Nabuco, um diálogo em aberto
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo morreu em janeiro de 1910, aos 60 anos
de idade, quando ocupava o cargo de embaixador do Brasil em Washington.
Havia retornado à diplomacia na virada do século, depois de ter ficado no
ostracismo com a chegada da República em 1889, ele que era monarquista e havia
acumulado muitas afinidades com a dinastia dos Bragança e o ritual mais pomposo
do parlamentarismo monárquico. Vivera preocupado com o risco de que a
República, sem quadros dirigentes bem preparados e tendo de se fixar num
território gigantesco e mal povoado, derivasse para algum tipo de tirania ou
entregasse o país às oligarquias. Tentou combatê -la, mas não havia ressonância
monarquista confiável no país. O golpe de Deodoro da Fonseca o desnorteou. Não
conseguiu compreender direito como a Monarquia, depois de ter libertado os
escravos e sugerido à sociedade o início de uma era de progresso e justiça
social, pudera cair de maduro, sem ninguém para defendê -la ou pranteá -la.
Decepcionado e confuso, Nabuco voltou-se então para si mesmo, lançando-se numa
viagem em busca do sentido e da relevância histórica do Trono decaído. Nessa
operação, converteu-se em historiador e valeu-se da valorização da história
para alertar os republicanos dos riscos que correriam se tentassem fazer da
República instituída no 15 de novembro o ano zero do país, desconsiderando tudo
o que havia sido feito antes e desprezando os fios que organizavam o processo
histórico real. Durante uma década, ao escrever sobre a vida do pai e elaborar
as próprias memórias, elaborou uma consistente teoria a respeito do país e de
suas idiossincrasias políticas, da qual resultaram ao menos dois grandes
livros, Um estadista do Império(1897-1899) e Minha formação(1900), obrigatórios
em qualquer brasiliana que se preze.
Antes da República, Nabuco apostou todas as fichas no abolicionismo. Fez o
melhor diagnóstico dos males e das implicações do trabalho escravo. Percebeu
que a escravidão deformava a sociedade e proibia o progresso, além de ser
ultrajante e corromper hábitos, pessoas e instituições. Foi radical naquele
momento, procurando ir às raízes do problema social brasileiro para abordá-lo
de maneira abrangente e enfrentá-lo mediante um ousado plano de reformas
concatenadas (trabalho livre, educação universal, democratização da propriedade
da terra, previdência social, federalismo). Suas propostas, aplaudidas pelo que
havia de opinião pública na época, não obtiveram a repercussão política que ele
esperava. Ficaram no papel. Nabuco acreditou, ingenuamente, que a Monarquia
seria salva pelo 13 de Maio e, ao receber nova legitimação, teria condições de
abrir uma estrada reformadora e progressista no país. Ficou mortificado com os
acontecimentos e com a forma como se deu o fim da Monarquia, na calada da noite
e sem resistência.
Sua reação foi compatível com o estado de ânimo que o contagiou. Intuiu que a
República não poderia levantar a bandeira da reforma social que o abolicionismo
havia erguido na década de 1880. Os anos que se anunciavam seriam de modelagem
institucional e de reorganização da cultura política do país, que precisaria se
ajustar ao estilo, aos procedimentos e ao vocabulário presidencialista que
seriam adotados, largando pela estrada a rotina monarquista e parlamentarista
de antes. O clima de guerra civil, que duraria mais ou menos até 1895, aliado
às dificuldades inerentes à implantação de um novo regime político e jurídico
tornariam inviável qualquer plano social reformador, forçando o afastamento ou
a reclusão daqueles que porventura permanecessem com ele comprometido.
Nabuco optou por sair discretamente de cena. Não rompeu de início com a
militância, até porque não tinha como se descolar dos monarquistas
remanescentes, que exigiriam seu constante posicionamento. Mas seguiria o mesmo
manual adotado na década abolicionista para escapar do cerco da cúpula de seu
partido, o Liberal, que o considerava excessivamente radical e independente.
Fechou-se na redoma intelectual em que sempre vivera, de onde conseguiria
administrar as solicitações de maior engajamento e dosar a crítica ao presente.
O INTELECTUAL E A CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL
Alguns meses depois do golpe republicano, no panfleto "Porque continuo a ser
monarquista", publicado como carta ao Diário do Comérciono dia 7 de setembro de
1890, Nabuco revelará o estado de espírito com que seguiu os acontecimentos.
Não tinha motivos para se declarar republicano. O novo regime o desiludia por
completo, a começar do modo mesmo como havia se aproveitado do "ressentimento
do escravismo" para se fixar no imaginário social.
O veto de Nabuco também seria doutrinário e pragmático. Como regime político, a
República era inferior à Monarquia. No Brasil, mais ainda que nos demais países
latino-americanos, ela levaria ao despotismo centralista e ao fracionamento
nacional, pois lhe faltavam as condições (sociais e humanas) para uma
implantação harmoniosa e sustentável: não havia tradições republicanas,
experiência acumulada, povo ou nação constituída. Sem essas condições,
traduzir-se-ia como despotismo, seguindo a maldição que parecera acompanhar sua
adoção na América do Sul. Chegava por aqui imposta por um golpe militar, coisa
que era sinal de risco e perigo. Vinha, além disso, com a disposição categórica
de vetar a reprodução do parlamentarismo, retirando do sistema político um
decisivo instrumento de moderação e deliberação democrática. Impôs-se como
ditadura e jogou o país na guerra civil, ou seja, num ambiente de baixa
racionalidade e de paixões exacerbadas. A sociedade, amolecida pela escravidão
doméstica e pelo paternalismo do imperador, terminaria por renunciar à
liberdade. Escreverá então:
A minha ambição era ver a liberdade desenvolvida e aperfeiçoada o
mais que nos fosse possível, e para isto eu não podia pensar na
república. A república nos países latinos da América é um governo no
qual é essencial desistir da liberdade para obter a ordem1.
A doutrina acabaria por encontrar certa confirmação na prática. Após o 15 de
novembro, o quadro seria aterrador para um liberal como Nabuco. Ele continuava
monarquista, "firme como um rochedo", porque "a República, moralmente falando,
só tem perdido terreno desde 15 de novembro":
Não se verificou somente que o país não estava preparado para ela,
mas também, o que é talvez pior, que ela não estava preparada para o
governo. Diz-se que ela não tinha homens, é um perfeito engano; ela
tinha a seu serviço, além de uma brilhante mocidade para secundá -
los, dez vezes mais homens de alto mérito do que lhe era preciso para
organizar-se democraticamente em todo o país. O que ela não tinha era
princípios2.
Além do mais, apressar a República era uma insensatez, ausência de senso
prático, pois a tranqüilidade e a paz alcançadas pela Monarquia seriam trocadas
por uma ideia, uma postulação teórica, sem raízes sociais. Como país novo, o
Brasil já estava sendo objeto de vastas experiências, e a República seria uma
incógnita a mais. Os próprios elementos heterogêneos que a fomentaram - o ideal
americano, o espírito militar, o ressentimento escravista - contribuiriam para
dificultar uma composição ou uma síntese social sustentável. Era como se Nabuco
estivesse a sugerir que a sociedade amalgamada pela escravidão ainda
necessitava do abrigo fornecido por uma cultura e uma institucionalidade
formadas pela Monarquia. E se a questão da República era estabelecer o ideal
republicano no país, o primado da coisa pública, da cidadania, da liberdade e
da democracia civil, ela então já estava resolvida no próprio regime monárquico
que realmente existira no Brasil:
Não idealizo a monarquia que tínhamos; digo somente que ela era, ao
contrário das repúblicas que podemos ter, um governo que se podia
pensar em melhorar progressivamente e aceitar como digno de homens
livres3.
No entanto, as coisas caminhariam num sentido não desejado pelo Nabuco dos
primeiros anos após o golpe. A República iria se estabilizar e o monarquismo,
isolado, sem lideranças de peso e sem recursos de atuação política, derreter-
se-ia por completo. O militarismo de certo modo se esgotará com Floriano
Peixoto, e os republicanos paulistas ascenderão ao comando do país a partir da
posse de Prudente de Moraes em 1894. O regime consolidar-se-ia, anunciando o
início de uma era mais liberal, mais estável e capaz de promover a convivência
entre as elites políticas. Nabuco passará então a renegociar, consigo próprio,
os termos de sua interpretação e de sua conduta.
Fará isso lenta e cuidadosamente, e não sem uma boa dose de dúvida e
intransigência. Não se convencerá de um dia para outro que a República rompera
com sua predisposição ao autoritarismo, sua falta de raízes na história do
país, sua dificuldade de se reformar na ausência de pressão social. Seguirá
convencido de que a sociedade vinda da escravidão exigia a Monarquia como uma
espécie de remédio natural, que a ajudaria a crescer.
Um ano depois da posse do primeiro presidente civil, na famosa troca de cartas
com o almirante Jaceguai (setembro e outubro de 1895), admitirá que a situação
era outra, que havia passado "a época do Terror e a época do Diretório", e que
se entrara "no regime normal do pais". Mas não aceitará o repto de Jaceguai de
que o "dever do momento" seria o de se integrar ao processo político
republicano. Escreverá então:
Não tenho ressentimento pessoal da República; não sou em sentido
algum um despeitado; em política fui um amador e não um profissional,
de modo que o 15 de novembro nem me interrompeu a carreira; na última
eleição fui eleito in absentia, sinal de que já desejava afastar-me
de um cenário onde depois da abolição me sentia fora dos partidos4.
Precisamente por isso, não tinha por que mudar de posição. Jamais faria o jogo
do quanto pior melhor, mas se considerava impróprio para colaborar com o novo
regime. O dever dos monarquistas sinceros, se a Monarquia está morta, é "morrer
politicamente com ela". Sua influência não deve ser política, mas de outro
tipo:
[...] é toda moral, é a de guardarem fidelidade aos seus princípios e
ao seu passado; é mostrarem tolerância e benevolência, coerência e
desinteresse; é não aceitarem a responsabilidade de erros e crimes5.
Sua trajetória na década posterior à República retrata o curso seguido pelo
monarquismo. Num primeiro momento, irritado com o novo regime, isolou-se e
tentou o exílio; não obteve sucesso. Numa segunda e curta fase, viveu com certo
entusiasmo as divergências entre os republicanos, os levantes do sul e da
Armada; buscou a reunificação dos monarquistas e acalentou uma tênue esperança
de ver constituído um partido capaz de atrair elementos jovens e emprestar
alguma viabilidade à restauração. Também aqui o sucesso inexistiu: as revoltas
foram debeladas, as divergências não inviabilizaram o regime e o partido
monárquico jamais chegou a ser expressivo. Sem muita convicção restauradora,
descrendo de conspirações e vendo o monarquismo desfalecer, Nabuco acabaria por
se limitar à tentativa pouco eficaz de desacreditar a vertente militarista do
novo regime mediante propaganda escrita. Aos poucos, foi-se descolando dos
velhos chefes monarquistas.
Afinal, mais do que o retorno imediato da Monarquia, Nabuco percebia que a
realidade comportava tão somente a estabilização do país e a eliminação dos
"excessos" republicanos. Mesmo sem afirmá -lo publicamente, sabia que a
República estava se consolidando e tendia a depositar as remotas chances de
restauração na plena recuperação moral do país e na retomada do desenvolvimento
- com o que, numa lógica perversa, ficaria ainda mais fortalecido o novo
regime.
Lenta mas firmemente, a veemência cederia lugar a críticas mais ponderadas, que
além de reaproximarem o ideólogo da verdade dos fatos aplainavam a trilha por
onde deslizaria uma suave (mas certamente tumultuada no plano pessoal)
aproximação com a República.
Nessa trajetória, Nabuco armou-se de uma nova fé: já não será mais o
abolicionista de antes, generoso e reformador, para quem a forma de governo era
questão secundária e que se empolgava com a política militante. Será agora o
monarquista ortodoxo, discreto e nostálgico, amolecido pelas frustrações e pela
redescoberta da religião, o historiador de si mesmo, do pai e do trono
derrubado, o embelezador do passado que somente de modo assistemático se
entregará à crítica do presente político. Consolidar-se-á como um liberal
conservador, que não mais apelará ao povo e não mais voltará a cogitar de
reformas sociais.
Não perderá , entretanto, o bom senso e o instinto de sobrevivência. Em 1898,
registrará numa nota: "Quero viver até o fim monarquista, mas quero morrer
reconciliado com os novos destinos do meu país". Ao final dos dez anos de
reclusão, cederá aos convites da República que sempre o cortejara. Em março de
1899, aceitará a defesa do interesse brasileiro na disputa de fronteiras com a
Guiana Inglesa, a ele proposta por Campos Sales.
A causa era boa, estava acima de partidos e ideologias, pois se tratava da
integridade territorial do país, e portanto da soberania do Estado nacional.
Ele diria que não podia recusar o convite "sem quebra de dever para com o
país":
Não olhei para a questão política, tratando-se de uma causa nacional. Seria
mostrar-me estreitamente sectário invocar uma incompatibilidade que o Governo
não julgou dever prevalecer para ele, vindo buscar o defensor da causa nacional
ao campo adverso6.
Ainda que a explicação e a justificativa fossem inteligentes, a aceitação do
convite presidencial representava de fato seu afastamento do grupo monarquista
e sua conciliação com a República. Em agosto de 1990, é nomeado também chefe da
legação brasileira em Londres, com o que se torna funcionário da República.
Cinco anos depois, com a criação da Embaixada do Brasil em Washington, Nabuco é
designado para dela se encarregar. A diplomacia, a "causa nacional", irá então
absorvê -lo. Sob as ordens de Rio Branco, trabalhará para pavimentar o caminho
que levaria o Brasil a rever sua tradicional fidelidade à Europa e se aproximar
dos Estados Unidos, naquele empreendimento que Nabuco identificou com o pan-
americanismo, sua última grande causa, com a qual tentou "encher em sua alma" o
vazio deixado pelo abolicionismo desarmado pelo golpe republicano7.
Se com o reformismo abolicionista ele projetara o nascimento de um povo de
cidadãos, com a política pan-americana imaginaria contribuir para a
consolidação de um Estado soberano, independente, senhor de seus interesses e
atento às circunstâncias e aos humores do tempo histórico. Eram causas que, bem
ou mal, se completavam.
Sem ter necessariamente consciência disso, Nabuco associou-se ao movimento que
deu substância aos dois principais vetores - a cidadania política e o poder
estatal soberano - do Estado moderno no Brasil. Entre 1870 e 1890, incorporou-
se à onda reformadora que cresceu a partir do problema escravo, agitou as bases
da sociedade e fomentou a percepção de que era preciso defender e incrementar o
Estado plantado pela Independência, fato que se confundia com a defesa da
Monarquia. Mais tarde, com a República instalada, a mesma onda direcionou-se
para a organização do novo regime e a inserção do país num mundo que mudava em
termos de relações internacionais e ingressava em nova etapa do capitalismo.
Também aí , para Nabuco, a questão era o Estado nacional. Se na primeira fase a
unidade da nação dependia da defesa de um sistema de governo (a Monarquia
parlamentar), na segunda ela passa a ter valor em si, independentemente de
regimes, partidos e governantes, um telosabsorvente, sem o qual o futuro se
comprometeria. Se, nos anos abolicionistas, o liberalismo foi convocado para
honrar seus compromissos reformadores humanistas, no final da vida ele
apareceria como alicerce moral de um Estado capaz de defender o território e a
soberania de um povo-nação já num momento mais avançado de constituição.
De modo bem singular, Nabuco expressou aquele tipo de intelectual que Antonio
Gramsci chamou de "orgânico", criado pelos grupos sociais com o objetivo de lhe
dar "homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo
econômico, mas também no social e político"8. Em sua fase abolicionista, foi
uma criatura dos setores progressistas, modernizantes, que então emergiam com
pretensões hegemônicas. Ajudou a dar eles consciência dos próprios interesses,
um projeto com o qual se apresentar ao mundo. Pôs-se à frente deles.
O Nabuco conservador e nostálgico do pan-americanismo não está mais na
vanguarda da burguesia emergente, como sua consciência possível. Sintoniza-se,
porém, com a classe empiricamente tomada, que abandona a bandeira reformista e
aceita o jogo político oligárquico que se substituirá à Monarquia. De algum
modo, portanto, Nabuco permaneceu com os olhos à frente, buscando criar
condições para a expansão daquela classe. Nas circunstâncias de então, sem
bases para a reforma social ou a adoção de uma orientação econômica
vigorosamente industrializante, a reformulação da política externa configurava-
se como um importante passo para a modernização do país. Desse ponto de vista,
o pan-americanismo do início do século XX representou a tradução para o plano
internacional de certas batalhas modernizadoras que a burguesia se
desinteressara de realizar internamente.
Com efeito, a revolução burguesa que se teve no Brasil foi conservadora, tímida
em seu alcance e jamais contou com classes sociais capazes de lhe dar
fisionomia clara e sustentação. Mas lançou o país em outro patamar. Sem classes
nacionalmente organizadas e sem sociedade civil, foi uma revolução espasmódica,
condicionada por uma dinâmica pouco democrática, "prussiana", autoritária. Um
processo que poderia ser associado às categorias tornadas famosas por Gramsci
da revolução passiva, da revolução-restauração e da revolução sem revolução.
Nabuco certamente não foi um "intelectual orgânico" típico, desses que se
enraízam na experiência viva de uma classe emergente e a impulsionam. Aliás,
não haveria como isso se dar no Brasil, tendo em vista o caráter mesmo de sua
revolução burguesa. Aqui, a burguesia industrial não nasceu à margem da
"aristocracia rural", nem contra ela, mas sim como uma sua extensão e na
dependência dela. Seus intelectuais orgânicos foram, assim, muito mais a imagem
da continuidade que a da ruptura. Os diferentes grupamentos intelectuais,
aliás, tinham em sua vasta maioria um perfil tradicional, ou seja, portavam
autonomia imediata diante das classes sociais e - especialmente no contexto da
segunda metade do século XIX - viam-se como continua dores de histórias e
tradições. Podiam, no entanto, ligar-se seletivamente a movimentos de
contestação da ordem e adotar uma perspectiva de futuro, de "revolução".
A ATUALIDADE DE NABUCO
Vistos assim, em grande angular, a trajetória e o pensamento político de Nabuco
podem sugerir a presença de um personagem que flutuou sobre as diferentes
conjunturas, adaptando-se sem se entregar completamente a elas. O zigue-zague
que marcou sua biografia é de fato algo a ser interrogado: teria sido a
expressão de uma oscilação pessoal, típica de alguém autocentrado e entregue a
causas pessoais, ou foi uma imposição da realidade, dos fatos duros da vida,
imposição essa evidentemente traduzida pelo personagem segundo suas próprias
possibilidades pessoais?
No ano em que se comemora o centenário de sua morte, vale a pena indagar o que
Nabuco tem a nos fornecer. Alguns paralelos podem ser traçados, por exemplo,
entre a luta pelo trabalho livre do século XIX e a luta pela valorização do
trabalho dos dias atuais. Teria o abolicionista algo a nos dizer sobre isso, ou
sobre as questões e os dilemas com que nos debatemos hoje, antes de tudo sobre
o modo como temos tentado praticar a reforma social? O pan-americanismo que ele
quis fixar como política de Estado pode servir de parâmetro para que se pensem
os processos de integração típicos do mundo globalizado? Seu modo de ser
liberal traria algum ensinamento aos liberais desse início de século, quem sabe
os levando a manter maior coerência com a própria doutrina?
Nabuco foi abolicionista, monarquista, deputado, memorialista, historiador,
diplomata, escritor talentoso. Protagonizou um período de importantes mudanças
no país e no mundo. Sua trajetória foi sinuosa, composta por etapas que se
negam mas também se integram e se completam. Radical no abolicionismo, tornou-
se conservador depois da República, mas manteve, por exemplo, a mesma paixão
pelas belas causas, capazes de empolgar uma nação e fazer sentido como pleitos
universais, a mesma disposição de estilizar as operações em que se envolveu, a
mesma argúcia sociológica, que sempre o levou a tentar ir além dos fatos
prosaicos da vida. Viu na libertação dos escravos e, depois, na união das
Américas sob direção norte-americana, duas dessas belas causas. E buscou brigar
por elas.
Não há dois ou mais Nabucos, facetas irreconciliáveis de uma biografia composta
por pedaços, atiçada por tentações radicais de um lado e embalada pelos mares
calmos do conservadorismo de outro. Mas há , certamente, Nabucos para
diferentes usos políticos ou intelectuais, compatíveis com suas distintas fases
de atuação e com as causas que abraçou. Esse Nabuco multiuso, tal como todo
grande pensador, convida-nos a um diálogo permanente, precioso para que
continuemos a interrogar o Brasil e a decifrar a conduta de nossos governos e
de nossos políticos e estadistas.
O Nabuco abolicionista legou-nos um modo de conceber a reforma social como
projeto e como ação positiva. Introduziu em nossa história política a
perspectiva de que uma reforma social digna do nome precisa nascer de um
projeto abrangente, bem articulado, que busque as determinações essenciais do
fato a ser reformado e, acima de tudo, que encontre na sociedade e no Estado os
necessários elementos de propulsão9. Não seria algo a ser imposto de baixo para
cima, por um eventual desejo popular de mudar que se afirmaria contra todas as
resistências. Dependeria de algum impulso social, mas precisaria sempre de uma
intervenção a partir de cima, que responderia pela coordenação da reforma e
pelos atos que levariam a seu desfecho.
A reforma social de Nabuco configurou-se como uma estratégia de desenvolvimento
econômico e progresso material. Nabuco compartilhava a tese de que somente uma
sociedade de homens livres poderia se constituir como um efetivo mercado de
trabalho e de consumidores, sem o que o desenvolvimento ficaria represado e
tenderia à deformação. Um ciclo de crescimento econômico sem reforma social
levaria a sociedade a um estado de desigualdade que, em algum ponto do futuro,
cobraria seu preço. Nisso o modo nabucoano de pensar a reforma mostra enorme
atualidade no Brasil da primeira década do século XXI, que ingressou de vez no
círculo das grandes economias capitalistas sem ter resolvido de modo categórico
sua histórica deficiência social.
Diferentemente de outros liberais de seu tempo, e de muitos outros que a ele se
seguiram, Nabuco tentou descobrir como a organização e o funcionamento do mundo
social condicionavam os passos e os âmagos da vida nacional. Percebeu como
poucos que a escravidão fornecia o ar que a sociedade respirava, invadia e
degradava tudo, fato que a convertia no maior e no principal problema a ser
enfrentado. Sem sua eliminação, nada se resolveria de modo satisfatório.
Deixou um legado raro: a de um político e intelectual de formação liberal que
soube descer às catacumbas sociais e "visitar a nação em seu leito de
paralítica". Pôs-se à frente do liberalismo do seu tempo, demonstrando que
liberais coerentes podem abraçar a questão social, ou ao menos não se omitir
diante dela.
Nabuco certamente tem algo a nos dizer sobre as questões e os dilemas com que
nos debatemos hoje, em nossa República consolidada, antes de tudo sobre o modo
como temos praticado (ou não) a reforma social e buscado construir uma
sociedade que inclua todos os seus integrantes. Terá sido ele uma exceção, um
liberal atípico, ovelha negra de uma família ideológica inteira que flutuou
sobre as questões mais candentes da constituição da nacionalidade ou que as
considerou exclusivamente en passant, sem o devido empenho e a necessária
radicalidade? Ou sua própria sinuosidade reflete as oscilações do nosso
liberalismo espasmódico, ora impetuoso e sensível à agenda social, ora alheio a
ela e antidemocrático, em certos momentos traduzido como liberalismo político,
em outros aprisionado pelo laissez-faire?
A agenda política de Nabuco - a reforma social, a democracia política, a
cidadania, o desenvolvimento da nação - permaneceu a demarcar a vida nacional
durante o século XX e chega viva ao início do século XXI. Nabuco não pode,
evidentemente, responder às questões com que nos defrontamos hoje, mas temos o
que extrair de sua experiência. No mínimo, ela nos ajuda a compreender uma
impressionante linha de continuidade histórica, que nos fez chegar ao século
XXI como um país economicamente poderoso mas socialmente deplorável, no qual a
concentração da riqueza ultrapassa qualquer patamar razoável.
De Nabuco ao século XXI, háum longo processo de transformações, lutas e
conquistas sociais, no correr do qual o Brasil se constituiu como comunidade
política e sociedade capitalista. Trata-se de um processo abrangente e
contraditório, que liga o abolicionismo aos esforços recorrentes e jamais
vitoriosos para reduzir a pobreza e incluir a maioria, que nos convidam a
refletir sobre as formas que assumiram entre nós a mudança social, a reforma
das instituições, a integração da sociedade e a construção da democracia.
No final do século XIX, a sociedade tradicional prevalecia e somente estava
tocada pela modernização. Pouco mais de cem anos depois, uma sociedade pós-
tradicional constituiu-se sob o ímpeto de uma fortíssima capitalização e da
contaminação pela hipermodernidade. O desenvolvimentismo da era de Vargas e o
empenho pelas reformas de base no início dos anos de 1960 põem-se no meio, a
espelhar uma sociedade ainda presa ao passado, mas às voltas com a perspectiva
de romper com a dependência, aprofundar sua soberania e dar alguns decisivos
passos reformadores. A luta pela redemocratização do país e contra a reprodução
da ditadura militar de 1964, assim como o forte processo de desenvolvimento
capitalista do país entre 1960 e 1990 prepararam a sociedade para mergulhar no
século XXI: desconstruíram-na e a recompuseram sobre outros critérios.
A sociedade modelada pela escravidão dividia-se em duas partes contrapostas,
uma oprimindo, explorando e humilhando a outra. O Estado, agigantado
artificialmente, expressava uma pacto entre elites e não funcionava como ator
que se debruçasse sobre a sociedade, planejasse seu desenvolvimento, a
amparasse e a promovesse. Não existiam políticas públicas. A democracia
engatinhava e era tão imperfeita e tão vazia de povo que seria mesmo o caso de
perguntar se existia ou cumpria alguma função.
Ao passarmos para o século XXI, o cenário é muito mais complexo e desafiador. A
sociedade desenvolveu-se aceleradamente, diferenciou-se e está se fragmentando.
Já não mais se divide em duas partes, mas em inúmeras partes, em múltiplos
interesses, difíceis de serem compostos e governados. O Estado, depois de ter
cumprido papel ativo na promoção do desenvolvimento e na conformação do país,
encontra-se às voltas com muitas pressões externas e internas, que o estão
levando a se recolher e a abrir espaços para a afirmação de políticas menos
universais e a desmontagem do sistema de proteção social.
No século XIX, de certo modo "faltava" uma sociedade para pressionar e impor
uma agenda. Também por isso, o abolicionismo não teve nos escravos seu maior
interlocutor. Dirigiu-se - como agitação, como propaganda, como teoria - aos
livres, aos que podiam agir conscientes do significado, das implicações éticas
e dos condicionamentos da luta. Seu chamado buscou o conjunto da sociedade, as
"reservas morais da nação", o Estado, os governantes.
Hoje, o quadro é inteiramente outro. Mudou a sociedade, mudaram as pessoas, os
tempos, as formas de luta, os sistemas e os valores. Houve progresso em
inúmeras frentes, o país formou uma sólida economia, modernizou sua
agricultura, constituiu uma poderosa indústria cultural que o liga de norte a
sul. O Brasil tornou-se uma sociedade complexa, mas não conseguiu resolver a
questão social. Continua a exibir índices dramáticosdepobreza, miséria,
mortalidade infantileexclusão.
As concretas condições brasileiras não são apenas as da modernidade tardia,
reflexiva, mas são também as da "periferia" do capitalismo. Isso faz com que o
país conviva com uma verdadeira tragédia social, imposta pelo prolongamento do
passado e aumentada pelos próprios termos da modernidade tardia. Caminhando
entre miséria "colonial" e miséria "pós-moderna", o Brasil não resolveu a
questão da terra, mas apresenta altos índices de agricultura capitalizada e
agronegócio. Continua às voltas com a reforma previdenciária, com problemas
graves na saúde pública, na educação básica, no ensino superior.
Tudo ficou mais difícil. O ritmo da vida é proporcional à velocidade das
inovações tecnológicas, à quantidade de informações, de deslocamentos e de
contatos, à "obrigação" que todos têm de viver no mundo, ligados em tudo. É
sempre mais complicado estabelecer para onde se deve ou se deseja ir. As
decisões e o poder escapam das mãos dos cidadãos. As informações acumulam-se e
nos confundem. As diferentes mediações políticas e sociais ficam comprometidas,
perturbando a vida dos governantes e minando as bases da autoridade política. O
próprio poder modifica-se: diluído pelas estruturas, transfere-se para
circuitos sempre mais invisíveis, difíceis de serem reconhecidos, evitados ou
combatidos. O "social" se agita muito, mas não consegue pressionar de fato os
governos, nem interferir no direcionamento da ação estatal. Os governos, por
sua vez, não respondem à altura.
Hoje não há somente pobreza e combate à pobreza, mas também miséria e exclusão,
postulação de direitos e lutas por identidade e reconhecimento, num quadro tão
emaranhado e confuso que muitas vezes bloqueia as tentativas de hierarquização
ou organização de agendas. O clima não é de universalização, mas de focalização
e políticas afirmativas, com interesses, direitos e expectativas particulares
se superpondo à dimensão coletiva. Dado o legado da escravidão, muitos negros
brasileiros consideram-se mais pobres e discriminados do que os brancos pobres,
e esperam que as políticas públicas os protejam e promovam. Estão carregados de
razões. As circunstâncias gerais em que se trava essa luta, no entanto, fazem
com que tenhamos de conviver com uma tentação racialista, impulsionada pela
exacerbação das diferenças e das identidades, pela problematização dos sujeitos
políticos e pela inexistência de processos vigorosos de reforma social.
Tal como nos tempos de Nabuco, é preciso continuar tentando destruir a obra dos
muitos séculos de exploração colonial, concentração de renda e capitalismo
selvagem, para os quais tem contribuído a estreiteza de visão das classes
economicamente dominantes e das elites políticas. Nabuco diria, como fez em O
abolicionismo, que é necessário "inspirar energia à opinião pública, tirá -la
do torpor que a inutiliza, mostrar-lhe como a inércia prolongada é o suicídio",
para assim pressionar o Estado e os governos10.
Os governantes e os partidos políticos, porém, parecem desfibrados para
empreender planos reformadores. A sociedade carece de sujeitos políticos. A
desorganização do mundo do trabalho desarticulou as classes e os grupos de
referência, e está levando consigo partidos, sindicatos e ativistas. A própria
política encontra-se sem forças, a representação parece levitar, como se lhe
faltassem bases.
Liberais democratas e reformadores sociais estão hoje diante do desafio de
impedir a reiteração da mesma perversão que Nabuco surpreendeu no Segundo
Império, quando denunciou em 1886 que, entre nós, as reformas parecem
prematuras, quando já são tardias. A escravidão já tinha praticamente arruinado
o país, retardado seu desenvolvimento, quando apareceu o abolicionismo. Quanto
tempo mais será preciso esperar para que se arranque rumo à superação da
tragédia social brasileira, para que se passe do protecionismo estatal aos mais
pobres dentre os pobres para uma condição sustentável de autonomia e
emancipação de todos?
Em condições de alta complexidade, é impossível fazer uma revolução só com base
em vontade política ou ativismo social, sem uma ideia de Estado, sem uma teoria
adequada, sem um projeto de sociedade e sem alianças programáticas
consistentes. Não há como avançar abandonando o social em nome da
responsabilidade fiscal, do controle do governo e da composição de maiorias
parlamentares a qualquer custo, nem muito menos trocando a "governabilidade
institucional" pela "governabilidade social".
A articulação do político com o social é indispensável. O menosprezo pela
democracia formal, a indiferença por ritos e procedimentos parlamentares, a
facilidade com que se manipulam as instituições governamentais, o pouco caso
com a grande política não ajudam a dar substância à democracia ou a impulsionar
governos reformadores. Com tudo o que contém de cultura e armação
institucional, a democracia política é a única porta de entrada para a
politização do mundo social e, portanto, para a transição inteligente rumo a um
novo patamar de vida.
As instituições políticas brasileiras não estão mais respondendo às condições
da modernidade tardia na periferia, nem sendo funcionais à governabilidade e ao
processo político. O sistema político desconectou-se da sociedade:
despolitizou-se. Se acaso reaparecesse, o Nabuco abolicionista poderia repetir
que políticos, governantes e lideranças parecem "desertar do posto de honra que
a humanidade inteira lhes indica", pois estão deixando de usar o poder de que
dispõem para romper as ficções de um sistema político imperfeito e enfrentar as
mazelas sociais que emperram e deformam a sociedade.
Faz-se necessária outra maneira de conceber as múltiplas reformas exigidas pela
hipermodernidade e pelo capitalismo globalizado. Esse novo reformismo não se
resume a ser um conjunto de ajustes institucionais. É essencialmente um
movimento de reforma cultural, intelectual e moral, articulada com um programa
de escolarização, de educação cívica, de incentivo à participação política e de
qualificação do debate público. Somente como projeto abrangente, que alcance as
bases e as cúpulas da sociedade, é que o reformismo ajudará a que se organizem
novos sujeitos políticos e instituições democráticas fortes, sem o que nenhuma
reforma social vencerá .
Nabuco poderia dizer: o reformismo de que se necessita destina-se a emancipar
os pobres e os excluídos para emancipar a nação, suas classes e instituições.
Era uma das ideias centrais de O abolicionismo:
Somente depois de libertados os escravos e os senhores do jugo que os
inutiliza, igualmente, para a vida livre, poderemos empreender esse
programa sério de reformas - das quais as que podem ser votadas por
lei, apesar de sua imensa importância, são, todavia, insignificantes
ao lado das que devem ser realizadas por nós mesmos, por meio da
educação, da associação, da imprensa, da imigração espontânea, da
religião purificada, de um novo ideal de Estado: reformas que não
poderão ser realizadas de um jato, aos aplausos da multidão, na praça
pública, mas que terão de ser executadas, para que delas resulte um
povo forte, inteligente, patriota e livre11.
No processo social em curso, há muita coisa que nos remete ao abolicionismo dos
tempos áureos de Nabuco. O diálogo com ele, que não tem como se esgotar, pode
contribuir para que se compreendam melhor as razões e as determinações de uma
continuidade histórica que tem sido impotente para forjar uma sociedade justa e
igualitária.
Essa pesada continuidade encontra-se hoje com os vagalhões da revolução
tecnológico-digital, com as tramas da vida líquida, frenética, fora de
controle, típicas da modernidade reflexiva. Nabuco certamente não pode explicar
esse encontro de gigantes, esse choque e essa interpenetração de dois processos
em si mesmos repletos de consequências. Mas continua a nos ajudar a entender o
fundamento de nossa experiência social, o caminho que percorremos para chegar
onde estamos e a bagagem que tivemos de carregar nesse percurso.
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA é professor titular de Teoria Política e diretor do
Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp.
[*] Novos Estudosagradece a Angela Alonso pela ajuda na organização deste
dossiê . [N. E. ]
[1] Nabuco, Joaquim. "Porque continuo a ser monarquista". Carta ao Diário do
Comércio. Londres: Abraham Kingdon & Newnham Impressores, 1890, p. 14.
[2] Ibidem, p. 7.
[3] Ibidem, pp. 21-22.
[4] Nabuco. "O dever dos monarquistas". Carta ao Almirante Jaceguay. Rio de
Janeiro, Typ. Leuzinger, 1895. In: Alencar, José Almino de e Pessoa, Ana(orgs.)
. Joaquim Nabuco: o dever da política. Rio de Janeiro: Edições Casa deRui
Barbosa, 2002, p. 86.
[5] Ibidem, p. 89.
[6] Cartas a amigos.São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, vol. 2, pp.
7-8.
[7] Conferir artigo de Leslie Bethell, "Nabuco e o Brasil entre Europa, Estados
Unidos e América Latina", nesta mesma edição [N. E. ].
[8] Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere.Vol. 2: Os intelectuais: o princípio
educativo. Jornalismo. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, p. 15.
[9] Conferir artigo de Angela Alonso. "O abolicionista cosmopolita: Joaquim
Nabuco e a rede abolicionista transnacional", nesta mesma edição [N. E. ].
[10] Nabuco. O abolicionismo.4 ed. Petrópolis/Brasília: Vozes/INL, 1977, p.
184.
[11] Ibidem, pp. 201-202.