O terremoto no Haiti, o mundo dos brancos e o Lougawou
Quando a gente distribui os doces nas mãos das crianças na rua
ou no campo, elas não acreditam, fazem cara de que viram um homem
de duas cabeças. Um branco como motorista de um haitiano que tem
badge (enquanto o branco não tem) e que entrega as coisas nas mãos
das pessoas, sem gritar numa língua estranha e sem jogar as coisas na
cara deles. Isso desconcerta um pouco o ritual coreografado.
Depoimento de um pesquisador cerca de três semanas
após os grandes terremotos do dia 12 de janeiro de 2010.
Não é meu interesse aqui fazer qualquer discussão que tenha como eixo uma
crítica ou um elogio da presença brasileira no Haiti. Não pretendo engrossar o
caldo dos que gritam "fora as tropas brasileiras do Haiti", nem daqueles que
defendem razões humanitárias para a sua presença. O Brasil já participou de
outras missões das Nações Unidas, esta não é a primeira, e o impacto da
presença de nossas tropas neste país não encontra eco para além de nossas
próprias fronteiras. O fato de que o aparato militar da missão seja liderado
pelo exército brasileiro é, do ponto de vista daqueles que quero privilegiar
aqui, irrelevante. Para a esmagadora maioria dos haitianos, não há nenhuma
marca especial: se trata apenas de mais uma missão internacional, como outras
que passaram por este país nos últimos dezessete anos. No caso da Minustah -
Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti -, para além de tropas
do Brasil, há tropas de Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Equador, Estados
Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Índia, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru,
Coréia do Sul, Sri Lanka e Uruguai. Nas ruas de Porto Príncipe e de outras
cidades do Haiti, e embora a cidade e o país estejam loteados entre tropas de
distintas nacionalidades, nem sempre é fácil identificar a procedência nacional
do batalhão - há apenas uma pequena bandeira no uniforme do soldado, e o que se
impõe, nos veículos, é a sigla "U. N.". A presença específica brasileira no
Haiti é, enfim, algo para consumo interno dos brasileiros.
Meu propósito é o de reavaliar o que pude observar nos quatro dias que
sucederam os grandes terremotos que atingiram de forma particularmente violenta
Porto Príncipe, Pétionville, Léogâne, Petit-Goâve, Grand-Goâve e Jacmel no dia
12 de janeiro de 2010. Naquele momento fui tomado por uma imensa ansiedade
diante da absoluta ausência de qualquer forma de ajuda. Foi o fracasso de todo
este aparato associado à idéia de "ajuda internacional", o fracasso do "mundo
dos brancos", que pude assistir no Haiti1.
Não há nada neste país, pelo menos desde 1993, que seja feito independente da
tutela das grandes organizações internacionais. O terremoto não revelou a
ausência do Estado no Haiti: não se revela aquilo que se tem plena consciência.
Haitianos e haitianas não só sofrem a ausência do Estado nacional no seu dia-a-
dia como têm na memória o processo que presidiu sua destruição nas últimas
décadas. O que o terremoto, sim, revelou foi que por trás da arrogância do
"mundo dos brancos" não existe uma proposta de reconstrução do país, mas apenas
as diretrizes que devem reproduzir as bases de sua própria arrogância. Revelou
também que, ao contrário daquilo que se assistiu na grande imprensa, e que
percorre argumentos pseudo-hobbesianos de politólogos que não sonham em por os
pés no Haiti, foram as instituições haitianas as únicas capazes de responder à
catástrofe nos dias que sucederam aos grandes terremotos.
Semanas após o retorno, entre inúmeros debates com aqueles que também por lá
estiveram espremendo fragmentos de uma memória por vezes dolorosa, arrisco
afirmar que os haitianos não esperaram nem o Estado ausente, e muito menos a
atuação das organizações internacionais, Nações Unidas incluídas. Hoje percebo
que com estas instituições estabeleceram uma relação de exterioridade que não
admite nem a espera, nem a esperança.
Foi no fim da tarde do dia 12 de janeiro de 2010, em Porto Príncipe. O mundo
ruiu a nossa volta. Nem bem o primeiro e mais forte tremor acabara, as pessoas
já erguiam as mãos aos céus e clamavam por Jezi(Jesus) e Bondiè(Deus); outras,
poucas, entraram em transe a poucos metros de distância de nós. A consciência
da violência do sismo foi imediata. Uma imensa nuvem de poeira nos jogou numa
névoa impenetrável, explosões se sucediam e não longe de onde estávamos a chama
de um posto de gasolina se adivinhava em meio ao pó. Pessoas feridas,
queimadas, descabeladas, enlouquecidas surgiam no nevoeiro. Alguém se aproximou
e nos disse que o hospital uma quadra acima ruíra.
A noite aproximava-se, e percebemos a impossibilidade de retornar a casa de
carro: casas, muros, postes haviam caído e as estreitas ruas de Porto Príncipe
estavam obstruídas. Automóveis haviam sido abandonados, outros estavam sob
escombros, alguns tap taps2 tentavam circular apinhados de mortos e feridos.
Começamos a caminhar. Não víamos nem ouvíamos ambulâncias ou carros de polícia
ou bombeiros. Víamos um misto de dor e estupor, e os feridos já começavam a ser
dispostos pelas calçadas, assim como cadáveres. Estavam mortos, e alguns
pareciam que dormiam. Minha tentação era a de tentar acordá-los, mas sabia que
estavam mortos.
Caminhávamos pelo meio da rua, pois temíamos os fios elétricos e os muros que
podiam cair nas calçadas. Os tremores se sucediam. No caminho de casa, estava
quase tudo no chão. O supermercado onde comprávamos todos os dias havia
desabado - fui cumprimentado com um certo alívio pelo libanês crioulo que nos
atendia todos os dias e que, atônito, olhava sua loja. Uma mulher deitada no
chão tentava usar o telefone celular. Já estava mudo, e assim permaneceria
pelos próximos dias. Uma madanm sara3 procurava recolher os seus produtos,
frutas e tomates, que se espalhavam pelo meio-fio e que caíam a cada novo
tremor.
Subindo a rua que levava à nossa casa, vimos que a Universidade Henri Cristophe
havia desabado. Estudantes já começavam a trabalhar nos escombros. Centenas de
jovens e crianças deambulavam com seus uniformes, antes do terremoto
impecáveis, agora, cobertos de pó. Algumas pessoas estavam paradas, atônitas,
sentadas no chão;outras corriam e corriam, certamente em direção à casa para
ver como estavam os seus;outras pareciam correr sem destino. E a maioria se
dispunha a ajudar os feridos, que gritavam e choravam. Um senhor estava
absolutamente atônito, sentado ao lado de um veículo, e folheava uma revista.
Nossa casa estava de pé, e nos reunimos. Os tremores se sucediam e, como
todos,nos organizamos para dormir no jardim.A rua estava cheia de pessoas.
Aqueles cujas casas não haviam caído só ousavam entrar para recolher alguns
pertences. Colchões, panos, lonas foram dispostos pela rua. As pessoas
cantavam, rezavam em grupo, batiam palmas, ora oravam, ora protestavam a
"Bondiè". A cada novo tremor, as vozes eram mais fortes, os cânticos mais
fortes, as palmas mais fortes.
Os telefones não funcionavam, e algumas pessoas que chegavam à nossa casa nos
davam a dimensão da destruição. O Palácio Nacional ruíra, assim como a
Catedral, os edifícios dos ministérios, os hospitais. O luxuoso Hotel
Cristophe, base das operações civis da missão das Nações Unidas, também viera
abaixo, e parte do pessoal do alto escalão desta instituição estava sob os
escombros. Aventei a possibilidade de se tratarem apenas de rumores, mas todos
percebíamos que se tratava de uma catástrofe de grandes dimensões. A casa da
organização brasileira Viva Rio, onde estávamos hospedados, possuía gerador e
internet via satélite. A cidade estava às escuras, mas nós tínhamos luz e
acesso intermitente à rede, o que nos permitia o acompanhamento das notícias.
Já na primeira noite se falava de mais de 100 mil mortos. Um jornalista da
Reuters usou a internet da casa para enviar imagens captadas da destruição do
Palácio Nacional, e da tragédia de dezenas de estudantes secundaristas
soterrados. Era o segundo dia da volta às aulas. A duras penas, dormimos,
alguns de nós conseguimos apenas cochilar.
Pela manhã do primeiro dia, continuamos sob o impacto dos rumores. Não havia
nem rádio, nem TV, e pela internet era mais fácil a comunicação com o exterior
do que com qualquer bairro da capital. Saímos de casa, e o que vimos à nossa
volta foi desolação, dor e desespero. Todos correm para juntar algo de comida e
água, e nós também. Descemos rumo ao centro da cidade, mas diante da confusão e
da tensão optamos por voltar para casa. Não vimos nenhum carro, nem civil, nem
militar, das Nações Unidas. Não víamos nem escutávamos ambulâncias (hoje vejo
que só nós esperávamos ouvir ambulâncias). Não passou nenhum carro para
recolher os corpos que se acumulavam pelas ruas.
Afinal, onde está a Minustah? - perguntávamos. Os haitianos pareciam saber:
parece ser que todoo efetivo militar da Minustah se concentrava no trabalho de
salvar os membros da ONU no Hotel Cristophe. Cerca de 6 mil efetivos militares.
Uma minoria estava trabalhando no Montana. A ONU ajuda a ONU, os haitianos
ajudam os haitianos.
E os corpos se enfileiravam. Diante de uma escola, os corpos infantis são
cobertos e dispostos, um ao lado do outro.
Ao voltarmos para casa, fizemos uma reunião. Imaginamos a possibilidade de nos
engajarmos em alguma atividade de ajuda. Não sabíamos exatamente o que fazer.
Afinal, não éramos nem médicos, nem enfermeiros, nem tínhamos qualquer
treinamento de brigadista. Pensamos que o exército brasileiro logo sairia às
ruas, e nos colocaríamos às suas ordens naquilo que considerassem necessário.
Afinal, estariam treinados para isso.
Mais uma noite. Dormimos no jardim, pois os tremores continuavam. Na frente de
casa, as pessoas começaram a organizar tendas e, sem ajuda de qualquer
organização, distribuíram água e comida. E cantavam, oravam e dançavam.
No segundo dia, descemos ao centro, onde caminhamos durante horas. Percebo que
meu medo do dia anterior fora infundado. Todos estavam nervosos, mas ninguém
ameaçava ninguém, todos se ajudavam. Descemos rumo ao centro, e a todos
cumprimentávamos e éramos correspondidos: Bonjou madanm; Bonjou mesye; Bonjou
frè mwen; Sali!.
O Champs-de-Mars fora transformado num imenso campo de refugiados. Mas
transformado pela população que se organizara,improvisara tendas e barracas.
Grupos de homens se organizavam em brigadas, escoteiros impecáveis transitavam
ajudando os feridos, jovens vestidos com camisetas da mesma cor trabalhavam nos
escombros e coletavam lixo. Caminhões pipa distribuíam água gratuita para uma
população organizada em filas. Tratava-se de uma iniciativa de empresários
haitianos. Não há nenhuma presença nem da ONU, nem de nenhuma organização
internacional. Os brancos desapareceram da cidade. Somos os únicos brancos,
para além de alguns carros que passavam a toda velocidade com alguns
jornalistas e fotógrafos. Estes profissionais desciam diante do Palácio
Nacional, tiravam algumas fotos, e voltavam a subir; paravam diante das pilhas
de mortos, e das janelas dos carros faziam suas fotos.
As cenas já não eram de desespero, e parecia se impor uma rotina. As madanm
saragarantiam a chegada dos produtos - espaguete, verduras, hortaliças, óleo;as
mulheres preparavam chen janbe4, garantiam o pouco de alimentação para as
milhares de pessoas, ou para as centenas de milhares: galinha assada, banana
verde cozida, repolho, fritadas.
Nas fontes, as pessoas tomavam banho e davam banho nas crianças. A nudez não
gerava nenhum tipo de constrangimento. Havia sabão, também garantido pelas
madanm sara. Lavava-se roupa, logo estendida ao lado das estátuas dos heróis
nacionais.
Nas calçadas que cercavam a grande praça, havia corpos cobertos à espera de
serem recolhidos. Alguns corpos tinham uma placa dizendo nome e procedência, na
esperança de que alguém avisasse a família. Vimos uma fileira de cadáveres
infantis, os pequenos corpos embrulhados em plástico. O único caminhão que
passou recolhendo os corpos, capaz de dar conta de uma fração mínima dos
cadáveres, era da prefeitura de Porto Príncipe. Os corpos foram dispostos, os
vivos esperavam. Nos edifícios caídos vimos corpos pendurados, mutilados. Sobre
uma escola de meninas, vimos dezenas de corpos, todas com seu uniforme. Como
tirar os corpos lá de cima? Jovens caminhavam para cima e para baixo com o
rosto coberto por um lenço, trabalhando nos escombros, sem luvas, sem nada -
uma cena que se repetiria nas semanas seguintes. Para além do cheiro
nauseabundo de morte, o que se respirava não era violência e desordem, mas
resignação e civismo.
Passou um caminhão com estudantes da Université d'État. Com altifalantes
solicitaram escavadeiras para salvar seus amigos que estavam debaixo dos
escombros. Creio que falavam dos estudantes da Faculdade de Lingüística
Aplicada - hoje sabemos que são entre 200 e 300 estudantes mortos. Não vimos
nenhum carro da ONU, nada. Conversamos com uma senhora que preparava comida,
que nos perguntou ki kote Minustah?- onde está a Minustah?Mal-interpretei esta
frase. Não era angustiada ou revoltada, mas conformada, e só fazia sentido
porque se dirigia a um grupo de brancos.Entre eles, os haitianos não se
perguntavam ki kote Minustah?, ou ki kote blan yo?; eles sabiam que não viriam.
À noite, pela internet, percebemos que estávamos imersos no show da ajuda
humanitária. Falava-se de milhões de dólares, dos aviões que chegavam cheio de
coisas, de remédios, de médicos, de tendas, de água. Não víamos nada. A ajuda
internacional não se vê, não se come, não se bebe, só se escuta.
No terceiro dia, voltamos a andar horas, horas e horas pela cidade. Escutamos
helicópteros. Não há distribuição de nada. Não vemos nenhum carro da ONU ou de
qualquer organização internacional. Havia saques, sim. Mas não eram as gangues:
eram pais de família, homens, mulheres e crianças que entravam nos
supermercados destruídos. Não conseguimos reconhecer nas ruas as cenas que
surgiam na imprensa internacional à qual tínhamos acesso via internet.
Violência? Onde? Um jornal falava de corpos sendo dispostos na forma de
barricadas. Havia, sim, montanhas de corpos. E aqueles que os dispunham não
tinham outra expectativa que a de vê-los recolhidos.
Não vimos nenhum médico estrangeiro.Vimos,sim, médicos haitianos atendendo os
feridos, enfermeiras haitianas cosendo pessoas nas calçadas, sem nenhum tipo de
analgésico. Os corpos continuaram expostos, às dezenas, apodrecendo. Os mesmos
corpos continuaram pendurados nos edifícios. Um caminhão passou, as pessoas
gritaram para que parasse para recolhê-los, jogaram pedras. Não havia espaço.
Cachorros corriam pelas ruas, e também havia cães nos escombros. Falava-se de
cães comendo os defuntos. Observei um cão que desde o dia do terremoto não saía
da frente de uma casa que desabara. Parecia esperar os seus donos.
Não havia medo. As madanm saraseguiram expondo seus produtos pelas calçadas:
hortaliças, frutas, espaguete. Não tinham medo de roubo, não eram protegidas
por ninguém em especial, mas sim por regras sociais que definem o que é certo e
o que é errado. As pessoas tinham fome: não haveria comida para todos, não
haveria água para todos. Quanto tempo agüentariam? Diante de um pedaço de corpo
pendurado num edifício me senti mal. Uma senhora se aproximou, me perguntou se
estava bem, me ofereceu assento e um copo de água. E a água faltava.
Continuávamos sendo os únicos brancos nas ruas.
Subimos rumo a Pétionville5. O cenário era de desolação. Pessoas subiam e
desciam ruas e avenidas com o rosto coberto. Dos edifícios caídos, o cheiro era
insuportável. Havia poucos carros circulando, e um trajeto que pode demorar
cerca de uma hora, uma hora e meia em função do trânsito, não levou mais do que
20 minutos. Não havia diesel, os postos de gasolina estavam fechados ou
racionavam combustível. Nas encostas das montanhas, bairros inteiros desabaram.
A sensação que tivemos era a de que muitas bombas tinham sido lançadas por ali.
E a cada golpe de vento, o cheiro se fazia mais e mais insuportável. Na via que
conecta Porto Príncipe a Pétionville, dezenas de corpos apodreciam.
Tampouco vimos nenhum carro nem da ONU, nem de nenhuma organização
internacional, tão recorrentes em Pétionville. Se é fato que as grandes mansões
desta cidade foram menos afetadas, parte dos bairros que rodeiam o seu centro
estavam destruídos. Suas praças foram também transformadas em campos de
refugiados, e vimos as mesmas cenas: as madanm saravendendo produtos
alimentícios, o chen janbeem pleno funcionamento. Ali, como em Porto Príncipe,
os preços eram os mesmos de antes do terremoto - logo subiriam. Em Pétionville
como em Porto Príncipe vimos distribuição de água gratuitamente. Perguntamos
quem distribuía: haitianos, nada da ajuda internacional. Aqui também vimos a
coleta de lixo feita pela população. E não havia medo. Vendedoras e cozinheiras
trabalhavam sem guarda-costas.
Como em Porto Príncipe, lojas, bancos, supermercados e restaurantes estavam
fechados, e muitas vezes guardados por homens bem armados. Vimos indivíduos
pertencentes aos grupos mais abastados chamando nas portas dos restaurantes, e
conversando com os donos: estavam garantindo um almoço ou um jantar. Os ricos
ajudam os ricos, os pobres ajudam os pobres. Novamente, quando perguntamos
sobre a Minustah, disseram que se guiam no Hotel Cristophe e no Hotel Montana.
A ONU ajudava a ONU. Mas, é importante, éramos nós que perguntávamos ki kote
Minustah?, questão que, agora vejo, não parecia fazer muito sentido. E o que
parece fazer sentido é o mote com o qual popularmente era conhecida a
Minustahpor muitos haitianos, turista.
Entramos num imenso campo de refugiados improvisado num campo de futebol.
Ninguém nos pediu nada, nos olharam com certa indiferença. E as cenas se
repetiam: as pessoas tomavam banho, os feridos eram tratados por freiras
haitianas, as crianças jogavam futebol. Um rapaz gritou em nossa direção, blan
mechan(branco cruel);lifou(ele é louco), nos disseram os demais rindo.
Descemos rumo à cidade capital,e a qualquer golpe de vento o cheiro nauseabundo
parecia tudo dominar. Aqueles que subiam e desciam, com a cara coberta,
procuravam evitar os corpos que se distribuíam pela rota. Numa esquina, uma
cena inusitada: ao lado de um corpo abandonado, um caixão. E na subida também
outra cena: um carro fúnebre. Alguns puderam reconhecer e enterrar seus mortos.
Na terceira noite, os tremores se sucediam, assim como as discussões em nossa
casa. Por que a ajuda não vinha? Recebemos a notícia de que o aeroporto estava
cheio de containers, com remédios, comida, água. Por certo, não paramos de
escutar aviões aterrissando, não paramos de ver e ouvir helicópteros. Parece
que no aeroporto havia um imenso acampamento onde se reuniam os cooperantes -
médicos, bombeiros, especialistas em terremotos, cães farejadores. Por que nada
era distribuído à população? Por que os cães farejadores não faziam o seu
trabalho? Por que deixavam a juventude haitiana só, à procura dos seus mortos e
feridos?
A informação obtida nos deixou perplexos: não tinham nenhum esquema de
distribuição de alimentos ou remédios, e tampouco um esquema de segurança para
garantir o trabalho dos cooperantes. Mas, por que não fazer uso dos circuitos
de distribuição preexistentes no Haiti? Por que não entrar em contato com as
associações de madanm sara? Por que não estabelecer uma linha direta com os
empresários haitianos que há dias, e pelo menos em alguns pontos da cidade,
garantiam a distribuição de água?
A Minustah está no país há seis anos,e outras missões ali estiveram antes dela,
e não estabeleceram nenhum contato com os setores organizados da sociedade
haitiana. Porque eles existem, e foram eles que garantiram a distribuição de
água e comida nos dias que sucederam os terremotos do dia 12 de janeiro.
Por que os médicos estacionados no aeroporto não conversavam com os seus pares
que não pararam de trabalhar, dia e noite, desde o primeiro terremoto e em
condições terríveis? Por que os veículos da Minustah não transferiram os
feridos para os hospitais (sim, existem hospitais!) nas cidades de província?
Soubemos da evacuação de estrangeiros para hospitais nos Estados Unidos, e
mesmo que os norte-americanos estavam sendo evacuados. Por que não transferiram
os feridos para os hospitais existentes em outras partes do país? Por que foram
capazes de organizar os estrangeiros e se negaram a observar a organização dos
próprios haitianos?
E quanto à segurança: qual insegurança? A ONU tratou de convencer o mundo de
que Porto Príncipe é uma espécie de Bagdá caribenha. Se é fato que em
determinados momentos de conflito armado tomaram conta das ruas do centro e de
Bel Air, quando estudantes e chimè6 se enfrentaram nas disputas em torno da
figura de Jean-Bertrand Aristide, nos últimos anos a vida retomou seu curso em
Porto Príncipe, e sua classificação como uma espécie de Bagdá ou Cabul
caribenha deve-se apenas ao desejo de manutenção da força militar e, sobretudo,
dos salários que crescem com o adicional de periculosidade para os funcionários
da Minustah.
Na rua em frente à nossa casa, as dezenas de famílias se organizaram em tendas,
distribuíam água, comida e cobertores. E cantaram e dançaram. Nesta noite,
saímos para cantar e dançar, e fomo srecebidos com carinho e alegria. Cantei e
bati palmas para Bondiè, um deus em quem não acredito, e para espantar
Lougawou, um lobisomem que não me assusta.
Mas, de noite, as coisas pareciam mudar. Já havia sido advertido mais de uma
vez:de noite, as árvores mudam de lugar em Porto Príncipe. E começamos a
escutar tiros ao longe. Falava-se de saques às casas, e de guardas privados a
defendê-las. Os tiros pareciam cada vez mais próximos. Certamente, havia
pilhagens, e tivemos medo. Mas também havia tiros para o alto para espantar
outros perigos: hoje sabemos dos rumores sobre ladrões de crianças, sobre o
Lougawou, também interessado em roubar crianças, e sobre o chupa-cabras. Os
tiros não eram apenas para evitar a pilhagem, mas também para espantar temores.
No quarto dia, observávamos as mesmas cenas, a mesma ausência da "ajuda
internacional". Não víamos nada. Por quanto tempo agüentarão?
Os corpos continuavam espalhados, de forma mais ordenada, cobertos. Mas nas
ruas. Os jovens continuavam trabalhando sem escavadeiras, e nos pediam luvas e
tratores. Falava-se de valas comuns. Em alguns cemitérios, começaram a esvaziar
as tumbas de ossadas antigas e não tão antigas. Nas portas dos cemitérios os
corpos se acumulavam, e por vezes a difícil decisão de queimá-los foi tomada.
Também soubemos de corpos enterrados nos jardins das casas. Falava-se em mais
de 150 mil vítimas. Hoje a cifra já chega a 250 mil, mas o mais provável é que
nunca saibamos o número exato de mortos. Daqueles que morreram vítimas do
terremoto, e daqueles que morreram vítimas do abandono e da falta de meios da
população haitiana.
Quando os rumores da existência de diesel ou gasolina se espalhavam, formavam-
se grandes filas nas estações de serviço. O mesmo para os garrafões de água.
Não vimos nenhuma das cenas tão mostradas pela mídia de pessoas se estapeando
por água ou comida, mas não duvidamos que isso pudesse acontecer pelo simples
fato de que a ajuda tardava: quanto tempo agüentarão as madanm sarae as
famílias? O que faz uma multidão quando se aproximam caminhões com uma ajuda
claramente insuficiente? Luta por migalhas, e diante das câmeras, que chegam
com estes mesmos caminhões. Câmeras que não estavam ali para acompanhar a
organização do campo, a divisão das tarefas, a distribuição de alimentos e água
nos dias que precederam a chegada de caminhões com pessoas armadas até os
dentes e seguidas das câmeras da mídia internacional. Foi a ajuda que provocou
a violência.
Diante da impossibilidade de nos engajarmos em qualquer atividade de ajuda
prática, passamos a nos perceber como um peso. Pensamos em abandonar a capital,
em seguir para o Cabo. Mas as notícias das vias obstruídas se somaram à das
vias congestionadas: parte da população abandonava a capital. E o fazia
mobilizando outras instituições que garantiram sua sobrevivência:relações
familiares, relações de vizinhança, relações com as terras de origem.
Tomamos a difícil decisão de abandonar a capital e o país.
A via que conecta Pétionville com a República Dominicana fora aberta e, de
ônibus, fomos para o país vizinho. Sentíamos imensa tristeza e, por que não
dizer? Vergonha. A normalidade que encontramos após uma fronteira caótica -
pessoas tentando sair, gente sem escrúpulos vendendo vistos de entrada,
comboios de ajuda internacional, das grandes organizações dirigindo-se à
capital (alguns dos profissionais, para nosso espanto, estava com colete a
prova de balas!), familiares vindos do exterior tentando chegar em Porto
Príncipe com ajuda para os seus parentes - foi desconcertante. Nos vilarejos
dominicanos, nem sinal do terremoto.
Em Santo Domingo, a vida seguia seu curso normal, e se nas notícias de jornal o
Haiti era onipresente, respirava-se um ar de tranqüilidade e indiferença. A
cidade estava cheia de turistas, e os restaurantes e bares estavam cheios. Em
poucas horas, deixáramos um mundo às escuras, marcado pela dor, pelo cansaço e
pelo odor onipresente da morte.
Pudemos ver televisão. Na TV espanhola, mostraram a cena da multidão tentando
entrar na zona industrial de Porto Príncipe, defendida por tropas da ONU. O que
o repórter dizia era absurdo: miles de personas fuerzan la entrada de la
frontera dominicana. Não era na fronteira! Tratava-se das portas da zona
franca, com seus imensos galpões que não vieram abaixo, e onde a população
sabia haver água e comida, e um espaço protegido para a construção de tendas.
Foram repelidos à bala.
As cenas sobre a ajuda internacional se sucediam: os espanhóis mostravam os
espanhóis, os franceses, os franceses, os americanos, os americanos. A mídia
escolhera seus protagonistas.
Dormimos em camas, numa pousada. Tentamos dormir, na verdade. Parecia que o
único lugar decente para dormir era a praça central da cidade, a céu aberto.
Na imprensa internacional foi recorrente a afirmação da dificuldade de escoar a
ajuda internacional. Remédios, comida, água, tendas, cobertores... tudo parecia
se acumular no aeroporto de uma cidade já por si só caótica, e agora
absolutamente sumida no caos pós-terremoto. É certo que a ONU estava
decapitada, entre o estado de choque e o caos. Mas atribuir ao Haiti a
responsabilidade pela ausência de ação das organizações internacionais deve ser
considerado um exercício de cinismo, má-fé ou, na melhor das hipóteses, pura e
simples ignorância.
Que o Estado no Haiti oscila, na atualidade, entre a ausência e a força bruta
da atuação policial (percebida pela população muitas vezes como qualquer gangue
com a diferença que conta com o apoio das Nações Unidas), isso não é novidade
para os haitianos. Mas traduzir a precariedade do aparato estatal numa guerra
de todos contra todos, num estado de caos permanente, constitui uma liberdade
retórica que não resiste a uma observação mais atenta da realidade de Porto
Príncipe - observação que os sujeitos da "comunidade internacional" há anos
estabelecidos neste país estariam obrigados a realizar.
Ao contrário do que parecem imaginar muitos, no Haiti havia um Estado,nem
pior,nem melhor que muitos outros Estados latino-americanos e caribenhos.
Cobrava-se impostos, emitia-se documentação, e a polícia mantinha a ordem.
Circunstâncias históricas específicas promoveram processos que, entre os anos
de 1950 e 1980, culminaram com seu desmantelamento. Some-se a isso um conjunto
de decisões econômicas desastrosas, e temos o panorama do Haiti a partir de
finais dos anos de 1980. O Estado transforma-se em memória e demanda, ao tempo
em que instituições que estão para além dele são continuamente reinventadas
pelos haitianos. Destacaremos aqui as instituições que foram fundamentais para
a sobrevivência dos haitianos nos dias posteriores aos grandes terremotos.
As relações familiares, o compadrio, a vizinhança e a amizade foram certamente
centrais. Nos momentos e nos dias que sucederam à catástrofe, garantiram uma
impressionante mobilização: parentes socorriam parentes, vizinhos socorriam
vizinhos, amigos socorriam amigos. Crianças subitamente órfãs eram
imediatamente recolhidas pelos vizinhos, padrinhos, madrinhas e parentes.
Quando ficou evidente para muitos que a situação em Porto Príncipe era
crescentemente insustentável, foram os laços familiares mantidos nas terras de
origem que garantiram a evacuação de pelo menos meio milhão de pessoas que, com
seus próprios meios, foram em busca de auxílio ali onde não há nem sombra das
grandes organizações internacionais. Hoje temos notícias de pelo menos 80 mil
pessoas que se dirigiram a Les Cayes, 20 mil a Jérémie, e assim por diante.
Foram recebidos por parentes e amigos, por coletivos de camponeses que, em meio
a imensa precariedade, foram mais eficazes do que as organizações
internacionais.
Ao passarmos a fronteira rumo à República Dominicana pudemos observar ainda
outro movimento cada vez mais intenso nas semanas seguintes: a ida de parentes
e amigos residentes nos Estados Unidos, no Canadá ou na República Dominicana a
Porto Príncipe para levar ajuda. Diante do colapso bancário, não foram poucos
os que foram entregar diretamente a ajuda a seus amigos e parentes, e mais uma
vez a diáspora se revelou imprescindível.
Mas não são só os laços de sangue, as alianças e os afetos também dinamizam a
sociedade haitiana;a precariedade do aparato estatal não limita o
impressionante associativismo que a caracteriza. As associações de médicos e
enfermeiras rapidamente começaram a agir pelas ruas, socorrendo os feridos, da
mesma forma que freiras haitianas acudiam os aflitos,os escoteiros e outras
associações juvenis se mobilizaram no trabalho junto aos escombros. Os jovens
organizados em grupo rapidamente colocavam camisetas da mesma cor com o
propósito de facilitar sua identificação, o que indica o gosto pelo uniforme do
povo haitiano. Ninguém esperara nem cães farejadores, nem especialistas
internacionais - estes estavam trancados no aeroporto ou nos distintos
batalhões à espera de um "protocolo". O que vimos foi uma ordem impressionante,
e não a desordem mostrada pela mídia.
Por que as organizações internacionais não fizeram uso desta organização
existente na sociedade haitiana para fazer chegar rapidamente a ajuda tão
necessária? Por várias razões. O "protocolo" das organizações não prevê este
tipo de conexão; os seus profissionais geralmente desconhecem o kreyòl -língua
universal de todos os haitianos - e por vezes mesmo o francês, assim como
ignoram e menosprezam as capacidades da população;não há comunicação entre os
profissionais destas organizações e os habitantes do país. Todos parecem falar
dos haitianos, mas ignoram aqueles setores que, frágeis, garantem de fato sua
existência.
Quanto aos argumentos hobbesianos, além de não fazerem justiça ao próprio
Hobbes, ignoram os avanços de uma antropologia que, nos anos de 1920 e 1930, e
após cuidadosa pesquisa de campo entre grupos africanos, jogou por terra a
associação entre ausência de Estado e o caos. É evidente que no Haiti não
estamos entre os Nuer. O Haiti é uma sociedade estatal, e seus habitantes têm
em sua memória períodos anteriores em que um Estado mantinha a ordem, cobrava
impostos e investia minimamente em obras públicas, com as evidentes limitações
próprias dos Estados daquela região do mundo. O Haiti, na atualidade, e nas
últimas décadas, não é uma sociedade contra o Estado, como insistem alguns7, ou
mesmo sem Estado: há uma clara percepção de Estado entre seus habitantes na
forma de memória e demanda.
Não é raro escutarmos narrativas saudosas relativas ao longo período dos
Duvalier. Ditadura sangrenta, sem dúvida, mas ordenada: os indivíduos sabiam o
que fazer para evitar a violência. Se as pessoas se comportassem adequadamente,
nada lhes iria acontecer: as famílias em Porto Príncipe dormiam com as portas e
janelas abertas, insistem muitos. As representações em torno dos tonton
macoutes- famosa guarda pretoriana que acompanhou o clã Duvalier entre 1957 e
1986 - oscilam entre as que insistem em seu caráter violento e as que têm a
lembrança deles como bons e velhos "coronéis",garantidores da ordem e de ciclos
de reciprocidade. Aliás, muitos macoutescontinuam agindo nos vilarejos do
interior em nome da ordem, e sua demanda atual é a de um soldo que faça justiça
ao seu trabalho.
Há aqui uma clara diferença entre capital e província. Mas em ambos os espaços,
a memória dos períodos anteriores aos anos de 1980 é a de uma violência
ordenada, e não a experiência de uma desordem violenta. Os haitianos foram
capazes, sim, de construir um Estado ao longo do século XIX8. Estado que se
reproduziu até a primeira metade do século XX com os condicionantes próprios
daquela região do Caribe. É a partir de meados do século XX que começa a ser
dilapidado, destruído sistematicamente. A lógica da Guerra Fria se impôs, as
elites intelectuais foram eliminadas ou absolutamente domesticadas e as
decisões de política econômica foram, em geral, desastrosas, responsáveis pela
destruição de esferas associadas à "tradição", sem garantir a consolidação do
propriamente "moderno".
Tendo a concordar com antropólogos como Michel-Rolph Trouillot9 e Gérard
Barthelemy10 quanto às raízes do duvalierismo em períodos anteriores ao próprio
Duvalier. Assistimos ao longo da história haitiana a construção de um Estado
que estabelece com a população camponesa uma relação predatória, promovendo por
vezesuma relação de exterioridade entre estes mesmos camponeses e as
instituições estatais. Os camponeses transformaram-se progressivamente nos
outrosque, paradoxalmente, mantém o próprio Estado, que os suga. Para os
movimentos modernistas, que têm à frente autores como Jean Price-Mars, os
camponeses são ainda a garantia da própria existência da nação,que jamais
duvidou de sua própria existência11. Entre Estado e nação se estabelece uma
relação de oposição, tensão e exterioridade. Mas a população não se mantém à
margem do Estado - deseja-o.
Tal exterioridade ocorre com as organizações internacionais que insistem estar
no Haiti para reconstruir e consolidar o aparato estatal. Os haitianos
percebem-nas muitas vezes como garantidoras de uma ordem que não fará outra
coisa além de recompor sanguessugas e lobisomens. A extraordinária riqueza dos
cooperantes estrangeiros diante da miséria esmagadora da população é percebida
muitas vezes como produto de uma pilhagem, associada ao próprio Estado em
muitos momentos da história haitiana. A reconstrução da Polícia Nacional (PNH)
por parte da Minustah de 2004 para cá pode ser um bom exemplo:ela é percebida
como uma gangue entre outras, talvez com melhores uniformes e mais bem armada,
pois armada pelas Nações Unidas, mas não menos gangue. Quando a Minustah se
recolheu nos quartéis após o primeiro terremoto, soubemos da execução de
dezenas de jovens por parte da PNH. Tratava-se de um acerto de contas,em que se
aproveitou claramente da ausência da Minustah para agir. Lembrando que os
policiais foram armados pela própria Minustah. E todos sabem disso. Como afirma
Edwidge Dandicat,ao descrever os conflitos em Bel Air em 2004:
Alguma coisa seria feita?, ele perguntou. Os soldados das Nações
Unidas que dispararam do seu telhado seriam disciplinados? As pessoas
que foram feridas receberiam ajuda? A Cruz Vermelha iria até lá e as
levaria ao hospital? As famílias dos mortos seriam indenizadas? Ou
pelo menos ajudadas com as despesas do enterro?
Era provável que policiais haitianos houvessem atirado do seu
telhado, disse o agente. A Minustah e a CIVPOL estavam ali
simplesmente para ajudar a polícia haitiana. Se seus vizinhos tinham
sido feridos pela polícia haitiana, as Nações Unidas não poderiam
fazer nada12.
A pergunta "ki kote Minustah?" era minha. Os haitianos sabiam que as tropas das
Nações Unidas não estavam ali para ajudar e que só apareceriam mais tarde para
recolher os louros de uma ação que não fora a deles, como de fato ocorreu. As
câmeras da mídia internacional acompanharam a ação isolada, intermitente,
insuficiente e por vezes promotora, ela mesma, da violência. A mídia brasileira
seguiu os brasileiros, a espanhola, os espanhóis, a americana, a americana, e
daí por diante. O fato de cada um só conseguir olhar para si mesmo e se referir
a si mesmo na mídia internacional impediu de se enxergar a ordem e o civismo
que, no geral, acompanhou a atuação dos haitianos.
Aquilo já anunciado na bibliografia clássica sobre o Haiti pareceu se
confirmar: o país existe nos mercados13. Após o terremoto, foi a rápida
organização de mercados insistentemente denominados "informais" que garantiu o
abastecimento da população.As lojas que haviam resistido ao terremoto estavam
fechadas, assim como os supermercados. Os campos de refugiados foram
rapidamente transformados em grandes mercados, onde eram oferecidos óleo,
espaguete, verduras, frutas e sabão. Os preços mantiveram-se relativamente
estáveis. Mas nas semanas seguintes a inflação chegou a 30%. Há um imenso
controle social sobre os preços:aquilo que é considerado um preço justo é
definido e controlado pela própria população.
O Haiti é um país fortemente monetarizado. Não contentes com uma moeda
nacional, eles têm duas - o gourde, com existência material em papel e moeda
metálica, e o dólar haitiano, existente na cabeça dos haitianos, mas não menos
real, e capaz de levar à loucura estrangeiros desavisados. Cada dólar haitiano
corresponde a cinco gourdes, e é em dólares (haitianos) que as transações são
feitas, transformando a todos em rápidos matemáticos.
O que garante o mercado não é o escambo eventual.Haitianos e haitianas não têm
seu dinheiro em bancos (aliás, boa parte deles na capital veio abaixo ou
permaneceu fechada nos dias que se seguiram aos grandes terremotos). O pouco
que têm está continuamente circulando, e assim continuou nos dias que sucederam
a catástrofe. Por isso é que eles conseguiam comprarum prato de chen janbe, ter
acesso a algo de sabão ou receber por algum biscate. O dinheiro não se guarda:
circula.
Com lojas e supermercados fechados ou destruídos e com os contentores repletos
de produtos oriundos da ajuda internacional no aeroporto, os circuitos
comerciais rapidamente se articularam, conectando a província com a capital.
Ademais, as mulheres vendiam nas ruas sem guarda-costas, sem fuzileiros e sem
medo. Havia uma auto-regulação pautada pela honra e pelo respeito. Se os saques
ocorreram nos supermercados destruídos, as madanm saravendiam com certa
tranqüilidade nas ruas da capital e de Pétionville. Quando a polícia aparecia
era para defender a propriedade dos grandes atacadistas que, por sua vez,
estavam, eles mesmos, armados: as madanm saranão precisavam da polícia. Temiam-
na.
Nas calçadas, as mulheres responsáveis pelo chen janbepreparavam panelões de
comida:banana verde cozida ou frita, arroz e feijão, galinha. Quando no segundo
dia após o grande terremoto, no Champs-de-Mars, aproximei-me e pedi quinze
porções de galinha, houve grande alvoroço, pois nem sempre se pede tal
quantidade de comida. Era difícil que apenas uma cozinheira desse conta do
pedido, e logo as mulheres se organizaram para providenciar as porções: cada
uma sabia quantas galinhas havia dado, quantas bananas, e quanto do dinheiro
cabia a cada uma. Andei os vinte minutos do centro até a casa onde estava com
quinze porções de galinha, em meio à multidão e cruzando com fileiras de corpos
nas calçadas. Não fui atacado, sequer ameaçado.
No dias seguintes aos grandes terremotos, as grandes instituições
internacionais, Nações Unidas entre elas, organizaram-se não no sentido de
efetivamente fazer chegar a ajuda aos haitianos, mas de apelar para o envio de
recursos. Rapidamente, um grande espetáculo estruturou-se:personalidades
internacionais, atrizes, atores e modelos fazendo publicidade de suas
extraordinárias doações, os países disputando entre si o palco da ajuda. Os
Estados Unidos anunciavam a destinação de grandes somas de recursos, assim como
a União Européia; o Brasil aspirando se tornar o protagonista da ajuda ao
Haiti. Além de beldades, instituições supranacionais e Estados, grandes
organizações não-governamentais também apelavam para uma generosidade sem
fronteiras que parecia se voltar em peso para o Haiti. Apelava-se para o envio
de recursos em nome da ajuda imediata - que não chegava - e da reconstrução.
Reconstrução de quê?
O contraste entre tal mobilização e seu efeito quase nulo no Haiti é, no
mínimo, gritante. Os haitianos permaneceram e permanecem à margem desse show,
condenados a um papel secundário, transformados ora numa paisagem de miséria,
ora nos sujeitos de um caos que parece distanciá-los da vida em sociedade.
Estariam as instituições internacionais nos dias que sucederam a catástrofe em
choque? Pode ser, mas insisto na idéia de que havia uma incapacidade anterior
ao terremoto para o estabelecimento efetivo de canais de ajuda - para além da
boa-fé dos profissionais dessas instituições. Esta incapacidade se deve a
múltiplos fatores, entre os quais destaco a falta de comunicação efetiva com
setores decisivos da sociedade haitiana. Estes são ora desconhecidos, ora
considerados incapazes, ora desprezados. E mais: muitas vezes as ONGs
internacionais estabelecem com os setores organizados da sociedade haitiana uma
relação de franca competição. Como pequenas organizações haitianas podem
competir por recursos com médias e grandes organizações internacionais? Como
estas podem entrar num mundo que possui um vocabulário (aparentemente) complexo
e marcado, em grande parte do tempo, por seminários infindáveis?
A manutenção de todo o aparato que cerca a presença internacional no Haiti
exige uma soma considerável de recursos. Recursos que não necessariamente
chegam aos haitianos ou contribuem efetivamente para a construção ou a
consolidação do aparato estatal. Ouso dizer que o que se pretende reconstruir
com as supostamente grandes somas oriundas da ajuda internacional não é o
Haiti, mas a própria ajuda internacional. Se tivermos presente os custos anuais
dos aparatos civil e militar das Nações Unidas no país, os recursos enviados
chegam a ser risíveis, e claramente pretendem reconstruir a própria Minustah.
Enquanto isso, o povo haitiano recorre às suas próprias instituições, ditas
"tradicionais", porém mais eficazes, apesar de todas as limitações, do que um
aparato que não tem outro propósito que sua própria auto-reprodução. Os bem-
intencionados cooperantes aproximam-se, então, dos representantes do Estado
haitiano - as elites que se culpam por sua incapacidade histórica de promover a
superação inscrita numa revolução que ocorreu há mais de 200 anos, e que são
responsabilizadas constantemente pelos próprios representantes da comunidade
internacional pelo fracasso do país. Elites que construíram um Estado
sanguessuga, que foi em poucas décadas destruído para ser reposto por outro
aparato, não menos sanguessuga. Por sorte, haitianos e haitianas têm
experiência com os lobisomens, o Lougawou, e os chupa-cabras que novamente se
impõem falando línguas estrangeiras para a esmagadora maioria da população.
Falando francês, inglês, castelhano e agora também português, com nossa doce
tonalidade tropical.
OMAR RIBEIRO THOMAZ é professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e
pesquisador do Cebrap.
[*] Este texto só foi possível pela colaboração dos haitianos e haitianas com
quem pude conviver nos últimos dez anos, muito dos quais perderam a vida no dia
12 de janeiro de 2010. Agradeço particularmente a Guy Dalemand, Paulo Dubois,
Herard Jadotte e à família Lubin. Devo ainda muito, ou quase tudo, a Sebastião
Nascimento e Jean-Phillipe Belleau. A interlocução com Federico Neiburg tem
sido preciosa. Agradeço a meus amigos e alunos que me acompanharam nesta última
pesquisa de campo interrompida abruptamente: Cris Bierrenbach, Daniel Santos,
Diego Bertazzoli, Joanna da Hora, Marcos Rosa, Otávio Calegari, Rodrigo Bulamah
e Werner Garbers. Esta ida a campo não teria sido possível sem o apoio do CNPq
e da Unicamp.
[1] Quando falam de "blan", os haitianos não se referem necessariamente àqueles
que reconhecemos como "brancos", mas aos estrangeiros ou pessoas cuja
"haitianidade" é duvidosa. O universo das organizações internacionais é
freqüentemente associado ao "mundo dos brancos", "lemonn blan" ou, como é mais
usual, "moun blan".
[2] Veículos que fazem as vezes de transportes públicos, os tap tapssão
pequenas camionetes, vans ou ônibus sempre decorados de forma exuberante e
colorida, com imagens religiosas ou reproduções de personagens famosos, entre
jogadores de futebol e artistas, e com uma série de dizeres, em geral
provérbios ou ditos religiosos.
[3] As madanm sarasão as comerciantes que garantem a oferta de produtos de boa
parte dos mercados de Porto Príncipe. Conectam a capital com as regiões rurais
do país e são responsáveis até mesmo por circuitos existentes entre o Haiti e a
República Dominicana, os Estados Unidos e o Panamá.
[4] Nome dado à comida preparada e vendida nas ruas por mulheres.
[5] Pétionville é um município que fica ao lado de Porto Príncipe, subindo as
montanhas majestosas que rodeiam a capital. Fundada em meados do século XIX, a
cidade transformou-se numa espécie de subúrbio elegante, onde parte da elite
haitiana vive, ao lado de boa parte dos cooperantes estrangeiros estabelecidos
na região. Em Pétionville há restaurantes, bares, lojas de artesanato e
importantes galerias de arte.
[6] Chimè, como eram conhecidos os grupos, geralmente juvenis, que se
organizaram em gangues em bairros como, entre outros, Cité Soleil e Bel Air na
defesa do seu líder, Jean Bertrand Aristide, quando a oposição ao presidente
começou a ganhar força em vários setores da sociedade haitiana, particularmente
entre intelectuais e estudantes, entre 2003 e 2004.
[7] A obra do etnólogo francês Gérard Barthelemy é reveladora de uma certa
antropologia "romântica" que, ao perceber uma dualidade opondo o universo rural
ao urbano no Haiti, interpreta o mundo camponês como responsável por uma
dinâmica de oposição ao Estado que o aproximaria de sociedades contrao Estado.
Se há uma clara divisão entre o rural e o urbano no Haiti, isso não implica
que, historicamente, não tenhamos um conjunto de relações entre esses dois
universos que impedem a idéia de uma oposição cuja conseqüência seria a
reprodução de dois mundos, um à margem do outro. Cf. Gérard Barthelemy. Le pays
en-deshors: essai sur l'univers rural haïtien. Porto Príncipe: Henri Deschamps,
1989.
[8] Devemos ter em mente a dificuldade de construção de um Estado em meio a um
terrível embargo internacional do qual o Haiti foi vítima até pelo menos a
guerra civil norte-americana. A melhor e mais deliciosa descrição histórica do
processo pode ser encontrada no clássico de Jean Price-Mars, La República de
Haití y la República Dominicana. Santo Domingo: Bibliófilos, 2000, 2 vols. (1º
edição em francês, Porto Príncipe,1953).
[9] Trouillot, Michel-Rolph. State against Nation: the origins and legacy of
duvalierism.Nova York: Monthly Review Press, 1990.
[10] Barthelemy, G. Les duvalieristes après Duvalier. Paris: L'Harmattan, 1992.
[11] Ver o clássico de Price-Mars, Jean. Ainsi parla l'oncle. Porto Príncipe:
Bibliothèque National,1998 [1928] .
[12] Dandicat, Edwidge. Adeus Haiti. Rio de Janeiro: Agir, p. 173.
[13] Mintz, Sidney W.Caribbean transformations. Chicago: Aldine, 1974.