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BrBRHUHu0101-33002008000100006

BrBRHUHu0101-33002008000100006

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-3300
ano2008
Issue0001
Article number00006

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Escravidão e sociabilidade capitalista: um ensaio sobre inércia social

Nas duas últimas décadas a história social do trabalho passou por profunda revisão no Brasil, resultado da rotinização da investigação empírica rigorosa em grupos de pesquisa estáveis em diversas instituições acadêmicas, que levou à descoberta de novas fontes, à exploração inovadora de antigos documentos, à proliferação de novas hipóteses e ao surgimento de categorias explicativas renovadas. Este ensaio sobre a inércia social brasileira se vale dessa nova historiografia para formular algumas hipóteses sociológicas sobre o padrão de incorporação dos trabalhadores nos primórdios da ordem capitalista no Brasil.

Sugiro aqui que a escravidão deixou marcas muito profundas no imaginário e nas práticas sociais posteriores, operando como uma espécie de lastro do qual as gerações sucessivas tiveram grande dificuldade de se livrar. Em torno dela construíram-se uma ética do trabalho degradado, uma imagem depreciativa do povo ou do elemento nacional, uma indiferença moral das elites quanto às carências da maioria e uma hierarquia social de grande rigidez, vazada por enormes desigualdades. Esse conjunto de heranças conformou o ambiente que acolheu o trabalho livre no final do século XIX e no início do século XX, ditando-lhe os parâmetros mais gerais de reprodução. É o caráter multidimensional da herança escravista na sociabilidade capitalista que pretendo reconstituir aqui, como primeiro passo de um argumento mais geral sobre as condições de reprodução da desigualdade social no Brasil1.

A LENTA TRANSIÇÃO PARA O TRABALHO LIVRE Aspecto saliente da revisão historiográfica em curso é o reconhecimento da escravidão como momento da história do trabalho no país2. Por razões não inteiramente evidentes, mas que terão mais a ver com dinâmicas disciplinares do que com a ordem do mundo, os estudos sobre escravidão fazem parte da genealogia de um ramo da investigação social que se poderia denominar "relações raciais", enquanto a investigação sobre a constituição da sociedade do trabalho no país encontrou seu momento inaugural na imigração européia. Não era para ser necessariamente assim, haja vista que um pensador eminente como Florestan Fernandes se interessou primeiramente pelo destino do ex-escravo, porque via em sua figura "marginal" (ou "desajustada") a expressão das mazelas da construção da ordem social competitiva, ou de nossa revolução burguesa. Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, seguidores do mestre, também se dedicaram ao tema na mesma chave. Na historiografia, é bom lembrar o trabalho fundador de Emilia Viotti da Costa e os estudos de historiadores brasilianistas como A. J. R.

Russell-Wood, Stuart Schwartz, Robert Conrad, Peter Eisenberg e Herbert Klein, para citar apenas alguns dos que se dedicaram ao destino social dos ex-escravos ainda na ordem escravista3.

A razão para essa divisão disciplinar talvez resida em certo encadeamento de idéias defendido a partir dos anos 1950, segundo o qual o capitalismo moderno brasileiro teria surgido em São Paulo, com o que seria suficiente buscar ali suas raízes socioeconômicas. Isso mesmo depois de Celso Furtado ter demonstrado, nos mesmos anos 1950, que, se os capitais liberados pelo café estavam na origem da acumulação industrial paulista (e brasileira, por extensão), o capitalismo no Brasil era desigual mas integrado, de modo que o destino do Nordeste ou da Amazônia não estava desconectado da dinâmica paulista. Como resultado, a vasta literatura sobre a consolidação do capitalismo e do mercado de trabalho no Brasil teve um inegável caráter "são- paulocêntrico".

A concentração das verbas de pesquisa naquele estado foi condição necessária desse desdobramento, mas não suficiente. Tão importante quanto esse fator foi a noção de modernidade que presidiu a elaboração dos programas de pesquisa econômica e social não apenas na USP, mas também no Iseb, na UFRJ e na FGV.

Segundo essa noção, um país em busca de um lugar na senda da modernidade deveria ser capitalista, industrial e urbano, demarcando sua posição no concerto das nações, ademais, a partir de uma posição autodeterminada, o que seria possível se conseguisse criar condições endógenas de desenvolvimento econômico. Residirá ao menos parte da explicação para o fato de que até muito recentemente a transição para o trabalho livre tenha sido interpretada na chave da imigração estrangeira, estabelecendo-se uma ruptura cabal entre o passado escravista e o novo ambiente competitivo. Tudo se passou como se a ordem escravocrata tivesse sido enterrada com a Abolição, não transferindo ao momento posterior nada de sua dinâmica (e inércia) mais geral. Qualificando e tornando mais complexa essa interpretação, literatura mais recente permite a formulação de fortes hipóteses que enfatizam, ao lado das evidentes rupturas, profundas continuidades do passado escravista no processo de construção da ordem capitalista no Brasil4.

A primeira hipótese é de que o modelo paulista de transição para o trabalho livre não foi de modo algum típico ou representativo dos desdobramentos verificados no restante do país. Em muitos sentidos, São Paulo foi exceção, que apenas ali a imigração se apresentou (e foi implementada) como a única solução possível para aquilo que os contemporâneos perceberam como "o problema da mão-de-obra"5. Em estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Ceará ou Maranhão as funções de produção (agrícola ou nas minas, nos pampas ou na cidade) foram sendo paulatinamente assumidas por ex-escravos ou seus descendentes, além de brasileiros livres, os quais, antes vistos como agentes apenas intersticiais na ordem escravista, tiveram seu status social inteiramente revisto por novas pesquisas. Em Pernambuco, por exemplo, no início dos anos 1870, quando a imigração ganhara as mentes da elite paulista, a maior parte do trabalho rural era realizada por homens livres que haviam sido expropriados de suas pequenas propriedades a partir de fins do século XVIII, como mostrou Palácios6. Segundo o autor, isso fez parecer aos analistas da transição para o trabalho livre que em Pernambuco o processo teria sido "suave", "indolor", quando na verdade a (violenta) expropriação do campesinato ocorrera décadas antes, liberando a mão-de-obra que a lavoura da cana demandaria a partir de 1850, época em que se intensificou a perda de escravos para o café paulista. Isso se passou em todo o Nordeste7, bem como em Minas Gerais e no Sul: quando teve início a imigração estrangeira para São Paulo, o trabalho cativo representava apenas uma pequena minoria. Esses desdobramentos nos levam a considerar que não houve uma transição para o trabalho livre (ou, como prefere Fragoso, "não-escravo", que nos séculos XVIII e XIX boa parte dos homens livres estava submetida a diversos tipos de trabalho forçado8), mas várias transições ocorridas em distintos momentos históricos nas diferentes regiões do país.

As diferenças regionais quanto ao ritmo da transição são reflexo de outro aspecto relevante da ordem escravista: a existência de diversos regimes de escravidão. Sabe-se hoje com muito mais propriedade que eram diferentes os padrões de sujeição dos cativos nos canaviais de Pernambuco ou da Bahia, nos pampas gaúchos, nas minas de ouro e diamantes das Gerais, nos cafezais do Vale do Paraíba, em cidades pequenas do interior de São Paulo, numa cidade grande como o Rio de Janeiro ou no interior dos engenhos de açúcar. Neste último caso, por exemplo, hierarquias ocupacionais distinguiam os escravos segundo a qualificação para o uso adequado do maquinário, a capacidade de produção do açúcar com determinado padrão de qualidade etc., gerando expectativas de ascensão social e de alforria que não existiam nos campos de cana ou de algodão9.

No Nordeste, pequenos proprietários de escravos tendiam a ter relação menos predatória com sua força de trabalho, comprada a preços altos para os padrões econômicos da maioria. Permitiam a constituição de famílias e não raro alforriavam cativos em seus testamentos. A baixa capitalização de boa parte dos proprietários nordestinos, ademais, fez que a escravidão convivesse com o trabalho livre (ou não-escravo) nos momentos de maior demanda por trabalho, como o da colheita da cana10. Roceiros mais ou menos independentes dos potentados locais eram acionados sazonalmente para o trabalho nas terras dos donos de escravos11. Isso foi menos freqüente nas regiões mais ricas ou nos grandes engenhos, capazes de adquirir a escravaria de que necessitavam para o trabalho.

Na cidade do Rio de Janeiro, os escravos tinham muita liberdade de movimento, que boa parte de seus senhores vivia justamente de seu trabalho como vendedores ambulantes, condutores de palanquins, carregadores de água ou dejetos para as famílias e toda sorte de serviço compatível com sua condição de "escravos de ganho" ou "de aluguel"12, muitos dos quais conseguiram comprar sua alforria com o pecúlio acumulado13. Isso contrastava profundamente com o cativeiro do café no Vale do Paraíba, caracterizado por extensas jornadas e diminutas possibilidades de manumissão. Além disso, a escravidão do século XIX foi diversa, sobretudo de 1850 em diante, quando o preço do escravo sofreu acréscimos sucessivos e tornou irracional o uso predatório que dele se fazia nos séculos anteriores.

A identificação de diferentes regimes de escravidão mostrou que o Brasil- colônia não era um território dominado exclusivamente por plantations monocultoras, nem a sua estrutura social tão simples como se supôs até pelo menos inícios dos anos 197014. Escravos e donos de terras eram sem dúvida as classes centrais, mas havia uma infinidade de outros grupos também importantes para a sustentabilidade da ordem escravista, que incluíam artesãos e artífices nos ofícios urbanos, comerciantes, tropeiros, criadores de animais, pequenos produtores de víveres para o mercado interno, mercadores de escravos, financistas, milicianos, construtores, feitores, pequenos proprietários rurais produzindo para si mesmos etc. Mais ainda, a grande extensão de terra ocupada por monocultura e empregando centenas de escravos foi exceção no período colonial e depois.

De fato, censo realizado na Bahia em 1788 registrou número médio de escravos por propriedade variando de quatro a 11,7 nas diversas regiões do Recôncavo Baiano. Em 1816-17, quando a população escrava representava perto de 31% da população brasileira, a média para todo o Recôncavo era de 7,2 escravos por proprietário. É verdade que os 10% mais ricos detinham pelo menos metade da escravaria, mas ainda assim a média de escravos nessas grandes propriedades era de 34 pessoas15. Proporções semelhantes foram encontradas nas herdades paulistas nas três primeiras décadas do século XIX: em 1804 apenas 1% das propriedades agrícolas tinha quarenta escravos ou mais, e ocupava 13% do total de escravos; em 1829 esses números haviam crescido, mas ainda assim as grandes propriedades correspondiam a apenas 3% do total, ocupando 24% dos escravos16. A média geral não ultrapassava sete escravos por proprietário. A situação não era muito distinta no mesmo período em algumas cidades de Minas Gerais, na Zona da Mata em Pernambuco ou no interior paulista17. Em certas regiões do Paraná a escravidão não era importante na segunda metade do século XVIII, e as propriedades voltadas para a produção de bens de subsistência eram geridas por famílias que em nada se assemelhavam, por exemplo, às famílias patriarcais pernambucanas estudadas por Gilberto Freyre18.

Uma importante conseqüência da identificação de diferentes regimes de escravidão foi a constatação de que a partir do século XVIII o trabalho escravo conviveu com diversos regimes de trabalho não-escravistas. Isso quer dizer que a transição para o trabalho livre (ou não-escravo) foi muito lenta, tendo um marco apenas convencional em 1850, ano da proibição do tráfico negreiro. Homens livres ou libertos se avolumaram ao longo dos séculos, obtendo meios de vida cujas formas perderam cada vez mais o cariz intersticial que lhes atribuiu a literatura até meados dos anos 198019.

É verdade que as taxas de mortalidade dos escravos no Brasil eram muito altas em comparação, por exemplo, com as dos Estados Unidos, e nisso a historiografia recente corrobora a interpretação corrente20. Compilando dados de inúmeras fontes, Schwartz mostrou que no Brasil do último quarto do século XIX a expectativa de vida dos escravos ao nascer variava em torno de 19 anos21. O horror que essa cifra causa ao leitor contemporâneo não é maior quando se sabe que a esperança de vida de um brasileiro não-escravo era de apenas 27 anos em 1879. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida dos escravos era de 35,5 anos por volta de 1850, apenas 12% menor do que a da população total e muito superior à de um brasileiro médio. As condições de vida na Colônia e até muito longe no século XIX eram ruins para todos e muito piores para os escravos. Isso levou Schwartz a concluir que o sistema não se sustentaria sem o tráfico atlântico e a contínua reposição da escravaria, morta aos milhares a cada ano.

Se isso é verdade isto é, se o sistema escravista brasileiro foi altamente predatório em relação à força de trabalho escrava , também é certo que a manumissão foi elemento constitutivo dos diversos regimes de escravidão no país. Nos engenhos de açúcar da Bahia ou de Pernambuco, nas minas de ouro das Gerais, nos campos de gado do Sul, na cidade do Rio de Janeiro, nos cafezais paulistas, nas plantações de algodão do Nordeste, em toda parte se alforriavam mulheres empregadas nas casas-grandes, filhos ilegítimos dos brancos ou escravos velhos, doentes e incapazes para o trabalho. Muitos cativos, diligentes, compraram sua alforria com o fruto de seu trabalho escravos de ganho no Rio de Janeiro e em Minas Gerais são exemplos clássicos, mas não únicos22. Na cidade de Campinas, em 1829, 8,6% dos proprietários de um a nove escravos eram negros ou pardos23, o que indica possibilidades reais não apenas de liberdade como também de ascensão social de ex-cativos e seus descendentes.

Ademais, sabe-se que os escravos fugiam em grande número, o que gerou grande tensão social durante todo o século XIX.

Portanto, a transição para o trabalho livre no Brasil não foi necessariamente uma transição para o trabalho capitalista ou assalariado24. Ao longo dos séculos, os cativos e/ou seus descendentes se libertaram da escravidão e passaram a compor a população não diretamente envolvida com a economia escravista, que com o tempo se avolumou em virtude da miscigenação. Em 1850, quando cessou o tráfico negreiro, havia cerca de dois milhões de escravos numa população estimada em oito milhões de almas25, das quais mais de 90% viviam no campo. A força de trabalho não era majoritariamente escrava. O censo demográfico de 1872 contou perto de dez milhões de brasileiros, dos quais 1,5 milhão de cativos. Como considerar intersticiais, ou sem lugar, os 75% de brasileiros que não eram escravos em 185026? Esse grupo heterogêneo, mestiço, majoritariamente miserável, disperso pelo território nacional e afeito à migração constante em busca de meios de vida27 não participava diretamente do setor dinâmico da economia (que então se deslocava para as lavouras de café de São Paulo), mas era parte da dinâmica social mais geral. É certo que os meios de sobrevivência ao alcance desse grupo eram restritos e altamente precários, muitas vezes gravitando em torno das grandes propriedades, de modo que poderiam ser considerados cativos de outros mecanismos de sujeição, como o colonato e a parceria, mas ainda assim seu status era inequívoco, mesmo que definido na negativa: era um grupo composto por não-escravos28.

CONSEQÜÊNCIAS DA LENTA TRANSIÇÃO Esse processo de lenta construção de uma população livre que, embora não diretamente envolvida no universo das relações socioeconômicas definidoras da estrutura hegemônica da Colônia e do Império, não pode ser considerada intersticial ou supérflua foi decisivo para o que se seguiu ao final da escravidão. Atenho-me a cinco desdobramentos relevantes para aquilo que me interessa aqui, isto é, a configuração social que deu sentido às relações de classe tecidas nos inícios da constituição da "ordem social competitiva" no Brasil.

Em primeiro lugar, a opção paulista pela imigração como solução para o "problema da mão-de-obra", em detrimento do elemento nacional, é expressão patente da grande inércia da estrutura social em crise. Os capitalistas de São Paulo chegaram a considerar "acumulação primitiva"29 como uma espécie de desdobramento da Lei de Terras de 1850, que vedou o acesso às terras devolutas aos que não as pudessem comprar, com isso impedindo ao ex-escravo e ao futuro imigrante acesso legal a uma gleba30. Contudo, a grande questão que movia os paulistas era se o elemento nacional era expropriável. muito ele vivia, em grande número, integrado à sociedade escravista em condições de sobrevivência precárias (mas estáveis), não diretamente associadas à produção mercantil31.

Talvez fosse possível obrigar os "vadios" a vender sua força de trabalho por lei, sob pena de prisão ou castigos físicos. Mas quanto seria preciso estender a noção de vadiagem para abranger todos os que a lavoura de café em expansão demandava, incluindo, por exemplo, os pequenos posseiros ou os proprietários de terras ou animais espalhados pelo vasto território provincial? Essa alternativa requeria um efetivo policial ramificado no território, o que não existia32, ou então milícias privadas de grande envergadura, impensáveis num momento em que os capitais disponíveis estavam todos comprometidos com a lavoura cafeeira.

Mas a inércia se manifestava em outra dimensão, mais profunda, porque fruto direto do impacto dos séculos de escravidão no imaginário da elite paulista. Os debates na Assembléia Legislativa da província durante os anos 1870 e seguintes, confrontando posições imigrantistas e contrárias, revelam a forte resistência de parte majoritária da elite governante a incorporar o elemento nacional à lavoura de café por meio da combinação de incentivos monetários e repressão à vadiagem33. A resistência combinava preconceito racial e desprezo pelo trabalhador livre nacional, visto como preguiçoso, inconfiável e privado de mentalidade moderna (burguesa, acumulativa), que se satisfazia com muito pouco, de modo que não podia ser submetido ou disciplinado por incentivos pecuniários. Ademais, boa parte do elemento nacional tinha cor, e homem de cor, assim imaginava a elite paulista, se submetia pela força e pelo látego.

Parecia impensável tentar sua adesão voluntária ao trabalho. Nesse aspecto, é reveladora a carta do conselheiro Paula Souza transcrita por Florestan Fernandes em seu clássico sobre a integração do negro na sociedade de classes34, na qual ele argumenta ao destinatário que os negros libertos trabalhavam do mesmo modo como faziam quando escravos simplesmente porque "precisam de viver e de alimentar-se, e, portanto, de trabalhar, coisa que eles compreendem em breve prazo [depois da libertação]". Pressuposta nessa argumentação está a concepção obviamente compartilhada pelo destinatário de que a única maneira de arrancar trabalho desse "bruto" era a força, que ele parecia geneticamente propenso à preguiça e à vagabundagem. O Conselheiro, que aprendera rapidamente como funcionava o mercado de trabalho livre, sabia que a fome era o melhor corretivo para presumidas propensões atávicas à preguiça35.

A percepção preconceituosa do destinatário da missiva decorria do segundo desdobramento da inércia da ordem anterior: a degradação do trabalho manual pela escravidão36. Por muitos séculos, a justificativa racional, legal e teológica para o cativeiro do negro africano foi sua indelével impureza, seus costumes bárbaros, pagãos, portanto heréticos, sua inferioridade, sua opaca e assustadora alteridade37. Nesse aspecto, e somente nele, o escravo no Novo Mundo tinha o mesmo estatuto do escravo grego ou romano na célebre formulação de Hegel: ele reconhecia seu senhor como tal em sua liberdade e individualidade (enquanto um ser-para-si), mas este não o reconhecia da mesma maneira; como o escravo fosse coisa, natureza, ser-em-si, portanto incapaz de liberdade (ou de consciência de si), sua identidade (como alteridade) era inacessível ao senhor.

No mundo antigo, porém, a escravização derivou de uma luta em que um dos oponentes (o vencedor) colocava sua liberdade acima de tudo, enquanto o outro (o perdedor) desejava sobretudo a vida, estando por isso disposto a abrir mão de sua própria liberdade. Para Hegel, a sujeição do escravo, ainda que resultasse do desequilíbrio de forças entre os oponentes, tinha um inegável aspecto de consentimento, na medida em que o desejo do mais fraco pela vida (ou pela autopreservação) o levava à submissão àquele que desejava a liberdade, a qual podia assegurar por ser mais forte38.

Na escravidão moderna, a dialética da dominação escravista não pode ser lida senão como metáfora. É claro que o escravo define seu senhor, no sentido de que este não seria livre sem a existência daquele. Nem sua identidade de senhor seria apreensível (no sentido de verdadeira) sem a posse do corpo do outro como capacidade de manipulação e transformação da natureza, da qual o senhor, por isso mesmo, se distancia, interpondo entre si e a coisa (natureza) o desejo subjugado do outro, coisificado por sua vez. É claro também que por isso mesmo a liberdade do senhor se torna imediatamente subordinação à coisidade do escravo, sem o qual seu acesso à natureza (ou sua sobrevivência material) não seria possível. O senhor está condenado a ou é escravo de seu escravo. Mas cessa aqui a imanência do processo, pelo menos por três motivos.

Primeiro, porque no caso do Novo Mundo a guerra que opôs os desejos dos dois agentes não os confrontou diretamente. O escravo foi capturado em terra longínqua por agente intermediário com quem o futuro senhor se relacionava pela mediação do mercado. Para o escravo, o "senhor" é um ente abstrato, que muda de rosto à medida que à força ele deixa sua tribo, à força embarca num navio negreiro onde sua vida estará constantemente em risco, à força é vendido numa praça pública e encaminhado a seu proprietário talvez final. "Preferir a vida", nesse caso, materializa-se na constante confrontação do escravo com aquele que precisa afirmar sua superioridade física, seus recursos desiguais, seu desejo de sujeição do outro não para se apropriar dos frutos de sua manipulação da natureza, mas para se apropriar do escravo como mercadoria. O mercador de escravos não é o senhor de Hegel senão num sentido muito metafórico, e a metáfora, nesse caso, não ajuda em nada a compreensão da relação de sujeição. O mercador (ou seu preposto feitor) não é outra coisa senão violência crua, imediatamente desumanizadora de ambos, feitor e escravo.

Em segundo lugar, a guerra de sujeição do escravo não se de uma vez por todas, e o escravo não "consente" de uma vez por todas. A relação de subjugação deve ser reposta todo dia por todo novo senhor, especialmente pelo destinatário final da "mercadoria", que tem de lidar com a manutenção de coletividades inteiras de escravos. Aqui também a dialética hegeliana da subordinação consentida não pode ser lida senão como metáfora. O escravo moderno não escolhe a vida, que a escravidão é simplesmente uma sentença de morte, ainda que cumprida num prazo mais longo do que aquelas que terminam no patíbulo ou no cadafalso. Como demonstrou Schwartz, um escravo baiano que sobrevivesse dez anos numa fazenda com quarenta escravos veria todo o plantel ser renovado por morte, não raro por suicídio39. O senhor precisava do escravo coletivo, mas prescindia da pessoa de cada escravo em particular.

Aqui se revela o caráter tirânico da dominação escravista no Novo Mundo e em especial no Brasil, onde a escravidão foi particularmente cruenta e predatória: o senhor podia tomar qualquer decisão quanto à vida de seu escravo, conforme seu arbítrio. Se considerasse que um escravo o ameaçava, podia mandar cortar seus pés, cegá-lo, supliciá-lo com chibatadas ou matá-lo. A relação senhor/ escravo não era um pacto: o senhor não estava obrigado a preservar a vida de seu escravo individual; muito ao contrário, sua liberdade de tirar a vida daquele que coisificara definia sua posição de senhor, tanto mais quanto o fluxo de escravos no mercado lhe permitia repor o plantel sem maiores restrições. Entre nós, a escravidão não foi apenas negação do escravo como pessoa (sua coisificação), mas sua negação como ser vivo. Está-se falando de séculos de horror ao longo dos quais a escravidão, dilapidando os corpos negros dos cativos e corrompendo as mentes de seus senhores, precisava ser reposta dia após dia e com violência sempre renovada, destruindo constantemente um dos pólos da dialética hegeliana, que por isso precisava ser constantemente reposto. A escravidão longeva acabou por abstrair o rosto do escravo, despersonalizando-o e coisificando-o de maneira reiterada e permanente. Ao final restava apenas a sua cor, definitivamente associada ao trabalho pesado e degradante.

Por fim, a metáfora hegeliana não leva em conta o fato de que a busca do negro africano como mão-de-obra escrava tinha sua desumanidade como pressuposto.

Nesse sentido, o negro não foi coisificado pela escravidão. Portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses ou franceses viam os africanos de antemão como seres bárbaros, como escravos da necessidade, logo como coisa, opaca em sua individualidade. Daí a transformá-los em mercadoria era um passo menor, que tão-somente os desterritorializava sem interferir em sua essência de coisa mas que poderia "salvar sua alma" ao arrancá-los do universo pagão em que habitavam40.

Desse modo, a degradação ex ante do negro africano deteriorou o trabalho que ele, como coisa, executava. A longevidade da escravidão, que em seu aspecto predatório despersonificou o cativo, proporcionou a construção da imagem do trabalho manual como algo indigno de outro que não o negro, o qual, ainda que "atavicamente propenso ao não-trabalho" por "bárbaro" e de "sangue viciado", podia ser dobrado pela força41. A imagem do trabalho e do trabalhador consolidada ao longo da escravidão fez-se portanto da sobreposição de hierarquias sociais de cor, de status social associado à propriedade e de dominação material e simbólica, numa mescla de sentidos que convergiram para a percepção do trabalho manual como algo degradado42. Dizendo-o de modo mais enfático, a ética do trabalho oriunda da escravidão foi uma ética de desvalorização do trabalho, e seu resgate do ressaibo da impureza e da degradação levaria ainda muitas décadas43.

O terceiro desdobramento importante da lenta transição para o trabalho livre, estreitamente ligado aos anteriores, é que o aparato de financiamento, reprodução, supervisão e repressão do trabalho escravo, altamente descentralizado e com frouxos controles por parte do Império português e depois brasileiro, consolidou um padrão de violência estatal e privada que sobreviveu ao fim da escravidão, transferindo-se para diversas esferas da relação entre o Estado e o "mundo do trabalho". Com efeito, o processo de consolidação das forças de repressão e administração da justiça no Brasil Colônia e até muito longe no século XIX conferiu grande poder aos potentados locais na repressão e no julgamento dos atos considerados desviantes. Oliveira Vianna e Gilberto Freyre chamaram a atenção para o problema. Na ordem patriarcal brasileira, o senhor de engenho ou grande proprietário de terras tinha poder de vida e morte sobre sua família e seus escravos. A dispersão das fazendas no vasto território nacional que dificultava a ação de possível força policial centralizada e sua relativa autonomia em termos de auto-sustento que reduzia as trocas econômicas entre elas e não estimulava a interdependência dos agentes econômicos nem os tornava dependentes dos humores da política, o que os distanciava dos negócios do Estado teriam conduzido à hipertrofia da vida privada, de modo que qualquer interferência de forças policiais nas relações senhor/escravo era vista como ingerência indevida do poder público44.

Parte dessa interpretação foi matizada por pesquisa historiográfica mais rigorosa, que mostrou, por exemplo, que os senhores de engenho em Pernambuco eram também os deputados federais, governadores, prefeitos e altos gerentes da máquina estatal, inclusive policial; que os legisladores paulistas que decidiram pela imigração estrangeira eram em boa parte senhores de terra; e que mesmo os bacharéis gestores do Império no Rio de Janeiro provinham da elite agrária de suas províncias de origem45. Portanto, os negócios do Estado não eram indiferentes aos grandes proprietários, mas o principal se mantém: a marca das relações sociais até finais do século XIX (com heranças evidentes no século XX) foi a privatização dos mecanismos de controle social, em meio à qual o Estado funcionou como aliado subsidiário do proprietário de escravos no disciplinamento de sua "mercadoria". Isso decorreu em parte da tradição portuguesa de controle social, baseada em milícias civis mobilizáveis a qualquer momento pelos "homens de bem" em nome da Coroa, maneira por esta encontrada de fazer-se presente em todo o território imperial, mas na forma de poder delegado, o que conferia grande autonomia e arbítrio aos poderosos locais46.

A renovação da organização do controle social no século XIX manteve essas prerrogativas, como o demonstra, no âmbito do Rio de Janeiro, a existência do Calabouço, onde agentes penitenciários aplicavam chibatadas em escravos levados até ali expressamente para esse fim. Até pelo menos os anos 1830 o proprietário não precisava provar que seu cativo havia cometido um delito: simplesmente encaminhava o "delinqüente" com a indicação de quantas chibatadas deveria levar (em geral duzentas), com isso eximindo a si e à sua família do espetáculo da tortura, que muitas vezes levava o "condenado" à morte47. O Calabouço perdurou até a década de 1870, cumprindo essa mesma função entre outras. Segundo Holloway, no Rio de Janeiro do início do século XIX, a polícia funcionava como extensão, sancionada pelo Estado, do domínio da classe proprietária sobre as pessoas que lhe pertenciam. A polícia cresceu acostumada a tratar os escravos e as classes inferiores livres de maneira semelhante, e com a diminuição do número de escravos na população após meados do século as atitudes e práticas do sistema de repressão foram aos poucos sendo transferidas para as classes inferiores não-escravas e perduraram48.

Não razão para supor que o padrão prevalecente na capital do Império não teria se reproduzido em outras paragens urbanas49, que dirá rurais. Por outro lado e este aspecto é decisivo , a virtual inexistência de conflitos externos que requeressem a profissionalização de força nacional voltada à proteção de nossas fronteiras fez que o embrião de exército constituído no século XIX e as milícias locais se dedicassem à construção e à repressão de inimigos internos. Evidentemente, as classes laboriosas foram encaradas como classes perigosas em toda parte do mundo e em vários momentos da história ocidental50. O massacre de Peterloo, em Manchester, em 181951, a cruenta repressão do operariado durante as "jornadas revolucionárias" de 1848 em Paris52 e o Domingo Sangrento em São Petersburgo, em 1905, são exemplos da exorbitância das forças da ordem na repressão a movimentos por vezes pacíficos em suas intenções (como os de Peterloo e São Petersburgo), o que denota o imenso temor das classes dominantes diante das maiorias despossuídas.

No Brasil, a visão do escravo como potencial inimigo coletivo recrudesceu no imaginário das elites em seguida à revolução haitiana de 1804, que libertou o país do colonizador francês massacrando-o cruelmente. O medo de catastrófica rebelião escrava que pusesse fim à "civilização" de corte europeizante acentuou-se a partir de 1835 com a Revolta dos Malês na Bahia53, ponto culminante de uma série de atritos e levantes que contribuíram para criar no país a idéia da agressividade dos escravos, que mantinha seus senhores em tensão permanente54. Parte da ferocidade dos castigos infligidos aos cativos por aqui terá decorrido desse medo superlativo55, com motivações mais imaginárias do que reais. No caso de São Paulo, com o fim do tráfico atlântico em 1850 e a importação de escravos de outras províncias brasileiras, em especial do Nordeste, a percepção do inimigo interno foi ainda mais decisiva para a construção do padrão de repressão aos negros revoltosos, combinando forças privadas e estatais em reações de violência extremada à menor manifestação de resistência escrava56. Como bem marcou Florestan Fernandes, prevaleceu [na sociedade escravocrata] a orientação de impedir todo florescimento da vida social organizada entre os escravos e os libertos, por causa do temor constante da "rebelião negra". Como escrevia Perdigão Malheiros [em 1866], o escravo aparecia como "um inimigo doméstico" e "um inimigo público": "é o vulcão que ameaça constantemente a sociedade, é a mina pronta a fazer explosão à menor centelha"57.

Durante a Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, a repressão estatal reproduziu em grande medida o padrão dos automatismos exacerbados que o medo da rebelião dos cativos gerava nas camadas dominantes décadas antes. José Murilo de Carvalho aponta que no Brasil de então, em caso de revoltas populares, nunca havia processo contra o grosso dos presos. Processavam-se apenas os líderes, muitas vezes elementos da elite. Os restantes eram simplesmente colocados em navios e desterrados para algum ponto remoto. Nem mesmo passavam pela Casa de Detenção, onde teriam ficado registrados seus dados pessoais58.

Está-se falando, no caso dessa revolta, de algumas centenas de pessoas degredadas sem julgamento ou formação de prova, enquanto aos outros milhares de revoltosos não se reconhecia participação voluntária na crise, preferindo-se tratá-los como incautos manipulados por desordeiros e desclassificados perspectiva compartilhada por luminares como Rui Barbosa, Olavo Bilac e muitos outros59.

No final do século XIX, o medo das hordas de desconhecidos ainda estava presente no imaginário das elites paulistas. Em 1893, Siqueira Campos, secretário de Justiça de São Paulo, apontava ao presidente do Estado, Bernardino de Campos, que a possível causa da sensação de insegurança experimentada pelos paulistanos era "o aumento crescente da população e principalmente [...] de uma população flutuante, que não se pode conhecer e que se renova de momento a momento"60. O medo, aqui como então, era o medo do desconhecido, daquilo que não podia ser controlado ou dominado porque não estava submetido aos mecanismos da dominação tradicional. Era o medo do outro opaco, anônimo, que podia ser contido pela repressão brutal e indiferenciada61.

Siqueira Campos afirmava ainda que esse sentimento de medo e insegurança destoava da "fisionomia geral do nosso povo"62, que seria pacífico. Esse ponto de vista anuncia a quarta conseqüência da lenta transição para o trabalho livre: no âmbito das relações sociais entre capitalistas e operários, com o início da industrialização, persiste a percepção do trabalhador brasileiro pelas elites econômicas como "pacífico", "ordeiro" ou "cordial", por oposição aos imigrantes, portadores de ideologias alienígenas como o anarquismo ou o comunismo. A noção do brasileiro "pacífico" freqüenta o mesmo campo semântico da idéia de que nossa escravidão teria sido "benigna" (na clássica formulação de Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala63). Ambas supõem classes subalternas que "conhecem seu lugar", o que por conseguinte legitima a repressão e a violência (privada e estatal) quando essas mesmas classes se rebelam ou afirmam sua autonomia.

A idéia da escravidão "benigna" foi cultivada ainda no século XIX, e deveu muito à lavra de viajantes como Auguste de Saint-Hilaire, Henry Koster e John Luccock, em cujos livros é comum encontrar apreciações favoráveis sobre o tratamento dispensado aos escravos no país64. Essas apreciações influenciaram profundamente o trabalho de Gilberto Freyre, que por sua vez deixou sua marca em muito do que se escreveu sobre a escravidão no Brasil nos anos 1940 e 50, sobretudo por investigadores norte-americanos interessados em nossa "democracia racial"65. Freyre atribuiu ao caritativo catolicismo português e à influência moura (ou árabe) no modo de organização da família colonial a estrutural benevolência do senhor de escravos no Brasil, em comparação aos escravocratas norte-americanos, por exemplo66. É verdade que Freyre não desconsiderava aquilo que chamava de atitude "sadista" de certos senhores de engenho, fruto de um arranjo em que a violência sempre estava no horizonte do controle e da submissão dos cativos. O "sadismo do mando" sustentaria a "tradição conservadora no Brasil"67, de modo que estaria no centro do equilíbrio de nossa vida política, mas a crueldade contra os escravos seria exceção, não regra, e não teria vigência na casa-grande (esse tipo ideal da ordem social brasileira, segundo o mesmo Freyre), sendo por vezes necessária no trato do cativo da lide da terra.

Essa imagem foi contestada desde o berço por abolicionistas de vária estirpe como uma propaganda antiabolicionista do Império voltada a "difundir um quadro róseo da situação dos escravos"68 e com isso justificar o cativeiro. Ademais, a ideologia da "benignidade" teve de se haver com o temor de uma rebelião escrava nos moldes da ocorrida no Haiti e com a crescente rebeldia dos escravos na segunda metade do século69. Ou seja, nem a escravidão era benigna, nem os escravos eram pacíficos ou submissos, mas na ideologia dominante a passividade era o qualificativo mais comum. Na verdade, a elite dominante do Império, sobretudo nas grandes cidades, via na violência cotidiana um desvio de conduta por parte de indivíduos degenerados, bárbaros, perdidos para a civilização70.

O caráter ordeiro da população brasileira foi louvado em diversos momentos da nossa história, remota ou recente71, e está na base do argumento, defendido por muitos pensadores da hora, segundo o qual a transição para o trabalho livre se deu de forma pouco traumática, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos ou no Haiti, por exemplo. Nas primeiras décadas do século XX, a nascente sociologia brasileira veria no caráter pacífico do povo um elemento definidor da nacionalidade com raízes profundas na ordem anterior, marcada pelo familismo, o individualismo e o patrimonialismo, isto é, nossa herança ibérica, avessa a conflitos abertos e sobretudo à ação coletiva. Essas idéias estão igualmente presentes em Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna ou Gilberto Freyre, ainda que encadeadas de forma diversa em cada qual e tratadas com maior ou menor distanciamento crítico. Nessa concepção, a ação coletiva aparece como corrupção da ordem natural das coisas, marcada pela sujeição individual dos subalternos a um potentado local que seria o senhor do destino de todos.

O elemento alienígena trazido ao país pela imigração européia estrangeiro mas branco, e por isso civilizado foi enquadrado na mesma ordem de percepções, aparecendo como portador de idéias sem lugar na realidade social brasileira, porque gestadas em um ambiente conturbado e afeito à luta de classes, oposto ao clima de concórdia pretensamente imperante no país. O estrangeiro com idéias socialistas ou anarquistas emergiu como um outro ainda mais perigoso do que o escravo, pois seria capaz de contaminar corações e mentes com idéias que desestabilizariam a estrutura de dominação tradicional. O escravo fora temido por sua diferença e sobretudo por sua opacidade, que suscitaram o temor de uma sublevação negra que pusesse fim à civilização. O temor em relação ao socialista ou anarquista europeu ia além. Ele não queria o fim da civilização, mas um arranjo civilizatório que o incluísse de forma não-subordinada ou igualitária. Seu proselitismo poderia revelar ao brasileiro pacífico e ordeiro que sua posição na hierarquia social era injusta e que a ordem, portanto, era ilegítima. Poderia transformar o povo no inimigo interno que o escravo representara no ideário das elites.

Opera-se então a transposição do imaginário sobre a escravidão para a ordem capitalista: o povo interessa na qualidade de conjunto de indivíduos resignados à sua posição na hierarquia de posições, que recompensa cada qual desde que cada qual reconheça naquele que provê a recompensa alguém com autoridade sobre si. O temor da ação coletiva do povo atiçada pelo elemento alienígena é o equivalente funcional do medo da rebelião escrava. A lenta modernização da sociedade brasileira nos inícios do século XX, que muito aos poucos corroeu as estruturas tradicionais de dominação, não diluiu esse medo, que foi adquirindo novas feições e novos conteúdos72, entre os quais o anticomunismo foi talvez o mais importante, como sugere Motta73.

Merece breve menção aqui um último desdobramento da longevidade da escravidão, relativo às expectativas dos trabalhadores acerca de seu padrão de vida.

Antonio Candido foi o primeiro a chamar a atenção para a indiferenciação social nas comunidades caipiras paulistas nos inícios do século XX, fruto de uma divisão social do trabalho incipiente e de uma escassez de recursos generalizada, de modo que os integrantes dessas comunidades se mantinham apenas com "mínimos vitais"74. Tal situação levaria Maria Sylvia de Carvalho Franco a construir argumento engenhoso para explicar o caráter violento da sociabilidade dos homens livres na ordem escravocrata. Segundo ela, a necessidade de relações de suplementação entre pessoas iguais na pobreza em localidades rurais com alta fluidez nômade, onde não se consolidavam "antigas e inquebrantáveis obrigações recíprocas"75 nem se construíam princípios de autoridade fundados na hierarquia de funções, conduzia à simplificação dos mecanismos de ajustamento inter- humanos com base na valentia e na banalização da violência. Prossegue a autora, em longa mas crucial passagem: Sem vínculos, despojados, [os grupos caipiras] a nenhum lugar pertenceram e a toda parte se acomodaram. Foi também a mesma marginalização que preservou simples o sistema social, ordenando funções básicas para além dos confins do grupo. Basta lembrar que o soldado, o padre, a autoridade pública estiveram sempre referidos a instituições alheias ao mundo caipira. A espantosa pobreza da cultura provém da mesma fonte. É suficiente indicar como a produção "colonial" favoreceu o enorme desperdício de força de trabalho, característico desses grupos. Foi nesse contexto que nasceu o "preguiçoso" caipira, que esteve colocado na feliz contingência de uma quase "desnecessidade de trabalhar", com a organização social e a cultura se moldando no sentido de garantir-lhe uma larga margem de lazer, mas que sofreu, simultaneamente, a miserável situação de poder produzir apenas o estritamente necessário para garantir uma sobrevivência pautada em mínimos vitais76.

Interessam-me dois aspectos nesse argumento. Em primeiro lugar, a idéia de que a sociabilidade na ordem escravista era espantosamente fluida, no sentido de que a população rural livre era em grande medida desgarrada de laços locais de dominação e vivia constantemente em busca de meios de vida precários no vasto território nacional. Desse modo, a escravidão produziu um paradoxo: a estrutura social era profundamente hierárquica e rígida nas posições superiores mas bastante maleável na base, onde a pobreza igualava todos77. Em segundo lugar, e mais importante, a sociedade escravista tornava o homem livre um pária em sentido amplo, incluindo nisso suas expectativas quanto ao padrão de vida. O horizonte da vida de cada um era o horizonte da vida de todos, que por sua vez era delimitado pelo trabalho escravo. O homem livre (branco ou não) se distinguia do escravo apenas pelo fato de não ser propriedade de alguém, sendo muito semelhante a ele em termos de alimentação, vestimenta, moradia, esperança de vida ao nascer etc.78. Nesse ambiente, as aspirações eram delimitadas no horizonte dos mínimos vitais tal como estabelecido pelo padrão de medida de todo o sistema: a exploração da força de trabalho escrava. Isso explica em grande parte por que o trabalhador livre não podia ser facilmente expropriável nem submetido às penas do trabalho extenuante, que ele tinha alternativa à submissão ao trabalho degradado pela escravidão. Ainda que essa alternativa estivesse no nível da subsistência mais crua, era aceita como natural em face da pobreza geral da sociedade.

No caso de São Paulo, essa situação foi ferida de morte com o início da imigração, quando a população local se viu na constrangedora realidade de ser tratada como um contingente de cidadãos de segunda categoria em relação aos imigrantes italianos, que chegavam com "regalias" como o acesso a uma gleba de terra para cultivo próprio. Mas isso não ocorreu nas outras províncias do Império, cuja realidade manteve muito de seus traços mais marcantes por longo período, transferindo para as gerações seguintes os baixos patamares de aspirações, confrontados a cada passo com a escassez e a pobreza, que restringiam sobremaneira os horizontes de possibilidade de todo o ordenamento social. Homens e mulheres não eram escravos no sentido de não mais serem propriedade de outrem, mas continuavam a ser "escravos da necessidade", o que também constituía o horizonte cultural no qual se forjavam as aspirações e os projetos de vida79. O fim da escravidão não mudou esse quadro: em meio à generalizada pobreza no campo e à inacessibilidade das posições superiores, interditadas pela rígida hierarquia social, as expectativas de melhoria de vida permaneceram achatadas por várias décadas, somente ampliando-se com a intensificação da industrialização na segunda metade do século XX.

* * * Pode-se então afirmar, à guisa de conclusão, que esse quadro de inércia estrutural configurou o ambiente em que se teceu a sociabilidade capitalista no país. Isso significa que o caráter revolucionário do capitalismo teve de se haver com um ordenamento social bastante rígido em suas práticas e em seu imaginário muito mais rígido do que a literatura tradicional sobre o tema estava disposta a reconhecer. Tal rigidez se evidenciou na desqualificação do negro e do elemento nacional como trabalhadores aptos à lide capitalista; na percepção do próprio trabalho manual como atividade degradada, cabível somente a seres degradados; no encastelamento da elite econômica em suas posições de poder, temerosa das maiorias despossuídas (e desarmadas), vistas como inimigos potenciais e tratadas com violência desmedida quando se afirmavam na cena pública; na permanência de uma estrutura de dominação que rebaixava a mínimos vitais as expectativas de recompensa dos mais pobres, num ambiente em que a pobreza generalizada era o parâmetro de toda recompensa. A sociabilidade capitalista, em suma, teve de se haver com uma ordem profundamente antiliberal em suas práticas e visões de mundo80 e com uma ética da desvalorização do trabalho que por longo tempo impediu o reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos de direitos, isto é, como cidadãos81.

[1] Nesse sentido, o texto deve ser lido como uma introdução ao argumento geral, cujos desdobramentos serão dados a público oportunamente. Gostaria de registrar que as idéias aqui apresentadas foram gestadas ao longo de dois cursos ministrados no Iuperj em 2006 e 2007, sobre transição para o trabalho livre e formação de classe no Brasil. Aos mestrandos e doutorandos que me honraram com sua dedicação e debates, meus sinceros agradecimentos. Eximo-os, obviamente, dos equívocos que porventura permaneceram.

[2] Cf. Negro, Antonio Luigi e Gomes, Flavio. "Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho". Tempo Social, vol. 18, 1, 2006, pp. 217-40. Para uma síntese abrangente dessa nova historiografia, ver Fragoso, João. "O império escravista e a república dos plantadores". In: Linhares, Maria Y. (org.). História geral do Brasil. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 144-87 (cujas teses centrais o radicalizadas em Idem e Florentino, Manolo. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001).

[3] Costa, Emilia V. da. Da senzala à Colônia. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982 [1966] ; Da Monarquia à República: momentos decisivos. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1999; Conrad, Robert.

Children of God's fire: a documentary history of Brazilian slavery.

Pensilvânia: Pennsylvania State University Press, 1994; Eisenberg, Peter L. The sugar industry of Pernambuco: modernization without change, 1840-1919. Berkeley: University of California Press, 1974; Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil.

Campinas: Ed. Unicamp, 1989; Klein, Herbert S. "The trade in African slaves to Rio de Janeiro, 1795-1811". The Journal of African History, vol. 10, 4, 1969, pp. 533-49; Russel-Wood, A. J. R.

"Autoridades ambivalentes: o Estado do Brasil e a contribuição africana para 'a boa ordem na República'". In: Silva, Maria Beatriz N. da (org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 105-23; Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; Schwartz, Stuart B. Slaves, peasants and rebels: reconsidering Brazilian slavery. Chicago: University of Illinois Press, 1992; Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

[4] A revisão historiográfica sobre a transição para o trabalho livre não se aplica apenas ao caso brasileiro. Ver por exemplo, para o caso argentino e para uma visão geral sobre as Américas, respectivamente, Johnson, Lyman L. "The competition of slave and free labor in artisanal production: Buenos Aires, 1770-1815". In: Brass, Tom e Linden, Marcel van der (orgs.). Free and unfree labour. Berna: Peter Lang, 1997, pp. 265-80; Turner, Mary (org.). From chattel slaves to wage slaves: the dynamics of labour bargaining in the Americas. Kingston: Ian Randle, 1995. De modo algo radical, Marcel van der Linden ("Rumo a uma nova conceituação histórica da classe trabalhadora mundial". História [Unesp], vol. 24, 2, 2005, pp. 11-40) propõ e uma revisão da história da classe trabalhadora mundial.

[5] Essa questão, analisada no livro seminal de Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959), era candente na percepção das elites cafeicultoras de São Paulo, como mostrou Warren Dean em Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977). O tema foi retomado com grande propriedade por Célia M. M. Azevedo em Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites Brasil, século XIX (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, esp. caps. II e III). Em relação ao Nordeste, ver Andrade, Manuel C. de. A terra e o homem do Nordeste. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1980 [1963], pp. 88-93.

[6] Palácios, Guillermo. "Imaginário social e formação do mercado de trabalho: o caso do Nordeste açucareiro do Brasil no século XX". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 31, 1996 (pp. 123-39), pp. 127-28.

[7] "No Nordeste, a abolição ocorreu sem grandes reajustamentos e os ex- escravos foram incorporados às várias frações do campesinato nordestino. Seu destino foi, subseqüentemente, condicionado pela imobilidade econômica e social da região" (Hasenbalg, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.

Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005 [1979], p. 164). Esse mesmo autor chamou a atenção para a excepcionalidade paulista, extensiva ao modo de incorporação do negro no mercado de trabalho capitalista em expansão (cf. Idem.

"O negro na indústria: proletarização tardia e desigual". In: Idem e Silva, Nelson do V. Relações raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992, pp. 101-18).

[8] Fragoso, "O império escravista e a república dos plantadores", op. cit.

[9] Cf. Eisenberg, The sugar industry of Pernambuco, op. cit., e Homens esquecidos, op. cit.

[10] Cf. Andrade, op. cit., pp. 90-91.

[11] Cf. Schwartz, Slaves, peasants and rebels, op. cit., e Segredos internos, op. cit.

[12] Cf. Karasch, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850.

São Paulo: Cia. das Letras, 2000 [1987] ; Chalhoub, Sidney.

Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte.

São Paulo: Cia. das Letras, 1990; Florentino, Manolo (org.).

Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVIII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

[13] Estimativas de Debret para o Rio de Janeiro apontam que em quinze anos um escravo de ganho teria acumulado recursos suficientes para comprar sua liberdade (cf. Fragoso, "O império escravista e a república dos plantadores", op. cit.; Karash, op. cit.). Sobre o caso dos escravos de aluguel na cidade de São Paulo, em muitos sentidos semelhante à situação na Corte, ver Dias, Maria Odila L. da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

[14] O clássico Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, foi escrito nessa perspectiva simplificadora da estrutura social da Colônia. Análise sistemática que influenciou gerações de pesquisadores foi Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior.

[15] Cf. Schwartz, Segredos internos, op. cit., pp. 357-59.

[16] Cf. Luna, Francisco V. e Klein, Herbert S. The slave economy and society of São Paulo, 1750-1850. Stanford: Stanford University Press, 2003, p. 122.

[17] Cf., respectivamente, ibidem, p. 166; Eisenberg, The sugar industry of Pernambuco, op. cit. ; Moura, Denise A. S. de. Saindo das sombras: homens livres no declínio do escravismo. Campinas: CMU, 1998.

[18] Cf. Machado, Cacilda. "O patriarcalismo possível". Revista Brasileira de Estudos Populacionais, vol. 23, 1, jan./jun., 2006, pp. 167-86 (o artigo retoma a contundente crí tica do modelo freyriano de patriarcalismo formulada em Corrêa, Mariza. "Repensando a família patriarcal brasileira". In: Arantes Neto, Antonio A. A. e outros. Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1994). A autora revela que em São José dos Pinhais, estado do Paraná, 58% dos donos de escravos possuíam somente de um a quatro cativos.

[19] Cf., por exemplo, Kowarick, Lucio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987; Souza, Laura de M. e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004 [1982] .

[20] Por exemplo, a que se encontra em Furtado, op. cit., cap. 21.

[21] Schwartz, Segredos internos, op. cit., p. 303.

[22] Sobre os escravos de ganho no Rio de Janeiro, ver Karash, op. cit.; Sampaio, Antônio Carlos J. "A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial 1650-1750". In: Florentino (org.), op.

cit., pp. 287-329. Para o caso de Minas Gerais, ver Russell- Wood, Escravos e libertos no Brasil colonial, op. cit., cap. 7.

[23] Cf. Fragoso, "O império escravista e a república dos plantadores", op.

cit., p. 155.

[24] Os estudos mais importantes nessa direção, principalmente sobre o século XVIII, são de Russell-Wood (Escravos e libertos no Brasil colonial, op. cit.).

Uma ótima revisão da vasta bibliografia produzida até a década de 1980 encontra-se em: Schwartz. Slaves, peasants and rebels, op. cit.

[25] Cf. Oliveira Vianna, Francisco J. "Resumo histórico dos inquéritos censitários realizados no Brasil", 1920 (<www.ibge.gov.br/_home/estatistica/ populacao/censohistorico>, acessado em setembro de 2007).

[26] A sociedade medieval européia produziu seus "desclassificados", ou "desadaptados", como aponta Georges Duby (Economia rural e vida no campo no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1987), mas como pequenas minorias, não como o destino mais provável dos não-escravos. Ver também Castel, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 119ss.

[27] "A população [brasileira] cresceu vertiginosamente ao longo dos séculos XVIII e XIX, as terras foram apropriadas pelo capital e a pauperização crescente obrigou-a a contínuos deslocamentos" (Moura, op. cit., p. 27). No mesmo período, o Brasil meridional, por exemplo, serviu de pólo de atração para vasta população não-branca livre ou liberta vinda de outras regiões, que se instalou nos campos para produzir bens de subsistência longe da dinâmica econômica mais geral da Colônia (cf. Lima, Carlos A. M. "Sertanejos e pessoas republicanas: livres de cor em Castro e Guaratuba 1801-35". Estudos Afro- Asiáticos, vol. 24, n-º 2, 2002, pp. 317-44). Maria Sylvia de Carvalho Franco (Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1976) mostra como o nomadismo caracterizava as populaç ões pobres na ordem escravista, aspecto decisivo da frouxidão de seus laços sociais. Ver também Huggins, Martha K. From slavery to vagrancy in Brazil. New Brunswick: Rutgers University Press, 1985.

[28] Ver Costa, Da Monarquia à República, op. cit., pp. 310-11; Fragoso, "O império escravista e a república dos plantadores", op.

cit.

[29] Como ocorrera em Pernambuco no século XVIII, conforme mostrou Palácios, op. cit.

[30] Na feliz expressão de José de Souza Martins (O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979), a condição para o fim do cativeiro de seres humanos era tornar a terra cativa.

[31] "Como pretender que homens que plantavam o suficiente para sobreviver, que viviam ao deus-dará, se submetessem, em troca de parcos salários, ao penoso trabalho exigido nas fazendas? Trabalhar como assalariados na grande lavoura significava, para eles, equiparar-se à condição de escravos" (Costa, Da Monarquia à República, op. cit., p. 311).

[32] Cf., entre outros, Huggins, op. cit.; Holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997; Vellasco, Ivan de A. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça Minas Gerais, século 19.

Bauru: Edusc, 2004; Russel-Wood, "Autoridades ambivalentes", op. cit.

[33] Cf. os debates transcritos em Azevedo, op. cit., esp. pp. 125ss. Ver também Dean, op. cit., pp. 95-124.

[34] Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. ed. São Paulo: Ática, 1978, pp. 31-33.

[35] Nas palavras de um observador estrangeiro em pleno século XX: "O negro é indolente; o trabalho lhe inspira um profundo horror; ele se permitirá ser levado a ele por fome ou sede" (Denis, Pierre. Brazil. Londres, 1911, apud Andrews, George R. "Black and white workers: São Paulo, Brazil, 1888-1928". The Hispanic American Historical Review, vol. 68, 3, 1988 [pp. 491-524], p.

515).

[36] "[P]ara o branco, o trabalho, principalmente o trabalho manual, era visto como obrigação de negro, de escravo [...]. A idéia de trabalho trazia consigo uma sugestão de degradação" (Costa, Da senzala à Colônia, op. cit., p. xi).

[37] Sobre o processo de conversão do outro opaco em "alienígena" monstruoso e por isso inacessível em sua identidade, ver Kearney, Richard. Strangers, gods and monsters. Londres/Nova York: Routledge, 2003. Lilia M.

Schwarcz (Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1987) articula engenhoso argumento sobre o processo de construç ão do negro brasileiro pela imprensa da segunda metade do século XIX como "violento e degenerado" e, depois, como "estranho" e "estrangeiro".

[38] Cf. Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Menezes. Vozes: Petrópolis, 1992, pp. 126-34.

[39] Schwartz, Segredos internos, op. cit.

[40] Visão compartilhada pelo jurista inaciano Alonso de Sandoval, pelo padre Antônio Vieira, pelo "humanista" Maurício de Nassau e por tantos outros no século XVII (cf. Alencastro, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, esp. cap. 5). Mesmo abolicionistas radicais como Joaquim Nabuco (O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 142-45) viam o africano como um ser de "sangue viciado", uma nódoa pregada na face da nacionalidade pelos portugueses.

[41] "[A população do interior brasileiro] foi por mais de três séculos acostumada a considerar o trabalho do campo como próprio de escravos. Saída quase toda das senzalas, ela julga aumentar a distância que a separa daqueles não fazendo livremente o que eles fazem forçados" (Nabuco, op. cit., pp. 164- 65).

[42] Sobre a visão do trabalhador nacional por proprietários de terra de várias regiões como incapaz, preguiçoso, indolente, portanto inepto para o trabalho, ver Eisenberg. Homens esquecidos, op. cit.; The sugar industry of Pernambuco, op. cit., pp. 194-98. Sobre a percepção da elite paulista, ver Dean, op. cit.; Azevedo, op. cit.

[43] Algo semelhante ocorreu na França da primeira metade do século XIX, onde o trabalho industrial foi encarado, por exemplo, como "corruptor das faculdades mentais", conforme se diz no Dictionnaire d'économie politique [1891-92] de Léon Say e Joseph Chailley, citado por Castel (op. cit., p. 288) em meio a outras apreciações sobre o operariado ("bárbaros", "vil multidão"...) que, segundo ele, teriam configurado um "racismo antioperário amplamente difundido [na] burguesia do século XIX". Em conseqüência, o movimento operário afirmou, desde a sua origem, "a dignidade do trabalho braçal e sua preeminência social enquanto verdadeiro criador das riquezas" como aspectos decisivos da construção da identidade de classe (ibidem, p. 443; ver também Thompson, Edward P. A formação da classe operária inglesa, vol. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987). Deu-se o mesmo no Brasil nos inícios do século XX, como sugerem, entre outros, Evaristo de Moraes Filho (O problema do sindicato único no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1952), Everardo Dias (História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Edaglit, 1962), Boris Fausto (Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1977), e Michael M. Hall e Paulo Sérgio Pinheiro (Classe operária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1981, vol. II).

[44] Como bem demonstrou Franco, op. cit.

[45] Cf., respectivamente, Eisenberg, The sugar industry of Pernambuco, op.

cit.; Dean, op. cit., e Azevedo, op. cit.; Carvalho, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: Ed. UnB, 1980.

[46] Cf. Costa, Ana Paula P. "Estratégias sociais e construção da autoridade".

Mneme (UFRN), vol. 7, n-º 18, out./nov. 2005, pp. 469-514.

[47] Cf. Holloway, op. cit.; Karasch, op. cit.

[48] Holloway, op. cit., p. 215.

[49] Para o caso paulista, ver Fausto, Boris. A criminalidade em São Paulo, 1880-1924. São Paulo: Brasiliense, 1984. Ao citar a descrição por um delegado de política de uma jovem de 20 anos acusada de furto em 1892 "Trata-se de uma preta, de estatura regular, cabelos encarapinhados, olhos grandes, bons dentes, lábios grossos" , portanto com termos típicos do mercado de escravos, o autor se pergunta: "Simples vestígio de um velho hábito ainda existente nos anos imediatamente posteriores à Abolição, em vias de desaparecer? Nada indica isso" (p. 54). Ver também Pinto, Maria Inez M. B. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo 1890-1914. São Paulo: Edusp, 1994. Sobre o caso baiano, ver Fraga Filho, Walter.

Encruzilhadas da liberdade: estórias de escravos e libertos na Bahia 1870- 1910. Campinas: Ed. Unicamp, 2006.

[50] Cf. Chevalier, Louis. Classes laboriouses et classes dangereuses à Paris pendant la première moitié du XIXème siècle. ed. Paris: Hachette, 1984 [ 1958].

[51] Cf. Thompson, Edward P. A formação da classe operária inglesa, vol. III.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, pp. 256ss.

[52] Cf. Tocqueville, Alexis de. Lembranças de 1848: as jornadas revolucionárias em Paris. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

[53] Cf. Reis, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

[54] Nas Minas Gerais, no século XVIII, era comum que escravos empunhassem armas na defesa dos interesses da Coroa, como mostra Ana Paula Costa ("Estratégias sociais e construção da autoridade", op. cit.) a exemplo desta passagem: "Em 1719, temendo atos sediciosos por parte da população negra da capitania, [o conde de Assumar] informava ao rei que se agravava o clima de tensão porque os negros tinham a seu favor 'a sua multidão e a néscia confiança de seus senhores, que não lhes fiavam todo gênero de armas, mas encobriam suas insolências e delitos'" (pp. 495-96). A idéia da "multidão" negra ameaçadora é sinônima da "onda negra" da segunda metade do século XIX, estudada por Azevedo (op. cit.).

[55] Enquanto no sul dos Estados Unidos o número de chibatadas por "malfeito" não ultrapassava 25, no Brasil era comum supliciar os cativos com duzentos ou mais golpes, muitas vezes ministrados por outros escravos.

[56] Exemplos podem ser encontrados em Dean, op. cit.; Azevedo, op. cit.; Schwartz, Segredos internos, op. cit.; Carvalho, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987; Machado, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. UFRJ/ Edusp, 1994.

[57] Fernandes, op. cit., pp. 56-57.

[58] Carvalho, Os bestializados, op. cit., p. 113.

[59] Cf. ibidem, p. 115. Ver também Sevcenko, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984; Pinheiro, Paulo Sérgio. Estratégia da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-35. São Paulo: Cia. das Letras, 1991; Bretas, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997; Misse, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: tese de doutorado em sociologia, Iuperj, 1999.

[60] Apud Santos, Marco Antonio C. dos. "Polícia e trabalhadores urbanos em São Paulo (1890-1920)". Lócus (UFJF), vol. 11, nºs 1/2, 2005 (pp. 33-50), p. 35.

[61] Nesse aspecto, note-se que, durante quase toda a Primeira República, anarquistas, socialistas, grevistas, feministas, sindicalistas etc., quando presos, eram indistintamente fichados como contraventores, portanto, como inimigos da ordem pública (cf. Fausto. A criminalidade em São Paulo, op. cit., p. 34).

[62] Apud Santos, op. cit., p. 35.

[63] Freyre, Gilberto. Casa-grande & senzala. 29º ed. Rio de Janeiro: Record, 1994 [1933] .

[64] Ver Versiani, Flávio R. "Os escravos que Saint-Hilaire viu". História Econômica & História de Empresas, vol. 3, 1, 2000, pp. 7-42.

[65] Frank Tannenbaum, em seu clássico Slave and citizen (Boston: Beacon Press, 1946), foi decisivamente influenciado pelas formulações de Freyre, vendo na miscigenação e na possibilidade de ascensão social do mulato (explicação freyriana para o sucesso de nossa "democracia racial") uma possível saída para o dilema racial norte-americano.

[66] Sobre o estudo de Freyre, ver Araújo, Ricardo B. de. Guerra e paz: Casa- grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005.

[67] Freyre, op. cit., p. 52.

[68] Versiani, op. cit., p. 7. O autor cita o texto de Conrad (op. cit.), que argumenta que a tese da benignidade teria se originado numa campanha publicitária do governo brasileiro.

[69] Cf. Azevedo, op. cit.; Moura, Clóvis. Rebeliões das senzalas. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.

[70] Cf. Holloway, op. cit.

[71] Em 1831, após debelar um motim de soldados republicanos, o Regente Feijó afirmou que "o brasileiro não foi feito para a desordem, que o seu natural é [a] tranqüilidade e que ele não aspira outra coisa além da Constituição jurada, do gozo de seus direitos e de suas liberdades" (apud Patto, Maria Helena S.

"Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres". Estudos Avançados, vol. 13, 35, 1999 [pp. 167-198], p. 171).

[72] Cf., entre vários outros, Fausto, Trabalho urbano e conflito social, op.

cit.; Pinheiro, Estratégia da ilusão, op. cit.; Negro, Antonio Luigi. Linhas de montagem. São Paulo: Boitempo, 2004.

[73] Motta, Rodrigo P. S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil 1917-64. São Paulo: Perspectiva, 2002.

[74] Candido, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

[75] Franco, op. cit., p. 31.

[76] Ibidem, pp. 32-33.

[77] Para o caso da região de Campinas, ver Moura, Saindo das sombras, op.

cit.; para o caso do Recôncavo Baiano, ver Schwartz, Segredos internos, op.

cit.; Fraga Filho, op. cit.

[78] Como mostrou Costa (Da senzala à Colônia, op. cit.), bem antes de Franco.

[79] Para uma análise densa da construção do gosto e das aspirações dos trabalhadores, marcada pela proximidade com a necessidade, ver Bourdieu, Pierre. La distinction. Paris: Minuit, 1979.

[80] Como sugeriu Roberto Schwarz (Ao vencedor as batatas. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1981, pp. 16-18), o liberalismo era uma "idéia fora do lugar", que o favor e a dependência pessoal, e não o mercado, mediavam as relações sociais.

[81] Getúlio Vargas construirá o mito do "pai dos pobres" contra esse pano de fundo. Os propagandistas do Estado Novo atribuirão a Vargas (e à "dádiva" dos direitos trabalhistas) o fim de fato da escravidão, quarenta anos depois de sua abolição legal. Ver Gomes, Ângela de C. e Mattos, Hebe M. "Sobre apropriações e circularidades: memória do cativeiro e política cultural na era Vargas", 2006 <www.historia.uff.br/_labhoi/uploads/wp-content/_uploads/2006/09/lab03.pdf>, acessado em novembro de 2007.


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