Possibilismo: vida e obra de Albert O. Hirschman
Numa noite de 1928, um estudante de ensino médio de Berlim conversa com o pai
sobre a vida, o universo e tudo mais. A certa altura o pai, um renomado
cirurgião da Charité, o hospital mais famoso de Berlim, confessa que não tem
todas as respostas para as perguntas existenciais do filho. Um tanto chocado e
desconcertado, o jovem sai correndo. Atravessa o longo corredor do apartamento
burguês fin-de-siècle em que eles moram até o quarto de sua irmã mais velha,
Ursula, e declara, pasmado: "Weißt Du was? Vati hat keine Weltanschauung" -
"Sabe de uma coisa? O papai não tem Weltanschauung!", ou seja, nenhuma visão de
mundo abrangente com base ideológica. O jovem é Albert Hirschman - e ele
próprio admite que esse foi um dos acontecimentos mais decisivos de sua vida1.
Naquela idade, jovem ainda, não ter uma Weltanschauung bem definida parecia a
ele uma imperdoável deficiência de caráter. Em última instância, porém, não
aderir cegamente a uma ideologia fixa tornou-se a marca registrada de sua obra
científica, se não de sua vida inteira2.
Aos primeiros raios de luz de uma manhã fria de céu claro em dezembro de 1940,
um homem de 25 anos cruza secretamente a fronteira entre França e Espanha.
Trilhas escondidas guiam seu caminho pelos Pireneus. Durante os últimos meses,
ele colaborou com Varian Fry e o Comitê de Resgate de Emergência em Marselha,
para ajudar a deixarem a França destacados emigrados europeus perseguidos pelos
ocupantes alemães. Agora, os alemães estão num frenesi para capturá-lo. Seu
apelido é "Sorridente". De acordo com sua Carte d'Identité francesa, seu nome é
Albert Hermant. O verdadeiro nome do transgressor é Albert Hirschman.
Em 1995, um renomado economista escreve ironicamente que sua obra científica se
caracteriza por "uma propensão à auto-subversão". Ao longo de sua carreira
acadêmica, ele não só examina de forma crítica as teorias de colegas
cientistas, mas também testa suas próprias teorias e até as altera
completamente quando sente que perderam o valor explicativo. Parafraseando o
famoso dito de Camus, ele declara que gosta de se ver como um Sísifo feliz, que
lança abaixo de moto próprio a pedra de sua teoria e da teoria de outros
acadêmicos, mas que ao mesmo tempo também extrai satisfação de tentar rolá-la
acima de novo3. Esse Sísifo feliz também é Albert Hirschman.
Sem dúvida, a biografia de Hirschman é tão multifacetada quanto a obra
acadêmica que o tornou um dos cientistas sociais mais originais do século XX.
Contudo, dado que não fundou uma escola de pensamento específica nem
desenvolveu uma teoria concisa que condensasse a essência de seus escritos, ele
é normalmente associado a elementos específicos, aparentemente separados, de
sua obra. Cientistas políticos o vinculam à saída e voz (1970); economistas do
desenvolvimento, à abordagem do encadeamento (1958/1988); e historiadores, a
paixões e interesses (1977) ou à retórica da reação (1991), para dar apenas
alguns exemplos4. Essa redução a contribuições específicas, todavia, não capta
o núcleo fundamental de sua obra e corre o risco de fazer com que Hirschman
seja percebido unicamente como um combatente de batalhas históricas passadas.
Por conseguinte, a relevância contemporânea e duradoura de sua obra é com
freqüência despercebida.
Por exemplo, no debate ideológico atual, travado de forma feroz, sobre se a
pobreza global deve ser reduzida por meio de mais um "grande impulso" na
assistência ao desenvolvimento, como é exigido por Jeffrey Sachs5, ou antes por
uma estratégia de "um passo de cada vez", como é advogado por William
Easterly6, as idéias de Hirschman sobre desenvolvimento, que na verdade tocam
em muitas das questões da presente controvérsia, não são evocadas por nenhuma
das partes. Da mesma forma, Rodrik7 saúda uma recente publicação do Banco
Mundial por inovar ao advertir pesquisadores e praticantes do desenvolvimento
"a serem céticos em relação a soluções universais, abrangentes, de cima para
baixo - não importando quão bem-intencionadas elas possam ser" - e por destacar
que "a análise econômica, por mais difícil que seja, na falta de modelos
específicos, tem de ser feita caso a caso"8. Os mesmos argumentos são expressos
também por Easterly9 em seu apelo para que, em vez de serem "planejadores" que
agem de acordo com abordagens modelares, os praticantes do desenvolvimento
devem antes ser "pesquisadores" e procurar o que é factível em qualquer
conjunto dado de circunstâncias individuais. De fato, esse foi um dos
principais apelos de Hirschman durante mais de cinqüenta anos. Mas não há
nenhuma referência a ele nessas publicações. O mesmo vale para a vasta
literatura da abordagem pós-modernista que muitas vezes reflete a crítica de
Hirschman em teorias grandiosas e abordagens tamanho-único sem, no entanto,
mencioná-lo10. Uma exceção notável é Ellerman11, que faz uso explícito de
Hirschman em seu desenho de uma filosofia do desenvolvimento alternativa.
Reconsiderar os textos de Hirschman parece, portanto, oportuno. Todavia, essa
reconsideração não deve se limitar a suas idéias sobre desenvolvimento
econômico. Na verdade, a principal originalidade de Hirschman reside em sua
abordagem geral da solução de problemas e em seu método de análise. Esse modo
específico de investigação caracteriza sua obra e congrega-lhe as partes
individuais; acima de tudo, ele ainda pode ser usado de forma eficaz em muitas
formas de análise social, não só no desenvolvimento. Contudo, condensar essa
abordagem específica a partir de seus muitos - e à primeira vista desligados -
textos e identificar seus elementos principais não é tarefa fácil.
Isso é em parte o resultado da recusa deliberada de Hirschman a construir uma
teoria única. Em Shifting involvements (1982), ele defende abertamente que
aceitemos as complexidades da vida real em vez de buscarmos teorias ou
paradigmas que abranjam tudo. Não obstante, ao tornar visíveis as influências
biográficas sobre as contribuições acadêmicas de Hirschman, é possível
desenredar a complexidade de seus textos, identificar as constantes
fundamentais de sua obra e revelar seu método analítico. É isso que este ensaio
pretende fazer. A identificação dos leitmotiven científicos de Hirschman por
meio de uma justaposição direta com sua vida normalmente não fez parte da
literatura sobre ele12. Felizmente, o próprio Hirschman, depois de ter evitado
por muitos anos investigar o gênero autobiográfico, começou, na segunda metade
da década de 1990, a publicar alguns artigos autobiográficos muito curtos.
Estes constituem a base das informações biográficas aqui reunidas.
Em ciência, em nítido contraste com as artes, a biografia de um cientista ou
acadêmico normalmente não é abordada quando se discute sua obra acadêmica. Por
trás disso está o ideal de universalidade e objetividade da ciência, em
especial nas ciências naturais, mas também na economia, essa "rocha de solidez
positivista"13. A obra de Hirschman, no entanto, é tão complexa que é só por
meio da referência à sua biografia que conseguimos identificar em seus textos
as questões e os tópicos vinculantes. Mais do que em muitos outros casos,
quando se discute Hirschman, obra e vida não podem ser separadas. Ele uma vez
chamou seu método de análise das questões latino-americanas de "possibilismo".
Eu argumentaria que o "possibilismo" é, de fato, não apenas característico dos
textos de Hirschman sobre desenvolvimento ou sobre a América do Sul, mas também
seu método científico geral subjacente. Uma definição dessa abordagem ampliada
do possibilismo exige a identificação dos leitmotiven que moldaram tanto a vida
como a obra de Albert Hirschman. São estes a auto-subversão, a transgressão e a
ausência de Weltanschaauung. O possibilismo resultou dessas três
características.
O restante deste ensaio discute a biografia e a obra acadêmica de Hirschman em
ordem cronológica, dividindo-se em três partes. A primeira focaliza importantes
acontecimentos biográficos até o final da década de 1940; a segunda examina as
principais obras acadêmicas de Hirschman; e a parte final sumariza a essência
do possibilismo, indicando o que acadêmicos, pesquisadores e praticantes do
desenvolvimentismo contemporâneos podem aprender da vida e da obra de Albert O.
Hirschman.
Neste ponto é preciso fazer dois esclarecimentos importantes. Primeiro, a
separação entre fatos biográficos e contribuições acadêmicas em duas partes
diferentes do artigo é não apenas intencional, mas também necessária. As
principais influências biográficas que depois moldaram a abordagem científica
de Hirschman ocorreram antes de ele ingressar na carreira acadêmica. É como se
ele vivesse duas vidas apartadas, uma como antifascista e refugiado, outra como
economista de renome. Essas duas fases não se sobrepõem; são seqüenciais. Como
este ensaio é escrito em ordem cronológica, os principais eventos da vida de
Hirschman anterior à partida da Europa para os Estados Unidos são sumarizados
antes de destacar suas obras acadêmicas. Nos textos posteriores, Hirschman usou
conscientemente suas experiências quando jovem. É evidente que experiências
pessoais posteriores a 1945 também tiveram um impacto importante sobre seu
trabalho, mas para entender os temas recorrentes nas obras é preciso focalizar
sua vida antes da chegada aos Estados Unidos. Em segundo lugar, Hirschman
manifestou sua "propensão à auto-subversão" na reinterpretação que fez de três
diferentes temas, a saber, o papel das assimetrias nas relações internacionais
(originalmente da década de 1940), o conceito de crescimento desequilibrado
(década de 1950) e saída e voz (década de 1970). Para tornar visível o processo
de auto-subversão, resumi todos os escritos de Hirschman sobre cada um desses
tópicos no momento em que discuto o texto original. Num sentido estrito, isso
contradiz a organização cronológica do ensaio, mas é a única forma de evitar
confusões posteriores.
A LUTA CONTRA O FASCISMO - BERLIM, PARIS, LONDRES
Albert Hirschman nasceu em Berlim, em 1915, e recebeu o nome Otto-Albert
Hirschmann. Embora seus pais fossem judeus, ele e a irmã foram batizados como
protestantes. Como ocorria a muitos dos judeus prussianos assimilados da classe
média alta, a religião e a prática religiosa não eram uma questão importante na
família Hirschmann.
Hirschman estudou no Lycée Français de Berlim, uma escola de elite, e concluiu
seu baccalauréat pouco antes de os nacional-socialistas assumirem o poder.
Envolveu-se ativamente na organização de jovens do Partido Social-Democrata
(SPD), no mesmo grupo do jovem Willy Brandt. Algumas semanas depois de o
Reichstag ter sido consumido pelas chamas, seu pai morreu de câncer. A morte do
pai, junto com o crescente anti-semitismo e as primeiras medidas legislativas
antidemocráticas do governo de Hitler, persuadiu Hirschman a emigrar para a
França. Em abril de 1933, ele partiu de Berlim para Paris. Já havia começado a
estudar economia na Universidade de Berlim; em Paris, matriculou-se na École
des Hautes Études Commerciales (HEC). Os cursos de geografia econômica feitos
lá exerceriam sobre ele um impacto duradouro. A sensibilização pelo físico, o
topográfico, bem como pelas peculiaridades sociais de países específicos
entranhou nele uma tendência a olhar com ceticismo qualquer teoria que
definisse os prerrequisitos do progresso unicamente em termos de indicadores
macroeconômicos como investimento, poupança, razões capital/produto ou renda,
sem levar em conta outros traços característicos do país em questão14. Depois
de ter obtido seu primeiro diploma, em 1935, Hirschman ganhou uma bolsa de um
ano na London School of Economics. Foi durante sua estada na Inglaterra que o
economista John Maynard Keynes destroçou as fundações da economia com a
publicação de sua Teoria geral15.
RESISTÊNCIA ATIVA: ESPANHA, ITÁLIA E FRANÇA
Ao voltar à França, em 1936, Hirschman decidiu participar da Guerra Civil
Espanhola e viajou para Barcelona para se alistar nas Brigadas Internacionais.
Combateu cerca de duas semanas, mas partiu quando sua unidade ia ser
transferida para a defesa de Madri. Os atritos dentro da Brigada e a forte
influência que os comunistas stalinistas começaram a exercer o desiludiram.
Como ainda tinha um passaporte válido do Reich alemão, ele não teve dificuldade
de deixar o país.
De 1936 a 1938 Hirschman trabalhou em seu Ph.D. na Universidade de Trieste, na
Itália. Seus primeiros textos acadêmicos foram publicados nessa época,
principalmente sobre questões da economia italiana. Em comparação com as
batalhas teóricas correntes que eram travadas na ciência econômica, sua
abordagem era bastante heterodoxa. As explicações que ele propunha para
fenômenos demográficos ou econômicos da sociedade italiana se baseavam mais em
estatísticas do que em discussões teóricas. Para Hirschman, era "um grande
alívio perceber que se podia fazer um trabalho toleravelmente competente em
economia sem ter de resolver se Keynes [...] tinha todas as respostas
corretas"16.
Hirschman escolheu Trieste porque ali tinha a possibilidade de ficar com a irmã
Ursula, que havia se mudado para a cidade com o marido, o filósofo italiano
Eugenio Colorni. Colorni pertencia a um grupo de antifascistas determinados e
ativos do qual Hirschman logo se tornou membro. Ele ficou fascinado com o fato
de os membros do grupo concordarem sobre a necessidade de combater o fascismo,
mas não justificarem suas ações recorrendo a uma ideologia específica. De fato,
Colorni e seu grupo cultivavam uma posição intelectual de ceticismo que não
tomava nada como dado, a não ser suas próprias dúvidas. Que isso não resultasse
em melancolia ou inatividade, ao contrário, provocasse ação e resistência, era
uma percepção completamente nova para Hirschman, que ainda acreditava
firmemente na necessidade de se ter uma Weltanschauung para guiar a ação. Os
membros do grupo de Colorni, sem bases ideológicas universalmente acordadas,
apenas não tinham disposição para tolerar as limitações das liberdades pessoais
e a crescente injustiça do regime de Mussolini, e extraíam uma profunda
satisfação da resistência ativa e do combate ao fascismo. A influência de
Colorni sobre Hirschman foi muito importante: foi por meio de sua experiência
em Trieste que ele pouco a pouco começou a questionar se era preciso realmente
ter uma base ideológica firme na vida. Em 1928, Colorni foi preso. Hirschman
evitou sua própria detenção voltando às pressas para Paris. Em 1944, Colorni
foi morto por fascistas italianos.
Depois que os alemães atacaram a França, em 1940, Hirschman alistou-se no
exército francês. Combateu em uma unidade constituída principalmente de jovens
alemães e italianos emigrados. Enquanto se retiravam para o Sul da França, os
soldados convenceram seu oficial a lhes fornecer documentos militares com
identidades falsas, para evitar a execução imediata se fossem apanhados pelos
soldados alemães. Albert Hirschman se tornou Albert Hermant.
De julho a dezembro de 1940, ele se juntou a Varian Fry em Marselha.
Financiados pelo Comitê de Resgate de Emergência americano, que havia sido
formado a pedido de Erika Mann e outros intelectuais norte-americanos e
europeus emigrados, Fry e seus ajudantes possibilitaram que mais de 200 mil
refugiados alemães e de outras nacionalidades deixassem a França e evitassem
ser presos, entre eles intelectuais, artistas e políticos de Weimar
proeminentes como Hannah Arendt, Max Ernst, Lion Feuchtwanger, Siegfried
Kracauer, Heinrich e Golo Mann, bem como Franz Werfel. Não havia possibilidade
legal de os emigrados em dificuldade deixarem a França, mas as autoridades
espanholas normalmente concediam vistos para Portugal e travessia em barcos
salva-vidas para o exterior. O desafio, portanto, era encontrar formas de
entrar na Espanha sem ser apanhado pela polícia francesa ou alemã. A principal
responsabilidade de Hirschman era organizar vistos legais e forjados para
Estados Unidos, Brasil e China e encontrar trilhas secretas para cruzar os
Pireneus. Foi por uma dessas trilhas que o próprio Hirschman partiu para os
Estados Unidos em 1940, sabendo que os alemães estavam à sua procura.
Hirschman poucas vezes comentou sobre seu trabalho com o comitê, normalmente
apontando para o relato feito por Varian Fry: Surrender on demand17. Os casos
trágicos daqueles que não puderam ser salvos pelo comitê e tiveram uma morte
prematura - como Walter Benjamin ou os políticos Rudolf Breitscheid (um
socialdemocrata proeminente na República de Weimar e ex-ministro do Interior da
Prússia) e Rudolf Hilferding (ministro das Finanças em Weimar) - pareciam pesar
tanto sobre Hirschman que ele não sentia nenhuma urgência de falar publicamente
sobre seu papel na salvação da vida de muitos outros. Além disso, os feitos de
Fry permaneceram amplamente não reconhecidos e não apreciados nos Estados
Unidos durante muitos anos depois da Guerra. Foi só no começo da década de
1990, quando uma exposição no recém-inaugurado Museu Memorial do Holocausto, em
Washington DC provocou um ressurgimento do interesse nas façanhas de Fry, que
Hirschman deu um testemunho - ainda que escasso - de seu próprio papel18.
TRANSGRESSÃO VOLUNTÁRIA
Em dezembro de 1940, uma bolsa da Rockefeller Foundation possibilitou que
Hirschman assumisse um cargo de pesquisador em Berkeley. Lá ele dividia uma
sala com outro economista-emigrado, Alexander Gerschenkron, que, como
Hirschman, se tornaria um dos pais fundadores da economia do desenvolvimento. O
primeiro livro de Hirschman, National power and the structure of foreign trade,
foi publicado em 1945. Em contraste com a teoria do comércio neoclássica, que
proclama que o comércio internacional é benéfico para todos os parceiros
comerciais, Hirschman, usando o exemplo da Alemanha pré-guerra, mostrou que o
simples peso econômico capacitou o império alemão a exercer uma influência
política considerável sobre alguns países europeus orientais menores. A
descrição desses efeitos políticos negativos do comércio e da dependência
política resultante das desigualdades econômicas internacionais antecipou
muitos argumentos empregados pela teoria da dependência da década de 1960,
cujos proponentes prontamente reivindicaram Hirschman como um dos seus.
Hirschman, no entanto, opunha-se a essa instrumentalização. Com o tempo, ele
sentiu o impulso auto-subversivo de esclarecer e emendar seus argumentos
anteriores. No famoso ensaio "Beyond asymmetry"19, ele contra-argumentou que
economias pequenas não estão automaticamente condenadas à eterna dependência.
Ao contrário, a importância relativamente pequena que elas têm em relação ao
vizinho potente e grande na verdade abre uma janela de mudança possível. Dado
que o volume de comércio com o país pequeno é só uma fração do que o país
grande comercia, as assimetrias econômicas se refletem em uma assimetria de
atenção: o país grande dá muito mais atenção a outros países que têm tamanho
similar ao seu do que a Estados pequenos. O país pequeno pode então tirar
vantagem dessa assimetria de atenção introduzindo na economia mudanças
estruturais como diversificação, substituição de importações e abertura de
novos mercados.
Hirschman criticou abertamente a teoria da dependência e seus próprios textos
anteriores por identificarem só o status quo negativo da dependência política e
econômica, sem sugerir como mudar essa situação, exceto, talvez, pela defesa
ingênua de soluções deus ex machina (tais como conclamar acordos internacionais
para pôr fim aos problemas). Em contraste, a obra de Hirschman propaga a
necessidade de identificar "modificadores ou remédios embutidos" e de explorar
se o sistema pode conter as "sementes de sua própria destruição" que permitam
reduzir a dependência a partir de dentro.
Em 1943, Hirschman integrou-se como voluntário ao exército e tornou-se cidadão
norte-americano. O funcionário da imigração quis mudar-lhe o nome de Albert
Hirschmann para Albert Hirshman. Ele se recusou e foi autorizado a manter o "c"
se sacrificasse um "n". Serviu no norte da África e na Itália, e voltou aos
Estados Unidos em 1946.
UMA ESTRATÉGIA NÃO-ORTODOXA DE DESENVOLVIMENTO
De 1946 a 1952 Hirschman trabalhou no Federal Reserve Board em Washington, em
questões do Plano Marshall para a reconstrução da Europa Ocidental. Durante
esse período, desenvolveu um interesse pela teoria do desenvolvimento
econômico. Assumiu um cargo de assessor econômico do governo da Colômbia e, em
1952, mudou-se para Bogotá, onde mais tarde abriu sua própria empresa
independente de consultoria. De tempo em tempos, viajava aos Estados Unidos
para apresentar textos em conferências sobre suas experiências com o processo
de desenvolvimento. Suas contribuições causaram tanto rebuliço na comunidade de
economistas do desenvolvimento que ele foi convidado pela Universidade Yale
para condensar suas observações em um livro. O resultado foi o memorável
Strategy of economic development (1958). Depois da publicação desse livro,
Hirschman recebeu a oferta de uma cátedra em Columbia, depois em Harvard e por
fim no Institute for Advanced Study em Princeton (onde é agora professor
emérito).
Strategy atacava diretamente a teoria da modernização prevalecente e sua idéia
de "crescimento equilibrado" (Paul Rosenstein-Rodan, Ragnar Nurkse), segundo a
qual países subdesenvolvidos necessitavam de um "grande impulso" - uma série de
investimentos simultâneos com o objetivo de estabelecer todas as indústrias
relevantes ao mesmo tempo. Fortemente influenciados pelos aparentes sucessos
das primeiras décadas de planejamento econômico na União Soviética, pelo
keynesianismo, com sua ênfase no papel ativo que o governo deveria desempenhar
na economia, pelo método de cálculo de insumo-produto de Leontief, que deu uma
base matemática ao planejamento, bem como pelo instrumento recém-criado de
elaboração de contas nacionais e de macrodados estatísticos como o Produto
Nacional Bruto, os proponentes da teoria da modernização acreditavam que uma
economia subdesenvolvida era comparável a um aparelho técnico que poderia
sofrer um ajuste fino por meio de interferência externa e deveria seguir
estritamente modelos padronizados do mundo desenvolvido.
Hirschman, ao contrário, afirmava que a maneira de avançar era fazer o oposto
exato, isto é, concentrar-se no "crescimento desequilibrado". Enquanto o modelo
de crescimento equilibrado acarreta um montante exagerado e pouco prático de
planejamento detalhado, a abordagem de Hirschman era mais pragmática e mais
fácil de implementar. Segundo ele, as decisões de investimento deviam ser
tomadas de acordo com as prioridades e as possibilidades financeiras e
tecnológicas disponíveis e deveriam tratar de uma coisa por vez. Por
conseguinte, o desenvolvimento não deveria ser percebido como uma gigantesca
matriz ex-ante de investimentos paralelos necessários, cobrindo uma miríade de
setores; antes, o desenvolvimento deveria ser pensado como uma seqüência de
investimentos. A abordagem é apelidada de "desequilibrada" porque os
investimentos começam concentrando-se em um único setor. Dado que países pobres
carecem de recursos para investir em todos os setores relevantes ao mesmo
tempo, o crescimento equilibrado só pode ser uma meta de longo prazo que
idealmente será o resultado do crescimento desequilibrado. E enquanto os
modelos de desenvolvimento daquela época enfatizavam a necessidade de
planejamento, Hirschman acreditava que o mercado cumpria um papel importante na
moldagem e na orientação dos investimentos necessários por meio das
preferências reveladas pela demanda do mercado. Esse foco nas forças do
mercado, todavia, não deve ser entendido no sentido da euforia neoliberal com o
livre-mercado. Por trás dele há um ceticismo em relação a uma demasiada
interferência externa na política de desenvolvimento. Hirschman acreditava que
os processos econômicos que se desenvolviam e se manifestavam no Terceiro Mundo
deviam ser aqueles que guiariam as futuras políticas de desenvolvimento e os
investimentos - não as abordagens modelares dos planejadores.
O conceito de "encadeamentos" explica como funciona o crescimento
desequilibrado. Em relação à produção de um determinado bem, os investimentos
podem ser feitos ou olhando para trás ou olhando para frente no processo de
produção:
Primeiro, uma operação industrial existente, dependendo inicialmente
de importações não só para suas máquinas e equipamentos, mas também
para muitos de seus insumos materiais, faria pressões para a
fabricação doméstica desses insumos e por fim para uma indústria
doméstica de bens de capital. Essa dinâmica foi chamada de
encadeamentos para trás,já que a direção do estímulo para
investimento adicional flui do artigo acabado para os materiais
brutos ou semiprocessados dos quais ele é feito ou para as máquinas
que ajudam a fazê-lo. Outro estímulo para investimento adicional
aponta na outra direção e é, portanto, chamado de encadeamentos para
frente:a existência de uma dada linha de produto A, que é um bem
final ou é usado como um insumo na linha B, age como um estimulante
para o estabelecimento de outra linha C, que também pode usar A como
insumo20.
Segundo Hirschman, é naqueles setores que propiciam a maioria dos encadeamentos
que devem ser feitos investimentos. Assim, as decisões de investimento não
devem ser guiadas apenas pelo produto esperado, mas também pelo grau em que os
investimentos iniciais levarão a investimentos adicionais.
Trinta anos depois da publicação de Strategy, Hirschman sentiu mais uma vez
necessidade de subverter suas idéias originais. Baseado em lições aprendidas da
implementação delas, ele admitiu que não havia reconhecido as conseqüências
políticas do crescimento desequilibrado. Isso significava
[...] que esse crescimento poderia implicar por algum tempo um
declínio real nas rendas do setor que inicialmente não se expandia
[...]. Quando a indústria avança [em um setor] e usa os recursos de
energia e transporte existentes, na ausência de excesso de
capacidade, há menos desses recursos disponíveis para os usuários
tradicionais, que, portanto, estarão em pior situação21
Assim, no processo de crescimento seqüencial que ele propagava, os receptores
de renda de um setor podiam de fato estar ganhando à custa daqueles de outros
setores.
Em outras palavras, os investimentos em apenas um setor resultam no
negligenciamento de outros setores, o que subseqüentemente chama a atenção
pública. As crescentes críticas resultantes levam então a uma mudança de curso,
a uma nova concentração de investimentos em outros setores - e outra vez a um
novo negligenciamento. Para Hirschman, esse padrão de investimento em
ziguezague, ao qual ele se refere com mais precisão como "crescimento
antagônico" é, todavia, "adequado ao sistema democrático" e pode ser "o padrão
característico, e mesmo o único disponível, de progresso em uma sociedade que
vive segundo as regras da política competitiva. Uma tal sociedade é
necessariamente dividida em "os de dentro" e "os de fora", com os interesses e
as aspirações destes últimos sendo negligenciados até que seja a vez deles de
assumir o controle e inverter a situação em relação a seus oponentes22. É
interessante que esse padrão em ziguezague só é possível porque a desigualdade
crescente é tolerada por algum tempo antes que se instale o protesto.
Enquanto alguns economistas23 proclamavam que a desigualdade surge no início do
processo de desenvolvimento e deve idealmente se reduzir depois, Hirschman
buscava as razões psicológicas que podiam explicar por que a desigualdade
crescente é tolerada - ao menos por algum tempo - por aqueles deixados de fora,
como se mostrou no curso do crescimento antagônico. A resposta, ele
argumentava, está na existência do que ele chama de "efeito túnel":
Suponha que eu dirija por um túnel com duas pistas, ambas indo na
mesma direção, e entro em um sério congestionamento. Até onde consigo
ver (que não é muito longe) nenhum carro se move em nenhuma das
pistas. Estou na pista da esquerda e fico desanimado. Passado algum
tempo os carros na pista da direita começam a se movimentar.
Naturalmente, fico consideravelmente animado, pois sei que o
congestionamento foi rompido e que a vez de minha pista se movimentar
decerto ocorrerá a qualquer momento. Embora esteja parado, me sinto
muito melhor do que antes por causa da expectativa de que logo me
moverei. Mas suponha que a expectativa é frustrada e só a pista da
direita continue a se movimentar: nesse caso eu, junto com meus co-
sofredores de pista, suspeitarei de desonestidade, e muitos de nós em
algum momento ficaremos muito furiosos e dispostos a corrigir a
injustiça por meio de ações diretas (como cruzar ilegalmente a linha
dupla que separa as duas pistas)24.
Usando esse exemplo simples, Hirschman explicava por que uma situação subótima
(o fato de outros carros se movimentarem ou, em termos de desenvolvimento
econômico, de as rendas de outros crescerem) é tolerado por algum tempo por
aqueles deixados de fora. Esse intervalo entre a identificação de um problema e
a ação contra ele - em outras palavras, o intervalo de tempo de tolerância -,
embora intuitivamente convincente, contradizia o modelo simples do homo
oeconomicus racional, que se espera que reaja instantaneamente no momento em
que suas preferências não são atendidas.
Contudo, mesmo esse padrão de crescimento antagônico que ziguezagueia entre
dois setores não deixa de ter falhas, como confessou Hirschman em mais um texto
auto-subversivo. Hirschman ficou estarrecido de saber que a junta militar
argentina afirmava ter se inspirado em seu modelo de crescimento desequilibrado
quando justificava a concentração de seus esforços no crescimento econômico
antes de restaurar a democracia, argumentando que as metas econômicas, sociais
e políticas não podiam ser atingidas de imediato. No argumento original de
Hirschman, o desequilíbrio forçado causado pelo crescimento desequilibrado ou
antagônico era autocorretivo devido à reação das forças de mercado e às
respostas das políticas públicas. A interpretação argentina, no entanto,
mostrava que a idéia de "uma coisa por vez" pode ter conseqüências desastrosas.
No caso da Junta Militar, o progresso econômico bem-sucedido poderia tornar os
governantes tão populares que a maioria não sentiria nenhuma necessidade de
redemocratizar o país. Assim, nem todos os desequilíbrios põem em jogo forças
equilibradoras, e a resolução seqüencial de problemas comporta o risco de
estacar:
Procurar soluções uniformes para problemas de desenvolvimento
invariavelmente nos desencaminha; isso ocorre igualmente para os
imperativos de simultaneidade e seqüencialidade, ou seja, para a
insistência no "planejamento integrado" assim como para a injunção de
adiar certas tarefas em nome de "uma coisa por vez"25.
Hirschman reconhecia assim os riscos do crescimento desequilibrado: todavia,
ele deixava claro que identificar esses riscos não significa que não se deva
agir, ou que a teoria do crescimento equilibrado deva ser reabilitada. Antes,
ele aceitava que as questões em jogo são tão complexas quanto à realidade que
nos cerca e que em qualquer caso é impossível definir um "melhor caminho
único".
ENTRA EM CENA O POSSIBILISMO
Essa negação de um "melhor caminho único" está no cerne da teoria do
desenvolvimento de Hirschman, que foi mais elaborada em seus escritos
subseqüentes, a saber, Journeys towards progress (1963) e A bias for hope
(1971). Ao passo que as primeiras teorias do desenvolvimento econômico
identificavam gargalos financeiros ou tecnológicos como as principais razões
para o subdesenvolvimento e conclamavam a remoção desses obstáculos por meio de
prescrições de política uniformes, Hirschman questionava a utilidade e a
aplicabilidade dessas abordagens universais baseadas em teorias que normalmente
não levam em conta as peculiaridades locais. Em particular, ele pretendia
combater a "síndrome do economista visitante", que ele define como "o hábito de
emitir conselhos e prescrições peremptórios sugerindo a adoção de princípios e
remédios universalmente válidos - sejam eles velhos ou novinhos em folha -
depois de uma familiarização estritamente mínima com o 'paciente'"26. Um
argumento que foi depois vocalizado proeminentemente por adeptos do discurso
pós-moderno da década de 1990 sem referência a Hirschman.
Como alternativa, Hirschman propunha buscar "mecanismos de indução" ou
"artifícios de regulação do ritmo" que promovessem a mudança a partir de
dentro27 - um conceito semelhante aos modificadores ou remédios embutidos antes
mencionados. Esses mecanismos são importantes na medida em que
[...] o desenvolvimento depende não tanto de encontrar combinações
ótimas para recursos e fatores de produção dados como de pôr em ação
e arregimentar para propósitos de desenvolvimento recursos e
capacidades que estão ocultos, dispersos ou mal utilizados28
Isso, no entanto, é mais fácil de falar do que de fazer, dado que os próprios
países costumam não conseguir tirar proveito de seus potenciais de
desenvolvimento endógenos, principalmente porque estes não são percebidos e
identificados como tais. Uma das principais razões para isso é que a idéia de
mudança pode de fato agir como um obstáculo à mudança, sobretudo se a mudança
for percebida meramente como um processo de "alcançar" o mundo desenvolvido.
Como essa idéia de mudança se baseia nas experiências dos países desenvolvidos,
não nas dos subdesenvolvidos, ela pode levar a concepções equivocadas e noções
exageradas sobre como deveria ser a mudança e como deveria ser fomentada. De
fato, essas concepções equivocadas e essa incapacidade de identificar as
peculiaridades locais da mudança são um resultado da separação conceitual do
mundo subdesenvolvido e desenvolvido, na qual o padrão de comparação é sempre
estabelecido pelos países desenvolvidos.
As experiências de Hirschman com as elites governantes da América Latina
levaram-no a cunhar o termo fracasomanía. Ele descreve a tendência de novos
governos a acreditar e proclamar que todos os esforços do governo anterior
foram um completo fracasso (fracaso), sem conseguir filtrar as medidas que
podem conduzir ao desenvolvimento e ao progresso. Isso resulta, então, na
aplicação de um conjunto completamente novo de políticas gerais, muitas vezes a
pedido dos "economistas visitantes" com quem as elites trabalham numa
associação íntima, e que em última instância impedem os decisores locais de
aprender com sua própria experiência.
Hirschman advoga uma fuga dos "constructos camisa-de-força" de políticas
baseadas em generalizações, leis universais e seqüências fixas, buscando em vez
disso a singularidade ou os aspectos singulares de uma determinada situação.
Isso permitiria a identificação de possíveis "avenidas de escape". Ele chama
essa abordagem de "possibilismo". Ela se baseia na crença de que a mudança em
qualquer cenário é possível, mas que a identificação dos agentes da mudança
requer uma propensão a buscar racionalidades ou interpretações dos cenários
locais ocultas e que à primeira vista podem ser contra-intuitivas. Hirschman vê
o possibilismo como:
[...] uma abordagem do mundo social que enfatizaria o único em vez do
geral, o inesperado em vez do esperado, e o possível em vez do
provável. Pois a inclinação fundamental de meus textos foi ampliar os
limites do que é percebido como possível, ainda que ao custo de
rebaixar nossa capacidade, real ou imaginária, de discernir o
provável29.
O possibilismo é, portanto, uma ferramenta de análise baseada antes em
pressupostos cognitivos do que nos pressupostos do homo oeconomicus racional. A
busca de racionalidades ocultas ou contra-intuitivas foi, é claro,
característica dos textos de autores clássicos como Adam Smith e Mandeville. A
importância da contribuição de Hirschman é que ele faz um apelo em favor de uma
abordagem livre de ideologias e flexível da análise dos fenômenos
socioeconômicos - um de seus ensaios, por exemplo, tem o título "A busca de
paradigmas como um obstáculo ao entendimento"30. O possibilismo é, então, a
antítese da fracasomanía.
Para aplicar a abordagem possibilista à análise de uma situação específica,
podem ser usadas várias ferramentas ou artifícios conceituais. Um deles é a
noção da "bênção (ou maldição) disfarçada", isto é, a idéia de que um aspecto
identificado como negativo pode de fato carregar um efeito positivo até então
não reconhecido que poderia ser mais fomentado. Assim, o "que é um obstáculo ao
progresso em um cenário e em um estágio pode ser útil em circunstâncias
diferentes"31. Outro artifício é o conceito de "seqüências invertidas", que
pode ser mais bem explicado por referência à teoria da dissonância cognitiva,
que sustenta que mudanças em crenças ou atitudes são engendradas por certas
ações, e não um prerrequisito para estas. Um exemplo, segundo Hirschman, é a
Ética protestante de Weber, que se poderia argumentar ser o resultado do
empreendedorismo, e não sua causa. Outro exemplo seria o surgimento da
democracia. Alguns países só desenvolveram atitudes democráticas depois que as
estruturas institucionais democráticas já estavam instaladas. As atitudes em si
não eram conducentes ao estabelecimento das estruturas, como se poderia
esperar. O possibilismo opõe-se à natureza unidirecional das seqüências de
muitas abordagens teóricas. Uma tarefa importante do possibilista é, portanto,
mostrar como romper essas seqüências. Outro artifício possível é procurar
"conseqüências não pretendidas", ou "mudança por via de efeitos colaterais não
pretendidos". O dito de Adam Smith de que "não é da benevolência do açougueiro,
do cervejeiro, ou do padeiro, que esperamos nosso jantar, mas da consideração
por eles de seu auto-interesse"32 é um exemplo disso: o auto-interesse é do
interesse público e propicia o bem-estar geral. Outro exemplo seria a
descoberta da América, que ocorreu enquanto se buscava melhorar o transporte
mercantil para a Índia. O possibilista deve usar todos esses artifícios para
"aguçar a percepção das avenidas disponíveis na direção da mudança"33, para
entender o que possivelmente aconteceria e para deslocar a atenção dos
decisores nessa direção.
Para concluir, o possibilismo é não-paternalista. Ele não deriva de abordagens
tamanho-único universais e combate ativamente as armadilhas da adesão estrita a
paradigmas e padrões de desempenho que põem em risco as possibilidades de
identificar o que é possível nas circunstâncias locais. Nisso, ele objetiva, de
fato e de forma muito persuasiva, "ajudar as pessoas a se ajudarem", como diz
um dos principais mantras retóricos da política de desenvolvimento, na medida
em que permite que os decisores locais aprendam de sua própria experiência,
aguça a visão deles quanto ao que pode ser feito em termos de mudança social e
para agir coerentemente com isso. O desenvolvimento, do ponto de vista do
possibilismo, é a busca de processos endógenos, não de impulsos externos. Como
argumentou Ellerman34, essa é uma qualidade rara mesmo nas abordagens do
desenvolvimento dos dias de hoje.
A MÃO OCULTA E A CRIAÇÃO DE TRAÇOS
Depois de um trabalho como consultor do Banco Mundial, Hirschman publicou
Development projects observed (1967), no qual resume as experiências que
adquiriu durante visitas a vários projetos diferentes ao redor do globo.
Quarenta anos depois, esse livro continua a ser uma análise extremamente
legível e impressionante da ajuda para o desenvolvimento. Muitas de suas
explanações e análises são válidas ainda hoje, entre elas o "princípio da mão
oculta". Seguindo a idéia de Adam Smith da "mão invisível", a mão oculta impede
que os praticantes do desenvolvimento antecipem todas as dificuldades que podem
surgir no curso de um projeto: a despeito da intenção natural deles de levar em
conta todos os riscos e dificuldades possíveis, sempre ocorrem contingências
não previstas e inesperadas. Segundo Hirschman, isso se dá porque elas foram
obscurecidas pela mão oculta. Paradoxalmente, a mera existência da mão oculta é
a razão pela qual são executados projetos de desenvolvimento. Se todas as
dificuldades e riscos fossem conhecidos de antemão, é provável que nem um único
projeto fosse executado. Com esse argumento, Hirschman apontou um dedo irônico
para a análise de custo-benefício, que se tornara o método dominante no
planejamento de projetos e que se baseia no pressuposto de que todos os
possíveis efeitos negativos de um projeto podem ser identificados ex-ante,
permitindo assim uma decisão racional sobre proceder ou não à sua
implementação.
Hirschman sustenta que um projeto de desenvolvimento só pode ser bem-sucedido a
longo prazo se forem tomadas medidas adequadas em resposta a dificuldades e
problemas inesperados que a mão oculta obscurece. Como em seus outros textos,
ele propugna a maior flexibilidade possível e uma disposição de procurar
soluções de maneiras não convencionais. Descreve o caso de uma fábrica de papel
no Paquistão cujo único insumo natural era o bambu. A mão oculta impedira que
os planejadores considerassem o que aconteceria se o suprimento aparentemente
abundante de bambu cessasse. Isso ocorreu quando, inesperadamente, o bambu
começou a florescer alguns anos depois do início das operações (o que é
considerado um evento muito raro e incomum em botânica e poderia não acontecer
durante um século) e depois morreu, deixando a região inteira sem os recursos
necessários para a fábrica. Por sorte, os engenheiros da fábrica conseguiram
identificar uma planta local cujas propriedades até então desconhecidas não só
permitiam a substituição do bambu, mas também melhoravam significativamente a
qualidade do papel. É claro que nem todos os casos têm um final feliz como
esse: como Hirschman reconhece, problemas que surgem repentinamente podem ser
tão sérios que um projeto não possa ser salvo.
Hirschman também faz uma distinção entre projetos de desenvolvimento que
utilizam costumes e conhecimento locais (chamados de "aproveitamento de
traços") e projetos que requerem capacidades e habilidades completamente novas,
para as quais as pessoas têm de ser primeiro treinadas ("criação de traços").
Ele não sugere que, para funcionar, os projetos têm de ser "aproveitadores de
traços", mas adverte que se não forem, terão de ser despendidos cuidados e
recursos extras para adaptar o projeto ao cenário local. Sem essas adaptações,
o projeto provavelmente será malsucedido. Numa época em que o mundo do
desenvolvimento internacional ainda se caracterizava por uma abordagem tamanho-
único, as idéias de Hirschman chegavam perto da heresia.
Em um dos ensaios do livro, ele analisou as razões para o declínio da ferrovia
estatal nigeriana. As observações e as conclusões a que ele chegou mais tarde
levaram à evolução de sua obra mais conhecida, Exit, voice, and loyalty (1970),
na qual objetivava investigar diferentes possíveis "respostas ao declínio" na
qualidade, fosse a qualidade de um produto, um serviço, um governo ou qualquer
outra instituição. Na teoria econômica, o principal canal para demonstrar
decepção devido a um declínio na qualidade é a "saída", o que significa
simplesmente mudar de um fornecedor para outro no mercado. Todavia, a ciência
política enfatiza a articulação da decepção primariamente por meio do protesto
verbal ou em outras formas, ou seja, "voz". Ao teorizar sobre esses dois
mecanismos e suas combinações possíveis, Hirschman estabeleceu um kit de
ferramentas analíticas que poderia ser usado para identificar as "respostas ao
declínio" em várias situações socioeconômicas.
SAÍDA E VOZ: AUTO-SUBVERSÃO PARTE 3
A teoria da saída e da voz, no entanto, vai muito além de meramente identificar
saída e voz como respostas alternativas ao declínio. Acima de tudo, Hirschman
tentou mostrar quais dessas "respostas", ou qual mistura das duas, provê a uma
instituição ou organização responsável por um declínio na qualidade o mecanismo
de retroalimentação necessário para que ela melhore a situação que causou a
perda de qualidade.
Mais uma vez, portanto, Hirschman estava preocupado com a busca de mecanismos
inerentes que levam à melhora. Mais uma vez, ele focalizava a identificação de
modificadores ou remédios embutidos ou forças endógenas de recuperação que
normalmente passam despercebidos, especialmente na teoria econômica
convencional. No modelo de concorrência perfeita, por exemplo, produtores que
não satisfazem as necessidades de seus clientes ou cuja qualidade de produto
declina são simplesmente chutados para fora do mercado por via da saída
automática ou da demanda de mercado. Todavia, isso não explica como esses
produtores podem obter a retroalimentação necessária ou como eles são
capacitados a introduzir mudanças e melhorias, uma grave omissão quando
contrastada com o funcionamento dos mercados reais. Hirschman, em
contrapartida, identificou a frouxidão, a variação no desempenho e o declínio
na qualidade como elementos que são quase inevitáveis na produção de bens ou
serviços. Mais importante, ele teorizou sobre o intervalo entre o surgimento
inicial de um declínio na qualidade e o momento em que os padrões de qualidade
são retomados, ou o produtor, organização ou instituição em questão é
dissolvido devido ao exercício da opção "saída" ou da violência da "voz".
Forjar uma moldura de tempo específica como uma janela de oportunidade
limitada, identificar as ações que podem ocorrer dentro desse intervalo, bem
como descrever resultados possíveis dessas ações são alguns dos vários
leitmotiven da obra de Hirschman. Eles podem ser encontrados no cerne de seu
efeito túnel, e também na assimetria de muitas das tentativas de identificar
forças endógenas de recuperação ou modificadores embutidos.
No caso das ferrovias estatais nigerianas, clientes que estavam insatisfeitos
com a qualidade do serviço mudavam com relativa facilidade e sem nenhum custo
adicional substancial para o substituto perfeito, o transporte rodoviário.
Hirschman concluiu que se a saída é livre e a mudança para um substituto é
possível, o mecanismo de voz não é ativado. A saída livre é menos problemática
do que fazer o esforço extra de vocalizar o descontentamento. Portanto, a saída
livre dificulta a voz. Conseqüentemente, a autoridade ferroviária nigeriana não
recebia informações sobre o motivo de seus clientes desertarem, nem sobre como
melhorar seu serviço para atender às demandas dos consumidores. Isso, junto com
o fato de que a ferrovia estava operando com pouca restrição orçamentária - o
dinheiro do governo ingressava automaticamente -, significava que a autoridade
ferroviária nem sequer via a necessidade de mudar.
Todavia, a queda do Muro de Berlim destroçou a tese principal de Hirschman, de
que a saída livre dificulta a voz. No começo da década de 1990, ele voltou à
sua Berlim natal para examinar os eventos de 1989 e descobriu que o destino da
República Democrática Alemã, sua rápida desintegração e o inesperado
desmoronamento do muro podiam ser explicados de forma muito plausível usando as
ferramentas da saída e da voz35. Durante décadas, a liberdade dos cidadãos da
Alemanha Oriental tinha sido severamente restringida. Qualquer pessoa que
tentasse cruzar a fronteira fortificada com o Ocidente corria o risco de
receber um tiro ou ser seriamente punida. Mas no verão de 1989 a Hungria e a
Tchecoslováquia inesperadamente abriram suas fronteiras até então impenetráveis
para a Alemanha Ocidental e a Áustria. Em conseqüência, os alemães orientais,
que podiam viajar facilmente para esses dois "Estados socialistas irmãos", de
repente tinham uma oportunidade quase isenta de riscos de deixar o país e
emigrar para o Ocidente. No decorrer do verão, centenas de milhares foram para
a Alemanha Ocidental.
Ao mesmo tempo, pela primeira vez desde o levante de 1953, as massas começaram
a tomar as ruas da República Democrática Alemã e exigir reformas políticas,
inspiradas pela glasnost e pela perestroika na União Soviética. A cidade de
Leipzig logo se tornou o centro dos protestos, com manifestações de massa todas
as segundas-feiras depois de uma missa tradicionalmente dedicada à paz mundial,
que servia havia muito tempo como ponto de encontro para a oposição política
clandestina. Quando o número de participantes cresceu exponencialmente do final
do verão ao começo do outono, essas manifestações se tornaram uma séria ameaça
à estabilidade interna do sistema político. O interessante é que os
manifestantes pediam não só reformas e democratização. Seu slogan principal,
que se tornou uma espécie de grito de guerra nos primeiros meses dos protestos
crescentes e que era uma reação clara ao êxodo palpável que privava o país de
trabalhadores treinados e especializados, era "Wir bleiben hier!" - "Nós vamos
ficar aqui!".
Hirschman argumentou que nesse caso o potencial para saída (a possibilidade de
sair através dos países vizinhos) capacitava a voz e dava aos que protestavam a
coragem de se fazerem ouvidos. A disponibilidade de uma opção de saída
relativamente fácil era a precondição necessária para a voz, não um obstáculo a
ela, como Hirschman afirmava antes. O slogan "Wir bleiben hier!" podia ser
interpretado como "mudança já, senão nós também partiremos". A saída era usada
como ameaça e como um tipo de chantagem política; dava à voz mais peso - se bem
que não o suficiente. Todavia, ela não levou a melhoras dentro da RDA nem à sua
sobrevivência. Ao contrário, o governo da Alemanha Oriental era tão relutante a
ceder que o protesto se tornou ainda maior e levou ao completo colapso político
do país. Que a saída pode reforçar a voz foi a lição aprendida da queda da
Cortina de Ferro; mas ela podia às vezes ser tardia demais para melhorar
significativamente a situação. Com essa conclusão, a auto-subversão de
Hirschman atingiu seu clímax.
A análise da saída e da voz sempre foi cara a Hirschman. Isso se mostra nos
muitos ensaios dedicados ao tema; ele também escreveu que ao longo de sua vida
teve repetidamente de tomar decisões entre saída e voz num nível muito
pessoal36. Em sua carreira científica, a publicação de Exit, voice, and loyalty
foi uma espécie ponto de virada. A partir daquele momento, Hirschman
concentrou-se ainda mais na análise histórica, ou em teorias que explicam um
certo comportamento humano.
A OUTRA LÓGICA DA AÇÃO COLETIVA
Outro dos temas de Hirschman foi explicar por que os indivíduos se envolvem na
ação coletiva. Desde meados da década de 1960, a imagem do caronista que Mancur
Olson pintou de forma tão vívida em seu Logic of collective action (1965)
passou a dominar as ciências sociais. Olson argumentava que como o caronista
pode colher os benefícios da ação coletiva sem se engajar nela, não tem nenhum
incentivo racional para participar - uma atitude que inibe seriamente a
possibilidade de ação coletiva em grande escala. Hirschman, cuja vida foi
caracterizada por um engajamento constante na ação coletiva, não concordava com
esse modelo simplista de comportamento e procurava outras explicações para o
fato claramente observável de que os indivíduos na verdade se engajam na ação
coletiva. Ironicamente, o estudo de Olson exerceu sua influência mais forte no
mundo acadêmico em uma época em que estudantes norte-americanos e europeus
tomavam as ruas en masse para exigir mudanças sociais e políticas; ligar a TV
no noticiário era quase suficiente para provar que Olson estava errado.
Em Shifting involvements (1982), Hirschman analisa padrões cíclicos de
engajamento em ação coletiva. Enquanto os anos de 1960 foram uma época de forte
ação coletiva, as décadas de 1950 e 1970 caracterizaram-se por uma concentração
na arena privada, e não na pública. Hirschman explica isso assumindo que a
análise de custo-benefício individual funciona diferentemente do que era
suposto na teoria convencional. Para ele, o "benefício" é derivado não só do
resultado de um engajamento, mas também do próprio ato de engajar-se. O
engajamento não é, portanto, só um custo, como sugere a teoria econômica. Essa
suposição simples pode explicar muito mais realisticamente por que os
indivíduos se engajam em ações coletivas. Não obstante, a disposição de se
engajar em ações coletivas tem seus limites: se a ação pública não produz as
mudanças desejadas, a prontidão para se engajar diminui e, passado algum tempo,
há um completo retorno à esfera privada. É clara a influência de Colorni e seu
grupo na formulação desse raciocínio. E mais uma vez Hirschman está preocupado
com as ações executadas em um intervalo específico de tempo e seus resultados.
Esse tópico foi retomado na coletânea de ensaios Getting ahead collectively
(1984), na qual Hirschman analisou movimentos de base na América Latina e
teorizou sobre como era possível explicar o sucesso ou fracasso da ação
coletiva e cooperativa. Ele formulou o "Princípio de conservação e mutação da
energia social", sugerindo que a disposição de um indivíduo para se engajar em
ações coletivas pode permanecer adormecida por longos períodos mas, de repente,
ser reativada. Mesmo que engajamentos anteriores tenham sido malsucedidos, as
lembranças positivas de extrair satisfação da ação podem levar o indivíduo a se
engajar repetidas vezes - uma idéia que antecipa a teoria do capital social.
O CÉTICO OTIMISTA: O POSSIBILISMO REVISITADO
Argumentei que o possibilismo não apenas descreve a abordagem de Hirschman do
desenvolvimento na América Latina, mas pode também ser usado para definir seu
método analítico geral. Nesta parte final, resumirei os elementos e as
ferramentas que, em minha opinião, constituem o possibilismo e, portanto,
ampliam o escopo original da abordagem tal como Hirschman a utilizou. Ao mesmo
tempo, recapitularei aquelas influências biográficas que ajudaram no surgimento
do possibilismo. Os principais "ingredientes" e características do possibilismo
devem então ficar suficientemente claros para ser utilizáveis por cientistas
sociais e por praticantes do desenvolvimento interessados.
Os nazistas forçaram Hirschman a cruzar fronteiras, a fazer travessias não
autorizadas, ou invasões. Ele viveu em diferentes países europeus antes de
emigrar para os Estados Unidos. Ironicamente, durante seu trabalho para Varian
Fry, ele de forma deliberada usou o método de travessia não autorizada como um
meio de salvar vidas de muitos perseguidos pelos alemães. Mas não foi só a
invasão física que fez parte de sua vida. No trabalho acadêmico, Hirschman
também é um invasor, um acadêmico que sempre gostou de cruzar fronteiras
ideológicas em sua própria disciplina e nas outras ciências sociais. Isso
também explica por que ele escolheu Crossing boundaries (1998) como título de
uma coletânea de ensaios. Ser um economista sem tocar em outras disciplinas
como sociologia, história, filosofia, psicologia, ciência política e literatura
é impensável para Hirschman. Ele próprio cunhou a expressão trepassing, a
travessia não autorizada, ou invasão, para seu modus operandi. Todavia, essa
invasão só é possível quando se é curioso e sensível a outras perspectivas,
opiniões e pontos de vista e se tem um conhecimento profundo de outras
disciplinas. Hirschman podia ser um economista por formação, mas a
impressionante extensão de sua invasão dá a ele a aparência de um dos últimos
Universalgelehrten (sábio universal ou polímata), ao estilo do século XVIII.
Outro aspecto da invasão de Hirschman talvez seja ainda mais importante na
compreensão de sua abordagem possibilista. Hirschman foi obrigado a cruzar não
apenas fronteiras políticas, mas também lingüísticas e culturais. Ele fala
fluentemente alemão, francês, italiano, inglês e espanhol e teve de se adaptar
a diferentes culturas; isso o ensinou que tentativas de "traduzir" não só
palavras mas também conceitos e idéias para outras línguas e contextos
culturais leva com freqüência a mal-entendidos. Ainda muito jovem e como
resultado da invasão, Hirschman deixou de ser um "falante nativo" de uma única
língua ou mentalidade dominante. Ao ser exposto a diferentes línguas e
culturas, ele adquiriu um alto grau de sensibilidade ao contexto e à futilidade
de tentar impor idéias exógenas em cenários endógenos. Por conseqüência, em vez
de aderir a abordagens modelares gerais, que são impostas por forasteiros, o
possibilismo procura o que pode ser feito com os recursos disponíveis
localmente "que estão ocultos, dispersos ou mal utilizados"37. Trata-se de um
esforço consciente de sensibilidade ao contexto, cuja falta está no cerne de
muitos empreendimentos desenvolvimentistas malsucedidos.
Os textos de Hirschman muitas vezes originam-se de uma reação crítica a teorias
ou ideologias dominantes, cujas fragilidades são destacadas pelas novas
percepções dele, as quais, por sua vez, costumam levar à formulação de teorias
completamente novas38. Em economia, onde escolas de pensamento divergentes
tendem a se entrincheirar em posições antagônicas, Hirschman evitou as
armadilhas de abraçar muito estritamente qualquer teoria. O mote de sua obra,
como ele disse39, poderia ser descrito pelo slogan "Não é necessariamente
assim" - a máxima de Sportin' Jack, da ópera Porgy and bess, de Gershwin. Essa
é uma atitude cética em relação a todas as formas de constructos teóricos,
inclusive o dele próprio - manifestada por sua propensão recorrente à auto-
subversão. Acima de tudo, sua abordagem é uma expressão de uma busca genuína
pelo conhecimento. Em vez de fazer os fenômenos observados se encaixarem em uma
moldura teórica inflexível, Hirschman adapta sua teoria e a de outros para
explicar a realidade observável que o cerca.
Contudo, subjacente à sua atitude de ceticismo, há a certeza (ou pelo menos a
esperança) de que em cada situação existe a possibilidade inerente de
identificar uma solução para um problema específico. Isso se baseia em suas
experiências enquanto se opunha ativamente ao fascismo na Itália e na França.
Hirschman é um cético otimista, que acredita firmemente que situações
aparentemente desesperadoras sempre ocultam algum tipo de modificador ou
remédio embutido, algumas forças endógenas de recuperação, artifícios de
regulação do ritmo ou mecanismos de indução por meio dos quais uma situação
subótima pode ser superada ou pelo menos melhorada a partir de dentro. A busca
por esses aspectos é característica principal do possibilismo40. Sua
concentração em soluções endógenas é o completo oposto da "superconfiança na
solvibilidade de todos os problemas" por meio de expertise externa41 que
caracteriza muitas abordagens desenvolvimentistas.
Visto de um ângulo diferente, o possibilismo é orientado para soluções,
tentando encontrar possíveis avenidas de escape endógenas, seja nos Pireneus,
seja nas ciências sociais.
São, portanto, precondições necessárias para a identificação dessas avenidas, e
de fato para o próprio possibilismo, a análise em profundidade das
circunstâncias locais e a capacidade de observar fenômenos de diferentes
perspectivas por meio da busca de racionalidades ocultas, seqüências
invertidas, conseqüências não pretendidas e males que vêm para bem. Nessa
busca, uma Weltanschauung fixa seria apenas um obstáculo - especialmente
porque, segundo Hirschman, as soluções para um problema devem ser encontradas
dentro de um intervalo específico, de uma magnitude de tempo bem definida,
antes que tudo possa se perder ou uma mudança para melhor se torne impossível.
A busca de Hirschman por soluções ocorre sob uma restrição temporal, sob
pressão - mas sua abordagem pelo menos supõe que uma solução ou avenida de
escape possa ser encontrada.
O possibilismo contém assim uma rejeição a priori de uma Überbau
[superestrutura] ideológica. Esta pode ser entendida como um meio de se livrar
dos ídolos baconianos que dificultam a busca da verdade e de soluções
possíveis. Não é, todavia, uma rejeição dos princípios morais ou de uma base
moral para a ação. Estes são claramente visíveis na vida de Hirschman e em sua
longa luta contra o fascismo. Antes, trata-se de um apelo à abertura da mente,
propiciando a análise de uma dada situação que parte de uma tabula rasa
ideológica. Pode ser vista também como uma convocação à multidisciplinaridade e
à invasão deliberada de fronteiras, e sublinha mais uma vez que o possibilismo
resulta da invasão de fronteiras levada a cabo pelo próprio Hirschman, de sua
rejeição de uma Weltanschauung e de sua propensão à auto-subversão.
Qual é a relevância prática e contemporânea dessa metodologia? Como mostraram a
recente controvérsia sobre diferentes abordagens do desenvolvimento e a crítica
pós-moderna, ainda é comum a adoção de teorias que abrangem tudo e a proposição
de soluções unificadas. Mais preocupante ainda, desde os primeiros dias da
"ajuda" na década de 1950, as agências de desenvolvimento perceberam o
desenvolvimento como um processo que pode "ser manejado do modo como a varíola
foi vencida ou alguém foi posto na Lua"42. Parece ser uma tendência humana
imaginar melhores práticas e teorias grandiosas e acreditar que é possível
delas derivar ações coerentes. É claro que é difícil se soltar das amarras de
seja qual for a Weltanschauung e a ideologia às quais se adere, como notou
Keynes em seu famoso trecho da Teoria geral, quando escreveu que "homens
práticos, que acreditam estar bastante isentos de qualquer influência
intelectual, são normalmente escravos de algum economista morto"43. Mas por que
não, pelo menos, tentar? O possibilismo nos mostra como. A descrição de
Hirschman da "síndrome do economista visitante", na qual peritos externos
emitem prescrições de política invocando "princípios e remédios universalmente
válidos" depois de "uma familiarização estritamente mínima com o paciente"44
ainda descreve corretamente o funcionamento de muitas agências doadoras. Uma
das razões para as falhas da ajuda ao desenvolvimento talvez seja o fato de que
as agências de auxílio costumam tratar seus pacientes rápido demais com a mesma
medicação. O possibilismo, ao contrário, propugna a análise em profundidade do
paciente antes de concluir quais passos médicos são possíveis em cada caso.
Embora autores como Easterly saúdem abordagens passo a passo e autores pós-
modernistas defendam um fim das narrativas grandiosas, os meios de alcançar
isso normalmente permanecem pouco claros. É nesse sentido que o possibilismo se
torna útil. Ele fornece uma estrutura pragmática, orientada para soluções para
pensar "fora dos padrões" e para descobrir o que é possível em quaisquer
circunstâncias dadas. Isso, é claro, não garante interpretações ou soluções
engenhosas. Mas os elementos do possibilismo fornecem as ferramentas e as
precondições necessárias para uma análise que pelo menos tente minimizar o tipo
de influências ideológicas, abordagens e interpretações externas uniformes que
tão raramente foram úteis. Em conformidade com as obras de Hirschman, a
metodologia pode ser aplicada no nível do macro e do microprojeto, e é portanto
útil para o gerente de projeto e para o trabalhador de base pelo
desenvolvimento, bem como para o planejador de estratégias de desenvolvimento
nacional. O possibilismo é útil também fora do contexto do desenvolvimento. As
interpretações possibilistas feitas por Hirschman da ação coletiva, da
tolerância da desigualdade, e da saída e da voz mostraram que essa abordagem é
aplicável também a uma ampla gama de fenômenos sociais, econômicos e políticos.
Isso tudo não se resume em bom senso? Talvez. Mas dado o discutível histórico
de desempenho das políticas de desenvolvimento ao longo de mais de cinqüenta
anos, a dominância de modelos como o Consenso de Washington, a popularidade de
ideais utópicos como a noção de acabar com a pobreza mundial, ou a idéia de que
dobrar a ajuda monetária vai finalmente produzir os resultados desejados,
parece haver um grau assombrosamente pequeno de bom senso na teoria e na
prática do desenvolvimento contemporâneas. Aparentemente, é preciso uma vida
admirável e complexa para que surja uma idéia de bom senso como o possibilismo.
Mas no caso de esta discussão da aplicabilidade obscurecer um ponto importante,
não se deve esquecer que nos frenesis do começo do século XX, o possibilismo
salvou repetidas vezes a vida de Hirschman.
[*] Texto publicado originalmente em Development and Change, vol. 39, nº 3,
2008, pp. 437-459 (© Institute of Social Studies 2008). O
autor agradece a Jeremy Adelman e aos pareceristas anônimos deste periódico
pelos úteis comentários a uma versão anterior.
[1] Hirschman, Albert O. A propensity to self-subversion. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1995, p. 111.
[2] "A história subseqüente de minha vida e meu pensamento poderia
provavelmente ser escrita em termos da progressiva descoberta de minha parte de
quão certo meu pai estava" (Ibidem, p. 122).
[3] Ibidem, p. 92
[4] "O conceito de encadeamento alcançou o máximo sucesso: ele agora é uma
parte tão integrada da linguagem da economia do desenvolvimento que o mais
comum é seu criador não ser mencionado quando ele é invocado" (Idem, The
strategy of economic development. Boulder, CO: Westview Encore, 1988, p. 223 -
nova edição com um novo pós-escrito do autor).
[5] Sachs, Jeffrey D. The end of poverty: economic possibilities for our time.
Londres: Penguin, 2005.
[6] William Easterly faz um apelo em favor de abordagens do tipo "um passo por
vez" e critica Sachs por argumentar que a pobreza ou o subdesenvolvimento são
apenas "um problema técnico que 'os principais praticantes do mundo' podem
resolver" se receberem dinheiro suficiente (Easterly, William. "Carta ao
Editor". New York Review of Books. 11 de Janeiro, 2007, p. 66).
[7] Rodrik, Dani. "Goodbye Washington Consensus, hello Washington Confusion".
Journal of Economic Literature, vol. 44, nº 4, 2006, p. 986.
[8] A propósito, Rodrik recebeu o Albert O. Hirschman Prize de 2007.
[9] Easterly. The white man's burden: why the West's efforts to aid the rest
have done so much ill and so little good. Nova York: Penguin, 2006; "Planners versus searchers in foreign aid". ADB Distinguished
Speakers Programme, Manila: Asian Development Bank, 18 de jan. 2006.
[10] Ver, por exemplo, Chambers, Robert. Whose reality counts? Putting the
first last. Harlow: Longman, 1996; Escobar, Arturo.
Encountering development: the making and unmaking of the Third World.
Princeton, NJ: Princeton University Press, 1995; Sachs,
Wolfgang (ed.). The development dictionary: a guide to knowledge as power.
Londres: Zed Books, 1991.
[11] Ellerman, David. Helping people help themselves: from the world bank to an
alternative philosophy of development assistance. Ann Arbor, MI: University of
Michigan Press, 2005.
[12] Ver, por exemplo, Ellerman, op. cit.; Foxley, Alejandro e outros (eds.).
Development, democracy, and the art of trespassing: essays in honor of Albert
O. Hirschman. Notre Dame, IN: Notre Dame Press, 1986;
McPherson, Michael S. "Hirschman, Albert Otto". In: Eatwell, John, Milgate,
Murray e Newman, Peter (eds.). The new palgrave economic development, Nova
York: Norton, 1989; Meldolesi, Luca. Discovering the
possible: the surprising world of Albert O. Hirschman. Notre Dame, IN: Notre
Dame Press, 1995; Rodwin, Lloyd e Schön, Donald A. (eds.). Rethinking the
development experience: essays provoked by the work of Albert O. Hirschman.
Washington, DC: Brookings Institution, 1994; Teitel, Simon
(ed.). Towards a new development strategy for Latin America: pathways from
Hirschman's thought. Washington, DC: Inter-American Development Bank, 1992.
[13] Hirschman. Essays in trespassing: economics to politics and beyond.
Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 294.
[14] Idem, A propensity to self-subversion, op. cit., p. 116.
[15] Keynes, John Maynard. The general theory of employment, interest, and
money. Cambridge: Cambridge University Press, 1973 [ 1936].
[16] Hirschman. A propensity to self-subversion, op. cit., p. 118.
[17] Fry, Varian. Surrender on demand. Nova York: Random House, 1946; ver também a nova edição, com introdução de Albert O. Hirschman:
Assignment: rescue - an autobiography. Nova York: Scholastic, 1993.
[18] A introdução que Hirschman escreveu para a nova edição do relato de Varian
Fry (Assignment: rescue..., op. cit.) foi reimpressa em Hirschman, A propensity
to self-subversion, op. cit. Outras informações foram dadas em Hirschman,
Crossing boundaries: selected writings. Nova York: Zone Books, 1998.
[19] Hirschman, "Beyond asymmetry: critical notes on myself as a young man and
on some other old friends". International Organization, vol. 32, nº 1, 1978,
pp. 45-50.
[20] Idem. "Linkages". In: Eatwell, John, Milgate, Murray e Newman, Peter
(eds.), op. cit., pp. 210-211.
[21] Idem. The strategy of economic development. Boulder, CO: Westview Encore,
1988, pp. 28 e 32 (nova edição com um novo pós-escrito do autor).
[22] Ibidem, p. 31.
[23] Como Kuznets, Simon. "Economic growth and income inequality". American
Economic Review, vol. 45, nº 1, 1955.
[24] Hirschman. "The changing tolerance for income inequality in the course of
economic development". In: Essays in trespassing: economics to politics and
beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 41.
[25] Idem, A propensity to self-subversion, op. cit., p. 76.
[26] Idem, The strategy of economic development, op. cit., p. 11.
[27] Ibidem, p. 26.
[28] Ibidem, p. 5.
[29] Idem. A bias for hope: essays on development and Latin America. New Haven,
CT: Yale University Press, 1971, p. 28.
[30] In: Ibidem.
[31] Idem, The strategy of economic development, op. cit., p. 9.
[32] Smith, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of
nations. Londres: Strathan and Cadell, 1776, p. 17.
[33] Hirschman, A bias for hope..., op. cit. p. 37.
[34] Ellerman, op. cit.
[35] Hirschman, A propensity to self-subversion, op, cit.
[36] Idem, Crossing boundaries: selected writings, op. cit., p. 86.
[37] Idem, The strategy of economic development, op. cit., p. 5.
[38] "Eu gosto de sublinhar as exceções a uma teoria, mas ocasionalmente gosto
de construir minha própria teoria" (ibidem, p. 95).
[39] Idem, A propensity to self-subversion, op. cit., pp. 43 e 87.
[40] O título de outra coletânea de ensaios é A bias for hope..., op. cit.
[41] Hirschman. "Prefácio". In: Ellerman, op. cit., p. xviii.
[42] Ellerman, op. cit., p. 3.
[43] Keynes, op. cit., p. 383.
[44] Hirschman, The strategy of economic development, op. cit., p. 11.