O efeito de realidade e a política da ficção
Em 1968 Roland Barthes publicou seu texto canônico "O efeito de realidade"1.
Esse texto começa focando um detalhe retirado do conto de Flaubert "Um coração
simples". Ao descrever a sala da casa onde sua personagem vive, o escritor diz
que "um velho piano sustentava, sob um barômetro, um monte piramidal de caixas
e caixotes"2. Obviamente esse barômetro não tem utilidade alguma e o monte
piramidal não nos deixa ver nada determinado. Como afirma Barthes, eles "elevam
o custo da informação narrativa". Essa avaliação parece estar em consonância
com muitas das afirmações de escritores do século XX que denunciavam a
futilidade da descrição realista. No "Manifesto do Surrealismo", André Breton
descartou a descrição do papel de parede e da mobília do cômodo da usurária em
Crime e castigocom umas poucas palavras: "Ele perde seu tempo, porque eu me
recuso a entrar nesse quarto". No seu prólogo para o romance de Bioy Casares, A
invenção de Morel, Borges faz semelhante observação sobre Proust: ele diz que
existem muitas páginas na sua obra que devemos aceitar como o fazemos com "o
insípido e ocioso de cada dia". A questão, então, não é somente sobre o
elemento supérfluo na descrição: é sobre a própria descrição. Ela aparece como
um excesso que cobre uma falta: o excesso de coisas - mais precisamente o
excesso de representação das coisas - substitui um catálogo de clichês para o
profuso emprego da imaginação poética; ou ela fica no caminho do enredo e
embaralha suas linhas; ou, novamente, ela apaga o jogo de significação
literária e opõe sua falsa obviedade à tarefa de interpretação.
O texto de Roland Barthes parece oferecer a fórmula teórica para essas
recriminações. Isso significa que a análise estrutural tende a preservar a
idéia modernista da obra de arte como desenvolvimento autônomo da sua própria
necessidade interna,invalidando a velha lógica da semelhança e da
referencialidade. Ela dá uma formulação sistemática para o desprezo modernista
pelos objetos inúteis que ficam no caminho da organização estrutural da obra de
arte: nada pode ser supérfluo. Agora, como método de análise, o estruturalismo
precisa provar que o supérfluo não é supérfluo, que os trabalhos literários que
não obedecem ao princípio estruturalista da economia são, contudo, válidos para
a análise estrutural. Ao supérfluo deve ser dado um lugar e um estatuto na
estrutura. O estatuto que Barthes lhe dá é o estatuto típico que os
pressupostos modernistas podem dar ao que está em excesso: o estatuto do
sobrevivente. Barthes oferece duas razões para o excesso realista. Em primeiro
lugar, ele dá continuidade a uma tradição que data da Antiguidade, a tradição
do discurso "epidítico", no qual o objeto da descrição importa menos do que o
emprego de imagens e metáforas brilhantes, exibindo a virtuosidade do autor em
nome do puro prazer estético. Em segundo lugar, ele tem a função de
comprovação. Se um elemento está em algum lugar apesar de não haver razão para
a sua presença, isso significa precisamente que o sua presença é incondicional,
que ele está presente simplesmente porque está presente. Assim, o detalhe
inútil diz: eu sou o real, o real que é inútil, desprovido de sentido, o real
que prova sua realidade por sua própria inutilidade e carência de sentido.
Esta comprovação do real parece retroceder a uma oposição que estruturou a
lógica da representação. Desde Aristóteles, acreditava-se que a ficção poética
consistia em construir um enredo de verossimilhança, uma concatenação lógica de
ações,enquanto a História apenas contaria os fatos como eles se deram. Desse
ponto de vista, o efeito de realidade rompe com a lógica da representação. Mas
ele o faz implementando uma estratégia intermediária: conforme toma o princípio
"realista" da história, agarrando-se ao real enquanto real, ele cria um novo
tipo de verossimilhança,oposta à clássica. Assim, Barthes afirma que esta nova
verossimilhança se torna o núcleo de um fetichismo do real, característico da
cultura midiática e exemplificado pela fotografia, pelos noticiários, pelo
turismo devotado a monumentos e lugares históricos etc. Tudo isso, conclui
Barthes,
[...] diz que o "real" supostamente basta-se a si mesmo, que é
bastante forte para desmentir qualquer idéia de "função", que sua
enunciação não precisa ser integrada a uma estrutura e que o "ter-
estado-lá" das coisas é motivo suficiente para que sejam relatadas3.
O que é fascinante nessa sentença é como ela, de fato, se presta a uma guinada
que acontecerá dez anos depois, quando Barthes fará do "ter-estado-lá" das
coisas o punctumque é a verdade da fotografia e repudiará o conteúdo
informativo do studium. Contudo,essa guinada foi possibilitada precisamente
pela construção de uma simples oposição entre estrutura ficcional e
singularidade absoluta do mero "ter-estado-lá". Creio que uma análise mais
detalhada do "monte piramidal de caixas" sobre o velho piano poderia ter
oferecido um terceiro termo que talvez rompesse a oposição, simples demais,
entre racionalidade funcional da estrutura narrativa e singularidade absoluta.
Pretendo mostrar que o "ocioso cada dia" do romance realista é o lugar e o
momento de uma bifurcação de momentos muito mais radical do que a bifurcação de
caminhos e linhas narrativas apreciada por Borges, e que o foco no efeito de
realidade perde de vista a verdadeira ruptura que está no coração da ficção
estética. Ele o perde porque a idéia "modernista" de estrutura ainda está de
acordo com a lógica representativa que ela finge desafiar, de maneira que ela
também deixa de ver a questão política envolvida no excesso "realista".
A questão é que, na verdade, a oposição entre a "estrutura" e o "ocioso" ou as
"inúteis" notações do "real" traz de volta uma crítica muito mais antiga à
ficção realista, que já havia sido feita por muitos críticos, a maioria deles
reacionários, no tempo de Flaubert. Esses críticos já haviam chamado a atenção
para a enumeração de detalhes, a extensão das descrições que preenchiam seus
romances e caracterizavam mais amplamente a literatura contemporânea. Por
exemplo, o escritor católico e crítico literário, Barbey d'Aurevilly,
contemporâneo de Flaubert, denunciou sua "infinita, eterna, atomística e cega
prática da descrição". Como ele mesmo diz,
[...] não há um livro ali; não existe essa coisa, essa criação, esse
trabalho de arte constituído por um livro com desenvolvimento
organizado [...]. Ele escreve sem um plano, indo adiante sem uma
visão total preconcebida, não sabendo que a vida,na sua diversidade e
na desordem aparente de seus caprichos,é dotada de leis lógicas e
inflexíveis [...] é um arrastar-se entre o insignificante, o vulgar e
o abjeto pelo único prazer do deixar-se estar.
Essa crítica é evidentemente baseada nos princípios que estruturam a lógica
clássica da representação. De acordo com essa lógica, a obra de arte é um tipo
definido de estrutura - uma totalidade orgânica, dotada de todas as partes
constituintes necessárias para a vida e nada mais;ela deve ter a aparência de
um corpo vivo equipado de todos os membros requeridos, unidos na unidade de uma
forma, sob o comando de uma cabeça organizadora. O romance "realista" não
atende a este requisito. Para Barbey, a questão não é somente a presença de
detalhes que em nada contribuem para o funcionamento da estrutura ficcional e
apenas interpretam o papel do real afirmando "Eu sou o real". A questão é que
as partes não estão subordinadas ao todo; os membros não obedecem à cabeça. O
novo romance realista é um monstro. Ele pertence a uma nova cosmologia
ficcional na qual a concatenação funcional de idéias e ações, de causas e
efeitos não funciona mais. Nas caixas do novo romancista, todas as coisas estão
embaralhadas. O artista tornou-se um trabalhador. Ele carrega suas sentenças
adiante, diz Barbey, da mesma forma que o operário carrega suas pedras adiante
num carrinho de mão. A comparação mostra que essa nova cosmologia ficcional é
também uma nova cosmologia social.
Outro crítico daquele tempo observou a significação política dessa maneira de
escrever: isto é democracia, ele disse, democracia na literatura ou literatura
como democracia. A "insignificância" dos detalhes equivale à sua perfeita
igualdade. Eles são igualmente importantes ou igualmente insignificantes. A
razão para isso é que eles se referem a pessoas cujas vidas são
insignificantes. Essas pessoas abarrotam todo o espaço, não deixando margem
para a seleção de personagens interessantes e para o harmonioso desenvolvimento
de um enredo. É exatamente o oposto do romance tradicional, o romance dos
tempos monárquicos e aristocráticos, que se beneficiavam do espaço criado por
uma clara hierarquia social estratificada. Sobre este espaço:
Os personagens que corporificam os refinamentos do nascimento, da
educação e do coração não deixavam espaço para figuras secundárias,
ainda menos para objetos materiais. Essa delicada sociedade via
pessoas ordinárias somente através das portas de suas carruagens e o
campo somente através das janelas de seus palácios. Isto deixava
amplo e fértil espaço para a análise dos sentimentos mais refinados,
que são sempre mais complicados e difíceis de decifrar nas almas da
elite do que entre as classes mais baixas.
O crítico reacionário revela, com franqueza, a base social da poética
representativa: a relação estrutural entre as partes e o todo fundamentava-se
numa divisão entre as almas da elite e as das classes baixas. Quando essa
divisão desaparece, a ficção se entope de eventos insignificantes e de
sensações de todas aquelas pessoas comuns que ou não entravam na lógica
representativa, ou entravam nos seus devidos lugares (inferiores) e eram
representadas nos gêneros (inferiores) adequados à sua condição. Isso é o que a
ruptura da lógica de verossimilhança quer dizer. Quando Barthes relaciona essa
lógica à velha oposição aristotélica entre poesia e história, ele se esquece de
que tal distinção poética formal também era uma distinção política. A poesia
era definida como uma concatenação de ações em oposição à mera sucessão
histórica de fatos. Mas "ação" não é o mero fato de fazer algo. A ação é uma
esfera de existência. Concatenações de ações só poderiam dizer respeito a
indivíduos que viviam na esfera da ação, que eram capazes de conceber grandes
planos e de arriscá-los no confronto com outros grandes planos e com os golpes
do destino. Elas não poderiam se referir a pessoas que estavam confinadas à
condição da vida nua, devotadas à única tarefa de sua reprodução infinita.
Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode ser esperado de uma causa;
ela também diz respeito a o que pode ser esperado de um indivíduo vivendo nesta
ou naquela situação, que tipo de percepção, sentimento e comportamento pode ser
atribuído a ele ou ela.
Posto de outra maneira, a questão da ficção contém dois outros aspectos
entrelaçados entre si. A ficção designa certo arranjo dos eventos, mas também
designa a relação entre um mundo referencial e mundos alternativos. Isso não é
uma questão de relação entre o real e o imaginário. Isso é questão de uma
distribuição de capacidades de experiência sensorial, do que os indivíduos
podem viver, o que podem experienciar e até que ponto vale a pena contar a
outros seus sentimentos, gestos e comportamentos. Este é o caso do conto ao
qual se refere Barthes,"Um coração simples", de Flaubert. O barômetro não está
lá para comprovar que o real é o real. A questão não é o real, é a vida, é o
momento quando a "vida nua" - a vida normalmente devotada a olhar, dia após
dia, se o tempo será bom ou ruim - assume a temporalidade de uma cadeia de
eventos sensorialmente apreciáveis que merecem ser relatados. O ocioso
barômetro expressa uma poética da vida ainda desconhecida, manifestando a
capacidade de qualquer um (por exemplo, da velha empregada de Flaubert) de
transformar a rotina do dia-a-dia na profundeza da paixão, seja por um amante,
um senhor, uma criança, seja por um papagaio. O efeito de realidade é um efeito
de igualdade. Mas a igualdade não significa somente a equivalência entre todos
os objetos e sentimentos descritos pelo romancista. Não significa que todas as
sensações são equivalentes, mas que qualquer sensação pode produzir em qualquer
mulher pertencente às "classes mais baixas" uma aceleração vertiginosa,
fazendo-a experienciar as profundezas da paixão.
Este é o amedrontador significado de "democracia" literária: qualquer um pode
sentir qualquer coisa. O objeto dessa paixão pouco importa. Felicité, a
empregada de "Um coração simples", é uma serviçal perfeita. Mas ela não serve
mais como teria servido, de acordo com a lógica hierárquica da verossimilhança.
Ela serve com amor, com uma intensidade de sentimento e paixão que excede em
muito a intensidade dos sentimentos de sua senhora. Esta intensidade não
somente é inútil, ela é perigosa. Alguns anos antes de "Um coração simples", os
Irmãos Goncourt, amigos e colegas de Flaubert, haviam publicado a história de
uma outra serviçal, Germinie Lacerteux. Germinie também é fanaticamente
devotada à sua senhora. Mas ao longo do romance parece que a paixão que faz
dela uma serviçal perfeita também faz dela uma mulher capaz de qualquer coisa
para servir a suas próprias paixões e a seu próprio desejo sexual até o último
estágio de degradação.
Assim, a angélica Felicité e a monstruosa Germinie são irmãs;ambas pertencem à
mesma família de Emma Bovary, a família daquelas filhas de camponeses que se
provam capazes de sentir qualquer desejo violento, assim como qualquer
aspiração ideal. É esta nova capacidade de qualquer um de viver vidas
alternativas que coíbe a subordinação das partes ao todo. Não há um livro, diz
Barbey, somente retratos pendurados lado a lado. O aristocrático emprego da
ação é bloqueado pela democrática coleção desordenada de imagens. Mas o que
acontece é uma perda dupla em relação à lógica representativa. Assim como a
ação perdeu sua antiga estrutura de uma concatenação de causas e efeitos, a
imagem perdeu suas velhas funções de comunicar a qualidade emocional da ação ou
mostrar imagens prazerosas durante suas pausas. Ação e percepção, narração e
imagem tornaram-se um e o mesmo tecido sensorial de microeventos. Os críticos
os condenam como "imagens" que obstruem o caminho do enredo. Mas "imagem" é um
termo ambíguo. De fato, as chamadas imagens não nos oferecem muito que ver.
(Burke já havia dado a razão para isso:emoções e paixões violentas são mais bem
comunicadas por palavras do que por representações visuais, porque palavras não
tornam realmente visíveis o que elas descrevem. Este é, de fato, o caso com a
forma de violência então desconhecida que consiste na capacidade de qualquer um
de experienciar qualquer tipo de sentimento - tanto sublime como abjeto.)
Imagens não são descrições do visível. Elas são operadores que produzem
diferenças de intensidade. Por sua vez, essas diferenças de intensidade
manifestam uma redistribuição das capacidades sensoriais, ou, em termos
platônicos, da hierarquia entre almas de ouro e almas de ferro. A democracia no
romance realista é a música da igual capacidade de qualquer um de experienciar
qualquer tipo de vida. A "imagem" não é adicionada à narração, ela se torna a
música da igualdade na qual a oposição entre ação e imagem desaparece.
Este é, creio, o problema realmente em discussão no chamado efeito de real. A
análise de Barthes não leva em consideração a questão política porque, na minha
opinião, a idéia de estrutura que sustenta sua investigação sobre o estatuto do
"real" na literatura está de acordo com a idéia de estrutura implicada na
lógica representativa:a estrutura como arranjo funcional de causas e efeitos
que subordina as partes ao todo. A análise estrutural, para ele, deve dar conta
de "toda a superfície do tecido narrativo" e designar para cada unidade
narrativa um lugar na estrutura. Portanto, o analista "estruturalista" se
depara com o mesmo escândalo que os campeões da poética representativa:
notações descritivas que não desempenham função alguma e assim "elevam o custo
da informação narrativa". A argumentação é exatamente a mesma: o que não tem
função na estrutura só pode ser entendido como uma afirmação insistente do real
como real. Existem somente a estrutura e o resíduo. Barthes identifica o último
como um novo tipo de verossimilhança, a afirmação tautológica do real como
real. Mas creio que a crítica dos campeões reacionários da velha
verossimilhança via com mais acuidade o que estava em jogo: a invasão da
"democracia", diziam eles: uma nova realidade social "insistente" implodindo
toda estrutura adequada do enredo, qualquer concatenação correta das ações.
Este é o ponto: Barthes analisa o "efeito de real" da perspectiva "modernista",
igualando modernidade literária, e seu significado político, com a purificação
da estrutura do enredo, descartando as imagens parasíticas do "real". Mas a
literatura como configuração moderna da arte de escrever é justamente o oposto:
ela é a supressão das fronteiras que delineiam o espaço dessa pureza.O que está
em jogo neste "excesso" não é a oposição do singular e da estrutura, é o
conflito entre duas distribuições do sensível.
Os críticos do século XIX viam uma relação direta entre a democracia vista como
a "igualdade de condições" de Tocqueville e a "proliferação realista de
detalhes supérfluos". Mas a ligação entre democracia política e democracia
literária é muito mais complicada. E é essa complexidade que está refletida nas
tensões da ficção. A tensão entre "ação" e "descrição" não somente opõe a
literatura moderna e as regras da velha poética, ela também reside no coração
da ficção literária moderna. A questão do "excesso descritivo" indica essa
tensão interna. Pretendo mostrá-la, trazendo de volta uma das críticas que
mencionei no início: a crítica de André Breton à descrição de Dostoiévski do
cômodo da usurária. Primeiramente, menciono sua citação, depois seu comentário:
O pequeno quarto em que o jovem entrou, com papel amarelo forrando as
paredes, vasos de gerânio e cortinas de musselina nas janelas, estava
naquele instante intensamente iluminado pelo poente... Mas nada havia
de especial no quarto. O mobiliário, todo de madeira amarela e muito
velha, era constituído de um sofá, um toucador com espelho disposto
entre as janelas, cadeiras junto às paredes, e ainda uns dois ou três
quadros baratos em molduras amarelas, representando senhoras alemãs
com pássaros nas mãos - eis todo o mobiliário4.
Não quero admitir que a mente esteja disposta a se ocupar desses
assuntos, mesmo que de forma errática. Pode-se dizer que esta
descrição escolar tenha o seu lugar, e que naquele ponto do livro o
autor tem as suas razões para me submeter a ela. O que é certo é que
ele perde seu tempo, porque eu me recuso a entrar nesse quarto5.
Mas a recusa a entrar no quarto deixa de lado a questão crucial: o que "seu
quarto" significa, ou de quem é "esse quarto"? É disso que trata a descrição de
Dostoiévski. Na verdade, ele descreve dois quartos em um. Significativamente
André Breton pulou, na sua citação, duas sentenças que constituíam essa
dualidade. Cito toda a passagem:
O pequeno quarto em que o jovem entrou, com papel amarelo forrando as
paredes, vasos de gerânio e cortinas de musselina nas janelas, estava
naquele instante intensamente iluminado pelo poente."Quer dizer que
no diao sol também iluminará desse jeito!..." - passou pela mente de
Raskólnikov como que por acaso, e ele percorreu tudo no quarto com um
olhar rápido, querendo, dentro do possível, estudar e fixar na
memória a disposição dos objetos. Mas nada havia de especial no
quarto. O mobiliário, todo de madeira amarela e muito velha, era
constituído de um sofá, um toucador com espelho disposto entre as
janelas, cadeiras junto às paredes, e ainda uns dois ou três quadros
baratos em molduras amarelas, representando senhoras alemãs com
pássaros nas mãos - isso era tudo6.
O próprio Dostoiévski diz que a descrição é inútil. Mas ele também explica por
que ela é inútil: porque o inventário da mobília não desempenha o papel que
Raskólnikov lhe atribui. Ele passa o olho pelo cômodo com o intuito de mapear a
cena do assassinato que está planejando. Mas não há "nada especial" no cômodo,
nada que valha a pena incluir no esquema do assassinato planejado. O que sobra,
portanto, é "um outro" cômodo, o cômodo que ele primeiramente notou, um cômodo
"impressionista" que é feito de retalhos de cor: papel amarelo, cortinas de
musselina e o brilho do poente, produzindo um brilho intenso na sua mente:
"Quer dizer que no dia o sol também vai estar iluminando desse jeito!...". Este
último comentário é, em algum grau, absurdo:como vamos saber se o dia do
assassinato será ensolarado ou não? Precisamente, não é questão de saber. O
cômodo do assassinato, o cômodo onde ele acontecerá não é o cômodo ao qual ele
olha conscientemente como um criminoso metodicamente planejando seu ato. É o
cômodo da alucinação. De fato, o assassinato acontecerá na forma de uma
alucinação provocada por um acesso de febre.
Assim, não é verdade que a descrição obstrua o curso da ação. Em vez disso, ela
o divide. A aparente banalidade da descrição revela uma dualidade do cômodo
que, por sua vez, revela uma divisão no núcleo da própria ação. Como é sabido,
Raskólnikov planejou o assassinato a partir de uma teoria racional sobre a
sociedade: pessoas pobres e talentosas,como ele, podem se valer de métodos
extraordinários para sair de suas misérias e permitir que a sociedade se
beneficie de suas capacidades. Ele tem um modelo, Napoleão, o filho de uma
obscura família plebéia que se tornou Imperador dos franceses e senhor da
Europa. Assim, ele racionaliza o assassinato de acordo com uma racionalidade
estratégica de meios e fins. Mas a racionalização sobre o melhor ato não
resulta numa capacidade de tomar uma decisão racional e de implementá-la a
sangue frio. Ao contrário, ele só consegue executá-la num acesso de febre. A
assim chamada "superficialidade" da descrição é a encenação dessa divisão
interna. O novo enredo literário, o enredo dos tempos da democracia, separa a
ação de si mesma. O insucesso do modelo estratégico caracteriza de uma vez a
estrutura do romance realista e o comportamento de seus personagens. A ruína do
paradigma aristocrático/representacional também implica a ruína de uma certa
idéia de ficção, ou seja, certo padrão de vinculação entre pensar, sentir e
fazer.
Gostaria de ilustrar este ponto comentando um estranho episódio de um romance
que nos apresenta um irmão mais velho do Raskólnikov de Dostoiévski: Julien
Sorel, de Stendhal. Julien Sorel, o personagem principal de O Vermelho e o
negro, é filho da Revolução Francesa, admirador de Napoleão que utiliza todos
os meios para sair da sua condição inferior. Dessa maneira, o leitor do romance
que segue os eventos da sua vida pessoal é também apresentado ao jogo das
relações de poder que constituem a sociedade pós-revolucionária. É por isso que
Erich Auerbach, no seu livro Mimesis, vê o romance como um passo importante no
progresso da representação da realidade na literatura ocidental. Ele inicia o
realismo moderno que sugere que o homem está envolvido numa realidade política,
econômica e social em permanente evolução. Mas para enfatizar essa idéia de
"realismo", Auerbach teve que esquecer as esquisitices do enredo. No final do
romance, Julien está na cadeia e espera uma sentença de morte por ter atirado
na sua antiga amante, que o havia denunciado ao pai de sua nova amante. Esta
última e um amigo estão movendo mundos e fundos para salvar a vida de Julien.
Mas ele pede que não o atormentem com "esses detalhes sobre a vida real". Ele
quer viver somente a vida da imaginação. Assim, ele passa seus dias fazendo
nada, andando pelo terraço da prisão fumando charutos:
De fato, pensava, parece que meu destino é morrer sonhando. Um ser
obscuro como eu, certo de ser esquecido em menos de quinze dias,
seria um tolo, devo confessar, se fizesse muito drama... É
inacreditável, contudo, que eu não tenha conhecido a arte de gozar a
vida senão depois de ver seu fim tão próximo7.
Já não há aqui uma "descrição" que interrompe o curso da ação. Julien decide
viver somente a vida da imaginação, mas não há imagem que expresse esta vida da
imaginação. Aquilo que bloqueia a ação é a divisão no próprio coração da
"vida". Na prisão Julien descobre a "arte de gozar a vida". Esta "descoberta"
tardia não somente contradiz o caráter do jovem ambicioso. Ela também contradiz
a ciência com a qual o romancista havia construído seu romance como uma viagem
através das redes de relacionamentos e intrigas sociais. Durante toda a
narrativa, Julien calculou todas as suas atitudes, e o romancista adicionou aos
seus cálculos as explicações que surgiam da sua própria ciência das relações
sociais e da psicologia individual.O curso do enredo coincide com o
desenvolvimento daquelas intrigas. Mas, no último momento, o enredo se divorcia
da lógica das intrigas. O tiro é a primeira ação do herói que não foi decidida
segundo um cálculo. Em vez disso, ele diz adeus a todos os cálculos e coloca o
herói num espaço e tempo que já não têm a ver com o espaço e tempo das ambições
e das expectativas, um espaço e tempo devotados a fazer nada, a não ser "gozar
a vida".
Com o intuito de compreender o que está em jogo neste venturoso "fazer nada",
que põe um final na carreira do plebeu ambicioso, proponho conectá-lo a outro
"fazer nada", formulado num texto bem diferente, um texto filosófico alemão.
Dois anos antes da publicação do romance de Stendhal, Hegel comentou, nas suas
lições de estética, dois quadros de Murillo que representam garotos pedintes
numa rua de Sevilha. Um deles mostra uma mãe catando piolhos da cabeça de um
garoto enquanto ele silenciosamente mastiga seu pão. O outro mostra dois
meninos maltrapilhos comendo uvas e um melão. A atenção que o filósofo dedica a
essas "pinturas de gênero" que representam o cotidiano de pessoas das classes
baixas ilustra a inversão da lógica hierárquica do regime representativo. Mas
Hegel não se satisfaz com meramente afirmar que todos os temas são
equivalentes. Em vez disso, ele faz uma forte conexão entre a qualidade da
pintura de Murillo e a atividade daqueles pequenos pedintes, uma atividade que
consistia em nada fazer nada e com nada preocupar-se. Eles mostram, ele diz,
uma absoluta falta de preocupação com a realidade exterior, uma liberdade
interna em meio a essa realidade externa que é exatamente o exigido pelo
conceito do ideal na arte. Agachados, eles gozam de um tipo de bem-aventurança
que os torna quase deuses olímpicos.
Os quadros dos meninos pedintes que um príncipe comprou, na "era
representativa", como ilustrações pitorescas das maneiras de ser das pessoas
das classes baixas, agora expressa uma nova qualidade estética, a capacidade de
"nada fazer" e preocupar-se com nada, a aptidão ao ócioque pertence aos deuses
olímpicos. Na sua descrição, Hegel provavelmente tinha em mente as Cartas sobre
educação estética da humanidadede Schiller e sua evocação das "perenemente
satisfeitas" divindades do Olimpo,que os escultores gregos haviam representado
"libertados das peias de qualquer finalidade, dever ou preocupação". Na
descrição de Schiller, a Juno Ludovisi "repousa e habita em si mesma, uma
criação auto-suficiente, que não cede nem resiste, como se estivesse para além
do espaço. Não há força, aí, que lute contra forças, nem carência em que
pudesse irromper o tempo"8. Hegel atribui aos meninos pedintes esta
"ociosidade" da divindade que nem cede nem resiste. Mas também é a mesma
"ociosidade" que o personagem de Stendhal descobre: o estado no qual "nenhum
força luta contra forças", ao passo que toda sua carreira, toda a carreira do
plebeu que quer conquistar um espaço na sociedade, havia sido uma questão de
colocar força contra força.
Mas se aos jovens pedintes despreocupados e ao ambicioso plebeu pode-se
oferecer o mesmo benefício do "ócio" olímpico, é porque o ócio que Schiller e
Hegel atribuem aos deuses do Olimpo era ele mesmo uma invenção plebéia, uma
marca de uma forma plebéia de inversão estética. O estado no qual não há nem
concessão nem resistência, no qual nenhuma força luta contra forças, tem um
nome - em francês, se chama rêverie. No final de sua vida, o filho de um
artesão, um escritor que foi grande influência para Schiller e Kant e para
Stendhal também, chamado Jean-Jacques Rousseau, escreveu "Os devaneios do
caminhante solitário". Um desses devaneios é dedicado a descrever os dias
ociosos que ele passou numa pequena ilha na Suíça, depois de ter sido condenado
pelo parlamento francês e ameaçado por uma multidão na Suíça. Esta ilha, ele
diz, era como uma prisão na qual gostaria de ter passado o resto da sua vida.
Seu tempo lá era parcialmente dedicado a colher plantas, parcialmente dedicado
a fazer nada, passando horas deitado num pequeno barco deslizando pelas águas
do lago, apenas gozando do simples sentimento de existência, sem preocupação,
ou, em outras palavras, o farniente. O farnientedo devaneio não é preguiça.
Preguiça é o vício do mau trabalhador. O ócio é a virtude daqueles que não
precisam se preocupar com trabalhar. Vale lembrar da crítica de Borges ao
"cotidiano ocioso" que invade a literatura com Balzac, Flaubert ou Proust. Mas
este ócio não é a superficialidade que perniciosamente invadiu a literatura.
Foi a inversão da distribuição das temporalidades sociais que fez com que a
literatura se tornasse possível. Na velha distribuição do sensível, não havia o
"cotidiano ocioso" para o plebeu; o cotidiano significava trabalho ou preguiça.
Podemos colocar de outra forma: a distribuição tradicional do sensível opunha o
reino da ação aristocrática ao reino da fabricação plebéia. O "fazer nada" do
plebeu é a inversão da oposição entre agire fazer. Qualquer um pode gozar do
estado ocioso do devaneio. Esta nova qualidade delimita uma nova esfera de
experiência estética (apesar de Bourdieu, o "desinteresse" de Kant deve muito
mais ao devaneio plebeu do que ao distanciamento aristocrático. Ele também
delimita um novo regime de identificação da arte). Um dos principais aspectos
desse regime é a quebra das velhas estruturas de performancenarrativa. O assim
chamado "efeito de realidade", o foco no "inútil" e "ocioso" cotidiano,
primeiro significa essa quebra, esta separação no coração da
performancenarrativa. As palavras são excessivas por causa desse excesso, que é
constituído pela entrada dos filhos de artesãos e camponeses num novo mundo da
sensibilidade - o reino da paixão selvagem e do ócio também.
Esta quebra estética está no coração da literatura e da política da literatura.
Ela também separa democracia estética, e marcadamente democracia literária, da
democracia política. É disso que as estranhezas do romance de Stendhal dão
testemunho. Para o plebeu - e para o enredo que conta sua ascensão e queda - a
igualdade parece estar dividida desde o começo. De um lado, a igualdade é o
ajuste adequado da capacidade do plebeu a uma posição que lhe é recusada. É um
fim que ele quer obter opondo força contra força e usando um conjunto de meios
apropriados. De outro lado, a igualdade é uma nova modalidade da experiência
perceptiva que ele pode aproveitar imediatamente, sob uma condição: dizendo
adeus ao jogo das forças opostas, ou ao jogo do fim e dos meios. No fim, Julien
Sorel desiste de todos os esquemas que havia tramado para conquistar um lugar
na sociedade. Ele transforma sua prisão na ilha da prisão metafórica de
Rousseau, um lugar para desfrutar o puro sentimento de existência. A mulher que
ele tentou matar logo o visitará na prisão e eles se apaixonarão novamente; ele
reviverá com ela os únicos momentos felizes da sua vida pregressa:momentos
dedicados ao desfrute da existência como tal ou, em outros termos, ao
compartilhamento da igualdade sensorial.Mais uma vez, isso não é somente uma
questão de personagens ficcionais. É uma questão de estrutura ficcional. O
momento de perfeito júbilo do personagem é aquele em que a lógica do enredo,
identificando a concatenação causal das ações narrativas com o jogo das
intrigas sociais, colapsa. Como a estrutura ficcional de concatenação de fins e
meios ou causas e efeitos tende a identificar-se com a luta das forças sociais,
ela é mutilada por uma força de inércia. Em O vermelho e o negro, a força de
inércia é a força do devaneio plebeu contra as hierarquias sociais. Mas a
divisão da lógica da ação não é específica de um romance. (A mesma coisa
acontece em outro grande romance de Stendhal, A Cartuxa de Parma, no qual o
herói não mais é o filho de um artesão, mas um jovem aristocrata.) A divisão no
coração da ação diz respeito, geralmente, ao enredo estético, à construção de
enredos ficcionais dentro da lógica estética. Não é coincidência, creio, que o
primeiro autor a trazer ao palco o fracasso da estratégia tenha sido, também, o
pensador da condição estética, Schiller, ao mostrar, na trilogia de
Wallenstein, no caráter inaudito deste general, o arquétipo de um homem de ação
e decisão, que é incapaz de agir até que a ciência do astrólogo lhe dite a
ocasião adequada. No fim, ele é forçado a agir na pior situação. Depois dele, o
enredo do estrategista onipotente condenado à impotência assumiu uma
multiplicidade de figuras. Nos anos de 1830, Balzac imaginou uma associação de
treze conspiradores que sabiam todos os segredos e controlavam a máquina
social. Esses conspiradores acabaram fracassando em todas os seus intentos.
Balzac nos oferece uma estranha razão para os seus fracassos. Diz ele:"já que
podiam fazer qualquer coisa na sociedade, não se importavam em ser algo nela".
Trinta anos depois de Balzac, Tolstói apresentou, no palco maior da história,o
fracasso do modelo estratégico - ou napoleônico - de ação. Os generais crêem
estar alcançando seus grandes planos ao disporem de suas tropas no campo de
batalha de acordo com suas estratégias. Mas o sucesso ou o fracasso depende de
acasos aleatórios; depende de uma multiplicidade de pequenas causas
interconectadas que nenhum estrategista consegue dominar. É por isso que o
melhor general, Kutuzov, cochila enquanto os demais oficiais discutem as
estratégias. Dez anos depois, o ciclo de vinte livros de Émile Zola pretendeu
oferecer o relato científico da ascensão de uma família plebéia, identificada à
ascensão da sociedade democrática moderna e à neurose moderna. Mas, no último
livro do ciclo, todo edifício da ciência desaba: os registros dos cientistas
demonstrando como as leis da hereditariedade determinavam essa evolução são
queimados e substituídos, nas prateleiras, pelas roupas de um bebê, a
incestuosa criança do cientista, simbolizando o insistente triunfo da vida, que
aspira a nenhuma finalidade.
Assim, o excesso realista não tem nada a ver com a ostentação burguesa da
riqueza e da confiança no reino da Burguesia que alguns autores ali detectaram.
O que está no seu coração é muito mais a confusão introduzida quando o excesso
de paixão e o vazio do devaneio são apropriados pelas almas das classes baixas.
É por isso também que ele não tem muito a oferecer à interpretação contrária,
que lhe dá crédito por seu senso progressivo do movimento histórico. De acordo
com Auerbach, o romance realista faz com que destinos individuais coincidam com
a sabida representação das forças sociais e políticas modernas. Acredito que
seja bem o contrário: ele demonstra a impossibilidade da coincidência, a
disjunção entre saber e agir, fazer e ser. Os caminhos literários da igualdade
se divorciam dos caminhos políticos.
Mas, por outro lado, os enredos partidos da literatura nos indicam a disjunção
no coração dos esquemas gerais de evolução histórica e de política
revolucionária. Quando o jovem Marx opõe a "revolução humana" à revolução
"meramente política", ele está dando continuidade à descoberta de uma igualdade
"sensorial" que vai além da transformação das instituições governamentais. Mas
quando ele prega a ação revolucionária baseado na existência de uma classe de
homens inteiramente despossuídos de sua humanidade,ele se distancia das formas
de emancipação dos trabalhadores que afirmam sua capacidade de gozar aqui e
agora um mundo de igualdade perceptiva. A decisão política parecia ser corroída
pela igualdade estética, pela capacidade plebéia de "fazer nada". É por isso
que Marx se dedicou a aniquilar este "fazer nada" mediante a afirmação de uma
privação radical ou de uma nulidade radical, a nulidade da classe que não tem
nada a perder a não ser seus grilhões. E ele atribuiu à ciência o poder de sair
dessa nulidade. Mas a resposta da ciência da estrutura social às demandas da
ação revolucionária se provou tão problemática quanto a ciência do astrólogo de
Wallenstein. A revolução supostamente aconteceria como conseqüência da
contradição social baseada no conhecimento da concatenação de causas e efeitos
que estruturam a exploração e a dominação. Porém, o processo pelo qual o
conhecimento chega ao ponto no qual ele pode determinar a ação adia
indefinidamente este ponto. O momento em que o socialismo científico atou o
futuro comunista ao desenvolvimento intrínseco das forças produtivas é também o
momento em que ele se divorciou das teorias que designavam um objetivo para a
vida e davam às ciências a tarefa de conhecer este objetivo e determinar os
meios de alcançá-lo. "A vida não quer nada", este é o segredo niilista que
destrói desde dentro as narrativas científicas otimistas do século XIX. A
ciência marxista sabia, de fato, como lidar com esse segredo. Ela o traduziu
nos termos de uma estratégia de fins e meios e da expectativa do momento certo.
Ela explicou que a marcha para o socialismo não poderia antecipar o
desenvolvimento do processo, que ela não poderia impor seus desejos ao curso
das coisas. Mas, por debaixo da idéia de adaptação científica ao movimento da
vida, havia o sentimento mais profundo de que tal movimento levava a lugar
nenhum e que a vontade de mudar a vida não dependia de um processo objetivo. É
por isso que o rigor científico teve que inverter-se, afirmar-se como a mera
necessidade do rompimento violento que impõe uma direção ao infinito movimento
da vida produtiva. A revolução tinha que ser indefinidamente adiada ou ser
levada a cabo com uma prestidigitação, exatamente como o tiro de Julien Sorel.
A linha reta de ação pensada como conseqüência de uma vontade de conhecimento
estava quebrada.
Não quero me demorar nessa questão. Vou apenas aproveitar algumas conclusões
das minhas análises sobre a idéia de modernidade artística que sustentou a
elaboração do conceito de efeito de real. Essa elaboração impôs uma idéia de
modernidade artística como uma estratégia de subtração, rejeitando o excesso
realista das coisas junto com as limitações da semelhança. A pintura abstrata
tornou-se o emblema dessa idéia. Creio que essa análise erra o alvo. O centro
do problema do realismo não era o excesso de coisas, mas a quebra com a lógica
da ação, a autocontradição da lógica causal. Nem a resposta artística nem a
resposta política a essa autocontradição poderia ser encontrada em uma
estratégia de subtração. Ao contrário, o que ela requeria era uma estratégia de
adição, excedendo o excesso realista, o que significa dizer trazendo à
completude a auto-anulação da lógica causal. O que essa completude implicava
era uma forma de coexistência das experiências sensoriais que absorvesse tanto
o excesso da paixão plebéia como o excesso do devaneio plebeu, uma forma de
conexão universal das experiências libertadas de qualquer enredo de
causalidade. Isto pode ser ilustrado, creio, pela equivalência de todos os
movimentos em Homem com uma câmera, de Dziga Vertov. A linha de produção na
fábrica e os gestos de um engraxate na rua, o trabalho de um mineiro e o fazer
as unhas num salão de beleza são representados como manifestações equivalentes
de energia que o filme conecta uma à outra, assim como os empregados da empresa
telefônica continuam a conectar novos interlocutores quando constantemente
ligam e desligam os fios. Como se sabe, esse trabalho obedece a um lema
aparentemente simples: nenhum enredo, somente a realidade. Mas não devemos nos
enganar em relação a essa oposição. Ela não quer dizer que a arte deve
representar a realidade e somente a realidade. Ela significa: sem arte, não há
representação da realidade. O cinema não é uma arte que representa a realidade
ao público. É uma forma de ação que conecta todas as formas de ação:a ação de
lavar os cabelos, a ação de extrair carvão, a ação de filmar, colar e copiar, a
ação de ver etc. Esta conexão universal dos movimentos cria uma nova percepção
na qual a distinção entre realidade e representação desaparece junto com a
distinção entre arte e vida.Tudo é ação:não há "fazer nada";ainda assim, ao
mesmo tempo, a ação é libertada da sua dependência dos fins, das vontades e
estratégias. Homem com uma câmeraé uma sinfonia de movimentos, todos iguais,
não importando o fim que eles persigam: produção, consumo, jogo ou simulacro. A
conexão dos movimentos os liberta não só das suas solidões, mas também das suas
dependências de vontades específicas. As máquinas da indústria socialista e os
truques dos mágicos expressam o mesmo ritmo compassado da vida. O cinema cria,
portanto, uma forma de comunismo que escapa aos dilemas das estratégias
comunistas por inverter o segredo niilista da falta de objetivo da vida. Ele
oferece a utopia de um mundo espontaneamente comunista por construir uma
percepção comum na qual o movimento orientado da construção socialista está em
sintonia com o emprego de todos aqueles movimentos nos quais a vida expressa
nada além da sua intensidade igualmente distribuída.
É possível dizer que esse é o privilégio da arte em movimento. Mas o cinema
realiza um sonho que ele não inventou:está em acordo com a tentativa
whitmaniana de escrever um livro que não é um livro, mas a voz que absorve uma
inumerável multiplicidade de vozes e formas de experiência, em acordo com a
tentativa cubista, futurista e "cubo-futurista" de estilhaçar a superfície da
tela em numerosas facetas capazes de expressar todas as intensidades da vida
moderna, seja das máquinas seja da dança popular. Isto é, acredito, o que o
modernismo historicamente significou a construção de uma sensibilidade de
igualdade radical, fazendo da arte e da vida a mesma coisa, uma vez que ele
tornou todas as experiências equivalentes e conectou qualquer uma delas a todas
elas. Sabemos o que aconteceu com este sonho histórico: ele foi descartado duas
vezes. Primeiro, foi reprimido pela exigência do "realismo socialista", que não
significava apenas a exigência de que a arte servisse à causa do poder
soviético, mas que o realismo esquecesse a sua própria contradição, o que é
muito mais problemático. O sonho foi descartado uma segunda vez quando os
marxistas ocidentais decidiram escrever o balanço do primeiro descarte e
escolheram o modo mais fácil de fazê-lo,que era esquecer o que o modernismo
havia significado e reinventar a modernidade com a conquista da autonomia
artística. O estruturalismo e a elaboração do conceito de "efeito de real" são
os resultados desta reinvenção. Penso que pode ser proveitoso, hoje,
reconsiderar essa história.
[*] Palestra apresentada no Instituto de Investigação Cultural de Berlim (ICI
Berlin) em setembro de 2009.
[1] Em inglês, "The reality effect". A tradução do título aqui aludida está em
Roland Barthes, O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
[2] Barthes, O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 181.
[3] Ibidem, p. 188.
[4] Dostoiévski, Crime e castigo, apud Breton, Manifestos do Surrealismo. Trad.
Pedro Tamen. Lisboa: Salamandra, 1993, p. 19. No segundo, Barthes, op.cit.,
apud Breton, ibidem.
[5] Barthes, op. cit., apud Breton, ibidem.
[6] Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Editora 34, 2001, p. 24.
[7] Stendhal, O vermelho e o negro.Trad. Raquel Prado. São Paulo: CosacNaify,
2003.
[8] Friedrich Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade. Trad.
Roberto Schwarz. São Paulo: EPU, 1991, p. 93.