Situações periféricas: etnografia comparada de pobrezas urbanas
INTRODUÇÃO2
Este artigo discute a articulação entre pobreza urbana e desigualdade social
com base em estudos etnográficos realizados na cidade de São Paulo. A
literatura, sobretudo a sociológica e a econômica, já demonstrou que estes dois
processos não caminham necessariamente no mesmo sentido, uma vez que pode
ocorrer a diminuição da pobreza e o aumento da desigualdade ou o aumento
daquela e a diminuição desta, entre outras possibilidades. Para as pretensões
deste texto, partimos da constatação de que estão em curso melhorias materiais
entre a população considerada pobre, mas também está em curso a reprodução de
distâncias sociais, algo que pode ser estendido para outros centros urbanos
brasileiros. Por meio da comparação de três pesquisas etnográficas, propomos
sistematizar e discutir alguns mecanismos sociais que produzem esta oscilação
entre atenuar e reproduzir, cujos efeitos e causas são tanto materiais quanto
simbólicos.
A configuração atual da região metropolitana de São Paulo é o resultado, em
grande medida, de um processo socioeconômico que remonta a meados do século XX.
De forma resumida, a industrialização da região Sudeste do país a partir dos
anos 1950 foi um dos fatores geradores do forte processo de migração, sobretudo
de nordestinos que fugiam de situações de pobreza em busca de trabalho e renda.
No Sudeste, eles encontraram empregos nas indústrias nascentes, na expansão da
construção civil, nos domicílios das classes média e alta, no pequeno comércio
de bairro ou no comércio ambulante das zonas de maior fluxo urbano. Se do ponto
de vista do emprego e da renda houve um ganho em relação à vida anterior, um
dos corolários da migração foi a ocupação das regiões periféricas das grandes
cidades; em São Paulo, os migrantes foram mais em direção às Zonas Leste e Sul,
onde encontraram péssimas condições de habitação nas áreas de expansão da
mancha urbana3.
O cenário atual difere do início da industrialização. A região que era
considerada periferia de São Paulo nos anos 1970 e 1980 sofreu várias mudanças,
adquirindo melhorias urbanas como asfalto, transporte público, saneamento
básico, além de serviços públicos de saúde e educação, mesmo que precários4.
Somados a isto, mais recentemente, os programas sociais da década de 1990 e
2000 atingiram muitas famílias pobres e as regiões onde elas habitam, mesmo
sendo em uma área urbana de São Paulo em que o impacto é menor do que na zona
rural5. Assim, do ponto de vista de certos indicadores, os contextos de pobreza
vêm apresentando significativas melhorias sociais. Entretanto, considerando
outros fatores, constata-se a piora da vida nestas regiões. O primeiro é o
aumento da violência: a possibilidade de entrar no tráfico ou de ser vítima das
várias formas de violência (seja dos bandidos, seja da polícia) mesmo não
entrando no tráfico de drogas6. O segundo é a qualidade dos vínculos das
relações de trabalho que se caracteriza estruturalmente pela transição entre o
emprego formal e a informalidade7. Por fim, o aumento do contingente
populacional que amplia as novas "fronteiras urbanas"8.
Este artigo caminha em duas direções, que, no seu decorrer, irão se alternando:
refletirá sobre algumas formas de atenuação da pobreza mas também acerca da
reprodução de outras precariedades. E uma vez que a metrópole paulista há muito
tempo é, em termos absolutos, concentradora de riqueza no Brasil, a
persistência de precariedades tem como causa e conseqüência a reprodução das
distâncias sociais. A nossa hipótese é que estes dois vetores com sentidos
contrários estão articulados em um mesmo processo social, cuja resultante é o
equacionamento entre atenuar e reproduzir.
Compreendemos esta equação a partir da articulação de mecanismos sociais
transversais aos diferentes universos empíricos observados. Tais mecanismos
resultaram da análise comparativa de três pesquisas etnográficas desenvolvidas
em interlocução umas com as outras. As semelhanças mais específicas entre os
campos etnográficos (como o perfil socioeconômico) não formaram o critério
inicial de seleção dos universos de observação. Ao contrário, procuramos
diversificar os casos sem o objetivo de produzir uma representatividade do tipo
amostral. O método etnográfico, ainda mais quando efetuado em espaços de
dimensões metropolitanas, não permite (e nem se propõe a) definir padrões
estatísticos, mas possibilita aferir, pelo contraste, alguns mecanismos comuns
às situações que nos propusemos investigar. São eles: a violência simbólica, a
vulnerabilidade política e a qualidade dos vínculos sociais.
Na verdade, adotamos como plano de comparação as diferentes "situações
periféricas" diante das "centralidades" sociais na produção e circulação de
bens materiais e simbólicos. O que chamamos de "situações periféricas" não se
refere a um estado de exclusão, mas a contextos sociais em que há acesso
precário a melhorias materiais e a recursos simbólicos. O termo "periférico"
deve-se ao fato de o "foco" empírico estar na posição hierarquicamente inferior
do espaço social, distante das centralidades da produção e reprodução de bens
materiais e simbólicos com maior valor social. Neste sentido, a distinção
analítica entre estratégia e tática feita por Certeau parece-nos frutífera para
pensar a estruturação do espaço social que situa, na sua periferia, parcelas da
população de São Paulo. Certeau distingue dois tipos de ação9: ação estratégica
e ação tática. A distinção é sempre relacional e situacional a um ordenamento
maior. Diferente da ação estratégica que age a partir de um lugar próprio, a
tática age em um lugar subordinado a centralidades na reprodução do espaço
social, daí sua posição de fraqueza. A tática é a ação do fraco, aquele que age
somente "nos possíveis que lhe se apresenta". Cabe ao mais fraco agir (ou
existir) taticamente nas falhas ou limitações de estrutura social cujas regras
do jogo social lhes são desfavoráveis.
As "situações" aqui analisadas são: a favela Paraisópolis e o entorno formado
pelo rico bairro do Morumbi; o distrito de Cidade Tiradentes e o "centro
expandido" de São Paulo10; e os moradores de rua no centro comercial de São
Paulo. As "situações" foram compreendidas de forma duplamente relacional: cada
contexto de pobreza em relação a uma "centralidade" correspondente (e imputada)
e a comparação de cada "situação" em relação às outras. Por conseguinte, estas
oposições não devem ser substantivadas pelo simples fato de cada localidade e
seus freqüentadores estarem mais ou menos conectados ao município, mesmo que
indiretamente. O objetivo, portanto, não é reduzi-las aos limites geográficos,
mas apreendê-las em relação a outros espaços sociais da metrópole paulista como
contemplada na idéia de "afastamentos significativos" de Lévi-Strauss11.
Bourdieu12 adverte sobre os equívocos decorrentes das análises sociais que
tendem a naturalizar o espaço social, ficando presas às evidências empíricas
daquilo que ocorre no espaço físico escolhido como universo de observação. Não
se deve pensar em termos substancialistas, em que as evidências locais
circunscrevem o fenômeno, mas na estrutura social que o produziu. O efeito de
naturalização está em não perceber que o espaço físico é expressão de
realidades sociais duráveis no mundo natural, que são estruturadas, regra
geral, sob o código da desigualdade na reprodução material e simbólica da
sociedade. E como não há desigualdade social sem desigualdade espacial, as
hierarquias se expressam na concentração dos bens ou serviços públicos e
privados e na sua reprodução simbólica legítima. Simbólica na medida em que
estruturas sociais também convertem-se em estruturas mentais e vice-versa. São
categorias de percepção que classificam pessoas e grupos por sinais
diacríticos, estilos de vida, valores, gostos etc. Vejamos cada situação.
OS CAMPOS ETNOGRÁFICOS
PARAISÓPOLIS-MORUMBI
A expectativa que se tinha, antes de iniciar a pesquisa etnográfica na favela
de Paraisópolis, segunda maior do município de São Paulo e localizada ao lado
do rico bairro do Morumbi, era de deparar com um lugar extremamente pobre. A
percepção visual da localidade explica essa impressão: uma favela circunscrita
pela arquitetura dos condomínios de classes média e alta e das mansões do
Morumbi. Contudo, quando comparada a outras localidades de São Paulo,
constatamos que Paraisópolis é pouco representativa do cenário da pobreza
metropolitana, pois possui diversas formas de acesso a recursos materiais em
virtude da alta densidade de suas redes de relações e por sua localização
privilegiada.
Algumas referências foram importantes na análise de Paraisópolis. Uma delas
procurou entender a favela a partir de sua "estrutura de oportunidades",
conforme definição de Kaztman e Filgueira13. Trata-se da articulação entre
laços comunitários, Estado e mercado de trabalho. A sinergia entre as três
dimensões trabalharia a favor da atenuação da pobreza, na medida em que
possibilitaria o acesso a recursos, bens e serviços.
Em boa medida, essa sinergia é resultante da relação entre Paraisópolis e o
Morumbi. A formação das duas áreas ocorreu conjuntamente; conforme crescia o
empreendimento imobiliário no Morumbi, dava-se a atração de mão-de-obra para
construção civil e, posteriormente, para o comércio e os trabalhos domésticos
(seguranças, empregadas, babás etc.) que os condomínios e as mansões
demandavam. Em 2003, de acordo com uma pesquisa quantitativa realizada em
Paraisópolis, boa parte da mão-de-obra estava empregada, tendo em vista
indivíduos com as mesmas características socioeconômicas de outras regiões da
cidade. As ocupações eram predominantemente nas áreas da construção civil, do
comércio e da prestação de serviços, e pouquíssimas no trabalho industrial14.
De forma resumida, o entorno de Paraisópolis constitui-se como um ativo
econômico na oferta de postos de trabalho e fonte de recursos advindos também
da filantropia religiosa, de ONGs e do movimento de voluntariado: vagas em
escolas particulares, cursos profissionalizantes, assistência médica
propiciados, em boa medida, por grupos católicos, espíritas e judaicos15.
Além do relativo acesso ao mercado de trabalho e aos recursos de assistência
social provindos da vizinhança rica, inflecte positivamente sobre Paraisópolis
a rede de relações de algumas lideranças locais com grupos políticos que
ascenderam ao poder municipal entre 2001 e 2004, o que resultou em várias
políticas sociais para a favela. Convém destacar que nas gestões anteriores,
entre 1993-2000, dos prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta, Paraisópolis recebeu
poucos benefícios em termos de políticas públicas. Ao contrário, estas gestões
tinham como projeto para aquela região a remoção da favela para a construção de
uma avenida que ligaria o bairro do Morumbi à Marginal do Pinheiros. Como base
eleitoral petista, Paraisópolis foi mais beneficiada nas gestões de Luíza
Erundina (1989-1992) e Marta Suplicy (2001-2004).
Se este é o quadro das relações externas à favela, internamente Paraisópolis
também possui um contexto bastante favorável de atenuação da pobreza. De forma
resumida, graças à sua formação, a favela apresenta uma forte rede de laços de
vizinhança e parentesco construída no processo de migração da região Nordeste
para São Paulo. De acordo com a pesquisa quantitativa realizada em 2003
paralelamente à pesquisa etnográfica, apenas 7% dos moradores não tinham nenhum
parente em Paraisópolis16. Além disso, muitos indivíduos ou famílias eram
oriundos das mesmas regiões no Nordeste, o que acrescenta às relações de
parentesco as relações entre conterrâneos, adensando desta forma as redes de
solidariedade. Como conseqüência, boa parte do comércio e das associações
locais encontra-se nas mãos dos moradores mais antigos e dos grupos familiares
ou de conterrâneos.
Articulada às relações primárias, existe ainda uma forte rede associativa
formada por laços religiosos, sobretudo evangélicos, que se destacam como o
principal vínculo associativo na favela junto com a Igreja católica17. Estas
relações se constituem como circuitos de reciprocidade pelos quais circulam
benefícios materiais, afetivos e cívicos como ajuda mútua, empréstimos de
dinheiro, cuidado dos filhos de mães que trabalham fora de casa, informações
sobre emprego, solidariedade em situações de doença etc. Em resumo, diferentes
favores que são prestados e variam conforme a qualidade dos laços entre as
pessoas18.
Exatamente por ser muito assistida, por iniciativas privadas e de caráter
público, Paraisópolis tornou-se um "laboratório" para ação de ONGs, do poder
público e da academia. Em um processo de retroalimentação, os investimentos
sociais atraem mais investimentos. Por todas estas características, morar em
Paraisópolis, apesar do estigma de ser uma favela, era percebido por muitos
habitantes como positivo e, para alguns, como forma de relativa ascensão
social19.
Convém destacar, no entanto, que estas ações, tanto do terceiro setor quanto da
vizinhança rica, deveram-se em boa medida ao fato de Paraisópolis ser
considerada uma favela "pacificada", isto é, com baixo índice de violência
quando comparada a outras situações semelhantes em São Paulo. A "pacificação"
não se deveu propriamente à ação da segurança pública, mas sobretudo à
existência de um "poder local" que mantinha à distância a ação de grandes
traficantes ou outras ações mais criminosas. Na verdade, uma rede de parentes e
conterrâneos migrantes de uma mesma região do Nordeste, sob a liderança de uma
espécie de justiceiro, mantinha a "segurança" em Paraisópolis com o uso da
violência repressora20. A forma de violência imposta em Paraisópolis
assemelhava-se a um padrão de relações que se funda mais na fidelidade ao grupo
de parentes do que propriamente numa prática de ilícitos como venda de drogas
e/ou uso de armamento pesado, como se dá em outros lugares mais violentos e
periféricos de São Paulo.
Em Paraisópolis há uma cumplicidade implícita entre o grupo dominante da
favela, os agentes políticos, a administração pública, o terceiro setor, a
vizinhança rica, as associações internas da favela e os próprios moradores.
Segundo uma moradora, cujo marido tinha algumas atividades econômicas legais
com o chefe da favela, era uma relação de proteção e de temor: "Tenório [o
chefe] é uma bênção para Paraisópolis, mas Deus te livre de precisar dele". Boa
parte dos recursos recebidos por Paraisópolis decorria de uma situação de
violência controlada por um "poder local". "Se Paraisópolis encontrou esta
forma de organização interna, é melhor do que a violência explícita, e cabe
negociar com ela", disse um então vereador de esquerda (posteriormente eleito
deputado estadual e federal), que tem Paraisópolis como uma de suas bases. Em
resumo, o empowerment de Paraisópolis resultou da sinergia entre setor público,
terceiro setor e ações comunitárias (as legais e as ilegais, as lícitas e as
ilícitas).
CIDADE TIRADENTES - SÃO PAULO
Em que medida a situação Paraisópolis-Morumbi poderia ser generalizada para
toda a região metropolitana? Partindo do procedimento de buscar diferentes
situações periféricas, o segundo caso etnográfico procurou distanciar-se das
características de Paraisópolis, basicamente de sua proximidade espacial das
fontes de recursos. Assim, fomos investigar uma localidade na extremidade do
espaço metropolitano, no final da Zona Leste: a Cidade Tiradentes.
De todas as regiões da cidade de São Paulo, a Zona Leste é aquela que melhor se
enquadra no que ficou conhecido na literatura como o padrão de urbanização
"centro-periferia". À medida que se avança em direção "à periferia", ou quanto
mais distante do Centro, a pobreza aumenta21, sendo esta lógica interrompida
por alguns condomínios privados de classes média e alta, muitos deles com
fortes esquemas de segurança privados como "enclaves fortificados", conforme a
definição de Caldeira22. Essa disposição gradual da desigualdade explicita os
processos de urbanização ligados à especulação imobiliária: a população que
chegou primeiro a um determinado ponto reivindicou melhorias para esse local
junto ao poder público. O resultado é a valorização de terrenos deixados vazios
pelos especuladores. Como conseqüência, novas levas de migrantes foram
obrigadas a procurar terrenos mais baratos e mais longe, logo, desprovidos de
infra-estrutura.
Do ponto de vista do poder público, a preocupação com a Zona Leste cresceu na
medida em que passou a ser considerada decisiva para qualquer pretensão
eleitoral. Dentre os investimentos públicos realizados na Zona Leste nas
décadas de 1970 e 1980, o mais paradoxal deles foi a construção de um enorme
conjunto habitacional numa região batizada de Cidade Tiradentes. O local
escolhido e o momento da construção expressaram a lógica estatal segregadora. A
Cidade Tiradentes começou a se formar em 1975, em uma região de mata densamente
fechada, a 25 quilômetros do centro do município de São Paulo, a uma
considerável distância do último ponto de expansão da mancha urbana23. Se nos
outros bairros desta macrorregião (a Zona Leste) as intervenções públicas
ocorriam a reboque da pressão popular por melhorias24, a Cidade Tiradentes
expressou o inverso, pois foi concebida e construída pelo poder público com a
finalidade de, à primeira vista, realocar a população pobre de outros bairros
do município de São Paulo e diminuir o déficit habitacional.
Embora o subtítulo acima ("Cidade Tiradentes - São Paulo") possa sugerir duas
localidades distintas, na verdade, Cidade Tiradentes pertence
administrativamente ao município de São Paulo. Contudo, a pesquisa constatou
que o distrito, apesar da grande população, é tratado pela mídia como algo não
muito diferenciado internamente e muito distante das características do "centro
expandido" de São Paulo. Por outro lado, muitos moradores de Cidade Tiradentes,
quando vão à região central do município, dizem que "Vão a São Paulo", como se
sua percepção fosse de um apartamento da vida da cidade, mas ao mesmo tempo
dependente dela. Cidade Tiradentes tem um emprego para cada 398 indivíduos25, o
que tem por resultado o desgastante deslocamento diário de milhares de pessoas
em direção às regiões centrais, o qual chega a demorar de quatro a cinco horas
por dia no percurso casa-trabalho-casa, por meio de ônibus, trem, metrô e van
(ou perua).
Grosso modo, se levarmos em consideração a regularização fundiária, a Cidade
Tiradentes pode ser dividida em duas: a "legal" e a "ilegal". A "legal" é
composta de conjuntos habitacionais em terras públicas com cerca de 150 mil
habitantes. Ainda que planejada como área legalizada, uma vez que as terras
pertencem ao poder público, boa parte dos moradores do distrito não tem a
propriedade do imóvel em que vivem. São os moradores das ocupações, dos lotes
irregulares, das favelas. Ao todo, 70 mil pessoas vivem nessa que pode ser
chamada a Cidade Tiradentes "ilegal"26.
Uma idéia generalizada sobre Cidade Tiradentes é a de que o distrito é um
"depósito de gente". Removidos de outras favelas da cidade, beneficiados por
programas habitacionais do governo, pessoas que não conseguem pagar o custo de
vida de outros bairros. Ainda que haja exceções, o "ir morar na Cidade
Tiradentes" quase sempre representou uma das últimas opções, quando a
possibilidade de se manter em locais mais ou menos distantes do Centro, onde o
custo de vida é mais alto, já não era mais factível. Este fenômeno, já
analisado pela literatura27, refere-se à "inviabilidade" de moradia da camada
mais pobre nos bairros periféricos consolidados. A paulatina melhoria das
condições de habitação nesses bairros, expressa no acesso à infra-estrutura
urbana e no aumento dos equipamentos públicos, resultou no custo mais alto para
seus moradores, seja na elevação do preço dos bens de consumo destinados a essa
população, seja no preço dos impostos territoriais. Este fenômeno econômico
provocou a "expulsão" de uma parcela da população para locais mais baratos,
desprovidos de infra-estrutura e de condições de moradia. Para os antigos
moradores da periferia consolidada da Zona Leste que padeceram da
"inviabilidade", a Cidade Tiradentes tem sido o destino e passa atualmente por
um vertiginoso crescimento demográfico.
Mudar-se para um local distante, principalmente do trabalho, torna a vida ainda
mais difícil, aumentando as reclamações e o desinteresse em assumir a
responsabilidade pelo local onde se vive, e assim pouco se contribui para sua
melhoria. As precárias condições materiais fazem da Cidade Tiradentes um local
de passagem, onde as pessoas não querem ficar por muito tempo, pois representa
um ponto descendente na trajetória dos indivíduos. Em Cidade Tiradentes,
constrói-se barato e vende-se barato porque o ônus de viver no bairro é alto.
Esta lógica é um dos principais constituidores do fenômeno da segregação
espacial, elemento fundamental para a compreensão do padrão centro-periferia da
cidade de São Paulo28.
Diante deste quadro, a moradia é um dos temas centrais e sujeitos à ação
tática. Se o financiamento público é a forma burocrática de posse dos
apartamentos, existem outras formas de ocupação, como a simples invasão de
apartamentos ainda não ocupados pelos proprietários (casos de investimento
imobiliário, por exemplo), ou a invasão deliberada de terrenos previamente
destinados à construção de conjuntos habitacionais. Desta forma, os invasores
vão ser os primeiros a receber o financiamento do poder público.
POPULAÇÃO DE RUA NO CENTRO
Nosso primeiro caso tratou da relação entre uma favela (Paraisópolis) e um
bairro rico (Morumbi) situados de forma contígua no espaço urbano. O segundo
analisou uma localidade longínqua, na extremidade da mancha urbana (a Cidade
Tiradentes). Por fim, voltamos a uma das centralidades da cidade, a saber, o
Centro histórico e comercial e sua população de rua. As características mais
gerais deste terceiro caso são a centralidade espacial e a mobilidade dos
pobres.
Historicamente, o Centro de São Paulo sempre foi marcado pela presença conjunta
de segmentos sociais provindos de diferentes estratos. Entretanto, isto começou
a modificar-se quando, a partir dos anos 1960, iniciou-se um deslocamento do
capital imobiliário, do investimento estatal e, por conseguinte, da
centralidade do município em direção ao vetor sudoeste29. Este deslocamento foi
resultado também de um conjunto de políticas públicas no qual a sucessão de
intervenções tornou-se determinante para a crise do Centro. As políticas
urbanas o trataram como um nó de articulação e passagem em uma grande estrutura
viária. Por conseguinte, a popularização do Centro foi o produto de políticas
estatais historicamente direcionadas para favorecer o acesso à região por meio
do sistema de transportes. Este processo foi posteriormente chamado de
"degradação", sobretudo por agentes preocupados em inverter tal quadro e tornar
o Centro um local atraente para investimentos imobiliários, turísticos e
culturais. Deste modo, vimos surgir nas três últimas décadas do século XX um
Centro mais popular, que passou a exibir uma situação anteriormente restrita
aos bolsões de pobreza da metrópole.
Mesmo com o deslocamento da centralidade dominante para o vetor sudoeste e a
popularização da área, o Centro histórico e comercial permanece como um espaço
urbano de fundamental importância na articulação do conjunto da metrópole.
Nesta região há uma tensa coexistência entre dinamismo econômico e condições
extremas de pobreza, e reúne numa só área um denso conjunto de características
que a distingue de outros espaços da metrópole. Por ser uma nodalidade do
sistema viário, o Centro tem o mais alto índice de circulação diária: lá passam
cerca de 2,8 milhões de pessoas por dia (aproximadamente um quarto de toda a
população da cidade). A região ainda concentra a maior taxa de vacância de toda
metrópole, cerca de 20%, e a maior taxa de oferta de empregos da cidade. E esta
maior oferta de empregos representa a massa real de salários correspondente a
cerca de um quarto de todo o município de São Paulo30. Essa transformação do
Centro em lugar de passagem para grande parte da população paulistana, somada
ao pedestrianismo, fez com que as dificuldades relacionadas ao transporte
automotivo estimulassem a circulação de transeuntes, especialmente de renda
mais baixa, criando condições favoráveis ao desenvolvimento do comércio
ambulante e, de maneira mais ampla, da geração informal de renda.
Como figuras liminares que diariamente coabitam o espaço público da região, os
segmentos populares do Centro são fundamentais na reprodução da dinâmica local.
Dentre eles, destacam-se a população de rua, uma pobreza espacialmente
localizada no interior de um centro de recursos materiais. Em 1991, eram 3.392
pessoas nesta situação e, em 2003, o número saltou para 10.394. Atualmente,
estima-se que superem os 11 mil, e que, segundo a mesma fonte31, a maior parte
deste contingente populacional seja formada por pessoas que vivem nos distritos
da Sé, República, Brás e Liberdade.
A dificuldade de fixação espacial é um de seus aspectos mais singulares. Devido
à constante pressão local que sofrem (dos moradores próximos, de segmentos
populares que se utilizam diariamente do espaço público urbano, da atividade
policial e da coleta do lixo urbano que freqüentemente desmonta suas moradias
improvisadas), podemos dizer que este segmento se encontra em constante
processo de desterritorialização e exílio. Muitos dos moradores de rua são
catadores de material reciclável e fazem das carroças suas próprias casas
"ambulantes", demonstrando deste modo uma de suas características principais: a
mobilidade.
A nomeação "população de rua" foi consagrada em 1992 com a publicação de uma
pesquisa financiada pela prefeitura de São Paulo, na gestão do PT (1989-1992),
sobre as pessoas que utilizavam as ruas como lugar de pernoite32. A pesquisa
descobriu que, ao contrário do que se pensava, a maior parte não era
constituída por migrantes recém-chegados ou nordestinos. Existiam famílias
morando nas ruas e grande parte destas pessoas possuía uma trajetória de
trabalho, ainda que fosse uma história profissional segmentada. Como
conseqüência, as explicações para a "situação de rua" deixaram de se organizar
unicamente através de uma matriz valorativa vinculada a julgamentos morais e se
voltaram para questões relativas à estrutura socioeconômica brasileira. Graças
a referenciais analíticos oriundos de uma teoria social centrada no conceito de
trabalho, o "mendigo" passou, então, a ser visto como "trabalhador
marginalizado".
O aumento populacional na década de 1990 foi acompanhado por uma maior
publicidade e politização da questão. Em torno do mandato da então vereadora do
PT Aldaíza Sposati, um conjunto de agentes sociais, entidades religiosas e ONGs
estabeleceram nas gestões do PPB (1993-1996 e 1997-2000) uma plataforma comum
de reivindicações por uma lei que tratasse da população de rua. O projeto de
lei produzido atravessou a década de forma conturbada e só foi regulamentado em
2001, como o primeiro ato político da prefeitura na gestão do PT de 2001-2004.
Aquilo que atualmente chamamos de população de rua caracteriza-se por ser uma
categoria genérica, um estereótipo que tenta dar conta de um todo extremamente
heterogêneo e diversificado de categorias identitárias que nem sempre estão
articuladas entre si33. As mais conhecidas são: os trecheiros, os pedintes, os
sem-teto, os albergados, os ditos "loucos", os meninos de rua e os catadores de
materiais recicláveis. A principal maneira de diferenciação na composição
social desta população heterogênea e multifacetada vinculada ao universo da rua
é o tempo. Assim são identificadas pelo menos três situações diferentes: ficar
na rua (circunstancialmente), estar na rua (recentemente) e ser da rua
(permanentemente)34. De um lado a outro deste contínuo é possível compreender a
realidade de pessoas que se utilizam da rua e dos albergues de forma
circunstancial ou como modo de vida. A despeito do desconhecimento geral que se
possui sobre o perfil dos albergados, sabe-se que há uma intensa e contínua
circulação entre diferentes instituições. Algumas vezes qualificados
informalmente como "trecheiros de albergue", esta é uma população
circunstancialmente de rua. Em depoimento, um usuário de albergue falou de sua
"teoria dos oito anos", segundo a qual seria possível viver este período de
tempo sem precisar pagar aluguel e alimentação, apenas "pulando" de instituição
em instituição. Esgotando o tempo-limite de permanência em um albergue,
taticamente os usuários se mudam para outro, ou então voltam para a rua.
* * *
Como dito inicialmente, as situações de contraste de cada etnografia foram
sendo produzidas em interlocução umas com as outras, de modo que cada material
de campo interpelou e foi interpelado pelos outros dois. O objetivo não é o de
se limitar ao campo das semelhanças e diferenças das situações, mas derivar da
comparação delas alguns mecanismos comuns e dinamizadores deste processo de
atenuação da pobreza e reprodução da desigualdade social. Os mecanismos são: a
violência simbólica, a vulnerabilidade política e a qualidade dos vínculos
sociais. Existem outros processos que contribuem para o jogo oscilante entre
atenuar e reproduzir, mas estes três nos pareceram mais gerais e capazes de
englobar outras dimensões observadas em campo.
A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: ENTRE A (IN)VISIBILIDADE E O ESTIGMA
Partindo do quadro heterogêneo da pobreza, as pesquisas de campo procuraram
investigar além dos aspectos propriamente materiais dos circuitos de
reciprocidade (relações, agentes, benefícios, serviços) as representações
simbólicas sobre as localidades tanto de seus moradores quanto do restante da
cidade, expressas na mídia, na relação com o Estado e na opinião pública. Dessa
forma, constatamos que a articulação entre visibilidade e estigma no espaço
social são fatores importantes na obtenção ou não de recursos e na reprodução
da desigualdade.
Paraisópolis é o contexto onde o estigma é mais negociável, dado o paradoxo de
sua localização geográfica. Em relação a outros bairros populares e/ou favelas,
morar em Paraisópolis acrescenta um relativo status perante as outras favelas
por causa da proximidade com o Morumbi. Entretanto, seus moradores são
estigmatizados pelos moradores deste bairro. Na verdade, a vizinhança rica
mantém uma atitude ambígua com Paraisópolis. Em um espaço curto de duas quadras
é possível deslocar-se do ambiente populoso e congestionado de Paraisópolis e
entrar nas ruas vazias e tortuosas do Morumbi, onde se vê os moradores
locomoverem-se de carros enquanto os empregados se deslocam a pé, uma vez que
não há transporte público circulando por seu interior. Os condomínios e mansões
do Morumbi têm esquemas de segurança privados que dificultam o acesso dos
moradores da favela. Em resumo, há uma relação de "evitação" e "interação"
entre Paraisópolis e Morumbi dependendo do plano que se estabeleça entre estes
dois universos. Nos planos do trabalho e da assistência há "interação" enquanto
nos do lazer, valores, gostos, parentesco e amizade há "evitação". Neste
sentido, a sugestiva idéia de Caldeira sobre os "enclaves fortificados" como
demarcadores de distância social deve ser relativizada quando se refere às
relações de trabalho e de assistência. Apesar de uma arquitetura de segregação,
Morumbi e Paraisópolis estão parcialmente conectados por circuitos de relações
que transformam a localização da favela em uma "estrutura de oportunidades".
Com relação à Cidade Tiradentes, impôs-se o estigma da violência. Muitas vezes
ouvimos a expressão "Cidade Tiroteio" para denominar o bairro. Entretanto,
levando em consideração os 96 distritos que conformam o município de São Paulo,
e fazendo uma escala do mais ao menos violento, de acordo com a taxa de
homicídios de indivíduos de 15 a 29 anos, a Cidade Tiradentes ficaria em 55º
lugar35. Não se pretende com a apresentação deste dado negar um contexto de
situação de violência, mas indicar a desproporção criada pelo estigma do lugar
e o que ocorre nele. Longe, pobre, sem história, sem emprego, dependente de
políticas públicas e com fama de violenta, Cidade Tiradentes é percebida (e
parcialmente se percebe) por um somatório de características estigmatizantes.
Fruto das classificações legitimadas socialmente, o estigma da pobreza é
reproduzido pelos formadores de opinião, como moradores de bairros de classe
média, o poder público, a imprensa, ou mesmo os próprios moradores dos bairros
populares que atribuem aos outros o adjetivo que pesa sobre si. Como negar a
violência é impossível, mais fácil é dizer que ela não acontece em seu bairro.
Disto resultam duas máximas nativas: "o pobre é sempre o outro" e "lá, é mais
violento".
A classificação simbólica não está dissociada do mundo material na medida em
que existem conseqüências práticas. Um dos exemplos mais freqüentes dos
"efeitos do estigma" refere-se à seleção de pessoas para a obtenção de um
emprego. Dizer-se morador de Paraisópolis pode ser um indício favorável,
sobretudo no Morumbi, dada a proximidade, e facilita ainda mais se o candidato
a empregado tiver algum parente ou vizinho trabalhando no entorno rico que o
possa indicar. A existência de várias ONGs locais também aumenta as chances de
entrada no mercado de trabalho, por meio de empregos diretos ou de cursos de
capacitação. Fora da região, a enunciação de Paraisópolis como endereço pode
ser um fator inibidor à contratação. No caso de Cidade Tiradentes é comum os
moradores omitirem o endereço de moradia devido aos atributos negativos já
enunciados, sobretudo na busca do emprego. A distância da Cidade Tiradentes aos
postos de trabalho faz com que seus moradores dêem endereços falsos, ou o de um
amigo ou familiar, ao possível novo empregador. Na falta de uma ajuda, vale
simplesmente enunciar "Moro em Itaquera"36. A construção/descontrução de
identidades obedece a uma lógica geográfica e relacional, estruturada de acordo
com o potencial de cada região na aquisição ou não de bens simbólicos que
propiciam a aquisição ou não de bens materiais, conforme seu status ou seu
estigma37.
Por um lado, a dificuldade de conseguir emprego deve-se à estigmatização da
localidade, que é extensiva a seus moradores; por outro, decorre de um cálculo
feito pelo empregador, sobretudo das diaristas e empregadas domésticas. Em
razão da distância, até o início dos anos 2000, o empregador devia pagar mais
de uma passagem de ida e volta às empregadas. Ou elas escondiam, ou negociavam
com a "patroa" o pagamento das passagens. Como contraponto, cabe destacar o
impacto positivo, durante a gestão da Marta Suplicy, do programa de transporte
Bilhete Único, que atacou em boa medida a estrutura limitadora da circulação
dos mais pobres.
Diferentemente dos moradores de Paraisópolis ou Cidade Tiradentes, onde a
enunciação do local de moradia destaca seus aspectos negativos, no caso da
população de rua, o estigma é criado de forma interacional no fluxo dos
encontros cotidianos entre as pessoas. Num momento em que a quase totalidade de
estudos brasileiros sobre pobreza urbana voltava-se para a periferia, Stoeffels
debruçou-se sobre a marginalidade do centro da cidade tentando interpretar o
significado existencial e estrutural do que considerava como o "ser mendigo"38.
O que vimos nas três últimas décadas foi uma metamorfose deste ser. O universo
das ruas alterou-se amplamente e seus habitantes também. Uma reconfiguração da
imagem daquele antigo mendigo, cuja identidade estava ligada à prática da
mendicância e comumente associada ao fracasso moral individual, iniciou-se na
década de 1980 e consolidou-se no início deste século. Hoje, parte desta
população está politicamente mobilizada para transformar-se qualitativamente
com a finalidade de ser reconhecida publicamente por meio de outras imagens,
significados e nomes; nos termos de Honneth39, ela busca ser "reconhecida".
Noção mais ampla do que visibilidade, reconhecimento significa ser visto e
percebido como uma identidade com valor social, o que resulta em indivíduos ou
grupos portadores de direitos.
Tendo em vista os três casos, a visibilidade em si pode gerar tanto estigma
quanto reconhecimento. Cada situação periférica articula na prática estes
termos. Paraisópolis é assistida porque, entre outros fatores, é uma pobreza
visível. Mesmo assim é considerada uma favela. Os moradores calculam os
benefícios e as perdas de se identificar como sendo de Paraisópolis dependendo
de com quem estiverem falando. Cidade Tiradentes é invisível para o centro
expandido de São Paulo, do ponto de vista da dinâmica urbana, dos meios de
comunicação, da opinião pública, da atenção do Estado e de ONGs etc. Na
verdade, Cidade Tiradentes oscila entre a invisibilidade e, para aqueles que a
conhecem, a visibilidade estigmatizada. Entretanto, e por fim, a visibilidade
do estigma pode ser utilizada como símbolo de reivindicação de direitos e de
assistência social. Disto decorreu a formação do campo institucional em torno
da população de rua do Centro de São Paulo40. Inverte-se o sentido: de signo de
excluído passa-se a signo de portador de direitos. Com diferentes maneiras de
se tornar visível, Paraisópolis e a população de rua construíram uma "estrutura
de captação" de recursos públicos, privados e do terceiro setor.
No caso dos movimentos dos moradores de rua, a tática adotada é a da
visibilidade desestigmadora. Trata-se de uma categoria identitária
"codificada"41 e com valor social "reconhecido"42. Codificação e reconhecimento
podem se aproximar neste sentido; contudo, como mesmo afirma Honneth, seu
conceito pressupõe uma dimensão normativa e substantiva: uma identidade dotada
de valor, mas que também tende à cristalização. E o perigo é cair no paradoxo
colocado por Bourdieu: positivar uma identidade que o estigmatizou por
primeiro. Ao analisar os usos do termo "povo", ele pergunta:
[...] se, para resistir, não tenho outro recurso a não ser
reivindicar aquilo em nome do que eu sou dominado, isso é
resistência? Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se
esforçam por perder aquilo que os marca como "vulgares" e por se
apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por
exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? Acho que
esta é uma contradição insolúvel43.
VULNERABILIDADE POLÍTICA: AS MULTIFACES DO ESTADO
Nos três campos etnográficos o Estado apresenta-se como um importante ator e
interventor; contudo, percebe-se que muitas de suas ações produzem efeitos
ambíguos. De diferentes maneiras observa-se como determinadas práticas estatais
alternam-se e articulam simultaneamente segregação e distribuição de recursos.
A ação política de "dar e tirar", pensada aqui como pólos extremos de um
continuum de combinações e dosagens, está diretamente conectada a outros
fatores, tais como a presença ou a ausência de organizações do terceiro setor,
e às intempéries das políticas de governo, que variam de acordo com cada gestão
municipal.
Tido como um "laboratório de políticas públicas", segundo representantes da
gestão Marta Suplicy (2001-2004), Cidade Tiradentes padeceu dos desencontros da
política pública nesse período. De maneira geral, a preocupação do poder
público com a Zona Leste cresceu bastante no período pós-regime militar. Como
esta macrozona foi e é o principal reduto do eleitorado paulistano, os
investimentos nela são decisivos para qualquer ambição política no âmbito dos
poderes Executivo e Legislativo. Dessa forma, após a redemocratização do país,
uma série de investimentos públicos foi realizada na região. Contudo, como os
condomínios e a infra-estrutura urbana construída pelo Estado não deu conta da
população, que lá se estabeleceu em invasões e favelas, há sempre a impressão
de que as melhorias pleiteadas junto ao poder público são uma corrida contra o
tempo. Nota-se também uma sobreposição de políticas públicas das três esferas:
municipal, estadual e federal, sem existir uma adequada articulação entre elas.
Cada uma dessas esferas tem uma arqueologia própria de intervenções pouco
articuladas e marcadas por descontinuidades.
Devido à desarticulação entre os variados projetos habitacionais na escala
municipal, estadual e federal, a paisagem de Cidade Tiradentes tem um traçado
descontínuo, fruto da sobreposição de intervenções no espaço urbanizado. Em
alguns lugares, tem-se a impressão de ser uma "favela de conjuntos
habitacionais" por causa da maximização do uso dos terrenos. Ao promover
políticas sociais de habitação num lugar extremamente distante das
centralidades e dos principais espaços urbanos dotados de benefícios públicos e
oportunidades de trabalho, o poder público realiza política de inclusão ao
mesmo tempo que reforça a segregação já existente na cidade44. Outro paradoxo
das ações estatais é o procedimento do sorteio na entrega dos apartamentos aos
novos proprietários como forma de ocupação democrática dos deslocados de outras
regiões da cidade, como ocorreu no governo Mário Covas. Entretanto, este
procedimento acentuou a fragmentação das redes anteriores (de parentes ou
vicinais) à ocupação da Cidade Tiradentes. Se em Paraisópolis era possível
contar com circuitos de reciprocidade mantida na migração, em Cidade Tiradentes
isto é desestruturado por uma "política pública igualitária".
Com relação à população de rua, o poder público codificou uma legislação que
fez da categoria rua um universo aberto e difuso. A partir da formalização e
oficialização, ainda que imprecisa, deste novo sujeito político, foi possível
edificar um conjunto interligado de práticas políticas, normas jurídicas e
técnicas propriamente psicológicas, pedagógicas e assistenciais relativas ao
trato com este público. O Estado, ao produzir uma classificação oficial e
homologar o direito destes sujeitos, definidos e codificados unicamente a
partir do signo rua, formalizou também as maneiras pelas quais estes deveriam
ser abordados. E para cumprir esta finalidade, o poder municipal necessitou
garantir a instalação e a manutenção de uma rede de serviços pautada por
relações de parceria e por convênios com associações civis sem fins lucrativos.
Em resumo, ao mesmo tempo em que emerge um novo sujeito de direitos em São
Paulo, articulado a este, surgem também instituições, práticas, discursos,
técnicas e formas próprias de saber/poder capazes de sujeitá-los e ordená-los.
No centro de São Paulo há uma densa e complexa rede de interesses, conflitos e
atores da qual o Estado é mais um personagem.
A "Lei de Atenção à População em Situação de Rua" produziu um surpreendente
aumento da rede de atendimento, ampliação dos equipamentos de apoio e criação
de novas parcerias e convênios de entidades do terceiro setor com a prefeitura
municipal. O número de leitos disponíveis em albergues quase duplicou no
período, de maneira que boa parte do crescimento total da população em si-
tuação de rua, nos últimos cinco anos, é atribuída ao aumento dos "albergados",
que entram no cômputo geral da categoria. Nas duas últimas contagens, de 2000 e
2003, percebe-se como a variação da população que usava a rua como lugar de
pernoite foi baixa, enquanto o número de pessoas que utilizam os albergues como
local de pernoite aumentou em cerca de 70%.
Apesar da lei explicitar a necessidade da construção de uma rede de atendimento
mais plural e pautada por metodologias de trabalho não assistenciais, o que
ocorreu na gestão municipal do PT foi o fortalecimento desta rede mediante uma
política de criação de albergues, em detrimento de outras formas de abordagens
mais localizadas e voltadas para a convivência e a criação de laços mais
estreitos entre os usuários, como as moradias provisórias e as casas de
convivência. O albergue tornou-se a principal política pública voltada a este
segmento, tendo sido concebido originalmente como uma forma de abrigo
provisório para as pessoas que estivessem saindo da rua. O que foi construído
para ser um lugar transitório e de passagem tornou-se um local de permanência e
moradia para muitos. É possível aferir que o albergue tem se tornado um potente
mecanismo de recrutamento de pessoas para o mundo da rua. Não unicamente
operando como uma "porta de saída", mas servindo também como "porta de entrada"
para este universo.
Apesar das intempéries eleitorais que afligem mais os mais pobres, a mudança na
gestão municipal em 2004 (administração José Serra do PSDB) não significou de
imediato uma ruptura com as formas de atendimento anteriores e nem com as
políticas públicas até então voltadas para este setor da população. A presença
de um enorme aparato de atendimento já construído, com convênios e parcerias,
ou seja, a existência de um campo relativamente autônomo e estruturado,
interligando um complexo conjunto de atores envolvidos com o tema, dificultou
uma possível ruptura política brusca. O mesmo não aconteceu em Cidade
Tiradentes, onde Marta Suplicy havia recebido cerca de 60% dos votos na disputa
com José Serrá em 2004. Nossa percepção geral é de que Cidade Tiradentes deixou
de ser o "laboratório" da gestão municipal.
Paraisópolis, relativa e proporcionalmente à população de rua e ao distrito de
Cidade Tiradentes, é o local que recebe mais recursos (privados e públicos). No
entanto, constata-se a instabilidade da posse da terra em Paraisópolis devido
aos interesses imobiliários, que buscam a remoção de uma boa parcela dos
moradores. A oscilação de períodos mais ou menos favoráveis à remoção ocorre
conforme a articulação entre estes interesses e os agentes políticos da máquina
do município e do estado. Nas gestões municipais (entre 1989-1992 e 2001-2004)
petistas houve significativos investimentos no local e na população enquanto
nas gestões pepebistas (entre 1993 e 2000) o medo da remoção e o descaso nos
serviços de limpeza e transporte tornaram a vida mais difícil.
Assim, as prioridades das ações estatais dependem em parte do cálculo político
sobre a possibilidade de um local ser convertido minimamente em base eleitoral.
Em maior ou menor intensidade, a quase totalidade das ações de um governo em
qualquer parte do município levará em conta o rendimento eleitoral, e isto é
mais característico dos lugares mais pobres, que são submetidos mais às
políticas de governos do que à rotina da máquina estatal, cujo resultado é uma
trajetória de instabilidade. A alternância no poder pode significar ganhos ou
perdas materiais consideráveis. Castel sugere pensar a pobreza não somente a
partir da dimensão econômica, mas também por meio dos vínculos sociais que
geram maior integração (família, vizinhança, associações civis, igrejas
etc.)45. Entretanto, diante dos casos etnografados, a vulnerabilidade deve ser
pensada também em termos políticos46, seja pela alternância dos governantes,
seja pela qualidade dos vínculos estabelecidos com eles.
A QUALIDADE DOS VÍNCULOS SOCIAIS: ENTRE A PROTEÇÃO E A LIMITAÇÃO
Em seu estudo sobre os efeitos das redes sociais, Granovetter problematiza o
pressuposto da virtuosidade dos laços sociais47. Para o autor, as redes sociais
muito coesas e densas tendem à "redundância" das relações a partir de um
determinado ponto. A "redundância" limita a circulação de bens, pessoas,
informações etc. Em contrapartida, a pouca necessidade de fidelidade dos laços
fracos permite um alcance maior e diferenciado de relações sociais. É a
"fortaleza dos laços fracos". Uma parte do nosso argumento sobre os circuitos
de reciprocidade afirma a positividade dos laços sociais na proteção dos
indivíduos ou dos grupos em situação de vulnerabilidade. Seguindo a proposição
de Castel de não pensar a pobreza somente a partir da dimensão econômica,
constatamos que apesar da situação de vulnerabilidade de Paraisópolis existem
vários circuitos de reciprocidade trabalhando a favor de uma maior integração
social48. Se a virtuosidade dos circuitos era nosso pressuposto inicial,
sobretudo após a pesquisa em Paraisópolis, outros exemplos demonstraram a
existência de boas e más conexões, que podem significar tanto proteção quanto
limitação da mobilidade social. Assim, gostaríamos de problematizar os ganhos e
as perdas nos circuitos de reciprocidade: a vizinhança, a família e as
associações de assistência.
Com relação ao circuito formado pela vizinhança, como lidar com o contexto de
violência de boa parte dos lugares pobres? Embora Paraisópolis, Cidade
Tiradentes e o Centro de São Paulo não sejam tão violentos quanto a percepção
que se tem destes lugares, existe um patamar de violência que não pode ser
ignorado. Na relação dos moradores de Cidade Tiradentes com a violência não se
pode deixar de considerar que a adesão ao tráfico acontece devido ao alcance e
espraiamento das redes de contato com as organizações criminosas, desdobrando-
se na já famosa frase "todo mundo conhece alguém envolvido com o 'movimento'".
As estratégias de sociabilidade sem adesão podem realizar-se na forma de
evitação com conivência forçada, expressa em frases do tipo "aqui não tem nada
pra fazer, mas tem muita malandragem. O melhor jeito é conhecer os cara sem se
envolver", ou em convivência pacífica, manifesta em atitudes de respeito entre
bandido e comunidade, como já relatado em outros trabalhos49. Ambos os casos, a
evitação e a convivência demonstram a necessidade de "conhecimento com a
bandidagem", ou seja, o necessário estabelecimento de uma relação. Se no
primeiro caso a evitação é uma forma de não envolvimento e tentativa de
garantia de segurança pelo afastamento, o "trabalhador honesto" avalia que a
melhor forma de estar seguro é justamente estar junto, respeitar sem julgar e
estabelecer laços de confiança, sem estar envolvido na negatividade da rede.
Se as condições objetivas do local são um terreno propício para a busca de
formas não convencionais de sobrevivência, um elemento explicativo para a
adesão às práticas ilegais está relacionado com o acesso ao consumo, sobretudo
entre os jovens, expressando-se na ostentação de roupas, carros, mulheres. Ou
seja, signos de distinção em relação à população da qual se faz parte. A
sensação de poder é reforçada pela admiração dos pares, das mulheres e do temor
dos inimigos, o que Zaluar50 define como o éthos do guerreiro ao pensar a
sociabilidade dos traficantes em Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. A
participação dos moradores direta ou indireta no tráfico é mínima em qualquer
localidade, no entanto, esta sociabilidade forçada com a vizinhança do tráfico
confere insegurança e indefinição à trajetória dos indivíduos, principalmente
dos homens mais jovens. A maior parte dos depoimentos, sobretudo das mães, fala
do medo dos filhos serem atraídos para o tráfico, não apenas como consumidores,
mas como participantes diretos ou laterais ao comércio do "movimento". Já há
algum tempo o termo utilizado com maior freqüência é "firma", e comumente os
adolescentes e jovens envolvidos com o tráfico referem-se às suas atividades
juridicamente ilícitas como "trabalho". Em resumo, a vizinhança nestas
localidades, regra geral, é percebida como perigosa e da qual as pessoas devem
proteger-se.
O segundo circuito de reciprocidade que deve ser problematizado é o familiar.
Na observação de Paraisópolis e Cidade Tiradentes privilegiaram-se as famílias
por serem um lugar de articulação de diferentes circuitos de relações que cada
membro de um domicílio mobiliza, além da própria relação familiar. Em razão do
acesso à variedade dos circuitos de reciprocidade, as famílias configuram-se
como um conjunto de dimensões (as políticas públicas, o mercado de trabalho e
as relações pessoais) que são equacionadas no seu interior. A pobreza e a
mobilidade, ascendente ou descendente, se reproduzem na estrutura familiar mais
do que nos indivíduos atomizados.
Verificamos em campo que a família é uma espécie de compensador que suaviza as
diferenças geracionais. A família possibilita uma redistribuição e equilíbrio
das dificuldades individuais. Pensada desta forma, ela é um ativo que age como
uma rede de proteção; entretanto, esta concepção virtuosa das relações
familiares pode se inverter quando vista de uma posição específica na rede
familiar. Quando os postos de trabalho ficam mais restritos aos mais velhos, a
família pode representar um peso para os mais jovens, que ficam limitados na
mobilidade social, mesmo tendo passado por processos de capacitação educacional
e profissional. Se o saldo do equacionamento das necessidades e conquistas
materiais no interior de uma rede familiar tende a ser positivo (atuar como
proteção social), do ponto de vista de algumas posições (no caso, os mais
jovens) um limite é estabelecido. O vínculo aqui é um peso.
Por fim, se Paraisópolis e Cidade Tiradentes tiveram como focos principais de
investigação as famílias e a vizinhança, como tratar os circuitos de
reciprocidade dos moradores de rua? Em suma, sabemos que a qualidade de seus
laços é fraca, mas qual o seu alcance e como operam? O caráter nômade da
população de rua implica a enorme dificuldade de manutenção dos vínculos
sociais mais perenes. A trajetória pessoal destes sujeitos é comumente marcada
por um contínuo percurso de desligamento social que desemboca na rua51,
considerado o estágio último e de valor simbólico negativo, de modo que suas
histórias de vida são marcadas por processos de rupturas socioafetivas e
econômicas. Suas histórias de vida caracterizam-se por sucessivas perdas, um
percurso gradativo de quedas e lesões sociais. Porém, os rumos das histórias
não são homogêneos e nem predeterminados. A pessoa pode ir e voltar para a rua
várias vezes, pode ir e nunca mais sair, pode também ir para a rua, sair dela
para nunca mais voltar (este último é um percurso muito mais complexo e
difícil, além de envolver a atuação de outros agentes, tais como padres,
familiares, clínicas de recuperação, possibilidades de trabalho e redes de
atendimento pelo qual o sujeito passa e é "reformado")52.
Apesar da precariedade dos vínculos sociais entre os moradores de rua, faz
algum tempo que se desenha em torno deles uma rede de assistência envolvendo
algumas religiões (principalmente a Igreja católica), ONGs, voluntários,
assistência social estatal, movimentos sociais etc. Castel53 chama esta parcela
da população de "supranumerários", um contingente populacional sem
funcionalidade no mundo do trabalho. Eles seriam o ponto de chegada de um
processo de vulnerabilidade imposto por uma nova ordem nas relações de trabalho
que paulatinamente retira a rede de proteção social. Entretanto, para a
pesquisa sobre os moradores de rua interessou-nos não somente o percurso da
perda, mas também e propriamente o ponto de chegada nele mesmo. Isto é, pensar
os moradores de rua não como um fim, um resíduo ou uma passagem (na medida em
que estas pessoas acabam morrendo mais novas do que o restante da população),
mas como um padrão permanente no contexto da pobreza urbana de São Paulo. E
aqui se encontra o terceiro circuito de reciprocidade a ser problematizado.
Construiu-se um campo institucional no qual há uma disputa pela fala legítima
sobre a população de rua. O surgimento desta ampla rede de assistência e
associativa deve-se em boa medida à visibilidade crescente desta parcela da
população nas partes centrais do município. Esta se move segundo a codificação
encontrada na legislação e nos financiamentos públicos que se tornam indutores
de práticas sociais. Para tanto, é necessário fixar uma identidade
reivindicatória (morador de rua, sem-teto, sem-terra etc.), desestigmatizando-
a dos seus atributos de baixo valor simbólico, com a finalidade de ter acesso a
recursos materiais. Isto é, a possibilidade de atração de investimentos da
população de rua está em transformar a classificação negativa em símbolo da
reivindicação.
Se a estratégia do movimento de moradores de rua, por um lado, contribui na
formação de uma rede de assistência; por outro, a prática de geração de renda
pela reciclagem do lixo, por exemplo, fixou o morador de rua na rua. Pelo
Centro de São Paulo, na região do Glicério por exemplo, os pontos de reclicagem
de lixo construídos por ONGs e da prefeitura foram construídos literalmente
debaixo da ponte ou em ruas sem saída. Não se trata de uma política
propriamente de retirada da população da rua (vide o aumento dos leitos em
albergues), mas de uma melhoria na captação de renda ao enquadrá-la
funcionalmente na circulação econômica, sobretudo na reciclagem do lixo
produzido pela riqueza do Centro. A proliferação de albergues e a economia do
lixo permitiram a emergência de uma nova forma de "estar nas ruas". Mora-se e
trabalha-se na rua. Em resumo, se as redes protegem, sobretudo as familiares e
de assistência, elas também limitam; de forma geral, elas sustentam, mas não
geram com freqüência um processo de mobilidade ascendente devido à qualidade
dos seus vínculos.
CONSIDERAÇÃO FINAL
Nossa primeira situação tratou da relação entre uma favela e um bairro rico
localizados lado a lado. Na segunda, analisou-se uma localidade na extremidade
da mancha urbana. Por fim, voltamos a uma das centralidades da cidade e sua
população de rua. Do ponto de vista do espaço físico, são heterogêneas as
distâncias sociais: contígua, longínqua e contínua, respectivamente. Os três
casos apresentam alguns mecanismos comuns mas com arranjos específicos
(situados), cujo resultado é a diferenciação da própria pobreza urbana. Neste
sentido, ela é entendida em sua diversidade interna e em relação aos outros
estratos sociais. Nossa estratégia comparativa foi estabelecer extremos
analíticos para refletir, por meio da pesquisa etnográfica, acerca das
mediações e transversalidades do jogo social entre a relativa melhoria da
pobreza e a reprodução das distâncias sociais. Estas duas linhas de força têm
sentidos analíticos opostos, mas imbricados em um mesmo processo social.
Voltando à distinção inicial de Certeau entre estratégia e tática, em todos
casos analisados, observou-se uma estrutura desigual, que situa parcelas da
população na periferia do espaço social, onde não podem agir a partir de um
"lugar próprio", o que limita o ritmo e o alcance das melhorias, sempre em
desvantagem aos outros estratos sociais.
[1] Este artigo foi produzido a partir dos resultados das pesquisas
"Desenvolvimento regional e desigualdades socioprodutivas: tendências recentes,
redefinições conceituais e desdobramentos em termos de políticas públicas" do
convênio Cebrap/IPEA, que conta com financiamento da Finep, e "Sociabilidade e
Desigualdade" do projeto CEM, que conta com financiamento da Fapesp.
[2] Agradecemos os cuidadosos comentários e sugestões a este texto feitos por
Fernando Pinheiro, Fernando Limongi e as discussões do nosso grupo de estudos
sobre desigualdade e sociabilidade, que conta ainda com Isabel Georges, Edlaine
Gomes, Gabriel Feltran e Felipe Hévia.
[3] Caldeira, Teresa. Cidade de muros. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000; Bonduki, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São
Paulo: Estação Liberdade/Fapesp, 1998.
[4] Marques, Eduardo e Torres, Haroldo. Segregação, pobreza e desigualdades
socais. São Paulo: Senac, 2005.
[5] Este é um tema que acreditamos ainda necessitar de mais pesquisas com
ênfase em metodologia qualitativa. Mais precisamente, qual o impacto dos
programas sociais de transferência de renda na vida das famílias? Como elas
gerem o recurso recebido? Qual o impacto no orçamento doméstico? Quais práticas
políticas envolvem a transferência de renda e quais derivam dela?
[6] Zaluar, Alba. O condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994; Telles, Vera da Silva e Cabanes, Robert (orgs.). Nas tramas
da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação
Editorial, Humanitas, IRD, 2006; Feltran, Gabriel de Santis.
Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de
São Paulo. Campinas: tese de doutorado, Faculdade de Ciências Sociais, Unicamp,
2008.
[7] Guimarães, Nadya A. "Trabalho em transição". Novos Estudos, nº 76, novembro
de 2006.
[8] Torres caracteriza as regiões pobres de São Paulo a
partir de uma classificação segundo a qualidade da urbanização: "periferia
precária", "periferia consolidada" e "periferia em expansão". Torres, Haroldo.
"A fronteira paulistana" In: Marques e Torres, op. cit.
[9] Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. 2 vols. Petrópolis: Vozes,
2003.
[10] Entendemos como "centro expandido" a área definida pela Secretaria de
Trânsito de São Paulo: algo maior do que o centro comercial e histórico, e onde
ocorre a maior circulação de automóveis da cidade de São Paulo. Nesta área
verifica-se alta circulação de transportes, mercadorias, capital financeiro,
oferta de postos de trabalho e atividades culturais, dentre outras. Fora do
"centro expandido", o Tatuapé (bairro de classe média alta da Zona Leste) e o
condomínio de Alphaville são alguns dos vetores de "centralidades" de São
Paulo.
[11] Lévi-Strauss, Claude. "A noção de estrutura em etnologia". In:
Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 320.
[12] Bourdieu, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
[13] Kaztman, Ruben e Filgueira, Carlos. "Marco conceptual sobre activos,
vulnerabilidad y estructuras de oportunidades". In: Documento de la Comisión
Económica para América Latina y Caribe. Montevideo: Cepal, 1999, p. 9.
[14] Almeida, Ronaldo e D'Andrea, Tiarajú. "Estrutura de oportunidades em uma
favela de São Paulo". In: Marques e Haroldo, op. cit.
[15] A referência aqui é o Hospital Israelita Albert Einstein, vizinho da
favela, que nela montou um posto de saúde, em que se atende boa parte da
população infantil de Paraisópolis.
[16] Lavalle, Adrián e Castello, Graziella. "Associativismo religioso e
inclusão socioeconômica". Novos Estudos, nº 68, março de 2004.
[17] Ibidem.
[18] Almeida, R. e D'Andrea, T. "Pobreza e redes sociais em uma favela
paulistana". Novos Estudos, nº 68, março de 2004.
[19] Ibidem.
[20] Este grupo se impôs à favela após um período de "guerra" contra outro
grupo de migrantes também do Nordeste.
[21] CEM. Mapa da vulnerabilidade social da população da cidade de São Paulo.
Zona Leste. São Paulo: Sas/CEM/SESC/Cebrap/CEM, 2004.
[22] Caldeira, op. cit.
[23] Atualmente, os 14 km2 do distrito de Cidade Tiradentes abrigam cerca de
220 mil habitantes.
[24] O maior impulso às melhorias foi dado pela pressão política exercida pelos
movimentos sociais, que na Zona Leste tiveram uma notável importância.
[25] Ministério do Trabalho. "Rela ção Anual das Informações So ciais/1999";
<www.mte.gov.br. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 2002>, acessado em
27/11/2008.
[26] Usina. Plano de Ação Habitacional e Urbana/Cidade Tiradentes. Relatório
Diagnóstico. Programa Bairro Legal. Sehab/CEM/USINA, 2003.
[27] Kowarick, Lúcio. Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 28; idem. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993;
Bonduki, op. cit; Caldeira, op. cit.
[28] Bonduki, op. cit.; Caldeira, op. cit.; Kowarick, A espoliação urbana, op.
cit.
[29] As partes mais centrais deste setor foram as principais áreas atingidas
pelo investimento imobiliário. Na Marginal do Pinheiros a região ocupada pela
favela Águas Espraiadas foi removida para dar lugar a um complexo de
edificações para escritórios de negócios e espaços de entretenimento.
[30] Emurb/CEM. Caminhos para o Centro: estratégias de desenvolvimento para a
região central de São Paulo. Prefeitura Municipal de São Paulo/Cebrap/CEM,
2004.
[31] SAS (Secretaria Municipal de Assistência Social), FIPE (Fundação Instituto
de Pesquisas Econômicas). Censo dos moradores de rua da cidade de São Paulo.
São Paulo, 2000; idem. Recenseamento dos moradores de rua da
cidade de São Paulo. São Paulo, 2003.
[32] Vieira, Mac, Bezerra, E. e Rosa C. População de rua - quem é, como vive,
como é vista. São Paulo: Hucitec, 1994.
[33] A grande parte dos chamados "destoantes sociais" muitas vezes só possui em
comum o estigma, aquele atributo dado à diferenciação vergonhosa (Goffman,
Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1988). No caso da população de rua, o signo diacrítico de
desaprovação que produziria uma suposta unidade a este todo fragmentado seria a
própria rua.
[34] Vieira, Bezerra e Rosa, op. cit., pp. 93-94.
[35] CEM. Mapa da vulnerabilidade social da população da cidade de São Paulo.
Zona Leste. São Paulo: Sas/CEM/SESC/Cebrap/CEM, 2004, p. 48.
[36] Depoimento extraído do documentário Moro em Tiradentes, dirigido por Henry
Gervaiseau com base no relatório de pesquisa de Tiarajú D'Andrea (Redes sociais
em Cidade Tiradentes. São Paulo: relatório, Cebrap/Finep, 2005).
[37] Ibidem.
[38] Stoffels, Marie Ghislaine. Os mendigos na cidade de São Paulo - ensaio de
interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1977.
[39] Honneth, Axel. "Invisibilité: sur l'épistémologie de la
'reconnnaissance'". In: La société du mépris: vers une nouvelle Théorie
critique. Paris: Éditions La Découverte, 2006, p. 225.
[40] De Lucca, Daniel. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais
em torno da população de rua. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP,
2007.
[41] "A codificação é uma operação de ordenação simbólica, ou de manutenção da
ordem simbólica, que em geral compete às grandes burocracias estatais"
(Bourdieu, Pierre. "A codificação". In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense,
2004, p. 101.
[42] Honneth, op. cit.
[43] Bourdieu, op. cit., p. 187.
[44] Ao incentivar a remessa de todo um contingente populacional para a
fronteira urbana, o poder público coloca-se numa situação em que necessita
levar, também, a cidade consolidada, com todos os seus serviços, equipamentos e
redes técnicas, para esta região, gerando, desta maneira, um aumento dos gastos
públicos.
[45] Castel, Robert. "De l'índigence à l'éxclusion, la désaffiliation:
précarité du travail et vulnérabilité relationnelle". In: Danzelot, Jacques
(org.). Face à l'éxclusion le modèle français. Paris: Esprit, 1991.
[46] Kowarick, L. "Viver em risco: Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano".
Novos Estudos, nº 63, julho de 2002.
[47] Granovetter, Mark. "The strenght of weak ties". American Journal of
sociology, v. 78, nº 6, 1973, pp. 1360-80.
[48] Almeida e D´Andrea, "Pobreza e redes sociais em uma favela paulistana",
op. cit.
[49] Zaluar, A. A máquina e a revolta. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.
144.
[50] Ibidem.
[51] Paugam, Serge. O enfraquecimento e a ruptura de vínculos sociais.
Petrópolis: Vozes, 1999.
[52] De Lucca, op. cit.
[53] Castel, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 3ª
ed. Petrópolis: Vozes, 1995.