a teoria da socialidade
primitiva. Seu principal interlocutor e alvo polêmico é o estruturalismo de
Lévi-Strauss, a propósito do qual, e em larga medida contra o qual, são
mobilizadas uma quantidade de referências teóricas e etnográficas, do
funcionalismo de Malinowski ao estrutural-funcionalismo de Fortes, do
experimento etnográfico de Griaule e Dieterlen ao etno-marxismo de Meillassoux
e Terray, da segmentaridade relacional de Evans-Pritchard à dramaturgia social
de Victor Turner.96
Para além de seus efeitos desintoxicantes gerais, o Anti-Édipo foi um livro que
também marcou época ' ou que deveria ter marcado ' também do ponto de vista
restrito da antropologia do parentesco. Ao recusar tomar a família como
referente primário do desejo, definindo este como imediatamente social, o Anti-
Édipo articulava, com efeito, uma justificativa filosófica geral (porque
"extensível" aos assim chamados sistemas descritivos) para as posições anti-
extensionistas e anti-genealogistas então defendidas por diversos antropólogos.
O argumento permanece importante ainda hoje ' ou voltou a sê-lo', uma vez que a
popularidade da interpretação genealógica ou "genética" do parentesco está em
recrudescência, graças à difusão das cosmologias neoliberais dentro das
ciências humanas, e ao fato de que a semântica extensionista continua embutida
nas diversas teorias antropológicas que utilizam a noção de projeção metafórica
para dar conta de modos de personificação vistos como "ilegais" em nossa
cosmologia (como é o caso, por exemplo, do grande livro recente de Descola97).
A tese da identidade imediata entre produção desejante e produção social se
enquadra na problemática mais ampla da literalidade na filosofia de Deleuze, ou
melhor, em sua recusa de qualquer distinção entre discurso metafórico e não-
metafórico98 . Neste sentido, menos que sustentando uma interpretação
"categorial" da semântica do parentesco, nos termos do debate clássico
genealogia versus categoria, o que está em jogo no Anti-Édipo é, antes, um
contraste entre interpretações intensivas-constitutivas e extensivas-
regulativas das categorias e papéis de parentesco. Mais uma vez, uma
aproximação com Wagner se impõe. Compare-se o que escreve este antropólogo
sobre o caráter tautológico da noção de proibição do incesto ' é impossível
separar relações, categorias e papéis de parentesco, visto que estes aspectos
se interconstituem99 ' com os argumentos de Deleuze e Guattari sobre a
impossibilidade do incesto:
[A] possibilidade de incesto exigiria tanto as pessoas como os nomes
' filho, irmã, mãe, irmão, pai. Ora, no ato incestuoso, podemos
dispor das pessoas, mas elas perdem seus nomes na medida em que esses
nomes são inseparáveis da proibição que os interdita enquanto
parceiros sexuais. Ou então os nomes subsistem, mas não designam mais
que estados intensivos pré-pessoais que poderiam perfeitamente "se
estender" a outras pessoas [ ]. É que não se pode jamais usufruir ao
mesmo tempo da pessoa e do nome ' o que seria contudo a condição do
incesto.100
Mas voltemos ao estruturalismo. A concepção lévi-straussiana do parentesco,
fundada na dedução transcendental da proibição do incesto enquanto condição da
sociogênese101, é recusada por Deleuze e Guattari sob o argumento de que ela é
uma generalização antropológica do Édipo. Os autores comparam desvantajosamente
o "Ensaio sobre o dom" de Mauss (a referência maior de Lévi-Strauss) à
Genealogia da moral de Nietzsche; o último, sugerem, deveria ser o verdadeiro
livro de cabeceira dos antropólogos102. Mas essa diferença entre Mauss e
Nietzsche talvez tenha sido um pouco exagerada. A distinção conceitual entre
"troca" e "dívida" não é tão clara quanto os autores fazem-na parecer103. E a
teoria nietzschiana da repressão proto-histórica de uma "memória biológica",
necessária para a criação de uma "memória social", não é tão antipodal assim ao
paradigma antropogenético compartilhado pelas teorias maussianas e
estruturalistas da troca. Penso que é apenas quando Deleuze e Guattari
determinam claramente o devir como anti-memória, no Mil platôs104, que se pode
dizer que os termos do problema mudam radicalmente.105
Parece-me, sobretudo, que a crítica do parentesco feita no Anti-Édipo é parcial
ou incompleta. O livro está firmemente amarrado a uma concepção "humanista" ou
antropocêntrica da socialidade; seu problema filosófico continua a ser o
problema da hominização. Os defeitos desse foco só se mostram, por suposto,
desde o ponto de vista radicalmente anedipiano do Mil platôs, publicado uma
década depois. O primeiro livro pretende ser uma crítica da psicanálise e do
Édipo; o vocabulário é quase parodisticamente kantiano: ilusão transcendental,
uso ilegítimo das sínteses do inconsciente, os quatro paralogismos do Édipo, e
assim por diante106. Pretendendo-se uma Crítica da Razão Psicanalítica, o Anti-
Édipo permanece com isso dentro do Édipo; é um livro necessariamente, pior,
dialeticamente edipiano. Na verdade, não seria descabido imaginar os autores do
Mil platôs afirmando, ao considerarem seu livro precedente, que toda e qualquer
interrogação de tipo antropológico-filosófico sobre a distintividade da espécie
ou condição humana, não importa o que sirva de signo ou causa de sua eleição
(ou maldição) ' a criação especial, a alma imortal, a cerebralização, a
neotenia, a linguagem, o trabalho, o desejo, o tabu do incesto, a meta-
intencionalidade, o inconsciente, a consciência ' está irremediavelmente
comprometida com o Édipo. Pois, com efeito, o objetivo de uma antropologia
contemporânea não pode ser mais o de encontrar o sucedâneo da glândula pineal
que faz os humanos "diferentes" do resto da "natureza".107 Tanto quanto possa
interessar à natureza, essa diferença não faz muita diferença. Os antropólogos
estarão mais bem ocupados estudando as diferenças que os humanos são
efetivamente capazes de fazer; a diferença entre eles e os demais viventes é
apenas uma entre muitas delas, e não necessariamente a mais nítida, a mais
estável ou a mais importante.
A limitação de foco do primeiro volume de Capitalismo e esquizofrenia talvez
explique a interpretação sistemática da aliança como cumprindo a função de
transmissora do triângulo edipiano, argumento que põe a parentalidade como
anterior à conjugalidade (a primeira "se prolonga" na segunda) e a aliança como
meramente instrumental para a filiação108. Em outras palavras, a crítica das
"concepções troquistas" articulada pelo Anti-Édipo depende de uma contra-teoria
do Édipo, dentro da qual a filiação e a produção, antes que a aliança e a
troca, são primordiais. Neste e em outros sentidos, o Anti-Édipo é um livro
anti-estruturalista. Mas, se seus autores tomaram assim suas distâncias da
avaliação lévi-straussiana da estrutura do parentesco humano, foi preciso
primeiro que eles tivessem aceito alguns dos termos em que a questão do
parentesco foi formulada antropologicamente por Lévi-Strauss. Eles parecem
crer, por exemplo, que a aliança diz respeito ao parentesco, e que o parentesco
diz respeito à sociedade. E é isso justamente que vai mudar, do Anti-Édipo ao
Mil platôs.
DA FILIAÇÃO INTENSIVA
Contra o tema da troca como síntese sociogenética de interesses contraditórios,
o Anti-Édipo avança o postulado de que a máquina social responde ao problema da
codificação dos fluxos "fugitivos" de desejo. Deleuze e Guattari propõem uma
concepção que é ao mesmo tempo inscritora ' a tarefa do socius é marcar os
corpos, a circulação é uma atividade secundária109 ' e integralmente
producionista: "tudo é produção"110. No melhor estilo Grundrisse, a produção, a
distribuição e o consumo são postos como diferentes momentos de uma Produção
vista como processo universal. A inscrição é um momento desse processo, o
momento do registro ou codificação da produção, que contra-efetua um socius
fetichizado como instância do Dado natural ou divino, superfície mágica de
inscrição e elemento de anti-produção (o chamado Corpo sem Órgãos).
O capítulo 3, parte central e mais longa do livro, começa por uma exposição das
características da "máquina territorial primitiva" e de sua característica
"declinação" da aliança e da filiação111. A hipótese fundamental na construção
de uma teoria alternativa ao estruturalismo, a esse respeito, consiste em fazer
a filiação aparecer duas vezes, a primeira vez como estado genérico e intensivo
do parentesco, a segunda como estado particular e extensivo em oposição
complementar à aliança. A aliança aparece apenas no momento extensivo; sua
função é precisamente a de extensivizar e codificar o parentesco, isto é,
atualizá-lo.
Deleuze e Guattari postulam a existência primordial de uma filiação pré-
cosmológica intensa, germinal, disjuntiva, noturna e ambígua, um "implexo" ou
"influxo germinal"112 que é o primeiro caráter de inscrição marcado sobre o
corpo pleno e inengendrado da terra: "força pura da filiação ou genealogia.
Numen"113. Essa análise do parentesco primitivo se apóia fundamentalmente em
uma interpretação das narrativas míticas coletadas por Marcel Griaule e sua
equipe, em particular no célebre mito de origem dos Dogon publicado em Le
renard pâle114: o ovo cósmico Amma, a Terra placentária, o trickster incestuoso
Yuruggu, os Nommo, "gêmeos" hermafroditas e semi-ofidiomorfos, e assim por
diante.
O papel que a narrativa desempenha no capítulo 3 ("Selvagens, bárbaros,
civilizados") é de grande relevância teórica. Ela funciona como uma espécie de
anti-mito de Édipo, ou talvez como o "mito do Anti-Édipo".115 No capítulo 2
("Psicanálise e familialismo"), os autores haviam desenvolvido longamente um
contraste entre as concepções teatral-expressiva e maquínico-produtiva do
inconsciente, contraste que os levara a colocar mais de uma vez a questão
impaciente: "por que voltar ao mito?"116, criticando o uso feito pela
psicanálise da velha narrativa grega. Quando os autores levam a cabo sua
reconstrução da antropologia do parentesco no capítulo seguinte117, porém,
constata-se que são eles mesmos que, no fim das contas, "voltam ao mito". A
introdução dos materiais Dogon, com efeito, não se faz sem uma radical
reapreciação do conceito de mito por Deleuze e Guattari. Citemos a passagem
pertinente:
[O] recurso ao mito é indispensável, não porque ele seja uma
representação transposta ou mesmo invertida das relações reais em
extensão, mas porque apenas o mito determina conformemente ao
pensamento e à prática indígenas as condições intensivas do sistema
(o sistema de produção inclusive).118
Essa avaliação aparentemente discordante, dentro do Anti-Édipo, do recurso ao
mito exigiria uma consideração mais profunda do que me sinto em condições de
fazer no momento. A título de especulação, diria que o que vemos, entre as
referências à história de Édipo e ao ciclo da Raposa Pálida, é menos uma
diferença de atitude em relação a um mesmo mito que uma diferença no mito
mesmo, uma diferença interna ao que chamamos "mito": a história de Édipo
pertence ao regime (bárbaro) do significante despótico, ao passo que a
narrativa Dogon pertenceria melhor ao regime selvagem da semiótica primitiva ou
"pré-significante"119. Não se trata pois de um mesmo mito, de um mesmo outro
genérico do logos; há mito e mito. A questão do sentido inteiramente diverso
que assume a enunciação mítica quando saímos do mundo pré-filosófico dos
"Mestres da Verdade"120 e seu regime monárquico de enunciação, mundo "clássico"
do helenista, do historiador da filosofia, para entrar no mundo extra-
filosófico das "sociedades contra o Estado", mundo do pensamento selvagem, da
alteridade antropológica radical ' bem, essa questão ainda não recebeu um
desenvolvimento à altura.121
Mas o meta-mito Dogon não é um exemplo qualquer de mitopoiese selvagem. Ele é
um mito cosmogônico de uma população da África Ocidental, região onde viceja
uma cultura do parentesco marcada pelas idéias de ancestralidade e
descendência, e pela presença de agrupamentos políticos constituídos na base de
uma origem parental comum (linhagens). Não é de surpreender, assim, que os
autores do Anti-Édipo cheguem com o auxílio desse mito à filiação como dimensão
originária da relacionalidade de parentesco, e vejam a aliança como uma
dimensão apenas superveniente, cuja função seria a de diferenciar as afiliações
linhageiras. Estamos no interior de um universo de parentesco classicamente
fortesiano122. O que é intenso e primordial são as linhagens filiativas
ambíguas, involuídas, implicadas e (pré) incestuosas, as quais perdem seu uso
inclusivo e ilimitativo na medida em que, sendo o objeto de uma memória
"noturna e biocósmica", devem "sofrer o recalque" exercido através da aliança
para que se possam explicar e atualizar no espaço físico do socius.123
Mas tudo se passa como se o sistema dos Dogon, que são sinedoquicamente os
Selvagens naquela altura do Anti-Édipo, exprimissem a teoria da descendência no
plano virtual ou intensivo e a teoria da aliança no plano atual ou extensivo.
Pois os autores fazem inteiramente suas as críticas de Leach a Fortes a
respeito da "filiação complementar", assim como concluem, de uma demonstração
de Lévi-Strauss sobre a lógica do casamento de primos cruzados124, que "em
momento algum [ ] a aliança deriva da filiação", e que "nesse sistema em
extensão, não há filiação primeira nem geração primeira ou troca inicial, mas
já e desde sempre alianças [ ]".125 Na ordem do extensivo, a filiação se
reveste de um caráter "administrativo e hierárquico", ao passo que a aliança,
que nesta ordem é primeira, é "política e econômica"126. O afim, o aliado de
casamento como personagem sociopolítico, está lá desde o princípio para impedir
o fechamento edipiano da família diante do socius, ao fazer com que as relações
familiares sejam sempre relações coextensivas ao campo social127. Mas existe
algo antes do princípio: na ordem da gênese metafísica , isto é, do ponto de
vista mítico128, a aliança é segunda. O sistema em extensão nasce das condições
intensivas que o tornam possível, mas ele reage sobre elas, elas as anula e
recalca, não lhes permitindo senão uma expressão mítica129. (Fica a questão de
saber o que seria uma expressão mítica em sentido não trivial, já que o mito
"não é expressivo, mas condicionante"130.)
O campo do parentesco pós-proibição do incesto é, portanto, concebido em termos
de uma relação de pressuposição recíproca entre a aliança e a filiação,
comandada atualmente (político-economicamente) pela primeira e virtualmente
(miticamente) pela segunda. O plano intensivo do mito é povoado por filiações
(pré)incestuosas que ignoram a aliança. A noção de uma afinidade intensiva
seria nesse caso auto-contraditória, ou quase isso. O mito é intensivo porque
(pré-)incestuoso, e vice-versa: a aliança é de fato o princípio da sociedade, e
o fim do mito. É difícil não se recordar aqui do último parágrafo das
Estruturas elementares do parentesco, onde Lévi-Strauss observa que, em seus
mitos sobre a Idade de Ouro e o Além, "a humanidade sonha em capturar e fixar
aquele instante fugidio em que lhe foi permitido crer que podia trapacear com a
lei da troca, ganhando sem perder, desfrutando sem partilhar", e que assim para
ela a felicidade completa, "eternamente negada ao homem social", é aquela que
consiste em "viver entre si"131. Mas compare-se essa constatação, finalmente
tão freudiana, com um outro passo célebre da obra de Lévi-Strauss, na qual o
antropólogo define o mito como sendo "uma história do tempo em que os humanos e
os animais não se distinguiam uns dos outros"132, acrescentando que a
humanidade jamais conseguiu se resignar diante da falta de acesso comunicativo
às outras espécies do planeta. Ora, a nostalgia de uma comunicação originária
entre todas as espécies não é exatamente a mesma coisa que aquela nostalgia da
vida "entre si" responsável pela fantasia do incesto póstumo. Muito ao
contrário. Ou não?
Reformulando o problema nos termos da economia conceitual deleuziana, parece-me
que o aspecto crucial da análise do mito Dogon é a determinação da filiação
intensiva como operador da síntese disjuntiva de inscrição ' o(s) Nommo que é/
são um e dois, homem e mulher, humano e ofídio; a Raposa Pálida que é ao mesmo
tempo filho, irmão e esposo da Terra etc. ', ao passo que a aliança é o
operador da síntese conjuntiva:
Assim é a aliança, a segunda característica da inscrição: a aliança
impõe às conexões produtivas a forma extensiva de uma conjugação de
pessoas, compatível com as disjunções da inscrição, mas,
inversamente, ela reage sobre a inscrição ao determinar um uso
exclusivo e limitativo dessas próprias disjunções. É assim inevitável
que a aliança seja representada miticamente como sobrevindo, a partir
de um certo momento, às linhas filiativas (ainda que, em outro
sentido, ela sempre tenha estado lá).133
Vimos mais acima que a síntese disjuntiva é o regime relacional característico
das multiplicidades. Como se lê logo em seguida ao trecho acima, o problema não
é o de ir das filiações às alianças, mas "o de passar de uma ordem energética
intensiva a um sistema extensivo". E nesse sentido, "o fato de que a energia
primária da ordem intensiva [ ] seja uma energia de filiação não muda nada,
pois esta filiação intensa ainda não está estendida, não comportando ainda
nenhuma distinção entre pessoas, ou mesmo entre os sexos, mas apenas variações
pré-pessoais em intensidade [ ]"134. Aqui caberia apenas acrescentar que se
essa ordem intensiva não conhece distinção de pessoas nem de gêneros, tampouco
conhece qualquer distinção de espécies, particularmente uma distinção entre
humanos e não-humanos: no mito, todos os actantes ocupam um campo interacional
único, ao mesmo tempo ontologicamente heterogêneo e sociologicamente contínuo;
ali onde toda coisa é "humana", o humano é toda uma outra coisa.135
Abre-se então a questão: se o fato da energia primária ser uma energia de
filiação não muda nada, é possível determinar uma ordem intensiva onde a
energia primária seja uma energia de aliança? É realmente necessário que a
aliança funcione apenas e sempre para ordenar, discernir, discretizar e
policiar uma filiação pré-incestuosa anterior? Ou seria concebível uma aliança
intensa, anedipiana, que compreenda "variações pré-pessoais em intensidade"? Em
poucas palavras, o problema é o de imaginar um conceito de aliança como síntese
disjuntiva.
Para fazê-lo, teríamos de tomar uma distância um pouco maior da cosmologia
lévi-straussiana do que faz o Anti-Édipo, ao mesmo tempo em que precisaríamos
submeter o conceito de troca a uma interpretação deleuziana ou "perversiva"136.
Minimamente, isso significa abandonar a descrição do "átomo de parentesco" em
termos de uma alternativa exclusiva ' esta mulher como sendo ou minha irmã ou
minha esposa, este homem como sendo ou meu irmão ou meu cunhado ' e reformulá-
la em termos de uma disjunção inclusiva ou não-restritiva: "seja seja ","e/
ou". A diferença entre irmã e esposa, irmão e cunhado deve ser tomada como uma
diferença interna, "indecomponível e desigual a si mesma". O que dizem os
autores sobre o esquizofrênico e as disjunções masculino/feminino, morto/vivo
que ele confronta, valeria também nesse caso: uma determinada mulher é de fato
minha irmã ou minha cunhada, mas ela "pertence precisamente a ambos os lados",
irmã do lado das irmãs (e irmãos), esposa do lado das esposas (e maridos) ' não
ambas as coisas ao mesmo tempo para mim, "mas cada uma das duas enquanto pontos
terminais de uma distância que el[a] sobrevoa deslizando".137
O ponto pode ser reformulado em uma linguagem que todo antropólogo
reconhecerá138. Minha irmã é minha irmã na medida exata e exclusiva em que ela
é uma esposa de (ou para) outrem, e vice-versa. É a relação de sexo oposto
entre mim e minha irmã/esposa que gera minha relação de mesmo sexo com meu
cunhado. Assim, as relações de sexo oposto não apenas geram as relações de
mesmo sexo, como lhes comunicam seu próprio potencial diferencial interno. Dois
cunhados estão relacionados da mesma maneira que as díades de sexo cruzado que
fundam sua relação (irmão/irmã, marido/mulher): não a despeito de sua
diferença, mas por causa dela. Um dos cunhados vê a face conjugal de sua irmã
no marido desta; o outro, o lado sororal de sua esposa no irmão desta. Um vê o
outro como determinado pelo laço de sexo oposto que os diferencia a ambos: cada
um vê-se a si mesmo como "de mesmo sexo" na medida em que o outro é visto
"como" de sexo oposto, e reciprocamente. As duas faces do termo relacionante
criam, dessa forma, uma divisão interna aos termos relacionados. Todos se
tornam duplos, o relator e os relacionados revelam-se permutáveis sem por isso
se tornarem redundantes; cada vértice do triângulo da afinidade inclui os
outros dois vértices como versões de si mesmo139. Essa duplicação complexa (na
qual há, note-se de passagem, dois triângulos, um para cada sexo tomado como
"relator") é explicitamente descrita por Deleuze e Guattari em um comentário
sobre a analogia entre homossexualidade e reprodução vegetal feita em Sodoma e
Gomorra. Algo como um "átomo de gênero" pode ser entrevisto aqui:
O tema vegetal [ ] nos traz uma outra mensagem e um outro código:
cada um de nós é bissexuado, cada um possui os dois sexos, mas
separados, não-comunicantes; o homem é apenas aquele em quem a parte
masculina predomina estatisticamente, a mulher, aquela em quem a
parte feminina domina estatisticamente. De tal forma que, no plano
das combinações elementares, é preciso fazer intervir pelo menos dois
homens e duas mulheres para constituir a multiplicidade na qual se
estabeleçam comunicações transversais[ ] a parte masculina de um
homem pode se comunicar com a parte feminina de uma mulher, mas
também com a parte masculina dessa mulher, ou com a parte feminina de
outro homem, ou ainda com a parte masculina desse homem etc.140
"Pelo menos dois homens e duas mulheres". Se os ligássemos como se por uma
"troca de irmãs", isto é, por um arranjo matrimonial entre dois pares de
germanos de sexo oposto (dois "divíduos" bissexuais, em suma), teríamos uma
versão extensiva, classicamente estruturalista, da multiplicidade gênero. Mas,
evidentemente, "tudo deve ser interpretado em intensidade"141. Este é o
trabalho que o pequeno "etc." ao fim da passagem acima parece estar fazendo.
À ALIANÇA DEMONÍACA
A possibilidade de uma interpretação intensiva da aliança só se torna
concebível a partir de Mil platôs. Muitas coisas mudam, do Anti-Édipo ao
segundo livro. Mas a mudança realmente importante, do ponto de vista limitado
deste artigo, é introduzida no décimo platô, "1730: Devir-intenso, devir-
animal, devir-imperceptível ". É ali que se acha a exposição do conceito de
devir, exposição que arrasta toda a conceitualidade deleuziana em um singular
devir-outro. A noção de devir é central em Deleuze desde seus estudos sobre
Bergson e Nietzsche, e ocupa o lugar que se sabe na Lógica do sentido. Mas a
partir do ensaio a quatro mãos sobre Kafka142 ela adquire uma inflexão e uma
intensidade conceitual singulares, que atingirão sua "velocidade de escape" no
capítulo 10 de Mil platôs. O devir é literalmente o que escapa tanto à mimesis
' a imitação e a reprodução ' quanto à "memesis" ' a memória e a história. O
devir é amnésico, pré-histórico, anicônico e estéril; ele é a diferença na
prática.
O capítulo começa com uma exposição do contraste estabelecido por Lévi-
Strauss143 entre as lógicas serial-sacrificial e totêmico-estrutural: a
identificação imaginária entre o humano e o animal, de um lado, a correlação
simbólica entre diferenças sociais e diferenças naturais, do outro. Entre esses
dois modelos analógicos, a série e a estrutura, os autores de Mil platôs
introduzem o motivo bergsoniano do devir, um tipo de relação irredutível tanto
às semelhanças seriais como às correspondências estruturais. O conceito de
devir designa uma relação cuja apreensão é dificultosa dentro do quadro
analítico do estruturalismo, no qual as relações funcionam como objetos lógicos
molares, apreendidos essencialmente em extensão (oposições, contradições,
mediações). Devir é uma relação real, molecular e intensiva que opera em um
registro outro que o da relacionalidade ainda apenas epistêmica do
estruturalismo144. A síntese disjuntiva do devir não é possível segundo as
regras dos jogos combinatórios das estruturas formais; ela opera nas regiões
longe do equilíbrio habitadas pelas multiplicidades reais145. "O devir e a
multiplicidade são uma coisa só"146.
Se as semelhanças seriais são imaginárias e as correlações estruturais,
simbólicas (neste sentido, são ambas edipianas, ou "míticas", no sentido
negativo que a palavra tem no capítulo 2 do Anti-Édipo), os devires são reais.
Nem metáfora, nem metamorfose, um devir é um movimento que desterritorializa
ambos os termos da relação que ele estabelece, extraindo-os das relações que os
definiam anteriormente para associá-los através de uma nova "conexão parcial".
O verbo devir, neste sentido, não designa uma operação predicativa ou uma ação
transitiva: estar implicado em um devir-onça não é a mesma coisa que virar uma
onça. É o devir ele próprio que é felino, não seu "objeto". Pois tão logo o
homem se torna um jaguar, o jaguar não está mais lá. "Lévi-Strauss não cessa de
encontrar, em seus estudos sobre os mitos, esses atos rápidos pelos quais o
homem devém animal ao mesmo tempo em que o animal devém (mas devém o quê?
humano, ou outra coisa?)".147
Devir, prosseguem os autores, é um verbo com uma consistência toda sua; ele não
é imitar, aparecer, ser, corresponder. E ' surpresa ' "devir [ ] tampouco é
produzir, produzir uma filiação ou produzir mediante uma filiação"148. Nem
filiação, nem produção. Não estamos mais no Anti-Édipo.
"O pensamento intensivo em geral é um pensamento sobre a produção", afirma
DeLanda149. Penso que talvez as coisas sejam mais complicadas que isso. O
conceito de devir desempenha efetivamente o mesmo papel "cosmológico" axial em
Mil platôs que o conceito de produção no Anti-Édipo. Não porque "tudo é devir"
' isto seria um solecismo ', nem porque não haja outras noções importantes no
livro (máquina de guerra, segmentaridade, ritornelo, regime de signos,
rostidade, agenciamento: não faltam exemplos), mas porque o conceito anti-
representativo por excelência do Mil platôs, no sentido de ser o dispositivo
que bloqueia o trabalho da representação, é o conceito de devir, exatamente
como a produção era o dispositivo anti-representativo do Anti-Édipo. Produção e
devir: dois movimentos distintos, cuja relação seria preciso determinar. Ambos
envolvem a natureza, ambos são intensivos e pré-representativos; em certo
sentido, eles são dois nomes de um só movimento: o devir é o processo do
desejo, o desejo é a produção do real, o devir e a multiplicidade são uma coisa
só, o devir é um rizoma, e o rizoma é o processo de produção do inconsciente.
Mas em outro sentido ' "sentido" também no sentido de direção ' eles não são,
definitivamente, o mesmo movimento: entre a produção e o devir, o trajeto não é
o mesmo nos dois sentidos. A produção é um processo no qual se realiza a
identidade do homem e da natureza, em que a natureza se revela ela própria como
processo de produção ("a essência humana da natureza e a essência natural do
homem se identificam na natureza como produção ou indústria " ' D.G. 1972: 10).
Devir, contudo, é uma participação anti-natural (contre nature) entre o homem e
a natureza, movimento instantâneo, não-processivo, de captura, de simbiose, uma
conexão transversal entre heterogêneos150. "[A] natureza só procede assim,
contra si mesma. Estamos longe da produção filiativa ou da reprodução
hereditária "151. O devir é anti-produtivo, ou contraproducente.
"O Universo não funciona por filiação"152. Difícil ser mais explícito. O
universo, note-se, em todos os seus estados, o intensivo-virtual como o
extensivo-atual. Ora, se ele não funciona por filiação (antes que não por outra
coisa qualquer), é-se tentado a concluir que ele funciona por aliança.
Efetivamente, já no primeiro platô lia-se que "a árvore é filiação, mas o
rizoma é aliança, é unicamente de aliança"153. E agora lê-se que "O devir não é
uma evolução, pelo menos não uma evolução por descendência e filiação. O devir
não produz nada por filiação; toda filiação é imaginária. O devir é sempre de
outra ordem que a ordem da filiação. Ele pertence à aliança".154
O que aconteceu, entre a análise que afirmava a filiação intensiva, ambígua,
noturna do mito Dogon no Anti-Édipo e a recusa a atribuir qualquer papel
significativo a esse princípio relacional no Mil platôs? Como a filiação passou
de intensiva a imaginária?
Penso que a mudança reflete um deslocamento crucial do interesse analítico de
Deleuze e Guattari, de um horizonte intra-específico para um inter-específico;
de uma economia humana do desejo ' desejo histórico-mundial, racial,
sociopolítico, e não desejo familial, personológico, edipiano; mas desejo assim
mesmo humano ' para uma economia de afetos transespecíficos que ignoram a ordem
natural das espécies e suas sínteses limitativas, conectando-nos por disjunção
inclusiva com o plano de imanência. Do ponto de vista da economia do desejo do
Anti-Édipo, a aliança extensiva vinha limitar a filiação intensiva e molecular,
atualizando-a sob a forma molar do grupo de descendência; mas do ponto de vista
da economia cósmica do afeto (do desejo como força inumana), é a filiação que
vem agora limitar, com suas identificações imaginárias, uma aliança tanto mais
real quanto mais contra-natural entre seres radicalmente heterogêneos: "Se a
evolução comporta algum autêntico devir, é no vasto domínio das simbioses, que
envolve seres de escalas e reinos totalmente diferentes, sem nenhuma filiação
possível entre si [ ]".155
Segue-se o exemplo favorito da vespa e da orquídea, um agenciamento "do qual
nenhuma vespa-orquídea jamais nascerá" ' e sem o qual, acrescente-se, nenhuma
vespa e nenhuma orquídea, tais como as conhecemos, jamais poderia nascer,
porque a filiação natural dentro de cada espécie depende dessa aliança contra-
natureza entre as espécies.
A desterritorialização da sexualidade iniciada no Anti-Édipo se completa; a
organização binária dos sexos, bissexualidade inclusive (cf. o "átomo de
gênero") cede o passo a n sexos que se conectam com n espécies no plano
molecular: "a sexualidade passa pelo devir-mulher do homem e o devir-animal do
humano: emissão de partículas".156 E se todo animal implicado em um devir-
animal é uma multiplicidade molecular ("todo animal é fundamentalmente um
bando, uma matilha"157), é porque ele define uma socialidade múltipla, lateral,
radicalmente extra-filiativa e extra-reprodutiva que arrasta a socialidade
humana em uma demoníaca metonímia universal: "Nós opomos a epidemia à filiação,
o contágio à hereditariedade, o povoamento por contágio à reprodução sexuada, à
produção sexual As participações e núpcias contra-natureza são a verdadeira
Natureza que atravessa todos os reinos da natureza".158
Aliança, então. Mas, outra vez, não uma aliança qualquer. Como vimos, o
primeiro volume de Capitalismo e esquizofrenia postulava duas filiações, uma
intensiva e germinal, a outra extensiva e somática, esta contraposta pela (e à)
aliança, princípio extensivo que desempenha o papel de "representação
recalcante" do representante do desejo, o influxo germinal.159 Agora, no Mil
platôs, vemos surgir duas alianças: aquela discutida no Anti-Édipo, interna ao
socius e mesmo ao gênero masculino (homossexualidade primária, coletiva); e uma
outra, imanente ao devir, irredutível tanto à produção e metamorfose
imaginárias (genealogia mítica, filiação ao animal) como à troca e à
classificação simbólicas (aliança exogâmica, totemismo).
Todo devir é uma aliança. O que não quer dizer, repita-se, que toda aliança
seja um devir. Há a aliança extensiva, cultural e sociopolítica, e há a aliança
intensiva, anti-natural e cosmopolítica. Se a primeira distingue filiações, a
segunda confunde espécies, ou melhor, contra-efetua por síntese implicativa as
diferenças contínuas que são atualizadas, no outro sentido (o caminho não é o
mesmo nos dois sentidos), pela síntese limitativa da especiação descontínua.
Quando um xamã ativa um devir-onça, ele não "produz" uma onça, tampouco se
"filia" à descendência dos jaguares. Ele faz uma aliança:
Dir-se-ia mais bem que uma zona de indistinção, de
indiscernibilidade, de ambigüidade se estabelece entre dois termos,
como se tivessem atingido o ponto que precede imediatamente sua
diferenciação respectiva: não uma similitude, mas um deslizamento, um
avizinhamento extremo, uma contigüidade absoluta; não uma filiação
natural, mas uma aliança contra-natureza.160
Uma definição de devir. Note-se que ela corta pelo meio o contraste
estruturalista, molar, entre filiação, continuidade metonímica e semelhança
serial, por um lado, e aliança, descontinuidade metafórica e diferença
opositiva, por outro lado. A "contigüidade absoluta" de tipo tangencial-
diferencial estabelecida pela aliança contra-natureza é certamente outra coisa
que a "descontigüidade" absoluta entre linhagens filiativas estabelecida pela
aliança simbólico-cultural (exogamia). Mas ela tampouco se resume,
desnecessário acrescentar161, a uma identificação ou indiferenciação imaginária
entre os "dois termos". Não se trata portanto de opor filiação natural a
aliança cultural, como nas teorias clássicas do parentesco. A contra-
naturalidade da aliança intensiva é igualmente contra-cultural, e
contrasocial162. Estamos falando de um terceiro incluído, uma outra relação,
uma "nova aliança".
Não é preciso deixar a paisagem africana para encontrarmos essa outra aliança.
Na seção "Memórias de um feiticeiro II" do 10º platô, os autores evocam os
homens-animais do tipo daqueles "defloradores sagrados" estudados por Pierre
Gordon, ou dos hienomens de algumas tradições sudanesas descritas por G.
Calame-Griaule. Esses últimos fornecem a ocasião para um comentário, a nosso
ver, decisivo:
[O] homem-hiena viva nas margens da aldeia, ou entre duas aldeias, de
modo que pode vigiar nas duas direções. Um herói, ou mesmo dois
heróis, cada qual com uma noiva na aldeia do outro, vencerão o homem-
animal. É como se fosse necessário distinguir entre dois estados
muito diferentes da aliança: uma aliança demoníaca que se impõe do
exterior, e que impõe sua lei a todas as filiações (aliança forçada
com o monstro, com o homem-animal); e uma aliança consentida, que se
conforma ao contrário à lei das filiações, e que se manifesta quando
os homens das aldeias vencem o monstro e passam a organizar suas
próprias relações. Tal distinção pode vir a modificar a questão do
incesto. Pois não basta dizer que a proibição do incesto deriva das
exigências positivas da aliança em geral. Há, ao contrário, uma forma
de aliança que é tão estranha, tão hostil à filiação, que ela assume
necessariamente o valor de incesto (o homem-animal sempre tem uma
relação com o incesto). A segunda forma de aliança proíbe o incesto
porque só pode se submeter aos direitos da filiação estabelecendo-se
entre filiações distintas. O incesto aparece duas vezes, como
potência monstruosa da aliança quando esta subverte a filiação, mas
também como potência interdita da filiação quando esta submete a
aliança e deve distribuí-la entre linhagens distintas.163
"Isso pode vir a modificar a questão do incesto": os autores parecem estar se
referindo à teoria das Estruturas elementares; mas cuido que a observação se
aplica igualmente bem ao modo como a questão era tratada no Anti-Édipo. Pois
agora é a noção de aliança que passa a ter uma dupla incidência; não é apenas
uma reguladora da "sexualidade enquanto processo de filiação", mas também "uma
potência de aliança a inspirar uniões ilícitas e amores abomináveis". Seu
propósito não é o de gerir, mas o de "impedir a procriação": aliança anti-
filiativa164. Mesmo aquela aliança échangiste, recalcante, produtora de
filiação, começa aqui a mostrar certos poderes ocultos ' como se tivesse sido
contaminada pela outra aliança, a aliança intensa e demoníaca. "É verdade que a
aliança e a filiação estão em relações reguladas pelas leis de casamento, mas
mesmo ali a aliança retém uma potência perigosa e contagiosa. Como Leach
demonstrou [ ]"165. É interessante notar como a palavra "potência", puissance,
passa insistentemente a qualificar e determinar a aliança, neste passo do Mil
platôs. O conceito de aliança cessa de designar uma instituição ' uma estrutura
' e se torna uma potência, um potential ' um devir. Da aliança como forma à
aliança como força, passando ao largo da filiação como substância. Não estamos
aqui no elemento místico-serial do sacrifício nem no elemento mítico-estrutural
do totemismo, mas no elemento mágico-real do devir.166
Não estamos tampouco no elemento do Contrato Social. "O desejo ignora a troca;
ele só sabe do roubo e do dom"167. Mas, novamente, há troca e troca. Há uma
troca que certamente não é "échangiste" no sentido capitalista-mercantil do
termo, já que pertence à categoria do roubo e do dom: a troca característica
das "economias do dom", precisamente ' a aliança estabelecida pela troca de
dons, movimento alternado perpétuo de dupla captura, onde os parceiros comutam
(contra-alienam) perspectivas invisíveis mediante a circulação de coisas
visíveis (suas "possessões inalienáveis")168. Os dons podem ser recíprocos; mas
isso não faz de sua troca um movimento menos violento; todo o propósito do ato
de donação é forçar o parceiro a agir, extrair um gesto do outro, provocar uma
resposta: roubar sua alma. (A aliança como roubo recíproco de alma.) E, neste
sentido, não há ação social que não seja uma troca de "dons", pois toda ação é
"social" enquanto, e apenas enquanto, é ação sobre uma ação, reação a uma
reação. Reciprocidade, nesse caso, significa apenas recursividade. Nenhuma
insinuação de sociabilidade; menos ainda, de altruísmo. A vida é roubo. Só me
interessa o que não é meu.169
CONCLUSÃO, PRECEDIDA DE UMA BREVE EVOCAÇÃO AMAZÔNICA
"Aliança" é uma boa e uma má palavra. Toda palavra é boa se pode ser usada para
cruzar a fronteira entre pessoas e coisas. Assim, aliança é uma boa palavra se
você a usar para um micróbio. Força é uma boa palavra se você a usar para um
humano.
Bruno Latour, 1993.
A distinção entre as duas alianças proposta no Mil platôs parece se impor com a
força de um "traço típico", etnologicamente falando, quando deixamos a paisagem
do Oeste da África pela da Amazônia indígena. Ela corresponde de perto a um
contraste reconhecido pelos etnógrafos dessa última região entre uma afinidade
intensiva ou "potencial", cosmológica, mítico-ritual, da qual se poderia
perfeitamente dizer que é "ambígua, disjuntiva, noturna e demoníaca", e uma
afinidade extensiva ou "efetiva", subordinada à consangüinidade. Como já tratei
desse tema em diversos estudos sobre o parentesco amazônico170, não me arrisco
aqui a ser mais que sumariamente alusivo.
Em geral, nas sociedades amazônicas, a afinidade matrimonial é concebida como
uma relação profundamente delicada, em todos os sentidos do adjetivo: perigosa,
frágil, incômoda, embaraçosa e preciosa ao mesmo tempo, ela é moralmente densa,
afetivamente ambivalente, politicamente estratégica, economicamente
fundamental. Conseqüentemente, os laços de afinidade são o foco de um esforço
sistemático de invisibilização, realizado, o mais das vezes, através de seu
mascaramento ou neutralização pelas relações de consangüinidade (germanidade e
filiação).171 Os afins terminológicos (relações de afinidade a priori,
características dos chamados sistemas elementares de parentesco) são vistos
como tipos de cognatos (primos e tios cruzados); os afins efetivos são
consangüinizados na referência e no tratamento; os termos específicos de
afinidade são evitados em favor de seus equivalentes consangüíneos ou de
tecnônimos que exprimem a co-consangüinidade; os cônjuges são ditos se tornarem
consubstanciais por via do sexo e da comensalidade cotidiana, e assim por
diante. Como observou Peter Riviére172 para o caso bastante típico das Guianas,
"dentro da aldeia ideal a afinidade não existe". Mas se ela não existe ali,
haverá de existir alhures. Dentro da aldeia real, para começar; mas sobretudo
fora da aldeia ideal: no exterior ideal da aldeia, enquanto afinidade "ideal",
ou intensiva. Assim que deixamos a aldeia, real ou ideal, o mascaramento se
inverte, e a afinidade se torna a forma genérica da relação social, tanto mais
forte quanto mais genérica, tanto mais explícita quanto menos substancial: o
cunhado perfeito é aquele com cuja irmã não casei, ou que não casou com minha
irmã. Era o cativo tupinambá, por exemplo, inimigo-cunhado (o termo era um só:
tovajara) votado à morte cerimonial em terreiro. Os afins são inimigos, e
assim, os inimigos são afins. Quando os afins não são inimigos, quando são
parentes e co-residentes' o caso "ideal" ', então é preciso que não sejam
tratados como afins; quando os inimigos não são afins, é porque são inimigos,
isto é, devem ser tratados como afins.173
As variadas relações supra-locais na Amazônia tendem assim a ser fortemente
conotadas pela afinidade: alianças localmente exogâmicas, raras mas
politicamente estratégicas; laços ritualizados de amizade ou parceria
comercial; cerimonialidade intercomunitária; um estado permanente de "guerra",
física ou espiritual, latente ou manifesta, entre os grupos locais. Tal
afinidade intensiva atravessa as fronteiras entre as espécies: animais,
plantas, espíritos, todos se acham implicados em tais relações sintético-
disjuntivas com os humanos. Até segunda ordem, e o mais das vezes até o fim,
são todos afins.
Essa relação de afinidade virtual pura, o esquematismo genérico da alteridade
na Amazônia, pertence indubitavelmente ao "segundo tipo de aliança" mencionado
no Mil platôs. Ela é hostil à filiação, uma vez que surge sobretudo ali onde o
casamento não é uma opção (ou, pelo menos, uma preferência), e sua
produtividade não é do tipo procreativo; ela é, antes, parte de uma máquina de
guerra anterior e exterior ao parentesco enquanto tal. Uma aliança contra a
filiação: não no sentido de ser a representação recalcante de uma filiação
intensiva primordial, mas porque impede a filiação de funcionar como germe de
uma transcendência (a origem mítica, o ancestral fundador, o grupo de filiação
identitário). Toda filiação é imaginária, dizem os autores do Mil platôs. Eu
acrescentaria: e toda filiação projeta um Estado, é filiação de Estado. A
aliança intensiva amazônica é uma aliança contra o Estado.174
A afinidade intensiva ou primordial é, no meu entender, um dos signos mais
característicos da socialidade amazônica, talvez da América indígena como um
todo; não é impossível que estejamos aqui tocando a "rocha-mãe"175 da
cosmologia ameríndia enquanto macro-objeto historicamente coerente. Considere-
se o complexo continental percorrido pelasMitológicas, cujo tema é origem da
cultura humana. Se compararmos os mitos ameríndios com nossa própria mitologia
da cultura, uma diferença que ressalta é a dominância das relações de afinidade
nos primeiros e das relações de parentalidade na segunda. As figuras centrais
dos mitos ameríndios estão canonicamente relacionadas como afins; um personagem
conspícuo dessas narrativas, para tomarmos um exemplo, é o sogro canibal, o
Mestre não-humano de todos os bens culturais, que submete seu genro a uma série
de provas com intenção de matá-lo; o rapaz as supera todas (freqüentemente
graças às habilidades de outros animais que se apiedam dele) e retorna ao seio
da comunidade humana trazendo o precioso butim da cultura. O conteúdo deste
arqui-mito176 não é muito diferente do enredo prometéico: há o céu e a terra,
há um herói preso entre os dois; há o fogo civilizador, e o "dom" das mulheres,
e a origem da mortalidade humana. Mas os protagonistas do mito ameríndio são
sogros ou cunhados, não figuras paternas ou filiais como aquelas que reinam nas
mitologias do Velho Mundo, sejam elas gregas, próximo-orientais, africanas ou
freudianas. Para encurtar o argumento, digamos que no Velho Mundo os humanos
tiveram de roubar o "fogo" de um pai divino, enquanto os ameríndios tiveram de
furtá-lo de um sogro animal, ou recebê-lo de presente de um cunhado animal.
Pode-se dizer que a mitologia é o discurso do Dado177. Nela se dá de uma vez
por todas aquilo que doravante será tomado como dado ' as condições primordiais
a partir das quais, e contra as quais, os humanos se definem ou constroem; ela
estabelece os termos da dívida ontológica. Se este é o caso, então a dívida
ameríndia não concerne a filiação e a parentalidade, mas a casamento e a
afinidade; o Outro, como vimos, é primeiro de tudo um afim. Note-se que não me
refiro aqui ao fato trivial de que os mitos indígenas tratam as relações de
afinidade como sempre "já lá" ' eles fazem o mesmo com as relações
consangüíneas, ou imaginam mundos em que os pré-humanos ignoravam as proibições
matrimoniais etc.178 ', mas ao fato de que a afinidade constitui a moldura, a
armação sociológica dentro da qual se transmite a mensagem do mito. Essa
moldura contém uma variedade de espécies de gente. Em particular, ela é repleta
de afins animais. É imperativo que eles sejam animais, ou, mais geralmente,
não-humanos (futuros não-humanos, isto é, no mito todo mundo é parcialmente
humano, os humanos atuais inclusive, embora o caminho não seja o mesmo nas duas
direções).
É esta aliança com o não-humano que define "as condições intensivas
do sistema" na Amazônia.
Mas nesse plano não pode haver, estritamente falando, uma distinção '
necessariamente extensiva ' entre aliança e filiação. Ou por outra, se há duas
alianças, há também duas filiações. Se toda produção é filiativa, nem toda
filiação é (re)produtiva; se há filiações reprodutivas e administrativas
(representativas, de Estado), há também filiações contagiosas e monstruosas,
aquelas que resultam de alianças e devires contra-natureza. Eis por que o
incesto possui uma "afinidade" intrínseca com as uniões trans-específicas: a
hiper-exogamia e a hiper-endogamia vertem uma na outra no mundo intensivo do
mito, o mundo da diferença fluente que condiciona e acompanha o mundo atual
como sua contraparte virtual.179
O conceito amazônico de afinidade potencial constitui-se, do ponto de vista de
seu quadro teórico de referência, em ruptura com a imagem "troquista" do
socius. (Donde a importância da noção de "predação ontológica" ' o roubo e o
dom ' que lhe está associada180) Ele procurava captar o movimento de uma outra
"potência da aliança" intrínseca às socialidades indígenas, potência
cosmopolítica irredutível à afinidade doméstico-pública (ah, a esfera pública )
das teorias clássicas do parentesco, fossem elas estrutural-funcionalistas,
estruturalistas ou marxistas. Por outras palavras, o tema amazonista da
afinidade potencial pressupôs desde o começo a conceitualidade desenvolvida em
Capitalismo e esquizofrenia. Ele "jamais foi (inteiramente) lévi-straussiano".
O roubo, o dom, o contágio, o dispêndio e o devir: é dessa troca que se trata.
Uma outra potência da aliança ' a aliança potencial.
No último quartel do século passado, a chamada teoria estruturalista da aliança
de casamento, que dominara a cena nos anos 1960, veio a conhecer um crescente
desfavor crítico. O Anti-Édipo foi um elemento decisivo nesse deslocamento, na
medida em que exprimiu em uma linguagem particularmente vigorosa e eficaz a
recusa intransigente de toda concepção "troquista" do socius. Mas, se é
inegável que essa atitude persiste em Mil platôs, os termos do problema mudam
ligeiramente, ali. No Anti-Édipo, a troca era afastada em favor da produção
enquanto modelo geral da ação, e a circulação (à qual Deleuze e Guattari
assimilavam unilateralmente a troca no sentido de Mauss) se subordinava à
inscrição.181 NoMil platôs, como vimos, a produção abre espaço para um outra
relação não-representativa, o devir. Se a produção é inerentemente filiativa, o
devir mostra uma afinidade com a aliança. O que se passa então com a posição
anti-troquista, quando se passa da produção ao devir?
É sabido, ainda que muitas vezes convenientemente esquecido, que a produção do
Anti-Édipo não é exatamente idêntica ao conceito marxista homônimo. A "produção
desejante" de Deleuze e Guattari não deve ser confundida com a "produção
necessitada" hegeliano-marxista, dominada pelas noções de falta e de
necessidade182. A diferença é várias vezes sublinhada: "nosso problema nunca
foi o de uma volta a Marx; ele é muito mais o de um esquecimento, o
esquecimento de Marx inclusive. Mas, no esquecimento, pequenos fragmentos
sobrenadam [ ]"183. Acrescente-se que a produção desejante fluente do Anti-
Édipo distingue-se mal de um processo de circulação generalizada; como Lyotard
provocativamente sugeriu, "esta configuração do kapital, a circulação de
fluxos, se impõe pela predominância do ponto de vista da circulação sobre o da
produção".184
A concepção finitiva e necessitarista de produção tem ampla liquidez nos
círculos antropológicos; é em seu nome e de seus acessórios ' dominação, falsa
consciência, ideologia ' que as posições "troquistas" são, via de regra,
criticadas dentro da antropologia. Mas se é desejável, e mesmo necessário,
fazer essa distinção entre a produção necessitada da economia política e a
produção desejante da economia maquínica, a produção-trabalho e a produção-
funcionamento, pode-se argumentar por analogia que seria igualmente
interessante distinguirmos entre uma aliança-estrutura e uma aliança-devir, uma
troca-contrato e uma troca-metamorfose. Essa distinção permitiria isolar e
descartar a concepção contratualista da aliança, ao jogar com a homonímia
deliberadamente equívoca entre a aliança intensiva das sociocosmologias
amazônicas (por exemplo) e a aliança entensiva das teorias clássicas,
estruturalismo inclusive, do parentesco. Naturalmente, em ambos os casos a
homonímia é um pouco mais que isso, visto que há uma filiação, mesmo se
monstruosa antes que reprodutiva, entre os conceitos respectivos. A produção do
Anti-Édipo deve muito à produção da economia política, ainda que a subverta.
Semelhantemente, a aliança potencial amazônica existe em filigrana ou em
contra-luz ' por assim dizer, virtualmente ' na obra lévi-straussiana, cujo
potencial anti-edipiano, e assim (auto-)subversivo, precisa ser trazido à
superfície.
O problema é, em última análise, o de se imaginar ' construir ' um conceito
não-contratualista e não-dialético de troca: nem interesse racional, nem
síntese a priori do dom; nem teleologia inconsciente, nem trabalho do
significante; nem fitness inclusiva, nem desejo do desejo do Outro; nem
contrato, nem conflito ' mas um modo de devir-outro185. A aliança é o modo de
devir-outro próprio ao parentesco.
A lateralidade maquínica e rizomática da aliança está finalmente muito mais
próxima da filosofia deleuziana que a verticalidade orgânica e arborescente da
filiação. O desafio, então, é o de se liberar a aliança do controle gerencial
da (e pela) filiação, liberando assim suas potências "monstruosas", isto é,
criativas. No que concerne à noção gêmea da noção de aliança, a noção de troca,
penso que hoje está claro que ela jamais foi realmente posta como o outro da
produção, não obstante o dogma corrente. Ao contrário, a troca sempre foi
tratada pela antropologia como a forma mais eminente de produção: produção da
Sociedade, justamente. A questão portanto não é a de revelar a verdade nua da
produção por debaixo do véu hipócrita da troca e da reciprocidade, mas, antes,
a de libertar estes conceitos de suas funções equívocas dentro da máquina da
produção filiativa e subjetivante, devolvendo-as a seu elemento
(contra)natural, o elemento do devir. A troca, ou a circulação infinita de
perspectivas ' troca de troca, metamorfose de metamorfose, ponto de vista sobre
ponto de vista, isto é: devir.
[1] A fração da humanidade determinada pelo pronome "nossa" (apercepção
cultural) é aquela que se imagina.
[2] P. Pignarre e I. Stengers. La sorcellerie capitaliste. Pratiques de
desenvoûtement. Paris: La Découverte, 2005, pp. 49-53.
[3] G. Deleuze e F. Guattari, "Mai 68 n'a pas eu lieu". In: D. Lapoujade
(org.). Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit,
1984, pp. 214-20. Para uma reflexão de inspiração deleuziana
sobre o projeto altermundialista, ver o trabalho já citado de P. Pignarre e I.
Stengers, 2005.
[4] D. Eribon: "Este refluxo do estruturalismo foi acompanhado de um retorno às
formas mais tradicionais de filosofia "; C. Lévi-Strauss: "Os dois fenômenos
estão ligados" (apud P. Maniglier, "L' humanisme interminable de Claude Lévi-
Strauss". Les Temps Modernes, 609, 2000, p. 216. )
[5] F. Cusset. French theory. Foucault, Derrida, Deleuze & Cie er les
mutations de la vie intelectuelle aux États-Unis. Paris: La Découverte, 2003.
[6] Doravante usaremos GD para as referências bibliográficas a Deleuze e DG
para Deleuze & Guattari. As referências citadas neste artigo provêm dos
textos originais; as traduções são de minha responsabilidade, exceto quando
indicado. E para suas obras L'Anti-dipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris:
Minuit, 1972, usaremos AE, e MP para Milles plateaux.
Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1981.
[7] M. Strathern. Partial connections. Savage, Md.: Rowman and Littlefield,
1991.
[8] B. Latour já indicou a importância do Anti-Édipo para sua formação; o
filosófo que lhe é mais próximo é, porém, Michel Serres, cuja obra intersecta
aliás em vários pontos a de Deleuze. Wagner (que é americano) e Strathern (que
é britânica), cujos trabalhos estão diretamente relacionados, são antropólogos
"clássicos", especialistas na Melanésia; ambos também escreveram textos
importantes sobre a tradição cultural ocidental, e Strathern publicou análises
enormemente influentes das práticas de conhecimento ocidentais, em particular
daquelas associadas ao parentesco. O francês Latour, como se sabe, é tudo menos
um antropólogo clássico, pela razão mesma que seu trabalho reproblematizou o
escopo da antropologia, ao incorporar as ciências ' e portanto as condições
perspectivas de possibilidade da antropologia ' no rol dos objetos possíveis de
uma etnografia "clássica".
[9] D. Lapoujade. "Le structuralisme dissident de Deleuze". In A. Akay (org.).
Gilles Deleuze için / Pour Gilles Deleuze. Istambul: Akbank Sanat, pp. 27-36.
[10] Observe-se de passagem que se não o século, como previu Foucault, é pelo
menos o estruturalismo que, em reavaliações recentes, parece estar se tornando
deleuziano (o que é diferente de dizer que Deleuze está-se tornando
estruturalista). Assim transparece, por exemplo, no minucioso e instigante
comentário dos escritos de Saussure por Maniglier (La vie énigmatiques des
signes. Saussure et la naissance du structuralisme. Paris: Léo Scheer, 2006).
[11] "Talvez esse sentimento de déjà vu seja também um sentimento de se habitar
uma matriz cultural " (M. Strathern, op. cit., p. 25). O leitor poderá conferir
a pregnância de tal "matriz" ' mas o termo deve ser tomado como prospectivo
tanto ou mais que como retrospectivo ' no belo Seis propostas para o próximo
milênio: Lições americanas, de Italo Calvino (São Paulo: Companhia das Letras,
2001 [ 1988]), cujas seis "propostas para o próximo milênio"
incluem pelo menos três qualidades ou valores lógico-estéticos emblemáticas do
pensamento deleuziano: "leveza", "rapidez", "multiplicidade" [ ] E poderá
voltar a Diferença e repetição para recordar que Deleuze via seu livro como
expressão de um certo espírito da época, do qual o autor pretendia extrair
todas as consequências filosóficas (GD. Différence et répétition. Paris: PUF,
1968, p. 1).
[12] MP, p. 123.
[13] M. DeLanda. Intensive science and virtual philosophy. Londres: Continuum,
2002; B. Latour. Nous n'avons jamais été modernes. Paris: La
Découverte, 1991; C. B. Jensen. "A nonhumanist disposition: on
performativity, practical ontology, and intervention". Configurations, 12, pp.
229-61, 2004.
[14] DG. Qu'est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.
[15] A noção de uma ontologia plana remete à "univocidade do ser", tese
medieval reciclada por Deleuze: "a univocidade é a síntese imediata do
múltiplo. O um não se diz senão do múltiplo, ao invés de que este último se
subordine ao um como ao gênero superior e comum capaz de englobá-lo" (F.
Zourabichvili. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipses, 2003, p. 82). O comentador prossegue: "O corolário desta síntese imediata do
múltiplo é o desdobrar de todas as coisas sobre um plano comum de igualdade:
'comum' aqui não tem o sentido de uma identidade genérica, mas de uma
comunicação transversal e sem hierarquia entre seres que simplesmente diferem.
A medida (ou hierarquia) muda igualmente de sentido: ela não é mais a medida
externa dos seres em relação a um padrão, mas a medida interior a cada ser em
sua relação com seus próprios limites" (idem, pp. 82-3). A idéia de ontologia
plana é extensamente comentada em DeLanda (op. cit.); ele a desenvolve em uma
direção própria em DeLanda (A new philosophy of society: assemblage theory and
social complexity. Londres: Continuum, 2006). Jensen (op.
cit.) faz uma excelente análise das repercussões teórico-políticas (equivocadas
ou não) dessas ontologias, especialmente para o caso de Latour. Este último, em
seu recente Reassembling the social, insiste sobre o imperativo metodológico de
"manter o social plano", próprio da "teoria do ator-rede", cujo outro nome,
aliás, seria "ontologia do actante-rizoma" (Latour, 2005: 9). A análise
conceitual própria a esta teoria (seu método de obviação, diria Wagner)
consiste no desenglobamento hierárquico do socius de modo a liberar as
diferenças intensivas que o atravessam e destotalizam ' operação completamente
diferente de uma rendição ao "individualismo", ao contrário do que clamam os
retroprofetas do Velho Testamento holista.
[16] A "comparação controlada" é um método analítico famoso em etnologia (F.
Eggan. "Social anthropology and the method of controlled comparison". American
Anthropologist, 56, pp. 743-63, 1954).
[17] R. Wagner. The invention of culture. 2ª- ediçao revista e ampliada.
Chicago: University of Chicago Press, 1981.
[18] J. Donzelot. An anti-sociology. Semiotext(e), II(3), p. 28, 1977.
[19] Idem, p. 37. "[No Anti-Édipo,] a derrubada da psicanálise [é] a condição
preliminar para uma reviravolta de proporções completamente diferentes [ ]
temos aqui, ampliada à escala da totalidade das ciências humanas, uma tentativa
de subversão do mesmo tipo geral daquilo que Laing e Cooper levaram a cabo no
terreno estrito da psiquiatria" (Idem, p. 27).
[20] M. Strathern. The gender of the gift: problems with women and problems
with society in Melanesia. Berkeley: University of California Press, 1988; E. Viveiros de Castro. "And. Manchester Papers". Social
Anthropology, 7: 1-23, 2003.
[21] DG. "Préface pour l'édition italienne de Mille Plateaux". In: GD. Deux
régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995 (D. Lapoujade, org.) Paris:
Minuit, 2003 [1987], p. 290.
[22] "[Milles Plateaux] é um livro de conceitos" (GD. Pourparlers. Paris:
Minuit, 1990 [1980], p. 39.
[23] Sobre o modelo merológico, ver M. Strathern. After nature: English kinship
in the late twentieth century. Cambridge: Cambridge University Press. 1992. Sobre a idéia do mundo pós-plural, ver do mesmo autor Partial
connections. Savage, Md.: Rowman and Littlefield 1991, p. xvi; After nature: English kinship in the late twentieth century, pp. 3-4,
184 et passim; "Parts and wholes: refiguring relationships in a post-plural
world". In: Reproducing the future: anthropology, kinship, and the new
reproductive technologies. Nova York: Routledge, 1992, p. 92. Sobre o presentismo estratégico expresso na complexa construção
"jamais fomos", ver, naturalmente, B. Latour. Nous n'avons jamais été modernes.
Paris: La Découverte, 1991. A expressão "alternativa infernal"
foi tomada de Pignarre e Stengers, op. cit.
[24] Digo metaconceito porque todo conceito é ele próprio uma multiplicidade,
embora nem toda multiplicidade seja conceitual (DG. Qu'est-ce que la
philosophie?, pp. 21 e ss).
[25] M. DeLanda, op. cit.
[26] O conceito deleuziano tem sua origem na filosofia de Bergson (teoria das
duas multiplicidades, intensivas e extensivas), e na geometria de Gauss e
Riemann (as variedades como superfícies n-dimensionais intrinsecamente
definidas). Para a conexão com Bergson, ver GD. Le bergsonisme. Paris: PUF,
1966, cap. 2; para Riemann, MP, pp. 602-9. Para os aspectos
matemáticos gerais da multiplicidade deleuziana, ver, além da engenhosa
reconstrução de DeLanda (Intensive science and virtual philosophy. Londres:
Continuum, 2002, pp. 9-10, 38-40 et passim), os artigos de
Duffy, Smith, Durie e Plotnitsky em Duffy (org.). Virtual mathematics: the
logic of difference (Bolton: Clinamen Press, 2006). Le
vocabulaire de Deleuze, de F. Zourabichvili (Paris: Ellipses, 2003, pp.51-4), traz o melhor resumo do significado filosófico do conceito na
obra de Deleuze.
[27] Sobre a filosofia de Deleuze como um combate contra o sistema do
julgamento, isto é, como respondendo à questão: o que é pensar, quando pensar
não é julgar?, ver o importante estudo de Ovídio de Abreu, O combate ao
julgamento no empirismo transcendental de Deleuze. Tese de doutorado em
filosofia, IFSC-UFRJ, 2003.
[28] GD. Différence et répétition, p. 286.
[29] B. Latour. Reassembling the social. An introduction to Actor-Network
theory. Oxford: Oxford University Press, 2005, pp. 129-31.
[30] C. B. Jensen. "Latour and Pickering: post-human perspectives on science,
becoming, and normativity". In: D. Ihde e E. Selinger (orgs.), Chasing
technoscience: matrix for materiality. Bloomington: Indiana University Press,
2003, p. 227.
[31] B. Latour. Reassembling the social. An introduction to Actor-Network
theory, p. 116.
[32] GD. Différence et répétition, p. 79; Logique du sens, p. 203.
[33] R. Wagner. Symbols that stand for themselves. Chicago: The University of
Chicago Press, 1986.
[34] Registre-se, para ulterior consideração, a hipótese de que na obra de
Wagner se ache a primeira e ainda única tentativa de criação de um conceito
antropológico de conceito (E. Viveiros de Castro, op. cit.), ou, se se preferir
não abusar do termo reservado por Deleuze à filosofia, a primeira determinação
antropológica rigorosa da Figura (sensu DG. Qu'est-ce que la philosophie?),
determinação que não a toma ' ao contrário do que parece ser inevitável em
filosofia ' como constituindo o exterior do conceito, isto é, como existindo
lógica, se não cronologicamente "para" o conceito, "em vista" do conceito.
[35] MP, pp. 13, 27, 31.
[36] (GD. Différence et répétition, p. 236). Uma multiplicidade ou rizoma é um
sistema, note-se, não uma soma de "fragmentos". É simplesmente um outro
conceito de sistema, que se distingue do sistema arborescente como um processo
imanente se distingue de um modelo transcendente (MD, p. 31).
[37] MD, p. 621.
[38] Ou melhor, onde o todo é apenas uma parte ao lado das partes. "Só
acreditamos em totalidades ao lado [à coté]. E se encontramos uma totalidade
dessas ao lado de partes, é como um todo dessas partes, mas que não as
totaliza, uma unidade de todas essas partes, mas que não as unifica, e que se
acrescenta a elas como uma nova parte composta à parte. [ ] O todo não coexiste
simplesmente com as partes, ele lhes é contíguo, é produzido ele próprio à
parte, aplicando-se às partes [ ]" (AE, pp. 50, 52; grifos originais). Sobre a
heterogeneidade dos elementos conectados em rizoma, é importante ressalvar que
ela não diz respeito a uma condição substantiva prévia, ou essência, dos termos
(o que conta como heterogêneo, nesse sentido, depende das "predisposições
culturais" do observador ' M. Strathern. "Cutting the network". Journal of the
Royal Anhtropological Institute, NS 2(4), 1996, p. 525), mas a
um efeito de sua captura por uma multiplicidade, a qual torna heterogêneos os
termos que conecta, ao fazê-los funcionar como singularidades, "representantes
de si mesmos".
[39] "Romantic and baroque conceptions of complex wholes in the sciences". In:
J. Law e A. Mol (orgs.). Complexities. Social studies of knowledge practices.
Durham: Duke University Press, 2002.
[40] Strathern et al. "The concept of society is theoretically obsolete". In:
T. Ingold (org.). Key debates in antrhopology. Londres: Routledge, 1996 [1989]. Tenho que é preciso reavaliar a esquematização da história do
pensamento ocidental recente, da antropologia em especial, em termos de uma
combinação conflituosa (com dominância alternada) entre princípios românticos e
iluministas. Essa estrutura de sabor quase mitológico (sensu Lévi-Strauss) pode
ter tido um certo valor explicativo para, digamos, o primeiro século da
disciplina, entre 1860 e 1970 (ou pelo menos esta é minha desculpa para ter
lançado mão dela em um artigo de enciclopédia: cf. E. Viveiros de Castro. "O
conceito de sociedade em antropologia". In: A inconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002). A partir dali, a aplicação do termo "(neo-)romântico" a diversas
tendências do pensamento pós-estruturalista ' geralmente com intenção
difamatória ' parece-me um simples automatismo reativo; a sensibilidade
conceitual em questão, se ecoa alguma era prisca, é o barroco (ver, justamente,
GD. Le pli. Leibniz et le baroque. Paris: Minuit, 1988), não o
romantismo.
[41] R. Wagner. "The fractal person". In: M. Godelier e M. Strathern (orgs.).
Big men and great men: personification of power in Melanesia. Cambridge:
Cambridge University Press, 1991, p. 163. O "um homem e muitos
homens" de M. Strathern (idem, ) não deixa de evocar uma multiplicidade
deleuziana de tipo n-1, algo como um "muitos-menos-um homens". Se compreendo a
autora corretamente, na estética melanésia a unidade de uma pluralidade provém
de si mesma, não de um princípio exterior. Alternativamente, poder-se-ia
imaginar ali uma multiplicidade de tipo 1-n, já que, para recordarmos outro
exemplo melanésio, "o maior número possível que os Iqwaye podem alcançar, e que
alcançam, é um" (J. Mimica. Intimations of infinity: the cultural meanings of
the Iqwaye couting and number system. Oxford: Berg, 1988, p. 95).
[42] Différence et répétition, cap. VI.
[43] "Deleuze et la question de la littéralité", p. 82, 2004 (MS inédito).
[44] Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipses, 2003, p. 52, n. 1. Pluralismo por oposição a dualismo (cf. MP, pp. 30-1).
[45] F. Zourabichvili. Le vocabulaire de Deleuze, p. 81.
[46] Idem, "Deleuze et la question de la littéralité", p. 99.
[47] Idem, Le vocabulaire de Deleuze, p. 79.
[48] Idem, "Deleuze et la question de la littéralité", p. 99.
[49] M. Strathern. "The nice thing about culture is that everyone has it". In:
M. Strathern (org.). Shifting contexts: transformations in anthropological
knowledge. Londres e Nova York: Routledge, 1995, p. 165.
[50] Idem, Property, substance and effect: anthropological essays on persons
and things. Londres: Athlone. 1999, p. 126; "Cutting the
network", ed. cit., p. 525, e, naturalmente, The gender of the gift: problems
with women and problems with society in Melanesia. Berkeley: University of
California Press, 1988, cap. 8.
[51] A. Gell. "Strathernograms, or the semiotics of mixed metaphors". In: The
art of anthropology: essays and diagrams. Londres: Athlone, 1999. A interpretação de Alfred Gell segundo a qual o "sistema M" exprime
uma teoria das relações internas suscita uma questão que só será possível
explorar em outro contexto: a da tradutibilidade recíproca entre a antropologia
stratherniana e a doutrina deleuziana da exterioridade das relações, sobretudo
na interpretação que ela recebe no livro recente de Manuel DeLanda (A new
philosophy of society: assemblage theory and social complexity. Londres:
Continuum, 2006). Penso que ambas as interpretações são
(proveitosamente) discutíveis.
[52] M. Strathern. After nature: English kinship in the late twentieth century.
Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
[53] Idem, Partial connections. Savage, Md.: Rowman and Littlefield, 1991, pp.
52-3.
[54] Apud D. W. Smith. "Axiomatics and problematics as two modes of
formalisation: Deleuze's epistemology of mathematics". In: S. Duffy (org.).
Virtual mathematics: the logic of difference. Bolton: Clinamen Press 2006, p.
167, n. 39.
[55] Neste novo espírito, ver a meta-comparação antropológica entre tipos de
multiplicidade sugerida por M. Strathern: "[C]ontrastar tipos de multiplicidade
é algo a considerar. Se falamos de origens múltiplas em relação às produções
[works] euro-americanas, então a multiplicidade provém do modo pelo qual as
pessoas são adicionadas umas aos empreendimentos das outras. Se falamos de
origens múltiplas em relação à contrapartida melanésia disso, então a
multiplicidade provém do modo pelo qual as pessoas se dividem uma das outras"
(Kinship, law and the unexpectorg. Relatives are always a surprise. Cambridge
University Press, 2005, p. 161). Note-se que não há evidências
diretas de que a autora esteja aqui utilizando, nem sequer alusivamente, o
conceito deleuziano. Ainda assim, talvez se pudesse ver na primeira
multiplicidade de Strathern aquilo que Deleuze chamaria de uma multiplicidade
"falsa", molar ou arborescente, ao passo que a segunda seria uma multiplicidade
de tipo molecular e intensivo, "composta de partículas que não se dividem sem
mudar de natureza" (MP, pp. 46, 603). Strathern prossegue, sobre o contraste
que ela propõe entre as práticas de conhecimento melanésias e euro-americanas:
"Não estou comparando coisas comparáveis [like with like]. Com efeito". Com
efeito.
[56] C. Lévi-Strauss. Le totémisme aujourd'hui. Paris: Presses Universitaires
de France, 1962, p. 111.
[57] F. Gordon ("O sexo dos caracóis: sugestões para uma antropologia reversa,
disparativa e contra o Estado" In: http://abaete.wikia.com.), evocando G.
Simondon.
[58] O que seria, aliás, uma glosa aceitável da fórmula canônica do mito (Lévi-
Strauss. "La structure des mythes", 1958). A presença
recorrente desta figura sinóptica nas e além atesta que o estruturalismo, ao
contrário do que (se) pensa, não afirma realmente que todas as "diferenças que
fazem a diferença" cabem dentro das proporcionalidades reversíveis do esquema
totêmico.
[59] G. Tarde. Monadologie et sociologie. v. 1. In: uvres de Gabriel Tarde. Le
Plessis-Robinson: Institut Synthélabo, 1999 [1895], p. 69. Ver
também: G. Tarde. Monadologia e Sociologia. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
[60] Différence et répétition, pp. 104-5 n. 1, 264 n. 1; MP, pp. 267-71; GD. Le
pli. Leibniz et le baroque, p. 147.
[61] C. Kwa, op. cit., p. 26.
[62] G. Tarde, op. cit., pp. 58, 67.
[63] Idem, p. 43.
[64] Ver GD. Logique du sens, pp. 202-3. Do mesmo modo, na dialética do Mestre
e o Escravo é o escravo que é dialético, não o mestre (GD. Nietzsche et la
philosophie. Paris: PUF, 1962, p. 11.
[65] R. Wagner, The invention of culture, 1981, p. 20.
[66] Veja-se a sutil dobradura que esta idéia recebe das mãos de M. Strathern:
"o modo como cada um compreende o outro é comprometido pelo modo como cada um
imagina que o outro compreende, mas que não pode saber [como é]" (M. Strathern.
"On space and depth". In: J. Law e A. Mol (orgs.). Complexities: social studies
of knowledge practices. Durham e Londres: Duke University Press, 2002, p. 109). Agradeço a Antonia Walford a sugestão da passagem.
[67] F. Zourabichvili. Le vocabulaire de Deleuze, p. 79; grifo no original).
[68] F. Jameson. "Marxism and dualism in Deleuze". The South Atlantic
Quarterly, 96(3), pp. 393-416, 1997.
[69] Para uma interpretação mais interessante de Deleuze como filósofo da
"dualidade imediata ou não-dialética", ver L. Lawlor. "The beginnings of
thought: the fundamental experience in Derrida and Deleuze". In: P. Patton e J.
Protevi (orgs.). Between Deleuze and Derrida. Londres: Continuum, 2003.
[70] Assim se passa com a dualidade entre a arborescência e o rizoma ("não
estaríamos porém restaurando um simples dualismo ?" MP, p. 21), dois esquemas
que não cessam de interferir um no outro. Assim com os dois tipos de
multiplicidades, molares e moleculares, que se exercem sempre ao mesmo tempo e
em um mesmo agenciamento ' não há um dualismo de multiplicidades, mas apenas e
sempre "multiplicidades de multiplicidades" (idem, p. 47). Assim com a
distinção entre forma da expressão e forma do conteúdo, que não funda nem um
paralelismo nem uma representação entre ambas, mas "uma maneira pela qual as
expressões se inserem nos conteúdos [ ] onde os signos modificam [travaillent]
as coisas elas próprias, assim como as coisas se prolongam e se desdobram por
meio dos signos" (idem, p. 110). Assim com a oposição entre segmentar e
centralizado, que deve ser substituída por uma distinção entre duas
segmentaridades distintas mas inseparáveis, sempre imbricadas e justapostas
(idem, pp. 255, 259). Assim, enfim, com os espaços liso e estriado, cuja
diferença é dita ser complexa, tanto porque "os termos sucessivos das oposições
consideradas não coincidem completamente" (liso/ estriado não é exatamente a
mesma coisa que nômade/sedentário etc), como porque os dois espaços "não
existem de fato senão por meio de suas misturas entre si" (idem, p. 593). Em
suma, logo após distinguir dois pólos, processos ou tendências, a análise
deleuziana, de um lado, desdobra a polaridade em outras, embutidas
assimetricamente na primeira (produzindo assim uma "mistura" de jure), e, de
outro lado, indica a mistura de facto dos pólos iniciais. "E tudo isso ocorre
ao mesmo tempo" (idem, p. 273).
[71] MP, p. 31.
[72] Antropólogos são, em geral, muito adeptos desse tipo de desconstrução
sumária. Ver L. Rival "Trees, from symbols of life and regeneration to
political artefacts". In: L. Rival (org.). The social life of trees.
Anthropological perspectives on tree symbolism. Oxford: Berg, 1998, e A. Rumsey. "Trees, from symbols of life and regeneration to
political artefacts". In: L. Rival (org.). The social life of trees.
Anthropological perspectives on tree symbolism. Oxford: Berg, 2001, para dois exemplos em que se protesta contra uma suposta grande
divisão, em Mil platôs, entre O Ocidente = Arborescência e O Resto = Rizoma. Os
críticos mostram uma certa ingenuidade ao imaginar uma certa ingenuidade por
parte dos criticados, que sabiam perfeitamente bem o que (não) estavam fazendo:
"Estamos indo por um mau caminho, com todas essas distribuições geográficas. Um
impasse; tanto melhor" (MP, p. 30).
[73] Ou pela má, como no caso daqueles pensadores que crêem bastar chamar
alguém outro de dualista, ou de grande-divisor, para deixar eles mesmos de o
serem.
[74] Partial connections.
[75] "Uma alternativa, uma disjunção exclusiva, é determinada em relação a um
princípio que constitui, no entanto, os dois termos ou os dois subconjuntos, e
que entra ele próprio na alternativa (caso totalmente diferente do que se passa
quando a disjunção é inclusiva)" (AE, p. 95, conforme a tradução brasileira de
G. Lamazière). O padrão aparece cedo no corpus deleuziano. Veja-se o comentário
à divisão de Bergson entre duração e espaço: ela não pode ser definida
simplesmente como uma diferença de natureza, pois a diferença é antes entre a
duração, que suporta e transporta todas as diferenças de natureza, e o espaço,
que exibe apenas diferenças de grau. "Não há assim diferença de natureza entre
as duas metades da divisão: a diferença de natureza está inteiramente do lado
de uma delas" (GD. Le bergsonisme. Paris: PUF, 1966, p. 23).
[76] MP, pp. 263-4.
[77] Idem, pp. 59, 85, 111, 260, 629.
[78] (R. Wagner. The invention of culture, cap. 3) Wagner qualifica a relação
de produção recíproca entre convenção e invenção cultural de "dialética" (idem,
p. 52; o termo é amplamente utilizado pelo mesmo autor em Symbols that stand
for themselves. Chicago: University of Chicago Press, 1986), o
que pode confundir um leitor de Deleuze. Mas tal dialética, além de ser
explicitamente caracterizada de não-hegeliana, traz logo à mente a
pressuposição recíproca e a síntese disjuntiva: "uma tensão ou alternância
semelhante a um diálogo entre duas concepções ou pontos de vista que
simultaneamente se contradizem e se reforçam" (idem, The invention of culture,
p. 52). Uma dialética sem resolução nem conciliação, em suma.
[79] (Partial connections, p. 72). No modelo melanésio de parentesco e gênero,
"cada relação só pode provir da outra [ ] as relações conjugais e filiais são
metáforas uma da outra, e portanto uma fonte interna de reflexão" (M.
Strathern. "Same-sex and cross-sex relations: some internal comparisons". In:
T. Gregor e D. Tuzin (orgs.). Gender in Amazonia and Melanesia. An exploration
of the comparative method. Berkeley: University of California Press, 2001, p.
240). Nesse mesmo artigo, achamos a observação: "as relações
de sexo oposto ao mesmo tempo alternam com as relações de mesmo sexo e contêm
em si uma premissa intrínseca de alternância" (idem, p. 227 ) ' um claro
exemplo de pressuposição recíproca assimétrica. Em outra direção, observe-se
que tratamento geral das dualidades analíticas (em que cada termo é uma versão
do outro) por Marilyn Strathern, bem como sua concepção da troca melanésia como
troca de perspectivas, poderiam ser comparados com proveito ao perspectivismo
deleuziano.
[80] (MD, p. 21; grifos originais.) Na abordagem do contraste liso/estriado, os
autores insistem no mesmo ponto de método: embora em pressuposição recíproca,
"os dois espaços [ ] não se comunicam entre si da mesma maneira [ ] os
princípios da mistura [ ] não são de forma alguma simétricos"; a passagem do
liso ao estriado e vice-versa são "movimentos completamente diferentes" (idem,
p. 593).
[81] Idem, p. 334.
[82] Idem, pp. 21-2.
[83] GD. Différence et répétition, pp. 302 e ss.
[84] MP, pp. 31, 259-60.
[85] Idem, p. 537.
[86] DG. Qu'est-ce que la philosophie?, p. 147.
[87] The invention of culture, pp. 51-3, 116, 121-2.
[88] Idem, p. 51.
[89] M. Strathern. The gender of the gift: problems with women and problems
with society in Melanesia, pp. 16, 136, 343.
[90] Idem, p. 309.
[91] Essa mesma estratégia de evocar um dualismo apenas para deslocar outro
também é empregada por Latour, por exemplo em seu livreto contra-crítico sobre
os faitiches: "O duplo repertório dos modernos não reside em sua distinção
entre fatos e fetiches, mas na [ ] distinção, mais sutil, entre a separação de
fatos e de fetiches que eles fazem na teoria, por um lado, e a passagem para
uma prática que difere totalmente disso, por outro lado (B. Latour. Petite
réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Le Plessis-Robinson: Les
Empêcheurs de Penser en Rond, 1996, pp. 42-3). Ou, mais
adiante: "A escolha proposta pelos modernos não é, portanto, entre realismo e
construtivismo, mas entre essa própria escolha e a existência prática, a qual
não compreende nem a formulação da escolha nem sua importância" (idem, p. 47).
Isso poderia valer como ilustração do conceito deleuziano da síntese
disjuntiva: a meta-relação entre as disjunções exclusiva ("a escolha") e
inclusiva é, ela própria, uma disjunção exclusiva, do ponto de vista da
primeira ("é preciso escolher!"), e inclusiva, do ponto de vista da segunda
("do que você está falando?").
[92] C. B. Jensen. "A nonhumanist disposition: on performativity, practical
ontology, and intervention". Configurations, 12, pp. 229-61, 2004.
[93] L. Dumont. Introduction à deux théories d'anthropologie sociale. Groupes
de filiation et alliance de mariage. Paris: Mouton, 1971.
[94] A realidade (teórica) do antagonismo entre essas duas concepções de
parentesco, a "teoria dos grupos de descendência" de origem britânica e a
"teoria da aliança de casamento" de origem francesa, é algo discutível (D.
Schneider. "Some muddles in the models: or, how the system really works". In:
M. Banton (org.). The relevance of models for social anthropology. Londres:
Tavistock 1965; A critique of the study of kinship. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1984).
[95] M. Strathern. "Parts and wholes: refiguring relationships in a post-plural
world". In: Reproducing the future: anthropology, kinship, and the new
reproductive technologies. Nova York: Routledge, 1992, p. 101.
[96] A biblioteca etnológica de Deleuze e Guattari possui uma fornida seção
"África", o que reflete as condições do meio antropológico francês de então,
quando o africanismo era a subespecialidade de longe a mais difundida. Era
entre os africanistas, além disso, que se achavam os principais focos de
oposição ao estruturalismo lévi-straussiano.
[97]Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2006.
[98] F. Zourabichvili. "Deleuze et la question de la littéralité", 2004 (MS
inédito).
[99] R. Wagner "Incest and identity: a critique and theory on the subject of
exogamy and incest prohibition". Man, 7(4), pp. 601-13, 1972. "Se a relação é parte da definição de uma categoria [ ] então um
enunciado de proibição de incesto relativo a categorias é a mais pura e trivial
das tautologias [ ]" (idem, p. 603).
[100] AE, p. 190. Ou ainda: "Na verdade, as pessoas globais ' a própria forma
das pessoas ' não preexistem aos interditos que pesam sobre elas e as
constituem" (idem, p. 84). Ver A. Adler e M.Cartry. "La transgression et sa
dérision".L'Homme, 11(3), p. 7, 1971, para um provável fonte
do argumento.
[101] Lévi-Strauss. Les structures élémentaires de la parenté. La Haye: Mouton,
1967.
[102] AE, pp. 224 e ss.
[103] Ela já aparece no estudo sobre Nietzsche; cf. GD. Nietzsche et la
philosophie, p. 155.
[104] MP, p. 324.
[105] O contraste Mauss/Nietzsche feito no Anti-Édipo remete a um complexo pano
de fundo polêmico. Ele envolve os nomes de Hegel, Kojève, Bataille, o Colégio
de Sociologia, e, mais proximamente, os de Lévi-Strauss, Lacan e Baudrillard '
entre outros. A "economia generalizada" derivada por Bataille de uma leitura
nietzschiana do "Ensaio sobre o dom" não é praticamente mencionada no Anti-
Édipo (mas ver op.cit., p. 225). O desprezo de Deleuze e Guattari pela
categoria batailleana da transgressão (a observação é de Lyotard) talvez
explique parcialmente este quase-silêncio. No ensaio sobre Klossowski incluído
naLógica do sentido, porém, Deleuze desenvolve um contraste entre troca,
generalidade (equivalência) e repetição falsa, de um lado, e dom, singularidade
(diferença) e repetição autêntica, do outro lado. Tal contraste se antecipa as
teses do Anti-Édipo a respeito da troca (ele também é evocado na primeira
página da Introdução de Diferença e repetição ' ed. cit, p. 7), está de certa e
ambígua forma conectado, via Klossowski, a Bataille: Deleuze escreve que
Théodore, o herói de um dos romances de Klossowki, "sabe que a verdadeira
repetição reside no dom, na economia do dom que se opõe à economia mercantil da
troca ( homenagem a Georges Bataille)" (GD. Logique du sens, p. 334;
reticências no original).
[106] Ver AE, pp. 87-9, 129-34. No prefácio à edição italiana de Mil platôs, os
autores comentam: "Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana [ ] (DG. "Préface pour
l'édition italienne de Mille Plateaux", p. 289).
[107] Nossa espécie como o análogo biológico do ocidente antropológico, as
outras espécies e os outros povos confundidos em uma comum alteridade
privativa? Opção pelo colonialismo cosmológico. Perguntar-se sobre o que "nos"
faz diferentes dos outros ' animais, povos, tanto faz ' já é uma resposta.
[108] AE, pp. 85-6.
[109] Idem, pp. 217e ss.
[110] Idem, p. 10, eu grifo.
[111] Idem, p. 171.
[112] Idem, p. 191.
[113] Idem, p. 181. Note-se que crítica deleuziana ao extensionismo genealógico
não implica um sociologismo anti-biológico: "É inútil dizer que a filiação é
social e não biológica ' ela é necessariamente bio-social, na medida em que se
inscreve no ovo cósmico do corpo pleno da terra" (idem, p. 181). Mas é
igualmente desnecessário lembrar que esse ovo biocósmico é um personagem
completamente diferente, por exemplo, do gene egoísta.
[114] M. Griaule e G. Dieterlen. Le renard pâle. Paris: Institut d'Ethnologie,
1965.
[115] O artigo de A. Adler e M. Cartry (op. cit.) sobre o mito Dogon está na
origem da importância conferida aos materiais Dogon; ele é citado em momentos
cruciais da análise. Esses dois antropólogos, junto com A. Zempléni, leram
atentamente o rascunho do terceiro capítulo do Anti-Édipo (cf. S. Nadaud. "Les
amours d'une guêpe et d'une orchidée". In: F. Guattari.Écrits pour l'Anti-dipe
(textos organizados por S. Nadaud). Paris: Éditions Lignes et Manifestes, 2004,
pp. 20-1). Ao mesmo tempo, as idéias de Deleuze e Guattari
tiveram uma influência determinante sobre o estudo de Adler e Cartry (op. cit.,
p. 37 n. 1).
[116] AE, pp. 67, 99, 134.
[117] Idem, pp. 181-95.
[118] AE, p. 185.
[119] No sentido de MP, pp. 147 e ss.
[120] M. Detienne. Les maîtres de vérité en Grèce archaïque. Paris: François
Maspero, 1981 [1967].
[121] Ver M. Richir ("Qu'est-ce qu'un dieu? Mythologie et question de la
pensée". In: F.-W. Schelling. Philosophie de la mythologie. Paris: Jerome
Millon, 1994), para algumas sugestões interessantes. O
conhecido debate entre Lévi-Strauss e Ricur a respeito da análise estrutural
dos mitos se radica nessa diferença.
[122] M. Fortes. Kinship and the social order: the legacy of Lewis Henry
Morgan. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1969, e Rules and
the emergence of society. Londres: Royal Anthropological Institute of Great
Britain and Ireland, 1983.
[123] AE, p. 183.
[124] Lévi-Strauss. Les structures élémentaires de la parenté, pp. 151-4.
[125] AE, p. 184. Ver também: "nas estruturas de parentesco, é difícil evitar
proceder como se as alianças derivassem das linhas de filiação e das relações
entre elas, embora sejam as alianças laterais e os blocos de dívida que
condicionam as filiações estendidas do sistema em extensão, e não o contrário"
(idem, p. 220). Este é um raciocínio estruturalista típico.
[126] Idem, p. 172.
[127] Idem, p. 196.
[128] Idem, p. 185.
[129] Idem, p. 188.
[130] Idem, p. 185.
[131] Lévi-Strauss. Les structures élémentaires de la parenté, pp. 569-70,
grifo no original.
[132] C. Lévi-Strauss e D. Eribon. De près et de loin. Paris: Odile Jacob,
1988, p. 193.
[133] MP, p. 182.
[134] Idem, p. 183.
[135] E. Viveiros de Castro. "Perspectival anthropology and the method of
controlled equivocation". Tipití, 2(1), p. 16, 2004.
[136] A teoria lévi-straussiana da troca matrimonial continua sendo, no final
das contas, uma construção antropológica muito mais interessante que a doutrina
juralista dos grupos de filiação. Em certo sentido, As estruturas elementares
do parentesco foram o primeiro Anti-Édipo, ao marcarem uma ruptura radical com
a imagem do parentesco centrada na família e dominada pela parentalidade; ou,
para dizê-lo diferentemente, a relação do Anti-Édipo com As estruturas
elementares é análoga à relação deste último livro com Totem e tabu.
[137] AE, p. 90.
[138] M. Strathern. The gender of the gift: problems with women and problems
with society in Melanesia, 1988, e "Same-sex and cross-sex
relations: some internal comparisons", 2001.
[139] Veja-se a análise que faz R. Wagner ("Analogic kinship: a Daribi
example". American Ethnologist, 4(4), pp. 623-42, 1977) da
troca matrimonial para os Daribi melanésios: o clã patrilinear doador de
esposas vê as mulheres que cede como um fluxo eferente de sua própria
substância masculina; mas o clã receptor verá o fluxo aferente como constituído
de substância feminina; quando as prestações matrimoniais fazem o caminho
inverso, a perspectiva se inverte. O autor conclui: "Aquilo que se poderia
descrever como troca, ou reciprocidade, é, na verdade, uma [ ] imbricação de
duas visões de uma só coisa" (idem, p. 628). E ver A. Gell, "Strathernograms,
or the semiotics of mixed metaphors" (In: The art of anthropology: essays and
diagrams. Londres: Athlone, pp. 67-8, 1999), para a exposição
detalhada dessa idéia no vocabulário analítico de M. Strathern, autora que a
levou imensamente adiante da formulação original, ao estabelecer toda troca,
nas "economias do dom", como uma troca de perspectivas.
[140] AE, p. 82.
[141] AE, p. 186.
[142] DG. Kafka ' pour une littérature mineure. Paris: Minuit, 1975.
[143] Le totémisme aujourd'hui. Paris: PUF, 1962, e La pensée
sauvage. Paris: Plon, 1962.
[144] Recorde-se, no entanto, que, além da importância que Lévi-Strauss ("La
structure des mythes", 1958, e La potière jalouse, 1985) atribui à "fórmula
canônica do mito" ' cifra misteriosa, intensiva e metamórfica (morfodinâmica:
J. Petitot, "Approche morphodynamique de la formule canonique du mythe".
L'Homme, 106-107, pp. 24-50, 1988) ', o fundador do
estruturalismo antropológico é o primeiro a reconhecer as limitações do
vocabulário da lógica extensional para dar conta das transformações que ocorrem
em/entre os mitos (p.ex. L.-Strauss. "L'homme nu". Mythologiques IV. Paris:
Plon,. 1971, pp. 567-8; Histoire de Lynx. Paris: Plon, 1991,
p. 249). Ademais, se é possível dizer que as Estruturas
elementares tratam de objetos que se parecem com, justamente, estruturas, as
análises míticas consolidadas nas Mitológicas ' nas quais Lévi-Strauss
desenvolve toda uma "teoria dos códigos primitivos" (AE, p. 219) ' e nos livros
subseqüentes parecem-se muitíssimo mais com mapas rizomáticos do que com
decalques estruturais. As relações que constituem as narrativas ameríndias,
antes que formando totalidades combinatórias em distribuição lógica discreta,
em variação concomitante e tensão dialética com os realia socioetnográficos,
instanciam a um ponto que se poderia dizer de exemplaridade os princípios
rizomáticos de "conexão e heterogeneidade", "multiplicidade", "ruptura
assignificante" e "cartografia" que Deleuze e Guattari contrapõem aos modelos
estruturais (MP, pp. 13-21). Creio que é preciso examinar de mais perto essa
afinidade entre o estruturalismo lévi-straussiano tardio e a analítica
diferencial deleuziana (em P. Maniglier. La vie énigmatiques des signes.
Saussure et la naissance du structuralisme, encontram-se alguns elementos
essenciais para tanto).
[145] M. DeLanda. Intensive science and virtual philosophy, p. 75.
[146] MP, p. 305.
[147] Idem, p. 290.
[148] Idem, p. 292.
[149] M. DeLanda. "1000 Years of War: CTheory interview with Manuel DeLanda
(with D. Ihde, C. B. Jensen, J. J. Jorgensen, S. Mallavarapu, E. Mendieta, J.
Mix, J. Protevi, E. Selinger)". CTheory, a127. <http://www.ctheory.net/
articles.aspx?id=383>, 2003, p. 15.
[150] MP, pp. 294, 296.
[151] Idem, pp. 295-6.
[152] Idem.
[153] Idem, p. 36.
[154] Idem, p. 291.
[155] MP, p. 291; grifo no original.
[156] Idem, p. 341; grifos suprimidos. Os "n sexos" seriam, a rigor, "n-
1 sexos" ' a unidade representada pelo sexo masculino devendo ser subtraída
para que a sexualidade possa atingir o estado de multiplicidade ', assim como
as n espécies dos devires-animais são na verdade n-1 espécies (1 = H. sapiens).
[157] Idem, p. 293.
[158] Idem, p. 295.
[159] O incesto (ou o que é a mesma coisa, sua proibição), por sua vez, é
apenas o efeito retroativo da aliança recalcante sobre a filiação germinal
recalcada (AE, pp. 193-5).
[160] GD. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993, p. 100.
[161] Ver AE, p. 131.
[162] Contra-social na medida, dir-se-ia, em que a socialidade humana é
necessariamente contra-intensiva, uma vez que gerada como extensivização da
"energia primária da ordem intensiva".
[163] MP, p. 303 [n. 15].
[164] Idem, p. 301.
[165] A referência é a "Rethinking anthropology" (In:Rethinking anthropology.
Londres: Athlone, 1961, p. 20), em que E. R. Leach observa a
generalidade de uma noção de "influência metafísica" que se exerceria entre
aliados por casamento.
[166] M. Goldman. "Formas do saber e modos do ser: observações sobre
multiplicidade e ontologia no candomblé". Religião e Sociedade, 25 (2), 2005, e E. Viveiros de Castro. "The gift and the given: three nano-
essays on kinship and magic". In: S. Bamford e J. Leach (orgs.).Genealogy
beyond kinship: sequence, transmission, and essence in ethnography and social
theory. Oxford: Berghahn Books, 2007 (no prelo).
[167] AE, p. 219; grifos no original.
[168] Sobre troca e perspectiva, ver M. Strathern. The gender of the gift:
problems with women and problems with society in Melanesia, pp. 230, 271, 327;
idem, Partial connections, passim; idem, After nature: English kinship in the
late twentieth century, pp. 96-100; idem, Property, substance and effect:
anthropological essays on persons and things, 1999, pp. 249-56; N. Munn. The fame of Gawa: a symbolic study of value transformation in
a Massim (Papua New Guinea) society. Durham: Duke University Press,1986, p. 16; C. Gregory. Gifts and commodities. Londres: Academic Press,
1982, p. 19. Sobre a noção de dupla captura, ver G. Deleuze e
C. Parnet. Dialogues. Paris: Flammarion, 1996, pp. 7-9; I.
Stengers. Cosmopolitiques, tome 1. La guerre des sciences. Paris: La
Découverte/Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1996:, pp. 64, n. 11.
[169] "A linguagem pode trabalhar contra aquele que a usa. [ ] A noção de
socialidade é freqüentemente entendida como se implicasse sociabilidade, a
reciprocidade, como se significasse altruísmo, e o fato da relação,
solidariedade [ ]" (M. Strathern. Property, substance and effect:
anthropological essays on persons and things, 1999, p. 18). A
propósito, "ação sobre uma ação" é a definição (nietzschiana) de poder para
Foucault; "reação a uma reação" é uma das definições propostas por Bateson para
seu conceito de "cismogênese". Quanto ao roubo que é a vida, essa é de A. N.
Whitehead: "A vida é roubo, e o ladrão requer uma justificativa" (apud I.
Stengers. Penser avec Whitehead. Paris: Seuil, p. 349). A
outra todos sabem de quem é.
[170] E. Viveiros de Castro. "GUT feelings about Amazonia: potential affinity
and the construction of sociality". In: L. Rival e N. Whitehead (orgs.). Beyond
the visible and the material: the amerindianization of society in the work of
Peter Rivière. Oxford: Oxford University Press, 2001; "O
problema da afinidade na Amazônia". In: A inconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002; "The gift and the given: three nano-essays on kinship and magic",
2007.
[171] A evitação do nome ou da pessoa do afim, sinal de um respeito hiperbólico
para com ele, é o outro modo usual de lidar com a delicadeza da afinidade.
Forma alternativa de invibilização, então; pois o respeito exagerado faz do
afim menos um antiparente ' o que ele, a vários títulos, é (mesmo quando não é)
' que um super-parente.
[172] Individual and society in Guiana: a comparative study of Amerindian
social organization. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 70.
[173] O problema liminar colocado por qualquer tentativa de imaginar um
equivalente indígena para nossa "filosofia" é o de pensar um mundo constituído
pelo ponto de vista do Inimigo (E. Viveiros de Castro. From the enemy's point
of view. Humanity and divinity in an Amazonian society. Chicago: University of
Chicago Press, 1992) como determinação transcendental. Um
mundo onde a "inimizade" não é um mero complemento privativo da Amizade, nem
uma simples facticidade negativa, mas uma estrutura de direito do pensamento,
uma positividade, que define uma outra relação com o saber, e um outro regime
regime de verdade ("Do canibalismo como estrutura epistemológica".)
[174] P. Clastres. "Archéologie de la violence: la guerre dans les sociétes
primitives". Libre, 1, pp. 137-73, 1977.
[175] Lévi-Strauss. Histoire de Lynx, p. 295.
[176] Idem, L'homme nu. Mythologiques IV, pp. 503 e ss.
[177] Ver R. Wagner, Lethal speech. Daribi myth as symbolic obviation. Ithaca e
Londres: Cornell University Press, 1978.
[178] Os mitos ameríndios, naturalmente, também contêm motivos "edipianos",
figuras paternas, conflitos entre pais e filhos. Lévi-Strauss aludiu mesmo, não
sem ironia, a um "Totem e tabu jívaro" (La potière jalouse, cap. XVI). Mas é
bastante claro que, para ele, a mitologia do continente, em particular aquela
que trata da origem da cultura, gira em torno da afinidade e da troca, não da
parentalidade e da procriação.
[179] Há mitologias amazônicas que projetam um cenário cósmico, ou, antes, pré-
cósmico, bastante similar à situação de "filiação intensiva" discernida por
Deleuze e Guattari no mito dos Dogon. Os mitos do povos Tukano e Aruaque do
noroeste amazônico, em particular, devem ser mencionados (S. Hugh-Jones. The
palm and the pleiades. Initiation and cosmology in North-West Amazonia.
Cambridge: Cambridge University Press, 1979; "Clear descent or
ambiguous houses? A re-examination of Tukanoan social organization". L'Homme,
126-8, pp. 95-120, 1993), ainda que, como argumenta G.
Andrello (Cidade do índio. Transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo:
Edunesp/ISA/NuTI, 2006), eles pertençam ao mesmo metaesquema
de afinidade intensiva que constitui o estado basal ' o plano de imanência ' do
pré-cosmos amazônico. A questão, contas feitas, parece-me menos a de saber se
há uma ou duas alianças, ou uma ou duas filiações, ou se os mitos amazônicos
reconhecem ou não uma filiação primordial etc., que a de determinar de onde
provém a intensidade. A questão é a de saber, enfim, se o exterior nasce do
interior (se a aliança descende da filiação) ou o contrário, se o interior é a
repetição do exterior.
[180] E. Viveiros de Castro, "O problema da afinidade na Amazônia".
[181] O Anti-Édipo repete o clichê histórico-materialista dos anos 1970 sobre
uma suposta "redução da reprodução social à esfera da circulação" que oneraria
a etnologia de corte maussiano e estruturalista (AE, p. 222).
[182] AE, pp. 33 e ss.
[183] GD. "Cours Vincennes 28/5/73". In: http://www.webdeleuze.com). Ver J.
Donzelot. "An anti-sociology", F. Lyotard. "Energumen capitalism". Semiotext
(e), II(3), pp. 11-26, 1977, e F. Zourabichvili.Le vocabulaire
de Deleuze, pp. 48-51, para avaliações da relação de Anti-Édipo e de Mil platôs
com a conceitualidade marxista.
[184] F. Lyotard, op. cit., p. 15.
[185] Se a expressão 'diferença de intensidade' é uma tautologia (GD.
Différence et repétition, p. 287), então "devir-outro" é uma outra, ou talvez a
mesma, tautologia.