Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal2. Consiste num sistema
de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as
primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas
radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o "deste
lado da linha" e o "do outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado
da linha" desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido
como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser
relevante ou compreensível3. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é
excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria
concepção de inclusão considera como o "outro". A característica fundamental do
pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha.
O universo "deste lado da linha" só prevalece na medida em que esgota o campo
da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência,
invisibilidade e ausência não-dialética.
Para dar um exemplo baseado em meu próprio trabalho, venho caracterizando a
modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a
emancipação sociais4. Essa distinção visível fundamenta todos os conflitos
modernos, tanto em termos de fatos substantivos como de procedimentos. Mas a
essa distinção subjaz uma outra, invisível, na qual a anterior se funda: a
distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. De
fato, a dicotomia "regulação/emancipação" se aplica apenas a sociedades
metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territórios coloniais, aos quais
se aplica a dicotomia "apropriação/violência", por sua vez inconcebível de
aplicar a este lado da linha. Contudo, a inaplicabilidade do paradigma
"regulação/emancipação" aos territórios coloniais não comprometeu sua
universalidade. O pensamento abissal moderno se destaca pela capacidade de
produzir e radicalizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções
e por mais dramáticas que possam ser as conseqüências de estar em um ou outro
de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combinam para tornar
invisível a linha abissal na qual estão fundadas. As distinções intensamente
visíveis que estruturam a realidade social deste lado da linha se baseiam na
invisibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha.
O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações mais cabais do
pensamento abissal. Dão-nos conta das duas principais linhas abissais globais
dos tempos modernos, as quais, embora distintas e operando de modo
diferenciado, são interdependentes. Cada uma cria um subsistema de distinções
visíveis e invisíveis de tal modo que as últimas se tornam o fundamento das
primeiras. No campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão
do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciência, em
detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. Esse
monopólio está no cerne da disputa epistemológica moderna entre as formas de
verdade científicas e não-científicas. Já que a validade universal da verdade
científica sempre é reconhecidamente muito relativa pois só pode ser
estabelecida em relação a certos tipos de objetos em determinadas
circunstâncias e segundo determinados métodos , de que modo ela se relaciona
com outras verdades possíveis que até podem reclamar um estatuto superior mas
que não podem ser estabelecidas conforme o método científico, como é o caso da
razão como verdade filosófica e da fé como verdade religiosa5? Essas tensões
entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram a se
tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugar deste lado
da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento
que não se encaixam em nenhuma dessas modalidades. Refiro-me aos conhecimentos
populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que
desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem
para além do universo do verdadeiro e do falso. É inimaginável aplicar-lhes não
só a distinção científica entre verdadeiro e falso, mas também as verdades
inverificáveis da filosofia e da teologia, que constituem o outro conhecimento
aceitável deste lado da linha6. Do outro lado não há conhecimento real; existem
crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos,
que na melhor das hipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de
investigações científicas. Assim, a linha visível que separa a ciência de seus
"outros" modernos está assente na linha abissal invisível que separa, de um
lado, ciência, filosofia e teologia e, de outro, conhecimentos tornados
incomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem nem aos critérios
científicos de verdade nem aos critérios dos conhecimentos reconhecidos como
alternativos, da filosofia e da teologia.
No campo do direito moderno, este lado da linha é determinado por aquilo que se
reputa como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou o
direito internacional. Distinguidos como as duas únicas formas de existência
relevantes perante a lei, o legal e o ilegal acabam por constituir-se numa
distinção universal. Tal distinção central deixa de fora todo um território
social onde essa dicotomia seria impensável como princípio organizador, isto é,
o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e
ilegal de acordo com direitos não reconhecidos oficialmente7. Assim, a linha
abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito
fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha
organiza o domínio do direito.
Em cada um dos dois grandes domínios a ciência e o direito as divisões
levadas a cabo pelas linhas globais são abissais no sentido de que eliminam
definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro lado da linha.
Essa negação radical de co-presença fundamenta a afirmação da diferença radical
que deste lado da linha separa o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O
outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas,
tornadas invisíveis, assim como seus autores, e sem uma localização territorial
fixa. Na verdade, como já apontei, existiu originalmente uma localização
territorial, a qual coincidiu historicamente com um território social
específico: a zona colonial8. Tudo o que não pudesse ser pensado em termos de
verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal, ocorria na zona colonial. A esse
respeito, o direito moderno parece ter alguma precedência histórica sobre a
ciência na criação do pensamento abissal. De fato, foi a linha global que
separava o Velho Mundo do Novo Mundo que tornou possível a emergência, deste
lado da linha, do direito moderno e em particular do direito internacional
moderno9.
A primeira linha global moderna foi provavelmente a do Tratado de Tordesilhas
entre Portugal e Espanha (1494)10, mas as verdadeiras linhas abissais emergem
em meados do século XVI com as amity lines ("linhas de amizade")11. Seu caráter
abissal se manifesta no elaborado trabalho cartográfico investido em sua
definição, na extrema precisão exigida a cartógrafos, fabricantes de globos
terrestres e pilotos, no policiamento vigilante e nas duras punições às
violações. Na sua constituição moderna, o colonial representa não o legal ou o
ilegal, mas o sem lei. Uma máxima que então se populariza, "Não há pecados ao
sul do Equador", ecoa na famosa passagem dos Pensamentos de Pascal, escritos em
meados do século XVII: "Três graus de latitude subvertem toda a jurisprudência.
Um meridiano determina a verdade [...]. Singular justiça que um rio delimita!
Verdade aquém dos Pirineus, errado além"12. De meados do século XVI em diante,
o debate jurídico e político entre os Estados europeus acerca do Novo Mundo
concentra-se na linha global, isto é, na determinação do colonial, e não na
ordenação interna do colonial. O colonial é o estado de natureza, onde as
instituições da sociedade civil não têm lugar. Hobbes refere-se explicitamente
aos "povos selvagens em muitos lugares da América" como exemplares do estado de
natureza, e Locke pensa da mesma forma ao escrever em Sobre o governo civil:
"No princípio todo o mundo foi América"13.
O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as concepções
modernas de conhecimento e direito. As teorias do contrato social dos séculos
XVII e XVIII são tão importantes por aquilo que dizem como por aquilo que
silenciam. O que dizem é que os indivíduos modernos, ou seja, os homens
metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado de natureza para
formar a sociedade civil14. O que silenciam é que com isso se cria uma vasta
região do mundo em estado de natureza um estado de natureza a que são
condenados milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidades de escapar por
via da criação de uma sociedade civil. A modernidade ocidental, em vez de
significar o abandono do estado de natureza e a passagem à sociedade civil,
significa a coexistência de sociedade civil e estado de natureza separados por
uma linha abissal com base na qual o olhar hegemônico, localizado na sociedade
civil, deixa de ver e declara efetivamente como não-existente o estado de
natureza. O presente que vai sendo criado do outro lado da linha é tornado
invisível ao ser reconceitualizado como o passado irreversível deste lado da
linha. O contato hegemônico converte simultaneidade em não-contemporaneidade,
inventando passados para dar lugar a um futuro único e homogêneo. Assim, o fato
de que os princípios legais vigentes na sociedade civil deste lado da linha não
se aplicam ao outro lado não compromete sua universalidade.
A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimento moderno. Mais uma
vez, a zona colonial é por excelência o universo das crenças e dos
comportamentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser considerados
como conhecimento e por isso estão para além do verdadeiro e do falso. O outro
lado da linha alberga apenas práticas mágicas ou idolátricas, cuja completa
estranheza conduziu à própria negação da natureza humana de seus agentes. Com
base nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade humana, os
humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os selvagens eram
subumanos. A questão era: os índios têm alma? Quando o papa Paulo III respondeu
afirmativamente em sua bula Sublimis Deus, de 1537, fê-lo concebendo a alma dos
povos selvagens como um receptáculo vazio, uma anima nullius, muito semelhante
à terra nullius15, o conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a
ocupação dos territórios indígenas. Com base nessas concepções abissais de
epistemologia e legalidade, a universalidade da tensão entre regulação e
emancipação, aplicada a este lado da linha, não entra em contradição com a
tensão entre apropriação e violência, aplicada ao outro lado da linha.
A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhas abissais
jurídica e epistemológica, mas em geral a apropriação envolve incorporação,
cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física,
material, cultural e humana. Na prática, é profunda a ligação entre a
apropriação e a violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde
o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias locais como
instrumentos de conversão até a pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a
biodiversidade, ao passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso
das línguas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cristãos, a
conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prática de todo
tipo de discriminação cultural e racial.
No tocante ao direito, a tensão entre apropriação e violência é particularmente
complexa em virtude de sua relação direta com a extração de valor: tráfico de
escravos e trabalho forçado, uso manipulador do direito e das autoridades
tradicionais por meio do governo indireto (indirect rule), pilhagem de recursos
naturais, deslocação maciça de populações, guerras e tratados desiguais,
diferentes formas de apartheid e assimilação forçada etc. Enquanto a lógica da
regulação/emancipação é impensável sem a distinção matricial entre o direito
das pessoas e o direito das coisas, a lógica da apropriação/violência reconhece
apenas o direito das coisas, sejam elas humanas ou não. A versão extrema desse
tipo de direito, irreconhecível deste lado da linha, é o direito de propriedade
pessoal do Estado Livre do Congo pelo rei Leopoldo II da Bélgica [a partir de
1885]16.
Existe portanto uma cartografia moderna dual nos âmbitos epistemológico e
jurídico. A profunda dualidade do pensamento abissal e a incomensurabilidade
entre os termos da dualidade foram implementadas por meio das poderosas bases
institucionais universidades, centros de pesquisa, escolas de direito e
profissões jurídicas e das sofisticadas linguagens técnicas da ciência e da
jurisprudência. O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para
além da legalidade e da ilegalidade e para além do verdade e da falsidade.
Juntas, essas formas de negação radical produzem uma ausência radical: a
ausência de humanidade, a subumanidade moderna. Assim, a exclusão se torna
simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres subumanos não são
considerados sequer candidatos à inclusão social (a suposta exterioridade do
outro lado da linha é na verdade a conseqüência de seu pertencimento ao
pensamento abissal como fundação e como negação da fundação). A humanidade
moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna17. A negação de uma parte
da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para que a
outra parte da humanidade se afirme como universal (e essa negação fundamental
permite, por um lado, que tudo o que é possível se transforme na possibilidade
de tudo e, por outro, que a criatividade do pensamento abissal banalize
facilmente o preço da sua destrutividade).
Meu argumento é que essa realidade é tão verdadeira hoje quanto era no período
colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas
abissais que separam o mundo humano do mundo subumano, de tal modo que
princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. As
colônias representam um modelo de exclusão radical que permanece no pensamento
e nas práticas modernas ocidentais tal como no ciclo colonial. Hoje, como
então, a criação e a negação do outro lado da linha fazem parte de princípios e
práticas hegemônicos. Atualmente, Guantánamo representa uma das manifestações
mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da criação do outro lado da
fratura como um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço
impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia18.
Contudo, seria um erro considerá-la exceção. Existem muitas Guantánamos, desde
o Iraque até a Palestina e Darfur. Mais do que isso, existem milhões de
Guantánamos nas discriminações sexuais e raciais, quer na esfera pública, quer
na privada: nas zonas selvagens das megacidades, nos guetos, nas prisões, nas
novas formas de escravidão, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho
infantil, na exploração da prostituição.
Neste artigo, começo por argumentar que a tensão entre regulação e emancipação
continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violência, e de tal
maneira que a universalidade da primeira tensão não é questionada pela
existência da segunda. Em seguida, sustento que as linhas abissais ainda
estruturam o conhecimento e o direito modernos e são constitutivas das relações
e interações políticas e culturais que o Ocidente protagoniza no interior do
sistema-mundo. Em suma, meu argumento é o de que a cartografia metafórica das
linhas globais sobreviveu à cartografia literal das linhas que separavam o
Velho do Novo Mundo. A injustiça social global está assim intimamente ligada à
injustiça cognitiva global, de modo que a luta pela justiça social global
também deve ser uma luta pela justiça cognitiva global. Para ser bem-sucedida,
essa luta exige um novo pensamento um pensamento pós-abissal, cujas
características apresento na parte final do artigo.
A DIVISÃO ABISSAL ENTRE REGULAÇÃO/EMANCIPAÇÃO E APROPRIAÇÃO/VIOLÊNCIA
A permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o período moderno
não significa que elas tenham se mantido fixas, já que historicamente sofreram
deslocamentos. No entanto, em cada momento histórico elas são fixas e sua
posição é fortemente vigiada e preservada, assim como sucedia com as "linhas de
amizade". Nos últimos sessenta anos essas linhas sofreram dois grandes abalos.
O primeiro teve lugar com as lutas anticoloniais e os processos de
independência das antigas colônias19. O outro lado da linha sublevou-se contra
a exclusão radical à medida que os povos que haviam sido sujeitos ao paradigma
da apropriação/violência se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no
paradigma da regulação/emancipação20 . Durante algum tempo o paradigma da
apropriação/violência parecia estar chegando ao fim, bem como a divisão abissal
entre este lado da linha e o outro lado da linha. Os deslocamentos das linhas
globais epistemológica e jurídica pareciam convergir para o encolhimento e
finalmente para a eliminação do outro lado da linha, mas não foi isso o que
aconteceu, como mostram a teoria da dependência, a teoria do sistema-mundo
moderno e os estudos pós-coloniais21.
O segundo abalo das linhas abissais no qual concentro minha atenção neste
texto vem ocorrendo desde os anos 1970 e segue na direção oposta. Desta feita,
o movimento das linhas globais se dá de tal forma que o outro lado da linha
parece estar se expandindo enquanto este lado da linha parece se encolher. A
lógica da apropriação/violência passa a ganhar força em detrimento da lógica da
regulação/emancipação numa extensão tal que o domínio desta última não só se
encolhe, como também se contamina internamente pela primeira. A complexidade
desse movimento nos é difícil de divisar se não conseguimos nos abstrair do
fato de que o estamos olhando desde este lado da linha. Para captar sua
totalidade é necessário um grande esforço de descentramento, e nenhum estudioso
pode fazê-lo sozinho, como indivíduo. Com base num esforço coletivo para
desenvolver uma epistemologia das regiões periféricas e semiperiféricas do
sistema-mundo22, argumento que esse movimento é composto de um movimento
principal, que designo como "regresso do colonial e do colonizador", e por um
contramovimento que designo como "cosmopolitismo subalterno".
REGRESSO DO COLONIAL E DO COLONIZADOR Nesse movimento, o "colonial" é uma
metáfora daqueles que entendem que suas experiências de vida ocorrem do outro
lado da linha e se rebelam contra isso. O regresso do colonial é a resposta
abissal àquilo que é percebido como uma intromissão ameaçadora do colonial nas
sociedades metropolitanas. Esse regresso assume três formas principais: a do
terrorista, a do imigrante indocumentado e a do refugiado23. De maneiras
distintas, cada um deles traz consigo a linha abissal global que define a
exclusão radical e a inexistência jurídica. A nova onda de leis de imigração e
de legislação antiterrorismo, por exemplo, segue a lógica reguladora do
paradigma "apropriação/violência" em muitas de suas disposições24. O regresso
do colonial não significa necessariamente sua presença física nas sociedades
metropolitanas. Basta que tenha uma ligação relevante com elas. No caso do
terrorista, essa ligação pode ser estabelecida pelos serviços secretos. No caso
do trabalhador imigrante indocumentado, basta que seja um subempregado numa das
muitas centenas de sweatshops, as manufaturas subcontratadas por corporações
metropolitanas multinacionais que operam no Sul global25. No caso dos
refugiados, a ligação é estabelecida mediante a solicitação do status de
refugiado numa dada sociedade metropolitana.
O colonial que regressa é de fato um novo colonial abissal. Desta feita, o
colonial retorna não só aos antigos territórios coloniais mas também às
sociedades metropolitanas. Aqui reside a grande transgressão, pois o colonial
do período colonial clássico não podia ingressar nas sociedades metropolitanas,
a não ser por iniciativa do colonizador (como escravo, por exemplo). Os espaços
metropolitanos que se encontravam demarcados desde o início da modernidade
ocidental deste lado da linha estão sendo invadidos ou perpassados pelo
colonial. Mais ainda, o colonial demonstra um nível de mobilidade imensamente
superior ao dos escravos fugidos26. Nessas circunstâncias, o abissal
metropolitano se vê confinado a um espaço cada vez mais limitado e reage
remarcando a linha abissal. Na sua perspectiva, a nova intromissão do colonial
tem de ser confrontada com a lógica ordenadora da "apropriação/violência".
Chegou ao fim o tempo de uma divisão nítida entre o Velho e o Novo Mundo, entre
o metropolitano e o colonial. A linha tem de ser desenhada a uma distância
curta o bastante para garantir a segurança. O que costumava pertencer
inequivocamente a este lado da linha é agora um território confuso, atravessado
por uma linha abissal sinuosa. O muro segregativo erguido por Israel na
Palestina27 e a categoria "combatente inimigo ilegal"28, criada pela
administração norte-americana após o 11 de Setembro, possivelmente constituem
as metáforas mais adequadas da nova linha abissal e da cartografia confusa que
ela gera.
Uma cartografia confusa não pode deixar de levar a práticas confusas. A
"regulação/emancipação" é cada vez mais desfigurada pela presença e pela
crescente pressão da "apropriação/violência" em seu interior. Mas nem a pressão
nem a desfiguração podem ser percebidas por inteiro, precisamente pelo fato de
que o outro lado da linha foi desde sempre incompreensível em seu atributo de
território subumano29. De formas distintas, o terrorista e o trabalhador
imigrante indocumentado são ambos ilustrativos da pressão da lógica da
apropriação/violência e da inabilidade do pensamento abissal para se aperceber
dessa pressão como algo estranho à "regulação/emancipação". Cada vez se torna
mais evidente que as legislações antiterrorismo promulgadas em muitos países
seguindo a Resolução 1.566 do Conselho de Segurança da ONU, de 8/10/200430, e
sob forte pressão de Washington esvaziam o conteúdo civil e político dos
direitos e das garantias básicas das constituições nacionais. Visto que tudo
isso ocorre sem que haja uma suspensão formal desses direitos e garantias,
estamos assistindo à escalada do estado de exceção, que, à diferença do estado
de sítio ou do estado de emergência, restringe os direitos democráticos sob o
pretexto da sua salvaguarda ou mesmo expansão31.
De forma mais ampla, parece que a modernidade ocidental só poderá se expandir
globalmente na medida em que viole todos os princípios sobre os quais fez
assentar a legitimidade histórica do paradigma da regulação/emancipação deste
lado da linha. Assim, direitos humanos são violados para que possam ser
defendidos, a democracia é destruída para que se garanta sua salvaguarda e a
vida é eliminada em nome da sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto
no sentido literal quanto no metafórico. No sentido literal, são linhas que
demarcam fronteiras como vedações32 e campos de morte; dividem cidades em zonas
civilizadas (condomínios fechados em profusão33) e zonas selvagens, e
distinguem prisões como locais de detenção legal e à margem da lei34.
O outro lado do movimento em questão é o "regresso do colonizador", que implica
o ressuscitamento de formas de governo colonial tanto nas sociedades
metropolitanas agora incidindo sobre a vida dos cidadãos comuns como
naquelas anteriormente sujeitas ao colonialismo europeu. A expressão mais
saliente desse movimento pode ser concebida como uma nova forma de governo
indireto35, que emerge em diversas situações em que o Estado se retira da
regulação social e os serviços públicos são privatizados, de modo que poderosos
atores não-estatais adquirem controle sobre a vida e o bem-estar de vastas
populações. A obrigação política que ligava o sujeito de direito ao Rechtstaat,
o Estado constitucional moderno, antes prevalecente neste lado da linha, passou
a ser substituída por obrigações contratuais privadas e despolitizadas, nas
quais a parte mais fraca se encontra mais ou menos à mercê da parte mais forte.
Essa forma de governo apresenta algumas semelhanças perturbadoras com o governo
da apropriação/violência que historicamente prevaleceu do outro lado da linha.
Tenho descrito essa situação como a ascensão do fascismo social, um regime
social de relações de poder extremamente desiguais, que concedem à parte mais
forte poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca. Noutro
lugar distingui cinco formas de fascismo social36. Aqui me refiro a três delas,
que refletem mais claramente a pressão da lógica da apropriação/violência sobre
a lógica da regulação/emancipação. A primeira forma é o fascismo do apartheid
social. Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia
urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são
as zonas do estado de natureza hobbesiano, as zonas de guerra civil interna
existentes em muitas megacidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são
as zonas do contrato social, e vivem sob a constante ameaça das zonas
selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos neofeudais, os
enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana
(cidades privadas ou condomínios fechados). A divisão entre zonas selvagens e
civilizadas está se transformando em um critério geral de sociabilidade, em um
novo espaço-tempo hegemônico que perpassa todas as relações sociais,
econômicas, políticas e culturais e que por isso é comum aos âmbitos estatal e
não-estatal.
A segunda forma é o fascismo contratual. Ocorre nas situações em que a
diferença de poder entre as partes do contrato de direito civil (seja ele um
contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento de bens ou serviços) é de
tal ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada por não ter alternativa ao
contrato, aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais poderosa,
por mais onerosas e despóticas que sejam. O projeto neoliberal de transformar o
contrato de trabalho num contrato de direito civil como qualquer outro
configura uma situação de fascismo contratual. Essa forma de fascismo ocorre
hoje freqüentemente nas situações de privatização de serviços públicos como os
de saúde, segurança social, abastecimento de água etc.37. Nesses casos, o
contrato social que orientava a produção de serviços públicos no Estado-
Providência e no Estado desenvolvimentista é reduzido ao contrato individual do
consumo de serviços privatizados. À luz das deficiências da regulação pública,
essa redução preconiza a eliminação do âmbito contratual de aspectos decisivos
para a proteção dos consumidores, de modo que esses aspectos se tornam
extracontratuais e ficam à mercê da benevolência das empresas. Ao assumirem
poderes extracontratuais, as agências de serviços privadas ou paraestatais
assumem as funções de regulação social anteriormente exercidas pelo Estado.
Este, implícita ou explicitamente, subcontrata a essas agências o desempenho
dessas funções, e ao fazê-lo sem a participação efetiva e mesmo o controle dos
cidadãos torna-se conivente com a produção social de fascismo contratual.
A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Ocorre sempre que
atores sociais com forte capital patrimonial tomam do Estado o controle do
território onde atuam ou neutralizam esse controle, cooptando ou violentando as
instituições estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes do
território sem a participação destes e contra os seus interesses. Na maioria
dos casos, trata-se de novos territórios coloniais privados dentro de Estados
que quase sempre estiveram sujeitos ao colonialismo europeu. Sob diferentes
formas, a usurpação original de terras como prerrogativa do conquistador e a
subseqüente "privatização" das colônias encontram-se presentes na reprodução do
fascismo territorial e, mais geralmente, nas relações entre terratenentes e
camponeses sem terra. As populações civis residentes em zonas de conflitos
armados também se encontram submetidas ao fascismo territorial38.
O fascismo social é a nova forma do estado de natureza, e prolifera à sombra do
contrato social sob duas formas: pós-contratualismo e pré-contratualismo. O
pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos e interesses sociais são
excluídos do contrato social sem nenhuma perspectiva de regresso: trabalhadores
e membros das classes populares em geral são expulsos do contrato social em
virtude da eliminação dos seus direitos econômicos e sociais, tornando-se assim
populações descartáveis. O pré-contratualismo consiste no bloqueamento do
acesso à cidadania a grupos sociais que tinham a expectativa fundamentada de
nela ingressar: por exemplo, a juventude urbana dos guetos das megacidades do
Norte e do Sul globais39. Como regime social, o fascismo social pode coexistir
com a democracia política liberal. Ele a banaliza a ponto de não ser
necessário, nem sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o
capitalismo. Trata-se pois de um fascismo pluralista, e por isso de uma forma
de fascismo inédita. De fato, creio que talvez estejamos entrando num período
em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas.
As novas formas de governo indireto constituem também a segunda grande
transformação da propriedade e do direito de propriedade na era moderna. Como
apontei de início, a propriedade dos territórios do Novo Mundo fundamentou o
estabelecimento das linhas abissais modernas. A primeira transformação teve
lugar quando a propriedade sobre as coisas se expandiu, com o capitalismo,
perante a propriedade sobre os meios de produção. Como bem descreveu Karl
Renner, o proprietário das máquinas se tornou proprietário da força de trabalho
que nelas operava, de modo que o controle sobre as coisas se converteu em
controle sobre as pessoas40. Evidentemente, Renner negligenciou o fato de que
essa transformação não ocorreu nas colônias, já que nelas o controle sobre as
pessoas era a forma original do controle sobre as coisas, compreendendo tanto
as coisas não-humanas como as humanas. A segunda grande transformação da
propriedade tem lugar muito além da produção, quando a propriedade de serviços
se torna um meio de controlar as pessoas que deles necessitam para sobreviver.
Recorrendo aqui à caracterização do governo colonial na África proposta por
Mamdani, o novo governo indireto promove um despotismo descentralizado41. O
despotismo descentralizado não conflita com a democracia liberal; antes, torna-
a cada vez mais irrelevante para a qualidade de vida de populações cada vez
mais vastas.
Sob as condições do novo governo indireto, o pensamento abissal moderno, mais
do que regular os conflitos sociais entre cidadãos, é solicitado a suprimir os
conflitos sociais e a ratificar a impunidade deste lado da linha, como sempre
ocorreu do outro lado da linha. Pressionado pela lógica da apropriação/
violência, o próprio conceito de direito moderno uma norma universalmente
válida que emana do Estado e é por ele imposta coercitivamente caso necessário
encontra-se em transformação. Entre as mudanças conceituais em curso
verifica-se a proposição de uma modalidade de regulamentação eufemisticamente
denominada "lei branda" (soft law)42. Apresentada como a manifestação mais
benevolente do ordenamento "regulação/ emancipação", essa forma de
regulamentação traz consigo a lógica da apropriação/violência sempre que
estejam em jogo relações de poder muito desiguais. Trata-se de uma lei cujo
cumprimento é voluntário. Sem surpresa, vem sendo aplicada, em meio a outros
âmbitos sociais, no campo das relações capital/trabalho, e sua versão mais
cabal é a dos códigos de conduta recomendados às multinacionais metropolitanas
na subcontratação de serviços às "suas" sweatshops em todo o mundo. Essa forma
de lei eufemisticamente denominada "branda" por ser branda com aqueles cujo
comportamento empreendedor é considerado regular (empregadores) e dura com
aqueles que sofrem as conseqüências do seu não-cumprimento (trabalhadores)
apresenta semelhanças intrigantes com o direito colonial, cuja aplicação
dependia mais da vontade do colonizador do que de qualquer outra coisa. As
relações sociais que ela regula são, se não um novo estado de natureza, uma
zona intermédia entre o estado de natureza e a sociedade civil, onde o fascismo
social prolifera e floresce.
Em suma, o pensamento abissal moderno, que deste lado da linha era chamado a
regular as relações entre cidadãos e entre estes e o Estado, é agora chamado,
nos domínios sociais sujeitos a uma maior pressão por parte da lógica da
apropriação/violência, a lidar com os cidadãos como se fossem não-cidadãos e
com os não-cidadãos como se fossem perigosos selvagens coloniais. Assim como o
fascismo social coexiste com a democracia liberal, o estado de exceção coexiste
com a normalidade constitucional, a sociedade civil coexiste com o estado de
natureza e o governo indireto coexiste com o primado do direito. Longe de ser a
perversão de alguma regra normal, fundadora, esse estado de coisas constitui o
projeto original da epistemologia e da legalidade modernas, ainda que a linha
abissal entre o metropolitano e o colonial tenha se deslocado, transformando o
colonial numa dimensão interna do metropolitano.
COSMOPOLITISMO SUBALTERNO À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a
idéia de que o pensamento abissal continuará a auto-reproduzir-se por mais
excludentes que sejam as práticas que origina a menos que se defronte com uma
resistência ativa. Assim, a resistência política deve ter como postulado a
resistência epistemológica. Como foi dito de início, não existe justiça social
global sem justiça cognitiva global. Isso significa que a tarefa crítica que se
avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas: ela requer um
pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um
pensamento pós-abissal. Será isso possível? Existirão as condições que, se
devidamente aproveitadas, poderão propiciar sua emergência? A investigação
sobre essas condições explica minha especial atenção ao contramovimento acima
mencionado, resultante do abalo que as linhas abissais globais vêm sofrendo
desde os anos 1970 e o qual designei como "cosmopolitismo subalterno"43.
Apesar de seu caráter por ora claramente embrionário, o cosmopolitismo
subalterno contém uma promessa real. De fato, para captá-lo é necessário
realizar aquilo que chamo de "sociologia das emergências"44, a qual consiste
numa amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora
dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de
sentido referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo. O
cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e
organizações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutando contra a
exclusão social, econômica, política e cultural gerada pela mais recente
encarnação do capitalismo global, conhecida como "globalização neoliberal"45.
Tendo em mente que a exclusão social sempre é produto de relações de poder
desiguais, essas iniciativas são animadas por um ethos redistributivo no
sentido mais amplo da expressão compreendendo a redistribuição de recursos
materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos , e como tal baseado
simultaneamente nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença.
Desde o início deste século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressão mais
cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo subalterno46. Entre
as entidades que dele participam, os movimentos indígenas são, do meu ponto de
vista, aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente
emergência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a
possibilidade de um tal pensamento, já que os povos indígenas são os habitantes
paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma
"apropriação/violência".
A novidade do cosmopolitismo subalterno reside acima de tudo em seu profundo
sentido de incompletude, sem contudo ambicionar a completude. Por um lado,
defende que a compreensão do mundo excede largamente a compreensão ocidental do
mundo, e que a nossa compreensão da globalização, portanto, é muito menos
global do que a própria globalização. Por outro lado, defende que quanto mais
compreensões não-ocidentais forem identificadas mais evidente se tornará o fato
de que ainda restam muitas outras por identificar, e que as compreensões
híbridas com elementos ocidentais e não-ocidentais são virtualmente
infinitas. O pensamento pós-abissal parte da idéia de que a diversidade do
mundo é inesgotável e continua desprovida de uma epistemologia adequada, de
modo que a diversidade epistemológica do mundo está por ser construída.
A seguir apresento um esquema geral do pensamento pós-abissal. Concentro-me nas
suas dimensões epistemológicas, deixando de lado suas dimensões jurídicas.
PENSAMENTO PÓS-ABISSAL COMO UM SABER ECOLÓGICO
O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social, no
seu sentido mais amplo, assume diferentes formas conforme seja determinada por
uma linha abissal ou não-abissal, e da noção de que enquanto persistir a
exclusão definida abissalmente não será possível qualquer alternativa pós-
capitalista progressista. Durante um período de transição possivelmente longo,
confrontar a exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de modo
eficiente as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo
moderno deste lado da linha. Uma concepção pós-abissal do marxismo (em si mesmo
um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a emancipação dos
trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as
populações descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas não diretamente
exploradas pelo capitalismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos
dos cidadãos não estarão assegurados enquanto os não-cidadãos sofrerem um
tratamento sub-humano47.
Assim, o reconhecimento da persistência do pensamento abissal é condição sine
qua non para começar a pensar e a agir para além dele. Sem esse reconhecimento,
o pensamento crítico permanecerá um pensamento derivativo, que continuará a
reproduzir as linhas abissais por mais antiabissal que se autoproclame. Pelo
contrário, o pensamento pós-abissal é um pensamento não-derivativo, pois
envolve uma ruptura radical com as formas de pensamento e ação da modernidade
ocidental. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos significa pensar a
partir da perspectiva do outro lado da linha, precisamente porque ele é o
domínio do impensável no Ocidente moderno. A emergência do ordenamento da
apropriação/violência só poderá ser enfrentada se situarmos nossa perspectiva
epistemológica na experiência social do outro lado da linha, isto é, do Sul
global, concebido como a metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto
provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo48. O pensamento pós-
abissal pode ser sintetizado como um aprender com o Sul usando uma
epistemologia do Sul. Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma
ecologia de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da pluralidade
de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia. A
ecologia de saberes se baseia na idéia de que o conhecimento é
interconhecimento49.
Assim, a primeira condição para um pensamento pós-abissal é a co-presença
radical. A co-presença radical significa que práticas e agentes de ambos os
lados da linha são contemporâneos em termos igualitários. Implica conceber
simultaneidade como contemporaneidade, o que requer abandonar a concepção
linear de tempo50. Só assim será possível ir além de Hegel, para quem ser
membro da humanidade histórica isto é, estar deste lado da linha
significava: no século V a.C., ser um grego e não um bárbaro; nos primeiros
séculos da era cristã, ser um cidadão romano e não um grego; na Idade Média,
ser um cristão e não um judeu; no século XVI, ser um europeu e não um selvagem
do Novo Mundo; e no século XIX ser um europeu (incluindo os europeus deslocados
da América do Norte) e não um asiático, estagnado na história, ou um africano,
que sequer faz parte dela51. Além disso, a co-presença radical pressupõe a
abolição da guerra, que, juntamente com a intolerância, constitui a negação
mais radical da co-presença.
Como ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem por premissa a idéia da
inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência
de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico52.
Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo
não só diversas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do
espírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre o que conta
como conhecimento. No período de transição que se inicia, em que ainda
persistem as perspectivas abissais de totalidade e unidade, provavelmente
precisamos de uma epistemologia geral residual ou negativa para seguir em
frente: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral.
O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambíguo. Por um
lado, a idéia da diversidade sociocultural do mundo se fortaleceu nas três
últimas décadas, favorecendo o reconhecimento da pluralidade epistemológica
como uma de suas dimensões. Por outro lado, se todas as epistemologias
partilham as premissas culturais do seu tempo, uma das mais bem consolidadas
premissas do pensamento abissal talvez seja, ainda hoje, a da crença na ciência
como única forma de conhecimento válida e rigorosa. Ortega y Gasset propôs uma
distinção radical entre crenças e idéias, entendendo por estas últimas a
ciência ou a filosofia53. A distinção reside em que as crenças fazem parte de
nossa identidade e subjetividade, enquanto as idéias nos são exteriores.
Enquanto nossas idéias nascem da dúvida e permanecem nela, nossas crenças
nascem da ausência de dúvida. No fundo, a distinção é entre ser e ter: somos as
nossas crenças, temos idéias. O que é característico do nosso tempo é o fato de
a ciência moderna pertencer simultaneamente ao campo das idéias e ao campo das
crenças. A crença na ciência excede em muito o que as idéias científicas nos
permitem realizar. Assim, a relativa perda de confiança epistemológica na
ciência durante a segunda metade do século XX ocorreu de par com a crescente
crença popular na ciência. A relação entre crenças e idéias como duas entidades
distintas passa a ser uma relação entre duas maneiras de experienciar
socialmente a ciência. Essa dualidade faz com que o reconhecimento da
diversidade cultural do mundo não signifique necessariamente o reconhecimento
da diversidade epistemológica do mundo.
Nesse contexto, a ecologia de saberes é basicamente uma contra-epistemologia. O
impulso básico para o seu avanço resulta de dois fatores. O primeiro consiste
nas novas emergências políticas de povos do outro lado da linha como parceiros
da resistência ao capitalismo global: globalização contra-hegemônica. Em termos
geopolíticos, trata-se de sociedades periféricas do sistema-mundo moderno onde
a crença na ciência moderna é mais tênue, onde é mais visível a vinculação da
ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e imperial, onde
conhecimentos não-científicos e não-ocidentais prevalecem nas práticas
cotidianas das populações. O segundo fator é uma proliferação sem precedentes
de alternativas, as quais porém não podem ser agrupadas sob a alçada de uma
única alternativa global, visto que globalização contra-hegemônica se destaca
pela ausência de uma alternativa no singular. A ecologia de saberes procura dar
consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo.
Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e também ignorâncias. Não existe
uma unidade de conhecimento, assim como não existe uma unidade de ignorância.
As formas de ignorância são tão heterogêneas e interdependentes quanto as
formas de conhecimento. Dada essa interdependência, a aprendizagem de certos
conhecimentos pode envolver o esquecimento e em última instância a ignorância
de outros. Desse modo, na ecologia de saberes a ignorância não é
necessariamente um estado original ou ponto de partida. Pode ser um ponto de
chegada. Pode ser o resultado do esquecimento ou da desaprendizagem implícito
num processo de aprendizagem recíproca. Assim, num processo de aprendizagem
conduzido por uma ecologia de saberes é crucial a comparação entre o
conhecimento que está sendo aprendido e o conhecimento que nesse processo é
esquecido e desaprendido. A ignorância só é uma forma desqualificada de ser e
de fazer quando aquilo que se aprende vale mais do que aquilo que se esquece. A
utopia do interconhecimento consiste em aprender outros conhecimentos sem
esquecer os próprios. O princípio da prudência que subjaz à ecologia de saberes
(do qual falaremos mais adiante) convida a uma reflexão mais profunda sobre a
diferença entre a ciência como conhecimento monopolista e a ciência como parte
de uma ecologia de saberes.
Como produto do pensamento abissal, o conhecimento científico não se encontra
distribuído socialmente de forma equitativa nem poderia estar, uma vez que o
seu desígnio original foi converter este lado da linha em sujeito do
conhecimento e o outro lado em objeto de conhecimento. As intervenções no mundo
real por ele propiciadas tendem a servir aos grupos sociais que têm maior
acesso a esse conhecimento. Enquanto as linhas abissais continuarem a ser
traçadas, a luta por uma justiça cognitiva não terá êxito caso se apóie apenas
na idéia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico. Além
do fato de que tal distribuição é impossível nas condições do capitalismo e do
colonialismo, o conhecimento científico tem limites intrínsecos quanto ao tipo
de intervenção que promove no mundo real. Na ecologia de saberes, a busca de
credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do
conhecimento científico. Implica simplesmente a sua utilização contra-
hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da
ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que têm se tornado
visíveis por meio das epistemologias feministas e pós-coloniais54, e, por outro
lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos
e outros saberes, não-científicos.
Uma das premissas básicas da ecologia de saberes é que todos os conhecimentos
têm limites internos, referentes às intervenções no real que eles permitem, e
externos, decorrentes do reconhecimento de intervenções alternativas
propiciadas por outras formas de conhecimento. Por definição, as formas de
conhecimento hegemônicas só conhecem limites internos, de modo que o uso
contra-hegemônico da ciência moderna só é possível mediante a exploração
paralela de seus limites internos e externos como parte de uma concepção
contra-hegemônica de ciência. É por isso que o uso contra-hegemônico da ciência
não pode se limitar à ciência. Só faz sentido no âmbito de uma ecologia de
saberes.
Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como intervenção no real não
como representação do real é a medida do realismo. A credibilidade da
construção cognitiva é mensurada pelo tipo de intervenção no mundo que ela
proporciona, auxilia ou impede. Como a avaliação dessa intervenção sempre
combina o cognitivo com o ético-político, a ecologia de saberes distingue a
objetividade analítica da neutralidade ético-política. Hoje em dia ninguém
questiona o valor geral das intervenções no real propiciadas pela ciência
moderna por meio de sua produtividade tecnológica. Mas isso não deve nos
impedir de reconhecer intervenções propiciadas por outras formas de
conhecimento. Em muitas áreas da vida social a ciência moderna tem demonstrado
uma indiscutível superioridade em relação a outras formas de conhecimento, mas
há outros modos de intervenção no real que hoje nos são valiosos e para os
quais a ciência moderna em nada contribuiu. É o caso, por exemplo, da
preservação da biodiversidade possibilitada por formas de conhecimento
camponesas e indígenas, que se encontram ameaçadas justamente pela crescente
intervenção da ciência moderna55. E não deveria nos impressionar a riqueza dos
conhecimentos que lograram preservar modos de vida, universos simbólicos e
informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis com base
exclusivamente na tradição oral? Dirá algo sobre a ciência o fato de que por
intermédio dela isso nunca teria sido possível?
Eis o impulso para a co-presença igualitária (como simultaneidade e
contemporaneidade) e para a incompletude. Dado que nenhuma forma de
conhecimento pode responder por todas as intervenções possíveis no mundo, todas
as formas de conhecimento são, de diferentes maneiras, incompletas. A
incompletude não pode ser erradicada, porque qualquer descrição completa das
variedades de saber não incluiria a forma de saber responsável pela própria
descrição. Não há conhecimento que não seja conhecido por alguém para certos
objetivos. Todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos.
Todos os conhecimentos são testemunhais porque aquilo que conhecem sobre o real
(sua dimensão ativa) é sempre duplicado por aquilo que dão a conhecer sobre o
sujeito do conhecimento (sua dimensão subjetiva). Ao questionar a distinção
sujeito/ objeto, as ciências da complexidade dão conta desse fenômeno mas o
confinam às práticas científicas. A ecologia de saberes expande o caráter
testemunhal dos conhecimentos de modo a abarcar igualmente as relações entre o
conhecimento científico e o não-científico, ampliando assim o alcance da
intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa.
Num regime de ecologia de saberes, a busca de intersubjetividade é tão
importante quanto complexa. Uma vez que diferentes práticas de conhecimento têm
lugar em diferentes escalas espaciais e com diferentes durações e ritmos, a
intersubjetividade requer a disposição para conhecer e agir em diferentes
escalas (interescalaridade) e com diferentes durações (intertemporalidade).
Muitas das experiências subalternas de resistência são locais ou foram
localizadas e assim tornadas irrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento
abissal moderno, o único capaz de gerar experiências globais. Dado porém que a
resistência contra as linhas abissais precisa ocorrer em uma escala global, é
imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiências
subalternas por meio de ligações entre o local e o global. Desse modo, a
ecologia de saberes tem de ser transescalar56.
Além disso, a coexistência de diferentes temporalidades ou durações em
diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão da moldura temporal. Na
medida em que as modernas tecnologias tendem a favorecer a moldura temporal e a
duração da ação estatal, tanto na administração pública como na política (o
ciclo eleitoral, por exemplo), as experiências subalternas do Sul global têm
sido forçadas a responder tanto à curta duração das necessidades imediatas de
sobrevivência como à longa duração do capitalismo e do colonialismo. Mesmo nas
lutas subalternas podem estar presentes diferentes durações. A luta pela terra
empreendida pelos camponeses empobrecidos no Brasil, por exemplo, pode incluir:
a duração do Estado moderno, quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) luta pela reforma agrária; a duração da escravatura, quando os
afro-descendentes lutam pela recuperação dos quilombos; ou ainda a duração do
colonialismo, quando os povos indígenas lutam para reaver seus territórios
históricos, dos quais foram esbulhados pelos conquistadores.
A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato, mas como
práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no
mundo real. Um pragmatismo epistemológico é justificado acima de tudo pelo fato
de que as experiências de vida dos oprimidos lhes são inteligíveis por via de
uma epistemologia das conseqüências. No mundo em que vivem, as conseqüências
vêm sempre primeiro que as causas.
A ecologia de saberes assenta na idéia pragmática de que é necessária uma
reavaliação das intervenções e relações concretas na sociedade e na natureza
que os diferentes conhecimentos proporcionam. Centra-se pois nas relações entre
saberes, nas hierarquias que se geram entre eles, uma vez que nenhuma prática
concreta seria possível sem essas hierarquias. No entanto, em vez de subscrever
uma hierarquia única, universal e abstrata entre os saberes, estabelece
hierarquias em conformidade com o contexto, à luz dos resultados concretos
pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber. Hierarquias
concretas emergem do valor relativo de intervenções alternativas no mundo real.
Entre os diferentes tipos de intervenção pode existir complementaridade ou
contradição57. Sempre que há intervenções no real que em princípio podem ser
levadas a cabo por diferentes sistemas de conhecimento, as escolhas concretas
das formas de conhecimento a privilegiar devem ser informadas pelo princípio da
prudência, que no contexto da ecologia de saberes consiste em dar preferência
às formas de conhecimento que garantam a maior participação possível dos grupos
sociais envolvidos na concepção, execução, controle e fruição da intervenção.
O exemplo a seguir ilustra bem os perigos de substituir um tipo de conhecimento
por outro com base em hierarquias abstratas. Nos anos 1960, os milenares
sistemas de irrigação dos campos de arroz da ilha de Bali, na Indonésia, foram
substituídos por sistemas científicos promovidos pelos prosélitos da Revolução
Verde. Os sistemas tradicionais se baseavam em conhecimentos hidrológicos,
agrícolas e religiosos ancestrais e eram administrados por sacerdotes de um
templo hindu-budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram substituídos
precisamente por serem considerados produtos da magia e da superstição, daquilo
que foi depreciativamente designado como "culto do arroz". Só que a
substituição teve resultados desastrosos para a cultura do arroz, cuja colheita
decresceu drasticamente nos anos subseqüentes. Diante disso, os sistemas
científicos tiveram de ser abandonados e os sistemas tradicionais restaurados.
Esse caso ilustra a importância do princípio da prudência quando lidamos com
uma possível complementaridade ou contradição entre diferentes tipos de
conhecimento. A suposta incompatibilidade entre dois sistemas de conhecimento
(o religioso e o científico) para a realização da mesma intervenção (a
irrigação dos campos de arroz) resultou de uma má avaliação (má ciência)
provocada precisamente por juízos abstratos, baseados na superioridade abstrata
do conhecimento científico. Trinta anos depois da desastrosa intervenção
técnico-científica, a modelagem computacional uma área das novas ciências ou
ciências da complexidade veio demonstrar que as seqüências da água geridas
pelos sacerdotes da deusa Dewi-Danu eram as mais eficientes possíveis, portanto
mais eficientes do que as do sistema científico de irrigação58.
Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, o policiamento das
fronteiras do conhecimento relevante é de longe mais decisivo do que as
discussões sobre diferenças internas. Assim, em razão do "epistemicídio" em
massa perpetrado nos últimos cinco séculos, desperdiçou-se uma imensa riqueza
de experiências cognitivas. Para recuperar algumas dessas experiências, a
ecologia de saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a
tradução intercultural. Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-
ocidentais, essas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também
diferentes categorias, universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor.
As profundas diferenças entre saberes levantam a questão da
incomensurabilidade, questão utilizada pela epistemologia abissal para
desacreditar a mera possibilidade de uma ecologia de saberes. Um exemplo ajuda
a ilustrar essa questão. Será possível estabelecer um diálogo entre a filosofia
ocidental e a filosofia africana? Formulada assim, a pergunta parece só
permitir uma resposta positiva, uma vez que ambas são filosofia (o mesmo
argumento pode ser usado em relação a um diálogo entre religiões). No entanto,
para muitos filósofos ocidentais e africanos não é possível referirmo-nos a uma
filosofia africana porque existe apenas uma filosofia, cuja universalidade não
é posta em causa pelo fato de que até o momento seu desenvolvimento se deu
sobretudo no Ocidente. Na África, tal é a posição dos filósofos chamados
"modernistas". Já para os "tradicionalistas" há filosofia africana, mas como
ela está embebida na cultura africana é incomensurável com a filosofia
ocidental e deve seguir seu desenvolvimento autônomo59. Mas, além dessas duas
posições, há perspectivas para as quais existem muitas filosofias e é possível
haver entre elas um diálogo, um enriquecimento mútuo. Essas perspectivas se
vêem freqüentemente confrontadas com os problemas da incomensurabilidade, da
incompatibilidade e da ininteligibilidade recíprocas, os quais procuram
resolver explorando formas de complementaridade. Tudo depende do uso de
procedimentos adequados de tradução intercultural, mediante os quais é possível
identificar preocupações comuns e aproximações complementares, assim como, está
claro, contradições intransponíveis60.
O seguinte exemplo ilustra o que está em jogo. O filósofo ganense Kwasi Wiredu
afirma que na língua akan (do grupo étnico a que pertence) não é possível
traduzir o preceito cartesiano "Cogito, ergo sum", já que nela não há palavras
para exprimir tal idéia. Em akan, "pensar" significa "medir algo", o que não
faz sentido quando ligado à idéia de existir. E o "existo" é igualmente
dificílimo de exprimir, porque o equivalente mais próximo é algo semelhante a
"estou aí". O locativo "aí", segundo Wiredu, seria suicida tanto do ponto de
vista da epistemologia como da metafísica do cogito61. Ou seja, a língua
permite exprimir certas idéias e não outras. Mas isso não significa que a
relação entre a filosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por
aqui. Como Wiredu tenta demonstrar, é possível desenvolver argumentos autônomos
com base na filosofia africana não só sobre o motivo pelo qual ela não poder
exprimir o cogito, mas também sobre as muitas idéias alternativas que ela pode
exprimir e a filosofia ocidental não pode62.
A ecologia de saberes não ocorre apenas no nível do lógos, mas também no nível
do mythos. A idéia de "emergência" ou a noção do "ainda-não-ser" de Bloch lhe
são essenciais63. A intensificação da vontade resulta de uma leitura
potencializadora de tendências objetivas, que empresta força a uma
possibilidade auspiciosa, mas frágil, mediante uma compreensão mais profunda
das possibilidades humanas com base em saberes que, ao contrário do científico,
privilegiam a força interior em vez da força exterior, a natura naturans em vez
da natura naturata64. Por meio desses saberes é possível alimentar o valor
intensificado de um empenho, o que é incompreensível do ponto de vista do
mecanicismo positivista e funcionalista da ciência moderna. Desse empenho
surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação, capaz de fundamentar
teorias e práticas novas, umas e outras inconformistas, desestabilizadoras e
mesmo rebeldes. O que está em jogo é a criação de uma previsão ativa baseada na
riqueza da diversidade não-canônica do mundo e de um grau de espontaneidade
baseado na recusa a deduzir o potencial do factual. Dessa forma, os poderes
constituídos deixam de ser destino, podendo ser realisticamente confrontados
com os poderes constituintes. O que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição
canônica das monoculturas do saber sem parar aí, como se essa desfamiliarização
fosse a única familiaridade possível.
A ecologia de saberes é uma epistemologia desestabilizadora na medida em que se
empenha numa crítica radical da política do possível, sem ceder a uma política
impossível. Central a uma ecologia de saberes não é a distinção entre estrutura
e agência, mas a distinção entre ação conformista e aquilo que denomino "ação-
com-clinamen"65. A ação conformista é uma prática rotineira, reprodutiva e
repetitiva que reduz o realismo àquilo que existe e apenas porque existe. Para
a minha noção de ação-com-clinamen tomo de Epicuro e Lucrécio o conceito de
clinamen, entendido como o quiddam inexplicável que perturba a relação entre
causa e efeito, ou seja, como a capacidade de desvio que Epicuro atribuiu aos
átomos de Demócrito: o clinamen é aquilo que faz com que os átomos deixem de
parecer inertes e revelem um poder de inclinação, de movimento espontâneo66. Ao
contrário do que se dá na ação revolucionária, a criatividade da ação-com-
clinamen não assenta numa ruptura dramática, mas num ligeiro desvio cujos
efeitos cumulativos promovem complexas e criativas combinações entre indivíduos
e grupos sociais, assim como ocorre entre os átomos67. O clinamen não recusa o
passado; pelo contrário, assume-o e redime-o pelo modo como dele se desvia. Seu
potencial para o pensamento pós-abissal decorre de sua capacidade de atravessar
as linhas abissais.
A ocorrência de ação-com-clinamen é em si mesma inexplicável. O papel de uma
ecologia de saberes a esse respeito será somente o de identificar as condições
que maximizam a probabilidade de uma tal ocorrência e definir o horizonte de
possibilidades em que o desvio virá a "operar". A ecologia de saberes é ao
mesmo tempo constituída por sujeitos desestabilizadores individuais ou
coletivos e constitutiva deles. A subjetividade capaz da ecologia de saberes
é uma subjetividade especialmente dotada de capacidade, energia e vontade para
agir com clinamen. A própria construção social de uma tal subjetividade
necessariamente implica recorrer a formas excêntricas ou marginais de
sociabilidade ou subjetividade dentro ou fora da modernidade ocidental, formas
que se recusaram a ser definidas de acordo com os critérios abissais.
CONCLUSÃO
A construção epistemológica de uma ecologia de saberes não é tarefa fácil. A
título de conclusão, proponho um programa de pesquisa no qual podemos
identificar três conjuntos principais de questões.
O primeiro conjunto se refere à identificação de saberes e levanta uma série de
questões que têm sido ignoradas pelas epistemologias do Norte global. A partir
de qual perspectiva é possível identificar diferentes conhecimentos? Como se
pode distinguir o conhecimento científico do não-científico? Como distinguir
entre os vários conhecimentos não-científicos? Como se distingue o conhecimento
não-ocidental do ocidental? Se existem vários conhecimentos ocidentais e vários
conhecimentos não-ocidentais, como distingui-los entre si? Qual a configuração
dos conhecimentos que agregam tanto componentes ocidentais como não-ocidentais?
O segundo conjunto levanta questões referentes aos procedimentos que permitem
relacionar os diferentes saberes entre si. Como distinguir incomensurabilidade,
contradição, incompatibilidade e complementaridade? De onde provém a vontade de
traduzir? Quem são os tradutores? Como escolher os parceiros e tópicos de
tradução? Como formar decisões partilhadas e distingui-las das impostas? Como
assegurar que a tradução intercultural não se transforme numa versão renovada
do pensamento abissal, numa versão "suavizada" de imperialismo e colonialismo?
O terceiro questionamento diz respeito à natureza e à avaliação das
intervenções no mundo real possibilitadas pelos saberes. Como se pode traduzir
tal perspectiva em práticas de conhecimento? Na busca de alternativas à
dominação e à opressão, como distinguir entre alternativas ao sistema de
opressão e dominação e alternativas dentro do sistema? Mais especificamente,
como distinguir alternativas ao capitalismo de alternativas dentro do
capitalismo?
Em suma, como combater as linhas abissais usando instrumentos conceituais e
políticos que as não reproduzam? E por fim uma questão com especial interesse
para educadores: qual seria o impacto de uma concepção de conhecimento pós-
abissal (como uma ecologia de saberes) sobre as instituições educativas?
Nenhuma dessas perguntas tem respostas definitivas, mas a tentativa de dar-lhes
respostas decerto um esforço coletivo e civilizacional provavelmente é a
única forma de confrontar a nova e mais insidiosa versão do pensamento abissal
tal como identificada neste ensaio: a constante ascensão do paradigma da
apropriação/violência no interior do paradigma da regulação/emancipação.
É próprio da natureza da ecologia de saberes constituir-se mediante perguntas
constantes e respostas incompletas. Aí reside sua característica de
conhecimento prudente. A ecologia de saberes nos capacita a uma visão mais
abrangente tanto daquilo que conhecemos como daquilo que desconhecemos, e
também nos previne de que aquilo que não sabemos é ignorância nossa e não
ignorância em geral.
A vigilância epistemológica requerida pela ecologia de saberes transforma o
pensamento pós-abissal num profundo exercício de auto-reflexividade. Requer que
os pensadores e atores pós-abissais se vejam num contexto semelhante àquele em
que Santo Agostinho se encontrava ao escrever suas Confissões, o qual expressou
eloqüentemente desta forma: "Converti-me numa questão para mim". A diferença é
que o tópico deixou de ser a confissão dos erros passados para ser a
participação solidária na construção de um futuro pessoal e coletivo, sem nunca
ter a certeza de não repetir os erros cometidos no passado.
[1] Este texto foi apresentado em diferentes versões no Fernand Braudel Center
(Binghamton, Nova York) e nas universidades de Glasgow, Victoria (Canadá),
Wisconsin-Madison e Coimbra. Gostaria de agradecer os comentários de Gavin
Anderson, Alison Phipps, Emilios Christodoulidis, David Schneiderman, Claire
Cutler, Upendra Baxi, James Tully, Len Kaplan, Marc Galanter, Neil Komesar,
Joseph Thome, Javier Couso, Jeremy Webber, Rebecca Johnson, John Harrington,
Antonio Sousa Ribeiro, Joaquin Herrera Flores, Conceição Gomes e João Pedroso.
Maria Paula Meneses, além de comentar o texto, auxiliou-me no trabalho de
pesquisa, pelo que lhe sou muito grato. Este trabalho não teria sido possível
sem a inspiração das longas conversas com Maria Irene Ramalho sobre as relações
entre as ciências sociais e as ciências humanas.
[2] Não pretendo que o pensamento moderno ocidental seja a única forma de
pensamento abissal. Ao contrário, é muito provável que existam ou tenham
existido formas de pensamento abissal fora do Ocidente. Não é meu propósito
analisá-las neste texto. Defendo apenas que, abissais ou não, as formas de
pensamento não-ocidentais têm sido tratadas de um modo abissal pelo pensamento
moderno ocidental. Também não trato aqui do pensamento pré-moderno ocidental
nem das versões do pensamento moderno ocidental marginalizadas ou suprimidas
por se oporem às versões hegemônicas, as únicas de que me ocupo aqui.
[3] Sobre a sociologia das ausências como crítica à produção de realidade
inexistente pelo pensamento hegemônico, ver Santos, Boaventura de S. A crítica
da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2002; "A critique of
lazy reason: against the waste of experience". In: Wallerstein, Immanuel
(org.). The modern world-system in the longue durée. Boulder: Paradigm, 2004,
pp. 157-97; A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. São Paulo: Cortez, 2006.
[4] Essa tensão representa o outro lado da discrepância moderna entre as
experiências atuais e as expectativas quanto ao futuro, também expressas no
mote positivista "ordem e progresso". O pilar da regulação social é constituído
pelos princípios do Estado, da comunidade e do mercado, enquanto o pilar da
emancipação consiste nas três lógicas da racionalidade: a racionalidade
estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade instrumental-
cognitiva da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e
do direito. Cf. Santos, Boaventura de S. Toward a new common sense. Nova York:
Routledge, 1995; A crítica da razão indolente, op. cit.
[5] Ainda que de formas muito distintas, Pascal, Kierkegaard e Nietzsche foram
os filósofos que mais a fundo analisaram, e viveram, as antinomias contidas
nessa questão. Mais recentemente, cabe mencionar Karl Jaspers (Reason and anti-
reason in our time. New Haven: Yale University Press, 1952; Basic philosophical writings. Athens: Ohio University Press, 1986; The great philosophers. Nova York: Harcourt Brace, 1995) e
Stephen Toulmin (Return to reason. Cambridge, MA: Harvard
University Press, 2001).
[6] Para uma visão geral dos debates recentes sobre as relações entre a ciência
e outros conhecimentos, ver Santos, Boaventura de S., Meneses, Maria Paula e
Nunes, João A. "Introdução". In: Santos, Boaventura de S. (org.). Semear outras
soluções. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 21-121; Santos, Boaventura de S. Toward a new common sense, op. cit., pp. 7-
55.
[7] Analiso em detalhe a natureza do direito moderno e a coexistência de mais
de um sistema jurídico no mesmo espaço geopolítico em Santos, Boaventura de S.
Toward a new legal common sense. Londres: Butterworths, 2002.
[8] Neste trabalho tomo por assente a ligação íntima entre capitalismo e
colonialismo. Ver, por exemplo, Williams, Eric. Capitalism and slavery. Chapel
Hill: University of North Carolina Press, 1994 [1944] ;
Arendt, Hannah. The origins of totalitarism. Nova York: Harcourt Brace, 1951; Fanon, Franz. Black skin, white masks. Nova York: Grove Press,
1967; Horkheimer, Max e Adorno, Theodor. Dialectic of
Enlightenment. Nova York: Herde and Herder, 1972; Wallerstein,
Immanuel M. The modern world-system. Nova York: Academic Press, 1974; Dussel, Enrique. 1492: el encubrimiento del otro. Bogotá: Anthropos,
1992; Mignolo, Walter. The darker side of Renaissance.
Michigan: University of Michigan Press, 1995; Quijano, Anibal.
"Colonialidad del poder y classificación social". Journal of World-Systems
Research, vol. 6, n. 2, 2000, pp. 342-86.
[9] Assim, contrariamente àquilo que afirmam as teorias convencionais do
direito internacional, o imperialismo é constitutivo do Estado moderno, e não
um produto dele. O Estado moderno, o direito internacional e o
constitucionalismo nacional e global advêm do mesmo processo histórico
imperial. Cf. Koskenniemi, Martti. The gentle civilizer of nations: the rise
and fall of international law, 1870-1960. Cambridge, UK: Cambridge University
Press, 2002; Anghie, Anthony. Imperialism, sovereignty and the
making of international law. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2005; Tully, James. "The imperialism of modern constitutional
democracy". In: Loughlin, Martin e Walker, Neil (orgs.). Constituent power and
constitutional form. Oxford: Oxford University Press, no prelo.
[10] A definição das linhas globais ocorre gradualmente. Segundo Carl Schmitt
(The nomos of the Earth in the international law of the jus publicum europaeum.
Nova York: Telos Press, 2003, p. 91), as linhas cartográficas do século XV
pressupunham ainda uma ordem espiritual global vigente de ambos os lados da
divisão: a Respublica Christiana, simbolizada pelo papa. Isso explica as
dificuldades enfrentadas por Francisco Vitoria, o grande teólogo e jurista
espanhol do século XVI, para justificar a ocupação de terras nas Américas.
Vitoria questiona se a descoberta é suficiente como título jurídico de posse da
terra. A sua resposta é muito complexa, não só por ser formulada em estilo
aristotélico, mas sobretudo porque Vitória não concebe qualquer resposta
convincente que não parta da premissa da superioridade européia. Esse fato,
contudo, não confere qualquer direito moral ou positivo sobre as terras
ocupadas. Segundo Vitoria, nem mesmo a superioridade civilizacional dos
europeus é suficiente como base de um direito moral. Para ele, a conquista
podia servir apenas de fundamento a um direito reversível à terra, a jura
contraria, nas suas palavras. Isto é, a questão da relação entre a conquista e
o direito à terra deve ser colocada inversamente: se os índios tivessem
descoberto e conquistado os europeus, teriam eles igual direito a ocupar as
terras? A justificação de Vitoria para a ocupação de terras assenta ainda na
ordem cristã medieval, na missão atribuída pelo papa aos reis espanhol e
português e no conceito de guerra justa. Ver ibidem, pp. 101-25; Anghie, op.
cit., pp. 13-31; Pagden, Anthony. Spanish imperialism and the political
imagination. New Haven: Yale University Press, 1990, p. 15.
[11] Com as amity lines a primeira das quais poderá ter surgido do Tratado de
Cateau-Cambresis entre Espanha e França (1559) , as linhas cartográficas
abandonam a idéia de uma ordem comum global e estabelecem uma dualidade abissal
entre os territórios deste lado da linha, onde vigoram a verdade, a paz e a
amizade, e do outro lado da linha, onde imperam a lei do mais forte, a
violência e a pilhagem. O que quer que ocorra do outro lado da linha não está
sujeito aos mesmos princípios éticos e jurídicos que se aplicam deste lado da
linha, de modo que não poderá dar origem ao tipo de conflitos que a violação de
tais princípios causaria se ocorresse deste lado da linha. Essa dualidade
permitiu aos reis católicos da França, por exemplo, manter uma aliança com os
reis católicos da Espanha deste lado da linha e ao mesmo tempo aliar-se aos
piratas que atacavam os barcos espanhóis do outro lado da linha.
[12] Pascal, Blaise. Pensées. Londres: Penguin Books, 1966, p. 46 [em tradução
de Novos Estudos com base no francês] .
[13] Hobbes, Thomas. Leviathan. Londres: Penguin Books, 1985 [1651], p. 187; Locke, John. The second treatise of civil government and a
letter concerning toleration. Oxford: B. Blackwell, 1946 [1690], § 49 [em
tradução do autor] .
[14] Sobre as diferentes concepções do contrato social, ver Santos, Boaventura
de S. Toward a new legal common sense, op. cit., pp. 30-39.
[15] De acordo com a bula, "os índios eram verdadeiros homens e [...] não eram
capazes de entender a fé católica, mas, de acordo com as nossas informações,
desejam ardentemente recebê-la" (Papa Paulo III. Sublimis Deus, 1537
<www.papalencyclicals.net/ Paul03/p3subli.htm, acessado em 22/ 9/2006> ).
[16] Cf., por exemplo, Emerson, Barbara. Leopold II of the Belgians: king of
colonialism. Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1979; Hochschild, Adam. King Leopold's ghost: a story of greed, terror, and
heroism in colonial Africa. Boston: Houghton Mifflin, 1999.
[17] Essa negação da humanidade é denunciada com extrema lucidez por Franz
Fanon ( Black skin, white masks, op. cit.; The wretched of the Earth. Nova
York: Grove Press, 1963). O radicalismo da negação fundamenta
sua defesa da violência como uma dimensão intrínseca da revolta anticolonial,
aspecto sobre o qual Fanon e Gandhi divergiram ainda que partilhassem uma luta
comum.
[18] Sobre Guantánamo e tópicos relacionados, ver, por exemplo,
Amann, Diane M. "Guantánamo". Columbia Journal of Transnational Law, vol. 42,
n. 2, 2004, pp. 263-348; Steyn, Johan. "Guantanamo Bay: the
legal black hole". International and Comparative Law Quarterly, vol. 53, n. 1,
2004, pp. 1-15; Dickinson, Laura. "Torture and contract" e
Sadat, Leila N. "Ghost prisoners and black sites: extraordinary rendition under
international law". Case Western Reserve Journal of International Law, vol. 37,
n. 2-3, 2005-06, pp. 267-75 e 309-42.
[19] Nas vésperas da II Guerra Mundial as colônias e ex-colônias cobriam cerca
de 85% da superfície terrestre.
[20] Cf. Fanon, Black skin, white masks e The wretched of the Earth, op. cit.;
Nkrumah, Kwame. Consciencism: philosophy and ideology for decolonization and
development with particular reference to the African revolution. Nova York:
Monthly Review Press, 1965; Gandhi, Mahatma. Selected writings
of Mahatma Gandhi. Boston: Beacon, 1951; The Gandhi reader.
Bloomington: Indiana University Press, 1956; Cabral, Amílcar.
Unity and struggle: speeches and writings of Amílcar Cabral. Nova York: Monthly
Review Press, 1979.
[21] Cf. Memmi, Albert. The colonizer and the colonized. Nova York: The Orion
Press, 1965; Dos Santos, Theotonio. Socialismo o fascismo: el
nuevo carácter de la dependencia... Buenos Aires: Periferia, 1973; Cardoso, Fernando Henrique e Faletto, Enzo. Dependencia y desarrollo
en America Latina. Cidade do México: Siglo XXI, 1969; Frank,
Andre G. Latin America: underdevelopment or revolution. Nova York: Monthly
Review, 1969; Rodney, Walter. How Europe underdeveloped
Africa. Londres: Bogle-L'Ouverture, 1973; Wallerstein,
Immanuel M. World-systems analysis: an introduction. Durham: Duke University
Press, 2004; The modern world-system, op. cit.; Bambirra,
Vania. Teoria de la dependencia: una anticritica. Cidade do México: Era, 1978; Dussel, Enrique. The invention of the Americas. Nova York:
Continuum, 1995; Escobar, Arturo. Encountering development.
Princeton: Princeton University Press, 1995; Chew, Sing C. e
Denemark, Robert A. (orgs.). The underdevelopment of development: essays in
honor of Andre Gunder Frank. Thousand Oaks, CA: Sage, 1996; Spivak, Gayatri Ch. A critique of postcolonial reason. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1999; Césaire, Aimé. Discourse on
colonialism. Nova York: New York University Press, 2000; Mignolo, Walter. Local histories/global designs. Princeton: Princeton
University Press, 2000; Afzal-Khan, Fawzia e Sheshadri-Crooks,
Kalpana (orgs.). The pre-occupation of postcolonial studies. Durham: Duke
University Press, 2000; Mbembe, Achille. On the postcolony.
Berkeley: University of California Press, 2001; Dean,
Bartholomew e Levi, Jerome M. (orgs.). At the risk of being heard: identity,
indigenous rights, and postcolonial states. Ann Arbor: University of Michigan
Press, 2003.
[22] Entre 1999 e 2002 realizei um projeto internacional sobre a "Reinvenção da
emancipação social", que envolveu sessenta pesquisadores de seis países (África
do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal) e cujos principais
resultados estão compilados numa coleção em sete volumes, dos quais já estão
publicados os cinco primeiros [Santos, Boaventura de S. (org.). Coleção
Reinventar a Emancipação Social: para Novos Manifestos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002] . Sobre as implicações
epistemológicas desse projeto, ver Santos, Boaventura de S. (org.).
Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004; sobre as ligações entre o projeto e o Fórum Social Mundial, ver Idem.
Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2005.
[23] Para o caso do terrorista, ver por exemplo Scheppele, Kim L. "Other
people's patriot acts: Europe's response to September 11". Loyola Law Review,
vol. 50, n. 1, 2004, pp. 89-148; "Law in a time of emergency:
states of exception and the temptations of 9/11". University of Pennsylvania
Journal of Constitutional Law, vol. 6, n. 5, 2004, pp. 1.001-83; "North American emergencies: the use of emergency powers in Canada and
the United States". International Journal of Constitutional Law, vol. 4, n. 2,
2006, pp. 213-43. Sobre o imigrante indocumentado, ver Genova,
Nicholas P. de. "Migrant 'illegality' and deportability in everyday life".
Annual Review of Anthropology, n. 31, 2002, pp. 419-47; Hansen, Thomas B. e Stepputat, Finn (orgs.). Sovereign bodies:
citizens, migrants, and states in the postcolonial world. Princeton: Princeton
University Press, 2004; Silverstein, Paul A. "Immigrant
racialization and the new savage slot: race, migration, and immigration in the
new Europe". Annual Review of Anthropology, n. 34, 2005, pp. 363-84; Sassen, Saskia. Guests and aliens. Nova York: The New Press, 1999. Sobre o refugiado, ver Akram, Susan M. "Scheherezade meets
Kafka: two dozen sordid tales of ideological exclusion". Georgetown Immigration
Law Journal, n. 14, 1999, pp. 51-150; Menefee, Samuel P. "The
smuggling of refugees by sea: a modern day maritime slave trade". Regent
Journal of International Law, n. 2, 2004, pp. 1-28; Akram,
Susan M. e Karmely, Maritza. "Immigration and constitutional consequences of
post-9/11 policies involving Arabs and Muslims in the United States". U.C.
Davis Law Review, vol. 38, n. 3, 2005, pp. 609-99. Com base na
noção de "orientalismo" de Edward Said, Susan Akram ("Orientalism revisited in
asylum and refugee claims". International Journal of Refugee Law, vol. 12, n.
1, 2000, pp. 7-40) identifica uma nova forma de estereó tipo
que chama de "neo-orientalismo", a qual afeta a avaliação metropolitana dos
pedidos de asilo e refúgio por parte de pessoas provenientes do mundo árabe ou
muçulmano.
[24] Sobre as implicações dessa onda, ver os títulos citados na nota anterior e
também os seguintes: Immigrant Rights Clinic (New York University School of
Law). "Indefinite detention without probable cause...". New York University
Review of Law & Social Change, vol. 26, n. 3, 2001, pp. 397-430; Chang, Nancy. "The USA Patriot Act...". Guild Practitioner, vol. 58,
n. 3, 2001, pp. 142-58; Lobel, Jules. "The war on terrorism
and civil liberties". University of Pittsburgh Law Review, vol. 63, n. 4, 2002,
pp. 767-90; Whitehead, John W. e Aden, Steven H. "Forfeiting
enduring freedom for homeland security...". American University Law Review,
vol. 51, n. 6, 2002, pp. 1.081-133; Zelman, Joshua D. "Recent
developments in international law: anti-terrorism legislation - part one: an
overview". Journal of Transnational Law & Policy, vol. 11, n. 1, 2002, pp.
183-200; Barr, Bob. "USA Patriot Act and progeny threaten the
very foundation of freedom". Georgetown Journal of Law & Public Policy,
vol. 2, n. 2, 2004, pp. 385-92.
[25] Refiro-me aqui aos países das regiões periféricas e semiperiféricas do
sistema-mundo moderno, que após a II Guerra Mundial foram denominadas "Terceiro
Mundo" (cf. Santos, Toward a new common sense, op. cit., pp. 506-19). Sobre as
sweatshops, ver Rodríguez-Garavito, César A. "Nike's law: the anti-sweatshop
movement...". In: Santos, Boaventura S. e Rodríguez-Garavito, César A. (orgs.).
Law and globalization from below. Cambridge: Cambridge University Press, 2005,
pp. 64-91, bem como a bibliografia ali citada.
[26] Cf. David, C. W. A. "The fugitive slave law of 1793 and its antecedents".
The Journal of Negro History, vol. 9, n. 1, 1924, pp. 18-25; Tushnet, Mark. The American law of slavery, 1810-1860. Princeton:
Princeton University Press, 1981, pp. 169-88.
[27] Cf. International Court of Justice. "Legal consequences of the
construction of a wall in the occupied Palestinian territory". Israel Law
Review, vol. 38, nos 1-2, 2005, pp. 17-82.
[28] Cf. Dörmann, Knut. "The legal situation of unlawful/unprivileged
combatants". International Review of the Red Cross, n. 849, 2003, pp. 45-74; Gill, Terry e Sliedgret, Elies van. "A reflection on the legal
status and rights of 'unlawful enemy combatant'". Utrecht Law Review, vol. 1,
n. 1, 2005, pp. 28-54.
[29] Assim, profissionais do direito são solicitados a acomodar a pressão
proveniente da reorganização da doutrina convencional, alterando regras de
interpretação e redefinindo o objetivo dos princípios e das hierarquias entre
eles. Um exemplo revelador é o debate entre Alan Dershowitz e seus críticos.
Ver Dershowitz, Alan. Why terrorism works: understanding the threat, responding
to the challenge. New Haven: Yale University Press, 2002; "Reply: torture without visibility and accountability is worse than
with it". University of Pennsylvania Journal of Constitutional Law, n. 6, 2003,
p. 326; "The torture warrant: a response to professor
Strauss". New York Law School Law Review, vol. n. 48, 2003, pp. 275-94; Posner, Richard. "The best offense", New Republic, 2/9/ 2002; Strauss, Marcy. "Torture". New York Law School Law Review, n.
48, 2004, pp. 201-74.
[30] Essa resolução antiterrorismo veio na esteira da Resolução 1.373 de 28/9/
2001, que por sua vez foi adotada como resposta aos ataques de 11 de Setembro.
Para uma análise detalhada do processo de aprovação da Resolução 1.566, ver
Saul, Ben. "Definition of 'terrorism" in the UN Security Council: 1985-2004".
Chinese Journal of International Law, vol. 4, n. 1, 2005, pp. 141-66.
[31] Ver Scheppele, "Law in a time of emergency", op. cit.; Agamben, Giorgio.
State of exception. Chicago: University of Chicago Press, 2004.
[32] Um bom exemplo da lógica legal abissal subjacente à construção de uma
vedação na fronteira entre México e Estados Unidos encontra-se em Glon, Justin
C. "Good fences make good neighbors: national security and terrorism - time to
fence in our Southern border". Indiana International & Comparative Law
Review, vol. 15, n. 2, 2005, pp. 349-88.
[33] Cf. Atkinson, Rowland e Blandy, Sarah. "International perspectives on the
new enclavism and the rise of gated communities". Housing Studies, vol. 20, n.
2, 2005, pp. 177-86; Blakely, Edward J. e Snyder, Mary G.
Fortress America: gated communities in the United States. Cambridge, MA:
Brookings Institution Press/Lincoln Institute of Land Policy, 1999; Coy, Martin. "Gated communities and urban fragmentation in Latin
America: the Brazilian experience". GeoJournal, vol. 66, n. 1-2, 2006, pp. 121-
32.
[34] Como o caso de Guantánamo (cf. Amann, op. cit.). Um relatório do Comitê
Parlamentar Temporário Europeu de novembro de 2006 sobre a atividade ilegal da
CIA na Europa mostra como os governos europeus têm atuado como facilitadores
dos abusos da CIA, tais como a detenção secreta e a tortura. Essas operações à
margem da lei envolveram 1.245 vôos e aterrissagens de aviões da CIA na Europa
(alguns deles para transporte de prisioneiros) e a criação de centros de
detenção secreta na Polônia, na Romênia e provavelmente também na Bulgária,
Ucrânia, Macedônia e em Kosovo.
[35] O governo indireto foi uma política praticada nas antigas colônias
britânicas mediante a qual as estruturas tradicionais de poder local foram em
alguma medida incorporadas à administração colonial. Cf. Lugard, Frederick D.
The dual mandate in British tropical Africa. Londres: W. Blackwood, 1929; Perham, Margery. "A re-statement of indirect rule". Africa:
Journal of the International African Institute, vol. 7, n. 3, 1934, pp. 321-34; Malinowski, Bronislaw. "Indirect rule and its scientific
planning". In: Kaberry, Phyllis M. (org.). The dynamics of culture change: an
inquiry into race relations in Africa. New Haven: Yale University Press, 1945,
pp. 138-50; Furnivall, John S. Colonial policy and practice: a
comparative study of Burma and Netherlands India. Cambridge: Cambridge
University Press, 1948; Morris, Henry F. e Read, James S.
Indirect rule and the search for justice: essays in East African legal history.
Oxford: Clarendon Press, 1972; Mamdani, Mahmood. Citizen and
subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton:
Princeton University Press, 1996; "Historicizing power and
responses to power: indirect rule and its reform". Social Research, vol. 66, n.
3, 1999, pp. 859-86.
[36] Analiso em detalhe a emergência do fascismo social como conseqüência da
quebra da lógica do contrato social em Santos, A gramática do tempo, op. cit.,
pp. 317-40.
[37] Sobre a privatização da água e suas dramáticas conseqüências sociais , ver
Buhlungu, Sakhela e outros (orgs.). State of the nation: South Africa 2005-
2006. África do Sul: HSRC Press, 2006; Oliveira Filho,
Abelardo. Brasil: luta e resistência contra a privatização da água. Texto
apresentado à PSI InterAmerican Water Conference, San José, julho de 2002
<www.psiru.org/Others/BrasilLuta-port.doc , acessado em 23/5/ 2006> ; Olivera, Oscar. Cochabamba! Water war in Bolivia. Cambridge, MA:
South End Press, 2005; Flores, Carlos C. La guerra del agua de
Cochabamba: cinco lecciones para las luchas anti neoliberales en Bolivia
<www.aguabolivia.org, acessado em 2/2/ 2005> ; Bauer, Carl J.
Against the current: privatization, water markets, and the state in Chile.
Londres: Kluwer Academic, 1998; Trawick, Paul B. The struggle
for water in Peru. Stanford: Stanford University Press, 2003; Castro, José E. Water, power and citizenship: social struggle in the
Basin of Mexico. Basingstoke [Inglaterra]/ Nova York: Palgrave Macmillan, 2006. Ver também Klare, Michael. Resource wars: the new landscape of
global conflict. Nova York: Metropolitan Books, 2001; Hall,
David, Lobina, Emanuele e De La Motte, Robin. "Public resistance to
privatization in water and energy". Development in Practice, vol. 15, n. 3-4,
2005, pp. 286-301.
[38] Para o caso da Colômbia, ver Santos, Boaventura de S. e Villegas, Mauricio
G. El caleidoscopio de las justicias en Colombia. Bogotá: Siglo del Hombre,
2001.
[39] Uma análise eloqüente pode ser encontrada em Wilson, William J. The truly
disadvantaged: the inner city, the underclass and public policy. Chicago:
University of Chicago Press, 1987.
[40] Renner, Karl. Die Rechtsinstitute des Privatrechts und ihre soziale
Funktion: ein Beitrag zur Kritik des Burgerlichen Rechts. Stuttgart: Gustav
Fischer, 1965.
[41] Mamdani, Citizen and subject..., op. cit., cap. 2.
[42] Nos últimos anos vem-se produzindo uma vasta literatura teórica e empírica
sobre procedimentos institucionais baseados na colaboração entre atores não-
estatais (firmas, associações civis, ONGs, sindicatos etc.), em lugar da
regulação estatal. Em contraposição ao rigor e à imposição, essa abordagem
enfatiza a brandura e a obediência voluntária mediante uma ampla variedade de
designações: "regulação responsiva" (Ayres, Ian e Braithwaite, John. Responsive
regulation: transcending the deregulation debat. Nova York: Oxford University
Press, 1992), "lei pós-regulatória" (Teubner, Gunther.
"Transnational politics: contention and institutions in international
politics". Annual Review of Political Science, vol. 4, 1986, pp. 1-20), "lei branda" (Snyder, Francis. Soft law and institutional
practice in the European Community. Florença: European University Institute,
1993 [EUI Working Paper Law no 93/5] ; "Governing
globalisation". In: Likosky, Michael (org.). Transnational legal processes:
globalisation and power disparities. Londres: Butterworths, 2002, pp. 65-97; Trubek, David e Moscher, James. "New governance, employment
policy, and the European social model". In: Teubner, Gunther (org.). Governing
work and welfare in a new economy. Berlim: De Gruyter, 2003, pp. 33-58; Mörth, Ulrika (org.). Soft law in governance and regulation.
Cheltenham, UK: E. Elgar, 2004; Trubek, David e Trubek, Louise
G. "Hard and soft law in the construction of social Europe". European Law
Journal, vol. 11, n. 3, 2005, pp. 343-64), "experimentalismo
democrático" (Dorf, Michael e Sabel, Charles. "A constitution of democratic
experimentalism". Columbia Law Review, vol. 98, n. 2, 1998, 267-473; Unger, Roberto M. Democracy realized. Londres: Verso, 1998), "governança cooperativa" (Freeman, Jody. "Collaborative governance in
the administrative state". UCLA Law Review, vol. 45, 1997, pp. 1-98), "regulação externalizada" (O'Rourke, Dara. "Outsourcing regulation:
analysing non-governmental systems of labor standards monitoring". Policy
Studies Journal, vol. 31, 2003, pp. 1-29) ou simplesmente "governanç a" (MacNeil, Michael, Sargent, Neil e Swan, Peter (orgs.). Law,
regulation and governance. Ontário: Oxford University Press, 2000; Nye, Joseph e Donahue, John (orgs.). Governance in a globalizing
world. Washington, DC: Brookings Institution, 2000). Para uma
crítica, ver Santos, Fórum Social Mundial, op. cit., pp. 29-63.
[43] Não me ocupo aqui dos debates atuais sobre cosmopolitismo. Na sua longa
história, o cosmopolitismo significou universalismo, tolerância, patriotismo,
cidadania global, comunidade global de seres humanos, culturas globais etc. O
que mais freqüentemente ocorre quando esse conceito é aplicado - como
instrumento para descrever uma realidade ou como instrumento em lutas políticas
- é que o caráter incondicionalmente inclusivo de sua formulação abstrata é
utilizado em nome de interesses excludentes de um grupo social específico. De
certo modo, o cosmopolitismo tem sido privilégio daqueles que podem usufruí-lo.
A forma como retomo esse conceito prevê a identificação dos grupos cujas
aspirações são negadas ou tornadas invisíveis pelo uso hegemônico do conceito,
mas que podem ser beneficiados pelo uso alternativo do conceito. Parafraseando
Stuart Hall, que levantou uma questão semelhante em relação ao conceito de
identidade ("Who needs identity?". In: Hall Stuart e Du Gay, Paul (orgs.).
Questions of cultural identity. Londres: Sage, 1996, pp. 1-17), pergunto: quem precisa do cosmopolitismo? A resposta é simples: todo
aquele que for vítima de intolerância e discriminação necessita de tolerância;
todo aquele a quem seja negada a dignidade humana básica necessita de uma
comunidade de seres humanos; todo aquele que seja não-cidadão necessita da
cidadania numa dada comunidade ou nação. Em suma, os socialmente excluídos,
vítimas da concepção hegemônica de cosmopolitismo, necessitam de um tipo
diverso de cosmopolitismo. Assim, o cosmopolitismo subalterno constitui uma
variante oposta. Da mesma forma que a globalização neoliberal não reconhece
quaisquer formas alternativas de globalização, também o cosmopolitismo sem
adjetivos nega a sua própria especificidade. O cosmopolitismo subalterno de
oposição é uma forma cultural e política de globalização contra-hegemônica. É o
nome dos projetos emancipatórios cujas reivindicações e critérios de inclusão
social vão além dos horizontes do capitalismo global. Outros, com preocupações
similares, também adjetivaram o cosmopolitismo: "cosmopolitismo enraizado"
(Cohen, Mitchell. "Rooted cosmopolitanism: thoughts on the left, nationalism,
and multiculturalism". Dissent, vol. 39, n. 4, 1992, pp. 478-83), "cosmopolitismo patriótico" (Appiah, Kwame A. "Cosmopolitan patriots".
In: Cheah, Pheng e Robbins, Bruce (orgs.). Cosmopolitics: thinking and feeling
beyond the natio. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998, pp. 91-
116), "cosmopolitismo vernacular" (Bhabha, Homi. "Unsatisfied:
notes on vernacular cosmopolitanism". In: García-Moreno, Laura e Pfeifer, Peter
C. (orgs.). Text and nation. Londres: Camden House, 1996, pp. 191-207; Diouf, Mamadou. "The Senegalese Murid trade diaspora and the making of
a vernacular cosmopolitanism". Public Culture, vol. 12, n. 3, 2000, pp. 679-
702), "etnicidade cosmopolita" (Werbner, Richard.
"Cosmopolitan ethnicity, entrepreneurship and the nation: minority elites in
Botswana". Journal of Southern African Studies, vol. 28, n. 4, 2002, 731-53), "cosmopolitismo das classes trabalhadoras" (Werbner, Pnina.
"Global pathways: working class cosmopolitans and the creation of transnational
ethnic worlds". Social Anthropology, vol. 7, n. 1, 1999, pp. 17-37). Sobre as distintas formas de cosmopolitismo, ver Breckenridge, Carol e
outros (orgs.). Cosmopolitanism . Durham: Duke University Press, 2002.
[44] Santos, "A critique of lazy reason", op. cit.; A gramática do tempo, op.
cit., pp. 93-136.
[45] Cf. Santos, Boaventura de S. "Os processos da globalização". In: idem
(org.). Globalização e ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, pp. 25-104; A gramática do tempo, op. cit.
[46] Sobre a dimensão cosmopolita do Fórum Social Mundial, ver Fisher, William
F. e Ponniah, Thomas. Another world is possible: popular alternatives to
globalization at the World Social Forum. Londres: Zed Books, 2003; Sen, Jai e outros (orgs.). World Social Forum: challenging empires.
Nova Déli: Viveka Foundation, 2004; Santos, Fórum Social
Mundial, op. cit.
[47] Gandhi provavelmente foi o pensador-ativista dos tempos modernos que mais
consistentemente pensou e atuou em termos não-abissais. Tendo experienciado as
exclusões radicais típicas do pensamento abissal, não se desviou do seu
propósito de construir uma nova forma de universalidade capaz de libertar tanto
o opressor como a vítima, conforme reafirma Ashis Nandy: "A visão gandhiana
desafia a tentação de igualar o opressor na violência e de readquirir uma auto-
estima própria como competidor num mesmo sistema. É uma visão assente numa
identificação com os oprimidos que exclui a fantasia da superioridade do estilo
de vida do opressor, tão profundamente enraizada na consciência daqueles que
reclamam falar em nome das vítimas da história" (Traditions, tyrannyand
utopias: essays in the politics of awareness. Oxford: Oxford University Press,
1987, p. 35).
[48] Cf. Santos, Toward a new common sense, op. cit., pp. 506-19.
[49] Cf. Santos, A gramática do tempo, pp. 137-78.
[50] Imaginemos que um camponês africano e um funcionário do Banco Mundial se
encontrassem num campo africano: segundo o pensamento abissal, esse encontro
seria simultâneo (pleonasmo intencional) mas não contemporâneo; já de acordo
com o pensamento pós-abissal o encontro é simultâneo e ocorre entre dois
indivíduos contemporâneos.
[51] Hegel, Georg W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970.
[52] Esse reconhecimento da diversidade e da diferenciação é um dos componentes
fundamentais da Weltanschaung [visão de mundo] por meio da qual podemos
imaginar o século XXI. Essa Weltanschaung é radicalmente diferente daquela
adotada pelos países centrais no início do século XX, quando a imaginação
epistemológica estava dominada pela idéia de unidade.
[53] Ortega y Gasset, Jose. Ideas y creencias. Madri: Revista de Occidente,
1942.
[54] As epistemologias feministas têm sido centrais para a crítica dos
dualismos "clássicos" da modernidade, tais como natureza/cultura, sujeito/
objeto e humano/não-humano, e da naturalização das hierarquias de classe,
gênero e raça. Para algumas contribuições relevantes às críticas feministas da
ciência, ver Keller, Evelyn F. Reflections on gender and science. New Haven:
Yale University Press, 1985; Harding, Sandra. The science
question in feminism. Ithaca: Cornell University Press, 1986; Is science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and
epistemologies. Bloomington: Indiana University Press, 1998; Idem (org.). The feminist standpoint theory reader. Nova York:
Routledge, 2003; Haraway, Donna J. Primate visions: gender,
race, and nature in the world of modern science. Londres: Verso, 1992; Modest-witness [...]: feminism and technoscience. Nova York:
Routledge, 1997. Uma panorâmica interessante, ainda que
centrada no Norte global, encontra-se em Creager, Angela, Lunbeck, Elizabeth e
Schiebinger, Londa (orgs.). Feminism in twentieth-century: science, technology,
and medicine. Chicago: University of Chicago Press, 2001. Quanto às epistemologias pós-coloniais, ver, entre muitos outros,
Alvares, Claude. Science, development and violence: the revolt against
modernity. Nova Déli: Oxford University Press, 1992; Dussel,
The invention of the Americas, op. cit.; Guha, Ramachandra e Martínez-Allier,
Juan. Varieties of environmentalism: essays North and South. Londres:
Earthscan, 1997; Quijano, op. cit.; Mignolo, Local histories/
global designs, op. cit.; Mbembe, op. cit.
[55] Cf. Santos, Meneses e Nunes, op. cit.
[56] Cf. Santos, A crítica da razão indolente, op. cit., pp. 225-53.
[57] A prevalência dos juízos cognitivos ao efetuar determinada prática de
conhecimento não conflita com a prevalência dos juízos ético-políticos na
decisão a favor de um determinado tipo de intervenção real que esse
conhecimento específico possibilita em detrimento de intervenções alternativas
possibilitadas por conhecimentos alternativos.
[58] Cf. Lansing, John S. "Balinese 'water temples' and the management of
irrigation". American Anthropologist, vol. 89, n. 2, 1987, pp. 326-41; Priests and programmers: technologies of power in the engineered
landscape of Bali. Princeton: Princeton University Press, 1991; Lansing, John S. e Kremer, James N. "Emergent properties of Balinese
water temples: coadaptation on a rugged fitness landscape". American
Anthropologist, vol. 95, n. 1, 1993, pp. 97-114.
[59] Cf. Eze, Emmanuel Ch. (org.). Postcolonial African philosophy: a critical
reader. Oxford: Blackwell Publishers, 1997; Karp, Ivan e
Masolo, Dismas (orgs.). African philosophy as cultural inquiry. Bloomington:
Indiana University Press, 2000; Hountondji, Paulin J. The
struggle for meaning: reflections on philosophy, culture, and democracy in
Africa. Athens: Ohio University Center for International Studies, 2002.
[60] Nessa área os problemas estão freqüentemente associados à linguagem, a
qual de fato é um instrumento essencial para o desenvolvimento de uma ecologia
de saberes. Desse modo, a tradução deve operar nos níveis lingüístico e
cultural. A tradução cultural representa uma das tarefas mais desafiantes para
filósofos, cientistas sociais e ativistas no século XXI. Abordo esse tema com
maior detalhe em Santos, "A critique of lazy reason", op. cit.; A gramática do
tempo, op. cit.
[61] Wiredu, Kwasi. "Are there cultural universals?". Quest, vol. 4, n. 2,
1990, pp. 5-19; Cultural universals and particulars: an
African perspective. Bloomington: Indiana University Press, 1996.
[62] Sobre essa questão e o debate que ela suscita, ver Idem. "African
philosophy and inter-cultural dialogue". Quest, vol. 11, n. 1/2, 1997, pp. 29-
41; Osha, Sanya. "Kwasi Wiredu and the problems of conceptual
decolonization". Quest, vol. 13, n. 1/2, 1999, pp. 157-64.
[63] Bloch, Ernst. The principle of hope. Cambridge, MA: The MIT Press, 1995
[1947], p. 241. Sobre a sociologia das emergências, ver
Santos, "A critique of lazy reason", op. cit.; A gramática do tempo, op. cit.,
pp. 93-136.
[64] De uma perspectiva distinta, a ecologia dos saberes procura a mesma
complementaridade que Paracelso identificou entre "Archeus", a vontade
elementar na semente e no corpo, e "Vulcanus", a força natural da matéria. Cf.
Paracelsus. Mikrokosmos und Makrokosmos. Munique: Eugen Diedrichs Verlag, 1989,
p. 33; ver também Idem. The hermetic and alchemical writings.
Nova York: University Books, 1967.
[65] Cf. Santos, Boaventura de S. Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva,
1998.
[66] Cf. Epicurus. Epicurus's morals: collected and faithfully englished.
Londres: Peter Davies, 1926; Lucretius. Lucretius on the
nature of things. New Brunswick: Rutgers University Press, 1950. O conceito de clinamen entrou na teoria literária pela mão de Harold
Bloom, que em A angústia da influência se serve da noção para explicar a
criatividade poética como uma "tresleitura" que é antes "transleitura" (o termo
original é "misreading", um ler-mal que é também ler-mais-do-que-bem, ou
corrigir). Diz Bloom: "Um poeta desvia-se do poema do seu precursor executando
um clinamen em relação a ele" (The anxiety of influence. Oxford: Oxford
University Press, 1973, p. 14 [em tradução do autor] ).
[67] Cf. o ensaio introdutório de Frederic Manning em Epicurus, op. cit., pp.
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