Retratos em diálogo: notas sobre o documentário brasileiro recente
INTRODUÇÃO
É consenso nas interpretações sobre o cinema documental brasileiro recente a
presença expressiva de discursos particularizantes1. Contrariamente ao que era
tendência no documentário moderno (sobretudo aquele dos anos de 1960 e 1970),
hoje se nota evidente suspeita em relação a procedimentos totalizantes e
interpre tativos, às possíveis sinédoques (os personagens tomados como tipos
representativos, em relação a um contexto ou situação englobantes), ou ao
posicionamento dos sujeitos filmados como informantes (sobre uma temática). Em
resumo, evita-se remeter o dado pessoal a um quadro geral; declinam valores
tais como representatividade, generalidade, tipificação, diagnóstico crítico, e
outros valores assomam.
Um deles é justamente a redução do enfoque, a abordagem da experiência e visão
de mundo de um único ou de poucos indivíduos. Por vezes, valoriza-se uma
perspectiva pessoal e assumidamente parcial pela enunciação,e uma atitude
relacional e dialógica (o filme como relação, diálogo e negociação entre quem
filma e quem é filmado). Mais, ainda: como parte de um movimento abrangente que
parece caracterizar o atual regime de visibilidade (incluídos aqui shows de
realidade na TV, blogse sitesde relacionamento na internet), o documentário
torna-se ocasião para atuação e auto-exposição de sujeitos, o que amortece a
dimensão representacional em privilégio da "performativa"2 - o filme como ato,
acontecimento, performancecontingentes, não como lugar de uma representação
(crítica ou não) de experiências prévias3.
O interesse desse movimento de particularização (e de intensificação do
"performativo") não impede que o vejamos como sintoma da dificuldade de se
representar a experiência social hoje - especialmente se pensada coletivamente.
Problema análogo, provavelmente, àquele que James Clifford4 notava na
etnografia dos anos de 1970 e 1980, ou que se observou no campo da história,
com a crise da "história-síntese", relacionada com as "dúvidas crescentes sobre
determinados processos macro-históricos", aumentando o "número de investigações
históricas caracterizadas pela análise extremamente próxima de fenômenos
circunscritos", como apontou Carlo Ginzburg5. Clifford referia-se à emergência
de novos paradigmas discursivos e narrativos na antropologia - textos que
lançavam mão, por exemplo, da compilação de declarações de nativos, almejando
uma espécie de autoria plural; ou que se baseavam em séries de entrevistas,
expondo a etnografia como "processo de diálogo em que os interlocutores
negociam ativamente umavisãodarealidade"6. Essas formas "dialógicas"
e"polifônicas"7 são analisadas pelo autor sob o prisma da
"dispersão","estranhamento" ou deslocamento da "autoridade etnográfica"8, de
modo que a relevância e a legitimidade das práticas de "representação
intercultural" estariam postas em xeque pelos próprios textos etnográficos9.
Se não deve ser ingenuamente tomada como valor absoluto, a particularização
tampouco é um problema em si mesma. "O macro pode estar contido no micro", e
por intermédio dele "ser atingido", como quis Eduardo Coutinho - e como, aliás,
pretenderam os clássicos da micro-história (penso em O queijo e os vermes, de
Carlo Ginzburg, por exemplo). Sendo assim, talvez seja mais preciso dizer que
muitos filmes documentais recentes abandonam as pretensões cientificistas
("sociológicas", no dizer de Jean-Claude Bernardet), e mesmo informativas.
Neste movimento, alguns deles se aproximam de construções antes mais próprias à
ficção;outros assumem, sintomaticamente, o lugar de palco para a exposição da
vida ordinária e da intimidade - fazendo do cinema mais um dispositivo produtor
de espetáculos de realidade nos quais, como escreveu André Brasil, "se
performam for-mas de vida"10. Cabe-nos examinar, em suma, o que a
particularização engendra caso a caso, neste contexto particular.
Busco,neste artigo,contribuir para esta reflexão, abordando filmes documentais
recentes nos quais a redução do enfoque é extrema: seu objeto (assunto,
indagação, núcleo irradiador) corresponde à existência de um único indivíduo. É
expressivo o número de biografias fílmicas lançadas no Brasil nos últimos cinco
anos. Não que o gesto biográfico seja novo no cinema documental; ao contrário,
sabemos que ele é justamente um dos mais recorrentes e mesmo tradicionais11.
Até por isso, interessa pensar: o que mais esses ensaios biográficos recentes
compartilham com o espectador,para além de uma "ciência impossível de um ser
único", como escreveu Roland Barthes12? Penso sobretudo na partilha de uma
reflexão, mesmo que indireta, sobre a maneira de abordar contextos e
acontecimentos passados, os modos como se relacionam memória individual e
história pública, a "vida privada e sua historicidade"13 - como, por fim, do
presente, os filmes se põem a contar a história? Mas penso também numa reflexão
manifesta sobre o "retratar", já que nesses filmes, não deixa de haver um senso
de historicidade "marcado pela intervenção ativa do processo de produção do
filme no seu objeto", como escreveu Fredric Jameson a respeito de Cabra marcado
para morrer14.
Trabalharei com uma pequena série de filmes recentes (desde 2007), buscando
destacar neles alguns traços que conferem ao conjunto uma certa identidade, a
par das diferenças. Esses traços sinalizam o quanto, partindo do gesto
biográfico (por si só tradicional), estes filmes portam movimentos muito
contemporâneos. Vou tratar sobretudo de Santiago(2007), de João Salles; Acácio
(2008), de Marília Rocha;Pan-cinema permanente(2008), de Carlos Nader (sobre
Waly Salomão), e Vida(2008), de Paula Gaitán (sobre Maria Gladys).
O RETRATO COMO DIÁLOGO
Creio que um movimento comum, marcado em primeiro lugar pelo abandono das
pretensões biográficas convencionais, relaciona esses retratos contemporâneos.
Por tais pretensões, entendo: cronologia ordenada da vida; privilégio à atuação
pública do retratado; sugestão de personalidade coerente e estável (espécie de
"identidade-mesmidade", em que o passado prenuncia o futuro, por exemplo); mas
sobretudo a separação entre retratista e personagem, ou, melhor dizendo, o
apagamento do primeiro, que não chega a se constituir como sujeito que enuncia,
optando o filme por um discurso neutro, que elide o sujeito, espécie de
discurso da verdade sobre o personagem e sua história. Em oposição a isso, e em
seu lugar, os filmes privilegiam a proposição do diálogo como estratégia
central e forma de enunciar a narrativa biográfica "possível", assumida como
processo de comunicação, criação e troca entre duas instâncias15.
De saída, cabe sinalizar, para contraste, que a dinâmica desses diálogos -
"composição em que vozes ou instrumentos se alternam e se respondem" - é bem
diversa daquela presente em biografias que se valeram da atuação pública de
figuras ilustres para traçar, pela trajetória do indivíduo, um painel de todo
um período da história e da vida política brasileiras. É o caso de Os anos JKe
Jango,de Silvio Tendler, lançados na primeira metade dos anos de 1980. Mesmo
considerando a sua relevância (e, na época do lançamento, a sua urgência),
Jango(1984), que parte de um gesto de crítica ao seu presente e de esperança no
futuro (atendendo, de certo modo, a um "apelo" do passado no presente, como
queria Walter Benjamin), não consegue escapar das armadilhas do
"historicismo"16. O caráter apologético de sua enunciação o aproxima
paradoxalmente da maneira como se contava a história oficial, a "história dos
vencedores". Isso se deve, talvez, ao fato de que seu gesto de resgate da
história derrotada pelo golpe e pela ditadura militar, em pleno momento de
abertura política, se dá a partir de um material de base (arquivos provenientes
de agências de notícias e de cinejornais, sobretudo) que foi tomado segundo "a
ótica do poder", como nota tão bem Jean-Claude Bernardet, a respeito de Os anos
JK17; mas sobretudo por causa da maneira como esses arquivos estão montados e
comentados - a presença de uma voz offsegura e constante "determina
significações e exerce poder sobre o espectador"18, engendrando uma espécie de
fluxo que atende, grosso modo, a uma ordenação cronológica, que acaba por se
confundir com um pretenso fluxo da história - o que impede que se veja a
escritura da história como resultado de decisões singulares e situadas, e não
como um processo contínuo e orgânico em que os fatos se articulam numa cadeia
de causalidade que o próprio filme internalizaria19.
Se uma biografia mais tradicional - como Jango- enumera feitos, amarra fatos
numa cadeia causal, enaltece, encerra significações, os filmes aqui analisados
ficam mais bem definidos como "retratos": em primeiro lugar,porque abordam os
sujeitos vivos (na filmagem,ao menos), valorizando o encontro contingente, o
"instante minúsculo" e o que dele resulta - mesmo que haja neles, também, uma
medida biográfica, já que a dimensão contingente do retrato se articula, de
diferentes maneiras,com a construção de uma trajetória no tempo para o
retratado.São "retratos",ainda,porque neles o retratista se implica;tematizando
o processo de "retratar",os filmes não se apresentam como cópias, mas como
composição dos personagens segundo a perspectiva daquele que retrata e segundo
a relação em que ambos (cineasta, personagem) se engajam.Há muito do gesto do
retratista no retrato de seu personagem, como vemos de modo manifesto nas
reflexões propostas por Santiago, de João Salles, e de maneira tácita e intensa
nos procedimentos de Vida, retrato de Maria Gladys por sua amiga Paula Gaitán.
Produz-se, em suma, "na relação entre o artista e seu modelo", "uma espécie de
fusão que produz um retrato da pintura: o retrato do modelo tem algo de auto-
retrato do artista", como escreve José Carlos Avellar em comentário a Retrato
de Gertrude Stein, de Picasso20.
Fazendo uma aproximação ao campo da história, podemos falar em "biografias
hermenêuticas", como as definiu o historiador italiano Giovanni Levi21: retrato
ou biografia na forma de diálogo entre sujeitos, não como narrativa coesa
proveniente de um centro fixo, neutro, ordenador, portador das melhores
técnicas para retratar. Sendo assim, os retratos dialógicos são em boa medida
auto-retratos, documentários participativos em que o personagem também se pinta
ativamente (ou, em alguns casos, resiste como pode ao retrato, à captura de uma
imagem à sua revelia, como vemos tão bem com Waly Salomão em Pan-cinema
permanente). No limite, um retrato dessa natureza redunda na impossibilidade de
se pensar a imagem apartada de seu processo de feitura. Ele aponta para uma
zona de indeterminação entre linguagem e experiência, entre o "quê" e o "como"
do retrato, que se autodeterminam.
O movimento reflexivo de Santiago, que retoma o material de um filme não
terminado (um projeto que fora abandonado treze anos antes), indagando suas
escolhas e possibilidades, parece tocar esse ponto de modo manifesto. João
Salles apresenta uma dinâmica de trânsito entre quem "pinta" e quem é
"pintado", de reciprocidade e intercâmbio dos lugares tradicionais (de sujeito
e objeto), não só expondo e problematizando a maneira como dirigira o retrato
de Santiago segundo suas escolhas, anos antes, mas também falando de si, de sua
infância, da velha casa e da sua família atravésde Santiago, do personagem,
numa espécie de "alter-biografia", na boa formulação de Ilana Feldman22.
Os termos e a medida desses diálogos variam de filme para filme. Há diálogos
stricto sensu: conversação aberta e assumida (na filmagem e mantida na
montagem) entre cineasta e personagem, a conversalevada como tática central de
abordagem das vivências e da visão de mundo do sujeito retratado (como se vê em
Acácio,por exemplo). Há diálogo em sentido figurado, como parceria criativa,
proposição de criações conjuntas, cenas, performances, intervenções, que se
tornam a matéria mesma do retratar (em Vidae Pan-cinema). De novo em sentido
figurado, há diálogo como relação, na montagem, entre materiais, numa
alternância entre os arquivos (as imagens produzidas pelo personagem no
passado, por exemplo), e aquelas produzidas pela equipe no presente (em
Acácio). Há, por fim, diálogo como tentativa, na composição, de promover a
alternância e a reciprocidade de lugares, através de operações
cinematográficas, por assim dizer, póstumas (em Santiago).
Alguns desses retratos investem especialmente na contingência, no que se pode
produzir a partir do encontro presente, de modo a restituir à imagem do sujeito
uma individualidade complexa, inacabada e em processo, que não se aparta da
interlocução e das situações específicas registradas. Na maioria desses
retratos, esse movimento se faz reflexivo: o próprio gesto de retratar é
colocado, no movimento mesmo de fazê-lo, em dúvida, em crise, em questão.
O SUJEITO ATRAVÉS
Santiagopõe em crise a separação tradicional sujeito-objeto, ou cineasta-
personagem. Não apenas porque evidencia e critica os limites da relação
anteriormente travada (em 1992, quando João Salles tentou realizar um filme
sobre o ex-mordomo de sua casa de infância e juventude), como também porque
produz, no movimento do filme finalmente finalizado e lançado (em 2007), uma
imbricação, um enlace. Faz lembrar, guardadas as diferenças, Cabra marcado para
morrer(Eduardo Coutinho, 1984): ao falar sobre Santiago por meio da reflexão
sobre o filme inconcluso (e não diretamente,como se pretendia inicialmente),
João Salles se implica nesta construção em abismo, tornando-se necessariamente
personagem. Juntos no processo do filme inacabado, juntos na perda (dos tempos
áureos da Casa da Gávea, dos entes queridos que a habitavam, do passado que não
retorna), sujeito e objeto formam como que uma pequena "comunidade de
destino"23 - sofrem, irreversivelmente, de uma perda que os enlaça,"oculta
partida sem retorno"24, o que parece provocar de modo decisivo o deslocamento
do relato da terceira pessoa para a primeira pessoa do singular25.
Em sua construção, o filme produz uma manifesta "dança a dois" (discursiva e
póstuma, já que Santiago está morto no momento da montagem).Produz um trânsito,
um construir através, em perspectiva, como Ilana Feldman analisou tão bem26:
o sujeito (Salles) como objeto de seu objeto (Santiago), personagem de seu
personagem. Através de Santiago, ele tematiza e critica suas escolhas estéticas
(em 1992); fala da infância, casa e família; produz uma construção sobre um
"eu", sujeito-narrador (construção no tempo, inclusive, em que este "eu" se
transforma, amadurece, segundo o filme sugere);construção que multiplica
mediações e camadas, como vemos bem naquele fragmento em que, mediante a
inserção na montagem de um trecho do filme favorito de Santiago (The band
wagon, 1953, de Vincent Minnelli), o narrador encontra a ocasião, ao analisar
uma de suas seqüências, para abordar as mudanças sutis vivenciadas por ele
mesmo na passagem da adolescência para a vida adulta.
É claro que o tempo não apenas assume o lugar de tema central, mas é condição e
limite desta forma, deste colocar e colocar-se em perspectiva: o tempo torna "o
que foi" mais distante e mais mediado, estimulando a reflexão crítica sobre o
material filmado treze anos antes e a imbricação do sujeito no discurso atual.
Por outro lado, impede qualquer "diálogo" novo, qualquer movimento que não seja
reflexivo. Nesse sentido, o tempo aproxima documentarista e personagem. Se na
filmagem a relação hierárquica prévia (patrão-empregado) parece ter dificultado
o estabelecimento de outra sorte de aproximação, na montagem João Salles deixa
justamente ver, pela revelação dos bastidores, pelos comentários em offe pela
repetições de takes, o quanto estava "fora-de-campo-mas-não-fora-de-cena"27 -
ou seja,o quanto ele e a relação de classe que o ligava a Santiago estavam
implicados na cena que pretendia ingenuamente tornar objetiva.
A reflexão crítica sobre o material filmado traz o cineasta de volta à cena, e
as flexões do discurso o aproximam do personagem. Esta aproximação, portanto,
não é vivida e registrada, mas indireta, reflexiva, erigida por analogia.
Fazendo-se "copista" de Santiago, João Salles sugere que produziu um gesto de
empatia com seu personagem, ou seja, fez por Santiago o que ele próprio fizera
por seus nobres "insepultos", os personagens da nobreza mundial colecionados
pelo ex-mordomo em pequenas biografias datilografadas em 30 mil páginas:
preservá-lo do apagamento inevitável. É bem verdade que a alternância de vozes
e de posições (sujeito, objeto), limitada pelo tempo e pela morte, retorna ao
sujeito-narrador de maneira evidente: Santiago não pode mais pronunciar nada; é
João Salles quem arremata o diálogo, enunciando, do presente, através de
Santiago, um "sentimento de mundo"28. Nele, destacam-se certezas atuais sobre a
realização de documentários, no confronto com a experiência anterior, duramente
exposta e criticada. A sofisticação e o bom acabamento competem para a
impressão de fechamento e auto-importância deste alter-retrato29.
O questionamento que põe em crise a objetividade do retrato também aparece em
Pan-cinema permanente, mas de outra forma, mais afirmativa do que reflexiva,
por assim dizer. O filme de Carlos Nader assume de saída aquilo que o primeiro
Santiago(o filme inacabado) recalcava: que há uma relação anterior entre
cineasta e personagem - neste caso, de amizade -, um não-distanciamento, uma
relação que permite "coalhar" o retrato neutro, enlaçando-os de saída (Carlos
Nader,Waly Salomão) na produção de conhecimento e expressão diversos, que advêm
dessa proximidade. Um primeiro contato já flagra as diferenças de superfície,
visíveis na imagem:o que há de constância, zelo estético, rigidez e busca de
equilíbrio na composição visual de Santiago(tributada por João Salles à
influência de Ozu), há de improviso, leveza, inconstância e privilégio ao
corpo-a-corpo com situações que não se sabe bem onde vão terminar, engendradas
e gravadas pelos dois amigos, em Pan-cinema. Se no primeiro caso (Santiago) a
concepção da "moldura" antecede o retrato, no segundo temos uma zona de
indeterminação entre linguagem e experiência, que se influenciam mutuamente.
A amizade (território de onde "nasce" Pan-cinema) permite, assim, a construção
de um retrato a partir de muitos fragmentos descontínuos, em muitos lugares e
momentos diferentes, a maioria deles capturada na intimidade da relação entre
cineasta e personagem. Registros "menores", destituídos de qualquer
oficialidade (ainda que Waly os invista do maior interesse) - não são momentos
decisivos da vida a que o cinema oferece seu testemunho. São, quase sempre,
registros de viagem, cujos motivos desconhecemos, pois não é a viagem em sua
"razão pública" o que importa, mas o que os amigos produzem juntos: momentos de
troca, invenção e deslocamento do cotidiano. Permite mais, conseqüentemente:
uma biografia, ou retrato, da qual o personagem participa ativamente. Longe de
separadas ou dicotomizadas, "cena" e "vida", vivido e filmado, convergem. Ao
mesmo tempo, a experiência já nasce "para ser filmada" ou "filmável" (já que é
ativada pela presença da câmera), e o filme é totalmente habitado por essa
experiência incerta.
Isso nos momentos de filmagem. Na montagem, o cineasta retoma melancolicamente
o controle. Entre elas, a morte de Waly - com ela, a montagem torna-se a
ocasião de fixar sentidos, de tecer o movimento propriamente biográfico, que
sintetiza uma existência. Tempo de retomar o material, estabelecer laços e
conexões, com arquivos mas também com vozes comentadoras (Antonio Cicero,
Caetano Veloso, Suzana Moraes, o próprio Carlos Nader); de trabalhar a
plasticidade da imagem (texturas, cores), também potencialmente significativa.
Permeando a costura dos registros descontínuos vivazes e contingentes, o filme
trabalha um horizonte de construção biográfica que é, também, cronológica.
Parece ter igualmente, pela relação que estabelece entre as situações com Waly
e as vozes comentadoras, o propósito de encerrar significações (uma,
especialmente) para o personagem,que já não pode mais se auto-atribuir
coerência (ou incoerência). A característica essencial de Waly, sinaliza Pan-
cinema, era sua "espontaneidade construída" (como enuncia a voz de Nader), a
permanente invenção de si e atuação consciente para a câmera e na vida.
RETRATOS REFLEXIVOS
Pan-cinematraz à tona outro traço importante que esses filmes parecem
compartilhar: esses retratos de indivíduos partilham com o espectador,de modo
auto-reflexivo, pensamentos e reflexões suplementares dirigidos ao cinema e a
suas construções. "Retratar no modelo a pintura", o processo de criação,
produzir uma "imagem-reflexão", não uma "imagem-reflexo", como escreveu
Avellar30. Esse gesto é manifesto na auto-reflexividade de Santiago, tematizado
desde o subtítulo (Uma reflexão sobre o material bruto). Aliás, ao mostrar como
um mesmo material bruto pode gerar dois enunciados tão distintos (aquele de
1992, um retrato tradicional, que - pelo que vemos no fragmento que o prólogo
contém - objetivava a cena e recalcava a relação hierárquica anterior entre
retratista e personagem; e aquele de 2007, um retrato reflexivo, em que o
cineasta assume sua perspectiva), Santiagoparece discutir prioritariamente o
filme como construto.
Pan-cinematambém privilegia, ainda que tacitamente, uma reflexão sobre o cinema
documentário e a natureza de seus efeitos de realidade. Como vimos, o filme é
composto sobretudo de fragmentos, de registros que não pretendem contar "a
história" de Waly Salomão de maneira ordenada e auto-importante, mas orbitar em
torno da exuberância e da capacidade desconcertante de performance, improviso,
graça, intervenção e expressão do personagem. Cada trecho guarda a força de um
fragmento poético, de um gesto "alterante" e performático. É notável que,
apesar da intimidade, e quase contrariando, à primeira vista, a idéia
compartilhada de um pan-cinema(fazer corresponder "vídeo e vida", imprimir na
tela "as pegadas, os rastros das experiências que se tem na vida cotidiana",
como diz Carlos Nader), Waly não se deixa filmar desprevenido. Ele resiste
bravamente a ser capturado passivamente e transformado em imagem à sua revelia.
A recusa a ser filmado dormindo é exemplar. Waly quer compor sua imagem
conforme a sua própria medida, aproveitar as ocasiões para fazer "cena",
produzir-se como imagem segundo sua marcante auto-mise-en-scène- evitando
endossar qualquer sorte de registro naturalista de si ou de seu cotidiano.
Assim, Pan-cinemaassume uma postura reflexiva atravésde Waly, tornando-se
também um ensaio sobre o cinema,permitindo um pensamento sobre as "verdades" do
documentário. A todo tempo, tematiza-se a opacidade e, no limite, a remoção de
uma realidade última, de um fundo, de um "Waly essencial" a ser finalmente
revelado; as oposições máscara versusverdade, invenção
versusrealidade,documentário versusficção são colocadas em questão. O próprio
personagem, assim como boa parte dos comentários e das construções em torno
dele, questionam a espontaneidade das situações vividas, clamando pela
indistinção entre regimes:"mascarado eu avanço,eu avanço mascarado", proclama
Waly, que discursa contra a transparência e, no dizer de Antonio Cícero,
encarava a vida como "um grande teatro".
Essa discussão não se limita ao cinema, à impossibilidade de registrar (através
de um filme) a vida tal qual. Ela retorna sobre a vida, impedindo que Pan-
cinemaincorra numa reflexividade vazia, maneirista, apta a produzir "novas
transparências"31. Nos registros de Nader, Waly aproveita-se das oportunidades
para produzir situações intensas, irreverentes, interessantes, "melhores do que
a vida" - proclamando, por assim dizer, a possibilidade de intensificação da
vida através da intervenção do filme. Talvez seja esta, ao fim do percurso, a
proposta de um pan-cinema: não a proposta de filmar obsessivamente a pretensa
naturalidade da vida cotidiana de alguém (como nos reality shows) - ao
contrário, "cinematizar" a vida no sentido de Waly, fazer da vida uma "criação
artística", como escreveu Daniel Caetano32, estetizá-la, proclamando a
possibilidade de alteração ("eu gosto muito deste verbo:alterar", diz Waly, a
certa altura). Duplo movimento, em suma, com Waly Salomão: pensar o cinema,
desnaturalizando a vida.
A URDIDURA DA HISTÓRIA
Se o retrato privilegia um diálogo no presente, de que modo se dá a construção
do tempo, a produção de um trajeto de vida para o retratado, já que se abandona
a cronologia ordenada e ordenadora? Caberia mesmo perguntar: de que modos os
retratos fílmicos desses indivíduos "testemunham pelo seu tempo"?33 Como se
produz a urdidura de um movimento entre memória individual e história pública,
entre pessoal e comum, íntimo e coletivo?
A história de vida do português Acácio, no filme homônimo de Marília Rocha,
interessa, em parte, porque foi chacoalhada pela história coletiva, uma
trajetória individual fortemente mexida e desenraizada pelos ventos de seu
tempo, de seu contexto. Tanto que Acácio divide sua vida em três partes: quase
trinta anos de Portugal, quase trinta anos de Angola Colonial (onde trabalhou
para o museu de uma mineradora portuguesa), quase trinta anos de Brasil (para
onde veio tangido pelo processo revolucionário que resultou na independência de
Angola). Escolhendo o personagem como eixo para o estabelecimento de um feixe
de relações (entre tempos e espaços, sobretudo), o filme não analisa a
experiência colonial e a descolonização africana segundo uma ótica macro-
histórica, mas refratada pelo prisma da peculiar vivência individual - que é
parte do movimento maior, mas, ainda assim, irredutível a ele; a experiência
individual guarda uma complexidade concreta que não pode ser reduzida a seu
"papel histórico" mais óbvio: imigrante português a serviço da empresa
colonial. Da maneira como pinta o retrato, Acáciofaz a colonização recuar a
segundo plano, destacando o perfil do personagem de seu lugar histórico (sem
apagá-lo), e permitindo-se sugerir que a motivação da empresa colonial e aquela
de um indivíduo (que para ela trabalha) podem não coincidir inteiramente.
Isso se dá, em primeiro lugar, pela focalização privilegiada da perspectiva de
Acácio (e de sua mulher, Conceição), ou seja, por uma questão evidente de foco
narrativo. Mas a evidência da opção pelo retrato (desde o título) não nos
impede de perceber que Acácioé um filme de muitas camadas. De saída, porque
trabalha um registro não exclusivamente sincrônico, mas que aborda a
experiência do personagem em épocas variadas. E, o que é mais importante,
movimenta-se entretempos diferentes, mobilizando um amplo acervo de imagens,
produzidas por seu Acácio, fotógrafo e cinegrafista, no passado, mas também
pela equipe, no presente. E é um arquivo peculiar, o de Acácio:se está
investido, de um lado, de certa "ótica do poder" (ele produzia registros de
povos tribais angolanos para o acervo do museu colonial onde trabalhava), o
material traduz, de outro, um olhar bastante pessoal e situado (há no filme,
por exemplo, uma série de imagens domésticas, na casa de família em Angola). As
passagens entre os dois regimes (o público e o privado, o trabalho e o gesto
pessoal, o olhar do técnico a serviço do imperialismo e aquele do amador que
traz o cinema e a fotografia para o dia-a-dia) não são rígidas nem nítidas34.
No trabalho de atualização do passado por meio dessas imagens, a enunciação em
Acáciolança mão de dois movimentos singulares, estratégias que reforçam um
gesto anti-historicista, e que nos permitem pensar sobre a maneira como a
história é contada. Em primeiro lugar, o filme produz uma permanente defasagem
entre as imagens do passado e seu comentário pelo casal de personagens. Mais de
uma vez, a situação na qual comentam os arquivos está separada das imagens em
si, mostradas depois, ou antes, na montagem, geralmente em silêncio. Isso
sinaliza que se trata de rememorar, não de repor o passado em uma suposta
integridade de "fato"; rememorar para "reencontrar os afetos", mas também para
"reinventá-los e fazê-los diferir"35; rememorar a partir dos estímulos da
situação presente (de suas circunstâncias e valores), não apenas para produzir
um discurso sobre o passado, portanto, mas para "possibilitar novamente uma
experiência"36. "É do presente", lembra Bergson, "que parte o chamado ao qual a
lembrança responde"37.
Esse efeito é notável nas seqüência acima descritas. Confrontados,
primeiramente, apenas com o plano seqüência que mostra os dois protagonistas
comentando os arquivos (nosso acesso às imagens que eles comentam é adiado pela
montagem), atentamos para a cena em sua duração: vemos nos rostos e gestos o
prazer de lembrar e contar, mas também a angústia breve produzida pelas
lacunas, pelos vazios, quando a memória silencia ou falha; e sobretudo o
permanente movimento de estabelecer conexões com o presente, ou seja, rememorar
como ocasião para se ver e se pensar hoje:"ainda não estava tão careca", diz
seu Acácio, reagindo a uma imagem que lhe é mostrada na TV (e que só veremos
mais tarde). Por outro lado, ao dissociar arquivos e comentários, o filme evita
que coincidam totalmente as imagens do passado e a memória do protagonista,
mantendo certa opacidade, existência autônoma e abertura (de modo que o
espectador também possa projetar, nas imagens, sentidos, desejos, valores
etc.). Posteriormente, quando vemos os arquivos, em silêncio, recuperamos na
memória,de modo fragmentário e lacunar, algo do que os personagens
disseram;adivinhamos aqui e ali uma conexão, tardiamente, em pedaços.
Experimentamos, nós mesmos, em escala menor, a lembrança e o esquecimento. Essa
lacuna deliberada permite que as significações flutuem, sem se fixar.
A segunda estratégia consiste em lançar na montagem imagens presentes de
Portugal e da África, realizadas pela equipe, multiplicando, a partir da
relação com as imagens de arquivo, vaivens entre tempos e espaços - a instância
enunciadora endossando na montagem um movimento análogo àquele em que se tecem
os liames da memória, por meio de "associações de similaridade ou de
contigüidade", como lembra Ecléa Bosi, em comentário a Bergson38. Refiro-me a
planos ou seqüência de imagens justapostos que relacionam diferentes tempos,
espaços e temáticas, de maneira que o filme está sempre a multiplicar e
sobrepor camadas.
Um trecho é emblemático desse movimento. Uma imagem produzida pela equipe no
presente (o pôr do sol no mar, numa praia da África) traduz liricamente o
apagamento. Em diálogo com este plano, a voz de Acácio (sobreposta) reporta, de
sua perspectiva e segundo sua lembrança, a concepção dos Kiôko (povo tribal
angolano que ele conheceu e registrou no passado) sobre a velhice e a morte -
temáticas para o personagem, no presente da filmagem, tão agudas. Passado,
presente, Acácio, a equipe, os Kiôko - relacionados numa curta seqüência, essas
perspectivas todas se enredam, adiando relações diretas (entre as imagens e
seus referentes, por exemplo, já que estão mediadas pela voz que reporta outra
perspectiva e introduz uma espécie de "filtro"), e sugerindo sentidos através,
entrevistos na relação entre partes (imagens, vozes). Em Acácio, como se vê, há
uma recusa do dado imediato, e uma multiplicação de mediações, afastando a
possibilidade de afirmações diretas e conclusivas39.
Nesse sentido, as imagens da visita da equipe do filme a África e a Portugal
não têm tanto o valor de testemunho ou registro específico; poderiam até ser
outras, já que não valem pelo que referem, mas têm o papel de multiplicar
possibilidades de relação na montagem. A tônica do filme é o constante
movimento, não apenas entre passado e presente, mas sinalizando as posições
relativas que um assume em relação ao(s) outro(s), e o quanto a subjetividade
se constitui permanentemente, pela incorporação de fragmentos do(s) outro(s). O
filme não apenas mostra os Kiôko sempre através(das imagens de arquivo e de
algo da memória de seu Acácio), mas a narradora-diretora também revela seu
olhar manifestamente atravésda escolha pessoal dessas imagens e da maneira de
montá-las, permitindo-se montar suas imagens de arquivo "favoritas", como ela
mesma enuncia, e não encadeá-las pretendendo reproduzir rigorosamente o
conhecimento etnográfico que seu Acácio acumulou sobre aquele povo; e Acácio
também fala de si, de temáticas que hoje são decisivas para ele (a experiência
da velhice e a iminência da morte) atravésdos Kiôko, da partilha de seu
conhecimento e memória sobre aquele povo.
Neste falar de si através do outro, o filme sugere a produção de sentidos como
relação, sempre provisória;opera por deslocamentos e movimentos, impedindo
qualquer sorte de essencialização (de Acácio, do passado ou dos Kiôko), e
impedindo também que um papel histórico para o personagem se fixe no óbvio.
Vida, sobre/com a atriz Maria Gladys, também nos permite desdobrar esse
questionamento sobre a maneira como se tecem, nos filmes biográficos aqui
analisados, os liames entre memória e história. Em primeiro lugar, que memória?
O filme trabalha um permanente movimento entre uma espécie de memória-ação, que
se inscreve no corpo da personagem, através de performancesno presente (leitura
de poemas, intervenções, mas em especial a bela cena em que Gladys e Maria
Thereza Maron dançam para a câmera de Paula Gaitán, estabelecendo um jogo de
aproximação e fuga); e memória-evocação, presente no gesto mais tradicional de
rememorar o passado, que aparece na forma de relatos para a câmera, em situação
mais próxima à da entrevista.
Como em Acácio, cabe notar que os arquivos (as imagens do passado) não estão
investidos de um papel ilustrativo. Mais do que ilustrar aquilo que em tese
"representam" (a personagem na infância, na adolescência, trabalhando em
diferentes filmes etc.), as velhas fotografias são tomadas como objeto ou
matéria para a criação de procedimentos estéticos pela cineasta-retratista.
Isso é notável desde o prólogo, composto por uma série de movimentos que
perscrutam diferentes fotografias (fotos de família, da juventude), cobertas
por um pano vermelho (espécie de cortina) sacudido pelo vento; cobertas e
descobertas, cobertas e descobertas... Configura-se assim uma sorte de
procedimento poético-expressivo que situa as fotografias como objetos num
espaço presente (o apartamento de Gladys), e que sugere sentidos outros a
partir delas: desvelamento momentâneo, espreita fugaz, entrever. Por fim, a
seqüência termina com a moldura de um porta-retratos, vazia, sobre a mesa.
Impossibilidade do retrato, ou retrato a preencher a partir da relação
contingente e criativa que o filme (que ali se inicia) vai erigir e reportar?
Em seu intenso hibridismo, o filme trabalha ainda com a estratégia de visita a
um lugar de memória, como mote para a produção e partilha de lembranças pela
personagem, notadamente em uma de suas seqüências mais rememorativas, que se
desenvolve sobretudo no espaço da linha do trem do subúrbio, no Rio de Janeiro.
As rememorações de Gladys dialogam com imagens da visita à linha de trem,
fragmentos de um ensaio visual presente que evoca deslocamento, sobretudo no
tempo. A essas imagens são justapostos, na montagem, fragmentos de imagens da
atriz no passado, extraídos de filmes em que Gladys atuou.
Um exemplo: ela caminha (no presente da filmagem) por uma estação de trem;
vemos, em seguida, uma imagem sua, cerca de 45 anos antes, caminhando, em plano
de Os fuzis(1964), de Ruy Guerra. A enunciação se permite aqui um jogo de
interpenetrações, em que não apenas imagens do presente são relacionadas com
relatos sobre o passado, como imagens e sons tomados no passado assomam no
presente - "assomos" que não seguem uma ordenação cronológica linear nem se
pautam pelo que diz a personagem. Os arquivos assomam como "lampejos", numa
lógica de montagem que é menos "a do argumento ou da explicação" do que a do
"contato", como escreve André Brasil, para Serras da desordem40. Desse modo,
multiplicam-se sugestões: podemos pensar em uma espécie de súbita coincidência
extratemporal entre passado e presente (segundo a lógica das lembranças
involuntárias, que Proust tematiza tão bem); mas também lembrar, com Bergson,
que "não há percepção que não esteja impregnada de lembranças"41.
A montagem por "contato", assim, baseada em afinidades visuais (de
enquadramento, movimento), em relações de "similaridade ou de contigüidade"
entre imagens heterogêneas, povoa o filme de "lampejos". Eles sugerem
movimento, vaivém, lembrança involuntária e os percursos mesmos da memória
(urdidura de lembrança e esquecimento). Como são trechos de filmes (de Ruy
Guerra, Bressane e outros) que fornecem as imagens de Gladys no passado, é
também uma memória pública e coletiva que Vidapõe em cena. Trabalhar esta
memória não como monumento, mas como fragmento - que pode ser pensado e ativado
em relação às imagens do presente, mesmo as mais íntimas e ordinárias - não é
dos menores gestos que este filme realiza.
CLÁUDIA MESQUITA é professora do curso de Cinema da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
[*] Este texto reúne e desdobra análises presentes nas comunicações que
apresentei em quatro encontros em 2009: Tecer (Belo Horizonte), 13° Encontro
Socine - Seminário "Cinema, estética e política: a resistência e os atos de
criação" (Universidade de São Paulo), II Simpósio de Fotografia e Cultura
Visual: arquivo e imagem (Unisul/Florianópolis) e Reality Effects - Poetics of
locality, memory and the body in contemporary Argentine and Brazilian Cinema
(Birbeck College - Universidade de Londres). Pelo incentivo à elaboração das
comunicações e por sua discussão, agradeço a André Brasil, César Guimarães,
Cezar Migliorin, Jorge Wolff, Jens Andermann, Lisa Shaw e Denilson Lopes. Pela
leitura, comentários críticos e sugestões bibliográficas, em diferentes
momentos da preparação do texto final, agradeço a Ismail Xavier, André Zacchi,
Ilana Feldman, Mateus Araújo, Leandro Saraiva, Joaquim Toledo Jr. e Victor da
Rosa.
[1] Ismail Xavier já se referia ao tema em entrevista sobre o cinema dos anos
de 1990 ("O cinema brasileiro dos anos 90". Praga: Estudos Marxistas, 2000, nº
9, pp. 97-138. Posteriormente, há reflexões sobre esse movimento de
particularização em textos com diferentes abordagens e propósitos: ver,
especialmente, Holanda, Karla."Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-
história". Devires: Cinema e Humanidades, 2004, vol. 2, nº 1, pp. 86-101; mas
também Senra, Stella. "Interrogando o documentário brasileiro". Sinopse:
Revista de Cinema, 2004, nº 10, ano IV; Lins, Consuelo e Mesquita,
Cláudia.Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, entre outros.
[2] Brasil, André. "Carapiru-Andrea, Spinoza: a variação dos afetos em Serras
da desordem". Devires: Cinema e Humanidades, 2008, vol.5 nº 2, p.94.
[3] André Brasil mobiliza esta dimensão performativaem sua análise de Serras da
Desordem, filme de Andrea Tonacci: "São vários os modos como a vida ordinária
se figura na mídia, mas, na maioria dos casos, essa figuração avança da
representação à experiência e a imagem deixa de ser apenas um lugar de
visibilidade para se tornar, intensamente, um lugar de (inter)atividade,
atuação e performance" (Ibidem, p. 93). Bill Nichols (Introdução ao
documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005) também tematiza um "modo
performativo" em sua tipologia das narrativas documentais. Este modo
contemporâneo, mais presente a partir dos anos de 1980 (e que inclui as
chamadas "auto-etnografias"), traria como marcas a evidência da subjetividade
na escolha do assunto, da abordagem, na produção de "verdades" pelo
documentário. Valorizaria performancesdo "eu" (tanto do cineasta como dos
sujeitos filmados), inclusive como passagem possível entre o pessoal e o
político, em detrimento de outras construções retóricas.
[4] Clifford, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no
século XX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998.
[5] Ginzburg, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Bertrand, 1989, p. 172.
[6] Clifford, op. cit., p. 45.
[7] Ibidem, p. 43.
[8] Ibidem, p. 20.
[9] Neste contexto, escrevia Clifford, "tornou-se necessário imaginar um mundo
de etnografia generalizada" (Ibidem, p. 19). Podemos pensar em crise ou
dispersão análogas na produção documental brasileira. Em um contexto no qual,
como escreveu Eduardo Escorel, "indígenas e moradores das comunidades urbanas
carentes tomaram em suas mãos a tarefa de registrar suas próprias imagens,
tornando obsoleta a mediação do cineasta profissional", teriam tais
representações (interculturais e intersociais) se tornado obsoletas também?
Escorel comenta, neste trecho, a "obsolescência", primeiro dos "quatro ou cinco
dilemas" que, para ele, o documentarista brasileiro enfrenta hoje ("Quatro ou
cinco dilemas". In: Vocação do poder. Documentário: espelho crítico do Brasil.
Rio de Janeiro: Sesc, 2005, pp. 14-15).
[10] Brasil, op. cit., p. 93.
[11] Enumero algumas obras biográficas produzidas no Brasil nos últimos quinze
anos, para ilustrar a renovada presença desse gênero no cinema e na TV: O
velho: a história de Luiz Carlos Prestes(Toni Venturi), O cineasta da selva
(Aurélio Michiles) [1997]; Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos(Lula
Buarque de Holanda), Um certo Dorival Caymmi(Aluisio Didier) [2000]; Nelson
Gonçalves(Elizeu Ewald) [2001]; Poeta de sete faces(Paulo Thiago) [2002];
Paulinho da Viola: meu tempo é hoje(Izabel Jaguaribe) [2003]; Zico(Eliseu
Ewald), Raízes do Brasil: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda(Nelson
Pereira dos Santos), Glauber, o filme: labirinto do Brasil(Sílvio Tendler),
Samba Riachão(Jorge Alfredo), Evandro Teixeira: instantâneos(Paulo Fontenelle)
[2004]; Vinícius(Miguel Faria Jr.), Vlado: 30 anos depois(João Batista Andrade)
[2005];Dom Hélder Câmara: o santo rebelde(Erika Bauer), Estamira(Marcos Prado),
Moacir arte bruta(Walter Carvalho), Zé Pureza(Marcelo Ernandez) [2006];
Cartola: música para os olhos(Lírio Ferreira, Hílton Lacerda), Fabricando Tom
Zé(Decio Matos Jr.), Oscar Niemeyer: a vida é um sopro(Fabiano Maciel) [2007];
O engenho de Zé Lins(Vladimir Carvalho), Mestre Bimba: a capoeira iluminada
(Luiz Fernando Goulart), Helena Meirelles: a dama da viola(Francisco de Paula),
O tempo e o lugar(Eduardo Escorel) [2008].
[12] Roland Barthes analisava o retrato fotográfico: impotente para as "idéias
gerais", sua força estaria "na garantia da realidade contingente". Neste
trecho, ele se referia, especificamente, a uma fotografia na qual teria
"reecontrado" sua mãe, morta pouco tempo antes. "As outras eram apenas
analógicas, quaisquer, suscitavam apenas a identidade, mas não a sua verdade"
(A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 106).
[13] Feldman, Ilana. "Na contramão do confessional: o ensaísmo em Santiago, de
João Moreira Salles, e Jogo de cena, de Eduardo Coutinho". De-vires: Cinema e
Humanidades,2008, vol. 5, nº 2.
[14] Jameson, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p.
195. Ou, noutros termos, são obras "cujo resultado é indissociável de seu
processo de produção", como escreve André Brasil a respeito de Serras da
Desordem(Ibidem, p. 93); ou, ainda conforme Jameson (em sua tentativa de
caracterização do documentário contemporâneo ou "pós-moderno"), obras em que "o
próprio ato de gravar e representar intervém na mudança do resultado diante de
nossos próprios olhos" (op. cit., p. 193).
[15] Como nota Susan Sontag, já no século XIX "a instabilidade das realizações
estritamente representacionais" encontrou veículo privilegiado no retrato, "que
passou a tratar cada vez mais da própria pintura e não dos sujeitos retratados"
(Sobre fotografia. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 110). Tendo em vista as
histórias da pintura, da fotografia e da literatura (com "retratos" que
expressam a dispersão do sentido e o esfacelamento da narração tipicamente
modernos), deve soar óbvio e fora de hora tratar desses deslocamentos (entre o
gesto biográfico tradicional e a narrativa biográfica ou retrato, por assim
dizer, dialógicos). Contudo, tendo em vista o audiovisual brasileiro de maneira
ampla, penso que não seja o caso - que o digam os renovados discursos
heroicizantes, contínuos e fechados das séries biográficas ficcionais da TV.
Estes filmes que reúno aqui ainda se destacam, nesse contexto ampliado, por
retratar diferentementeseus personagens.
[16] Benjamin, Walter. Obras escolhidas.Vol. 1: Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 231-32.
[17] Bernardet, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Cia. das
Letras, 2003, p. 251.
[18] Ibidem, p. 257.
[19] O uso da expressão "historicismo", neste texto, remete ao sentido proposto
por Benjamin em suas teses "Sobre o conceito da história" (op. cit.). Para
fugir a seus enganos (já que o historicismo estabelece sempre uma relação de
empatia "com o vencedor"), o "historiador materialista" deve interromper "a
história que hoje se conta, para inscrever nessa narrativa, que parece se
desenvolver por si mesma, silêncios e fraturas eficazes" (Gagnebin, Jeanne
Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.
104). Bernardet, em sua análise benjaminiana de Cabra marcado para morrer,
acrescenta: "Na história derrotada, a realidade se estilhaça em mil fragmentos"
(op. cit., p. 232). Mas, em Jango, o caráter fragmentário não chega a se
manifestar, "porque a história está moldada pela mensagem a transmitir, pelo
caráter didático e dogmático" (Ibidem, p. 237). Empresto e adapto aqui o
argumento de Bernardet, que se referia a Memórias do cárcere(Nelson Pereira dos
Santos, 1984) e Eles não usam black-tie(Leon Hirszman, 1981), filmes que são
contrastados em sua análise ao de Eduardo Coutinho (levando-se em conta a
maneira como se figura a história).
[20] Avellar, José Carlos. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco, 2007. "Todo retrato é um auto-retrato" e "todo pintor se
pinta a si mesmo", escreve Jean-Luc Nancy, lembrando (com certa reserva) alguns
dos mais antigos postulados a respeito desse gênero. Melhor seria dizer,
segundo o autor, que o retrato não busca "revelar" uma identidade, mas expôla:
"pintar ou figurar já não é então reproduzir, tampouco revelar, mas produzir o
exposto-sujeito" (Nancy. La mirada del retrato. Buenos Aires: Amorrortu, 2006,
p. 16). Não por acaso, lembra Nancy, a única ação admissível nos chamados
"retratos autônomos" (em que a figura é a única finalidade da representação) é
a ação mesma de pintar (que aparece em tantos retratos e auto-retratos na
história da pintura).
[21] Levi, Giovanni."Usos da biografia". In: Ferreira, Marieta de Moraes e
Amado, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral.Rio de Janeiro:Editora
FGV, 2002.
[22] Feldman, "Na contramão do confessional", op. cit. Farei mais de uma vez
referência aos dois ótimos textos em que Ilana aborda Santiago:"Santiagosob
suspeita" (Trópico, 2007, ago.-set.) e "Na contramão do confessional", op. cit.
[23] Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia.
das Letras, 1995, p. 38.
[24] Ibidem, p. 30.
[25] Penso no contraste entre a maneira como se tentou montar o filme em 1992
(há um trecho da primeira montagem no prólogo do filme atual) e a montagem
definitiva, em que a perspectiva do cineasta é assumida em primeira pessoa pela
voz narradora (embora não seja o próprio João Salles quem narra, mas sim seu
irmão Fernando).
[26] Feldman, "Santiago sob suspeita", op. cit.
[27] Comolli, Jean-Louis; Caixeta, Rubens e Guimarães, César (orgs.). Ver e
poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário.Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2008, p. 87.
[28] Feldman, "Santiago sob suspeita", op. cit.
[29] Santiagotalvez seja, como escreveu Cezar Migliorin, "um problema bem
resolvido", "um filme puro sobre a impureza intrínseca ao documentário"
("Santiago, de João Moreira Salles: entre o saber e a experiência". Revista
Cinética, 2007, <http://www.revistacinetica.com.br/santiagocezar.htm>). Nesse
sentido, estou de acordo com a leitura que Cezar faz das imagens em super-
8 colorido (que mostram a família Moreira Salles na piscina), dissonantes:
"Naquela cena sobrevive uma tensão que o filme suaviza. As imagens em super-
8 estão ali como que procurando um lugar, parecem ainda não incorporadas ao
filme, estão libertas da música e do offque organizam a experiência [...]. Esta
imagem de época aparece como a abertura que o filme faz para o seu futuro"
(Ibidem). Talvez possamos associá-las àquilo que Walter Benjamin chamou de o
"sem-expressão" (em seu ensaio sobre Goethe): o que escapa ao discurso,
ameaçando o fechamento polido de Santiago(cf. Gagnebin, op. cit., p. 101).
[30] Avellar, op. cit., p. 33.
[31] Como nota Ilana Feldman,"hoje a reflexividade e suas marcas (como rastros
da filmagem, presença da equipe, tematização do dispositivo etc.) torna-se
condição da própria transparência" ("O apelo realista: uma expressão estética
da biopolítica". Trabalho apresentado no XVII Encontro Anual da Compós. São
Paulo, Unip, 2008, p. 6). Ela analisa o "apelo realista" de narrativas
audiovisuais contemporâneas, que clamam mais e mais por "'realidade' e uma
expressão de impactante 'autenticidade'" (Ibidem, p. 1).
[32] Caetano, Daniel. "Um cinema em curso". Revista Cinética, 2009, abr.,
<http://www.revistacinetica.com.br/brasil2008cao.htm> .
[33] Empresto a expressão de Senra, "Como animais que morrem". Devires: Cinema
e Humanidades, 2007, vol. 4, nº 1, p. 108.
[34] Basta atentar para as imagens: o rosto em close e o sorriso que a câmera
recebe em resposta, numa pose dócil, aparecem tanto nos registros dos Kiôko
(povo tribal angolano) como nos filmes domésticos.
[35] Brasil, op. cit.,p. 91.
[36] Ibidem, p. 94.
[37] Citado em Bosi, op. cit., p. 48.
[38] Ibidem, p. 51.
[39] Tal forma seria própria do ensaio, conforme descrito por Ilana Feldman: "O
ensaio se volta contra o imediato para estabelecer mediações, preferindo sempre
o parcial, o inconcluso e o fragmentário [...] o ensaio nos coloca a
impossibilidade de exaurirmos uma relação com o objeto, não admitindo
conciliação ou consenso" ("Na contramão do confessional", op. cit., p. 60). O
ensaio pressupõe "uma instabilidade e uma indeterminação narrativas em que não
há unidade nem controle possível, pois a relação entre a palavra, a imagem e o
referente deixa de ser imediata, havendo sempre uma hesitação entre a busca de
certezas e a impossibilidade de fixá-las" (Ibidem, p. 61).
[40] Brasil, op. cit., p. 94.
[41] Citado em Bosi, op. cit., p. 46.