O braço direito dos Estados Unidos? o dilema da República Popular da China na
crise global
A crise das hipotecas subprime e o declínio global resultante levaram muitos a
especular que algum desafiante poderia emergir para substituir os Estados
Unidos como ator dominante na economia mundial capitalista1. Como a crise
financeira nos Estados Unidos e no Norte global2 originou-se do elevado
endividamento, da baixa produtividade e do consumo excessivo, parecia natural
olhar para os seus opostos - a imensa acumulação de dívida americana pelos
exportadores do Leste Asiático, sua capacidade produtiva e suas elevadas taxas
de poupança - a fim de identificar candidatos prováveis. Imediatamente depois
de o colapso do Lehman Brothers em 2008 ter revelado o início da recessão
global, proclamou-se o triunfo final do modelo de desenvolvimento do Leste
Asiático, sobretudo o chinês. Comentadores do establishment americano
concluíram que a grande crise de 2008 seria o catalisador para um deslocamento
do centro do capitalismo global dos Estados Unidos para a China3.
Mas na primavera de 2009 muitos já haviam se dado conta de que as economias do
Leste Asiático não eram tão formidáveis quanto as aparências sugeriam. Enquanto
a contração brusca da demanda por importações do Norte global levou os
exportadores asiáticos a aterrissagens forçadas, a perspectiva de tanto o
mercado de títulos do tesouro americano quanto o dólar atingirem níveis muito
baixos colocou-os diante do difícil dilema de se livrar dos ativos americanos,
e assim precipitar um colapso do dólar, ou comprar mais, evitando uma queda
imediata mas aumentando a sua exposição a um colapso no futuro. O investimento
coordenado pelo Estado, que se estendeu até o fim de 2008 sob o megaprograma de
estímulo da República Popular da China (RPC), encorajou uma recuperação
significativa da economia chinesa, assim como dos seus parceiros comerciais
asiáticos, mas o crescimento gerado provavelmente não se sustentará sozinho.
Economistas e assessores chineses têm se preocupado com a possibilidade de a
RPC titubear mais uma vez quando o efeito do estímulo enfraquecer, visto que é
improvável que os consumidores americanos voltem a assumir essa conta em um
futuro próximo. Apesar de toda a discussão acerca da capacidade da China de
destruir o status de moeda-reserva do dólar e de construir uma nova ordem
financeira global, a RPC e seus vizinhos têm poucas alternativas no curto
prazo, a não ser sustentar o domínio econômico americano por meio da ampliação
do crédito.
Neste artigo, traço as origens históricas e sociais da dependência crescente da
China e do Leste Asiático em relação aos mercados de consumo do Norte global,
como fonte do seu crescimento, e aos instrumentos financeiros dos Estados
Unidos, como reserva de valor de suas poupanças. Em seguida, avalio as
possibilidades de superação dessa dependência em longo prazo, argumentando que,
para criar uma ordem econômica mais autônoma na Ásia, a China teria que
transformar um modelo de crescimento orientado para as exportações - que tem
beneficiado principalmente os setores exportadores da região costeira, que o
perpetuam - em um modelo impulsionado pelo consumo doméstico, por meio de uma
ampla redistribuição de renda para o setor rural-agrícola. Isso não será
possível, contudo, sem romper o predomínio político da elite urbana costeira.
TIGRES E GANSOS
A história da rápida ascensão do Japão e dos quatro tigres asiáticos - Coreia
do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura -, no pós-guerra, é conhecida e não
preciso repeti-la aqui. Mas, se sua escalada dinâmica pode ser atribuída ao
direcionamento de recursos preciosos para setores industriais estratégicos
pelas autoridades centralizadas, é igualmente importante reconhecer que foi a
geopolítica da Guerra Fria no Leste Asiático, em primeiro lugar, que tornou
possível o surgimento de estados desenvolvimentistas na região. Na verdade,
durante esse período esteve em curso no Leste Asiático uma guerra quente. O
apoio da China comunista às guerrilhas e seu envolvimento nas guerras da Coreia
e do Vietnã levaram a região a um estado de emergência permanente, e Washington
julgava o Leste Asiático o elo mais vulnerável na sua estratégia para conter o
comunismo. Considerando que seus principais aliados asiáticos - o Japão e os
quatro tigres - eram importantes demais para fracassarem, o governo americano
lhes forneceu apoio financeiro e militar abundantes para disparar e dirigir o
crescimento industrial, ao mesmo tempo que mantinha o mercado americano e o
europeu escancarados para os produtos manufaturados asiáticos. Esse acesso aos
mercados ocidentais constituiu uma vantagem adicional de que outros países em
desenvolvimento não desfrutavam, sem a qual é inimaginável que as economias
asiáticas tivessem tido tanto sucesso. Visto sob essa ótica, o rápido
crescimento econômico do Leste Asiático está longe de ser um "milagre". Os
Estados Unidos o projetaram como parte de um esforço para criar baluartes
subordinados e prósperos contra o comunismo na região da Ásia e do Pacífico.
Essas economias nunca se destinaram a desafiar os interesses geopolíticos e
geoeconômicos americanos. Em vez disso, eram clientes subservientes que
auxiliavam Washington a realizar seus planos para a região.
Organizados em redes produtivas de subcontratação de múltiplas camadas
centradas no Japão, os exportadores asiáticos ocupavam diferentes elos da
cadeia de valor, cada um se especializando em produtos com determinado nível de
lucratividade e sofisticação tecnológica. O Japão focou-se nos itens com maior
valor agregado; os quatro tigres, em produtos de nível intermediário; os tigres
emergentes do Sudeste Asiático, em produtos de baixo custo, intensivos em
trabalho. Esse famoso padrão de gansos voadores formou uma rede de fornecedores
confiáveis de uma ampla gama de bens de consumo para o Primeiro Mundo.
Quando as tensões da Guerra Fria começaram a arrefecer nos anos 1980, os
déficits de transações correntes e fiscais dos Estados Unidos aumentaram, como
resultado de cortes de impostos neoliberais e do crescimento dos gastos
militares relacionados às fases finais da Guerra Fria. Em vez de sair da órbita
da hegemonia americana, no entanto, as economias asiáticas estreitaram seus
laços com os Estados Unidos, financiando os seus déficits gêmeos em franca
ascensão. A industrialização orientada para as exportações do Leste Asiático
estivera ligada a níveis baixos de consumo doméstico. Os subsequentes
superávits comerciais e altas taxas de poupança permitiram que esses estados
acumulassem poder financeiro substancial na forma de grandes reservas cambiais.
Considerando os títulos do tesouro americano o investimento mais seguro das
finanças globais, a maioria dos exportadores do Leste Asiático despejou
voluntariamente seu dinheiro acumulado em títulos de baixo retorno, tornando-se
os principais credores dos Estados Unidos. Esse financiamento do déficit de
transações correntes americano estimulou, então, o apetite dos Estados Unidos
pelas importações asiáticas, e o crescimento adicional dos superávits
comerciais asiáticos ainda aumentou as compras de títulos do tesouro. Esses
processos que se alimentavam mutuamente ampliaram de forma contínua a
dependência econômica e financeira do Leste Asiático em relação aos Estados
Unidos, colaborando para prolongar a sua frágil prosperidade enquanto a
hegemonia americana se consolidava.
A partir do anos 1980 e de forma mais acelerada nos anos 1990, as reformas de
mercado da RPC transformaram-na em um tigre asiático retardatário. Muitos
previram que esse país seria singularmente capaz de romper com as dependências
gêmeas da Ásia em relação aos Estados Unidos, em decorrência de sua autonomia
geopolítica e de sua magnitude demográfica e econômica excepcional. Mas não foi
dessa vez que a China se libertou da servidão de fornecer aos Estados Unidos
crédito barato e importações de baixo custo. Pior, a intensidade de seu modelo
de crescimento impulsionado pelas exportações e baseado na repressão do consumo
privado fez com que sua dependência econômica e financeira em relação aos
Estados Unidos fosse ainda maior do que a de seus antecessores. Se compararmos
os aspectos mais importantes da economia política da China com os de seus
vizinhos em um estágio similar de desenvolvimento, concluímos que o modelo
chinês é, em grande medida, uma réplica levada ao extremo do crescimento
inicial do Leste Asiático. O Gráfico_1 mostra que a dependência comercial da
economia chinesa, medida pelo valor total de suas exportações como percentual
do produto interno bruto (PIB), tem crescido continuamente, atingindo um nível
jamais alcançado pelas outras economias do Leste Asiático. Por outro lado, a
participação percentual do consumo privado chinês no PIB tem diminuído, caindo
bem abaixo da participação dos outros países durante a decolagem de suas
economias (Gráfico_2). Conforme indica a Tabela_1, os Estados Unidos são,
sozinhos, o mercado de exportação mais importante para a China - como foram
antes para o Japão e os tigres asiáticos -, tendo sido apenas ultrapassados
recentemente pela União Europeia, considerada em sua totalidade. A China já se
tornou o principal fornecedor asiático dos Estados Unidos.
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A drástica expansão dos setores exportadores da China não é apenas a razão por
trás de seu impressionante crescimento econômico, mas também, por meio de um
superávit comercial crescente, de seu poder financeiro global. Como indicado no
Gráfico_3, as reservas cambiais da China atualmente excedem bastante as de seus
vizinhos do Leste Asiático. Até agora, a China, como os outros exportadores,
tem investido a maior parte de sua poupança em títulos do tesouro dos Estados
Unidos. Às vésperas da crise das hipotecas subprime, a China emergira como o
maior exportador para os Estados Unidos e, ao mesmo tempo, o seu maior credor,
financiando o déficit de transações correntes americano e sustentando sua
capacidade de absorver importações (Gráfico_4). Enquanto as exportações de
baixo custo da China ajudaram a baixar a inflação nos Estados Unidos, sua
compra espetacular de títulos do tesouro contribuiu para reduzir seu retorno e,
assim, também as taxas de juros nos Estados Unidos. Dessa maneira, a China
emergiu nos últimos anos como o principal suporte da vitalidade econômica
americana.
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CRISE AGRÁRIA
A habilidade da China de instituir uma versão extrema do modelo do Leste
Asiático de crescimento impulsionado pelas exportações ao longo das últimas
três décadas dependeu tanto da conjuntura global quanto da sua economia
política interna. Em primeiro lugar, a decolagem com desenvolvimento intensivo
em trabalho coincidiu com o início de uma expansão sem precedentes do livre-
comércio global, a partir da década de 1980. Não fosse pela deslocalização
[outsourcing] da indústria do Norte global e pelo crescente apetite deste para
importar produtos manufaturados de baixo custo, teria sido impossível para a
RPC prosperar por meio das exportações. Mas, essencialmente, a competitividade
excepcional da China é, em grande parte, baseada na prolongada estagnação dos
salários industriais em comparação com outros países asiáticos em estágios
equivalentes de desenvolvimento.
Muitos argumentam que a competitividade salarial da China origina-se de seu
regime de câmbio fixo, que subvaloriza sua moeda consideravelmente. Outros
afirmam que o imenso excedente de mão de obra rural do país permitiu seu
desenvolvimento, com uma oferta "ilimitada" de trabalho, por muito mais tempo
que outras economias asiáticas. Mas um exame mais próximo revela que ambas as
explicações são inadequadas. Em primeiro lugar, conforme indica o Gráfico_5, a
diferença entre os níveis de salário da China e os de seus vizinhos é muito
maior do que a que um câmbio subvalorizado poderia explicar. Mesmo que se
estimasse o iuane entre 20% e 30% em relação ao dólar como defendem muitos
críticos americanos da manipulação cambial chinesa -, os salários chineses
ainda seriam significativamente menores. Em segundo lugar, uma oferta ilimitada
de trabalho não é um fenômeno natural resultante da estrutura populacional da
China, como com frequência se supõe. Na realidade, é uma consequência das
políticas rurais-agrícolas do governo, que, intencionalmente ou não, faliram o
campo e geraram um contínuo êxodo rural.
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A relação entre essas políticas e os baixos níveis salariais pode ser ilustrada
comparando-se o desenvolvimento rural da China com o do Japão, da Coreia do Sul
e de Taiwan, que também dispunham de grandes populações rurais e setores
agrários no início de sua decolagem econômica. No Japão do pós-guerra, o
Partido Liberal Democrata, então no poder, direcionou ativamente recursos para
o campo, por meio de gastos com infraestrutura rural, financiamento do
desenvolvimento agrário, subsídios às propriedades rurais e tarifas sobre a
produção estrangeira. Na Coreia do Sul, o regime Park lançou o Saemaul Undong
[Movimento Novas Vilas] no início dos anos 1970, deslocando recursos fiscais
significativos para melhorar a infraestrutura rural, financiar a mecanização
agrícola e instalar instituições e cooperativas educacionais rurais. Essa
iniciativa foi um sucesso notável: aumentou a renda das famílias rurais de 67%
da renda urbana, em 1970, para 95%, em 1974, eliminando virtualmente a
disparidade de renda rural-urbana4. Em Taiwan, o governo do Kuomintang adotou
políticas similares nos anos 1960 e 1970, paralelamente a esforços conscientes
para promover a industrialização rural. A estrutura descentralizada resultante
da indústria taiwanesa permitiu aos agricultores trabalharem de forma sazonal
nas fábricas das proximidades sem abandonar completamente a agricultura ou
migrar para as grandes cidades. Isso ajudou a reter uma parcela considerável da
mão de obra nas vilas, encorajando um crescimento rural-urbano mais
equilibrado. Ao longo dos anos 1960 e 1970, a renda rural per capita se manteve
acima de 60% do nível urbano. Sob tais políticas, não é surpreendente que o
excedente de mão de obra rural tenha secado rapidamente e que os salários
industriais tenham se elevado nesses países.
As razões para a adoção dessas trajetórias diferentes variaram. No Japão, a
importância dos votos rurais para o sucesso eleitoral do Partido Liberal
Democrata explica sua atenção ao desenvolvimento rural. Para os regimes
autoritários de direita da Coreia do Sul e de Taiwan, a promoção do
desenvolvimento rural-agrícola foi uma maneira de minimizar o deslocamento
social que usualmente acompanha a industrialização e de se antecipar ao
crescimento da influência da esquerda no campo. Foi também uma forma crucial de
garantir a segurança alimentar no contexto das tensões da Guerra Fria. Em
contraste, o desenvolvimento industrial da China desde meados dos anos 1980 tem
sido muito mais desequilibrado do que o do Japão, o da Coreia do Sul e o de
Taiwan. Ao longo dos últimos vinte anos, o governo chinês tem concentrado
grande parte dos investimentos no setor urbano-industrial, particularmente nas
áreas costeiras, deixando defasado o investimento rural e agrícola. Bancos
públicos também focaram os seus esforços no financiamento do desenvolvimento
urbano-industrial, enquanto o financiamento rural e agrícola foi negligenciado.
Nas últimas duas décadas, a renda rural per capita nunca excedeu 40% do nível
urbano.
Esse viés urbano emergiu, ao menos parcialmente, devido ao predomínio de uma
poderosa elite urbano-industrial das regiões costeiras do sul - um segmento que
germinou após a integração inicial da China na economia global, que expandiu
seus recursos financeiros e sua influência política com o boom das exportações
e que se tornou crescentemente adepto da prática de moldar a política do
governo central a seu favor. De acordo com uma avaliação recente, a "facção
elitista" do Partido Comunista Chinês (PCC) - composta de líderes antigos que
construíram suas carreiras nas regiões costeiras e na administração financeira
e do comércio - controla mais assentos no politburo do que a "facção populista"
rival, que tem laços mais estreitos com as províncias do interior. Embora Hu
Jintao, o atual chefe de Estado, seja um líder da facção populista, Xi Jinping
- escolhido pelo partido para suceder Hu em 2012, em detrimento do próprio
favorito de Hu - foi governador das províncias litorâneas de Fujian e Zhejiang
e é um dos principais membros da facção elitista5. A crescente influência dessa
facção assegurou que fosse dada mais atenção ao aumento da competitividade das
exportações chinesas e da atratividade ao investimento estrangeiro em
detrimento do desenvolvimento agrário. As revoltas urbanas de 1989, provocadas
pela hiperinflação e pela deterioração do padrão de vida nas grandes cidades,
apenas tornaram o partido estatal mais determinado a garantir nos anos 1990 a
prosperidade econômica das áreas metropolitanas à custa do campo.
O resultado desse viés urbano tem sido uma relativa estagnação econômica no
campo e um concomitante rigor fiscal empreendido pelos governos locais rurais.
A partir dos anos 1990, a deterioração das rendas rurais e o declínio das
indústrias coletivas rurais - empresas das vilas e dos municípios que
costumavam ser vibrantes geradoras de empregos nos estágios iniciais das
reformas de mercado - forçaram a maior parte dos jovens trabalhadores do campo
a migrar para a cidade, criando um círculo vicioso que precipitou uma crise
social rural. O setor agrário da China não só foi apenas negligenciado, como
também explorado em benefício do crescimento urbano. Um estudo recente concluiu
que houve uma transferência líquida contínua e crescente de recursos do setor
rural-agrícola para o urbano-industrial, entre 1978 e 2000, tanto por meio de
política fiscal (impostos e gastos do governo) quanto por meio do sistema
financeiro (depósitos de poupanças e empréstimos)6. As exceções a essa
tendência foram os anos em que a economia urbana passou por um declínio
temporário, como ocorreu após a crise financeira asiática de 1997-1998 (ver
Gráfico_6).
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Esse modelo que favorece o desenvolvimento urbano em detrimento do
desenvolvimento rural da RPC é, portanto, fonte da prolongada oferta
"ilimitada" de trabalho chinês e, assim, da estagnação salarial que
caracterizou o seu milagre econômico. Esse padrão também é responsável pelo
ascendente superávit comercial da China, a fonte de seu crescente poder
financeiro global. No entanto, os baixos salários e o baixo padrão de vida no
campo, que resultaram dessa estratégia de desenvolvimento, limitaram o mercado
de consumo doméstico chinês e aprofundaram sua dependência em relação à demanda
por consumo do Norte global, a qual se sustenta cada vez mais por empréstimos
substanciais da China e de outros exportadores asiáticos. Como esses outros
exportadores foram integrados no motor de exportação chinês, por meio da
regionalização de redes produtivas industriais, as vulnerabilidades da economia
chinesa tornaram-se fragilidades do Leste Asiático como um todo.
DEPENDÊNCIA SINOCÊNTRICA
Nos anos 1990, a China se estabeleceu de forma gradual como o mais competitivo
exportador asiático em vários níveis de sofisticação tecnológica. Como
resultado, os outros países - incluindo o Japão e os quatro tigres originais,
além de um grupo de tigres emergentes do Sudeste Asiático, como a Malásia e a
Tailândia - foram colocados sob intensa pressão para se ajustar. A
competitividade da RPC induziu muitos exportadores de produtos manufaturados,
vindos de outros lugares da Ásia, a se mudarem para lá. Uma reportagem da
Economist de 2001 notou o "temor e desespero" com o qual os vizinhos da China
reagiram a sua ascensão:
O Japão, a Coreia do Sul e Taiwan temem um "esvaziamento" das suas
indústrias, enquanto fábricas mudam-se para a China devido aos seus
baixos custos. O Sudeste Asiático preocupa-se com o "deslocamento"
dos fluxos comerciais e de investimento. [...] A China não é um ganso
[voador] [...] porque fabrica tanto produtos simples quanto
sofisticados, fraldas descartáveis e microchips [...] Ela fabrica
produtos ao longo de toda a cadeia de valor, em uma escala
determinante dos preços mundiais. Daí a ansiedade do Leste Asiático.
Se a China é mais eficiente em tudo, o que resta para os seus
vizinhos produzirem?7
Decerto, os vizinhos da China reestruturam meticulosamente os seus setores
exportadores a fim de minimizar a competição frontal com a economia chinesa e
de lucrar com a sua ascensão. Sob a antiga ordem industrial do Leste Asiático,
cada economia exportava grupos específicos de bens de consumo acabados. Agora,
esses países começaram a aumentar a proporção de componentes de alto valor
agregado (Coreia do Sul e Taiwan) e de bens de capital (Japão) nas suas
exportações para a China.
Conforme a Tabela_2 indica, as exportações da Coreia do Sul, de Hong Kong e de
Taiwan para a China ultrapassaram suas exportações para os Estados Unidos ao
longo da última década, enquanto as do Japão e de Cingapura para a China
aproximaram-se rapidamente de suas exportações para os Estados Unidos. Até
2005, o modelo de regionalismo asiático de "gansos voadores" centrado no Japão
foi substituído por uma rede produtiva sinocêntrica na qual a China exportava a
maior parte dos bens de consumo para o Norte global em nome dos seus vizinhos
asiáticos, que a proviam com componentes e máquinas necessários para montá-los.
Essa estrutura pode ser vista como um time de funcionários, tendo a China como
chefe, liderando os demais no fornecimento de exportações baratas para os
Estados Unidos e na utilização de suas poupanças conquistadas arduamente para
financiar as compras americanas dessas exportações.
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A integração regional no Leste Asiático reflete-se claramente na correlação
entre os altos e baixos dos dados de exportação da China e seus vizinhos. Por
exemplo, a recuperação da Ásia da crise financeira de 1997-1998 e o crescimento
renovado do Japão após 2000 podem ser atribuídos, ao menos em parte, à absorção
de seus componentes manufaturados e de seus bens de capital pelo boom econômico
chinês. Quando a atual crise global começou a se delinear e a demanda dos
consumidores dos Estados Unidos passou a se contrair de forma abrupta no outono
de 2008, as exportações asiáticas despencaram imediatamente, enquanto as da RPC
encolheram na mesma proporção apenas três meses depois. A causa dessa
disparidade temporal foi o fato de que a queda nas exportações asiáticas deveu-
se em grande parte a um declínio das encomendas de componentes e de bens de
capital realizadas pela China, antecipando a queda violenta nas encomendas por
produtos acabados realizadas pelos Estados Unidos e por outros países, que
ocorreria nos meses seguintes. Os limites do modelo de desenvolvimento chinês -
excessiva dependência no consumo do Ocidente e crescimento letárgico do mercado
doméstico - traduzem-se inevitavelmente em vulnerabilidades de seus parceiros
asiáticos, deixando todas essas economias expostas a qualquer contração da
demanda por consumo do Norte global. Reequilibrar o desenvolvimento da China,
portanto, não é necessário apenas para a sustentabilidade de seu crescimento
econômico, mas também para o futuro coletivo do Leste Asiático como um bloco
econômico integrado.
OBSTÁCULOS PARA O REEQUILÍBRIO
Os governos da China e do Leste Asiático utilizaram suas reservas
internacionais para comprar títulos da dívida americana não apenas em busca de
retornos presumivelmente estáveis e seguros, mas também como parte de um
esforço deliberado de financiar o crescente déficit em transações correntes dos
Estados Unidos e, assim, assegurar um aumento contínuo da demanda americana por
suas próprias exportações. Mas o déficit não se expande indefinidamente, o que
pode às vezes resultar em um colapso do dólar ou do mercado de títulos do
tesouro e em um salto das taxas de juros, colocando um fim à farra de consumo
americana. Isso não seria somente um golpe mortal para o motor exportador da
China, como também dizimaria seu poder financeiro global por meio de uma
drástica desvalorização de seus investimentos preexistentes.
Antes da crise atual, o governo chinês experimentou diferentes maneiras de
diversificar e ampliar os retornos sobre suas reservas internacionais. Tentou
investir em ações estrangeiras e financiar a aquisição de corporações
transnacionais pelas companhias estatais, mas quase todas as tentativas
terminaram como fracassos constrangedores. Isso foi menos o resultado de más
decisões de investimento do que dos limites impostos pela magnitude excepcional
das reservas internacionais da China, tornando difícil para Pequim entrar e
sair livremente de certos ativos financeiros sem desorganizar os mercados
globais. Ao mesmo tempo, as compras de importantes companhias estrangeiras
pelos chineses tinham grande probabilidade de incentivar reações protecionistas
ou nacionalistas. Como resultado, as aquisições estrangeiras da China foram, em
sua maioria, de empresas em declínio que procuravam compradores
desesperadamente. Esses obstáculos para diversificar seus investimentos ficaram
evidentes na compra desvantajosa, em 2005, do setor de computadores pessoais da
IBM pela Lenovo, uma importante corporação de informática ligada ao governo
chinês; na perda substancial incorrida no investimento de 2007 da Corporação de
Investimento da China, o fundo soberano chinês, na Blackstone; e no crescimento
do sentimento anti-China na Austrália, em 2009, desencadeado pela tentativa da
Chinalco, uma companhia estatal gigante de recursos minerais, de ampliar
significativamente sua participação na Rio Tinto, a maior companhia mineradora
da Austrália. A acumulação pela China de estoques de petróleo importado e de
outras mercadorias, para se proteger contra o aumento dos preços das matérias-
primas, também levou a perdas substanciais quando os preços despencaram no
rastro do declínio global.
Além de expor o país às vicissitudes dos mercados globais, o modelo chinês,
orientado para a exportação, restringiu drasticamente o consumo. Conforme
sugerido anteriormente, a competitividade das exportações chinesas foi
construída sobre uma estagnação salarial de longo prazo, a qual, por sua vez,
originou-se de uma crise agrária sob um regime de políticas de viés urbano. Em
vez de compartilhar uma parte maior dos lucros com os empregados e melhorar seu
padrão de vida, o próspero setor exportador transformou a maior parte de seu
excedente em poupança corporativa, que hoje constitui uma grande proporção da
poupança agregada nacional. Como indica o Gráfico_7, a partir do final dos anos
1990, o total dos salários como percentual do PIB declinou, em conjunto com a
queda no consumo privado. Essas duas tendências decrescentes contrastam de
forma marcante com o volume crescente dos lucros corporativos. Embora o consumo
esteja aumentando em termos absolutos, ele tem crescido muito mais
vagarosamente do que o investimento (ver Gráfico_8).
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A restrição do consumo privado não apenas dificultou que as empresas orientadas
para o mercado doméstico reduzissem os seus estoques, como também trouxe
frustrações para muitas empresas estrangeiras que tinham expectativas elevadas
em relação ao mercado supostamente gigante da China. Embora já consolidada como
compradora importante de bens de capital, componentes manufaturados e recursos
naturais do Japão, do Sudeste Asiático, do Brasil e de outros lugares, a China
ainda precisa realizar seu potencial de grande importador de bens de consumo
tanto do mundo desenvolvido quanto do mundo em desenvolvimento. A revista
Economist tomou as dores desses desalentados investidores estrangeiros, dizendo
que "o mercado se revelará menor do que o esperado e demorará mais para se
desenvolver. E, como tantas empresas estrangeiras estão se acumulando, a
competição deverá ser intensa [...]. Como as empresas estrangeiras poderão
gerar retornos aceitáveis na China?"8. No mesmo espírito, quando ficou claro
que a demanda chinesa por automóveis crescera muito mais vagarosamente do que a
capacidade produtiva do setor, a revista Forbes reconheceu que a "competição
crescente na China levou à sobrecapacidade industrial e ao rápido declínio das
margens de lucro dos fabricantes de carros para um nível em grande parte
alinhado com o resto do mundo, entre 4% e 6%"9.
Na tentativa de reequilibrar o desenvolvimento da China, caracterizado pelo
premiê Wen Jiabao em 2007 como "instável, desequilibrado, descoordenado e
insustentável", o governo central sob Hu Jintao e seu aliados "populistas"
buscou, a partir de 2005, estimular o consumo doméstico aumentando a renda
disponível de camponeses e trabalhadores urbanos. A primeira onda de tais
iniciativas incluiu a abolição de impostos agrícolas e um aumento dos preços de
aquisição de produtos agrícolas pelo governo. Embora essas medidas para
melhorar o padrão de vida rural tenham sido apenas um pequeno passo na direção
correta, seu efeito foi instantâneo. Condições levemente superiores no setor
rural-agrícola diminuíram o fluxo migratório para as cidades e seguiram-se uma
repentina escassez de trabalho e um salto salarial nas zonas costeiras de
processamento de exportações, induzindo muitos economistas a declararem que o
ponto de virada lewisiano10 - quando esgota o excedente de mão de obra rural-
havia sido finalmente atingido11.
Assim como a oferta "ilimitada" de trabalho na China era mais uma consequência
de políticas do que uma precondição natural de seu desenvolvimento, a chegada
do ponto de virada lewisiano foi, na verdade, o resultado de tentativas
estatais de reverter o viés urbano precedente, e não um processo guiado pela
mão invisível do mercado. Concomitantemente à elevação da renda dos camponeses
e dos salários industriais, ocorreu um crescimento sem precedentes das vendas
do varejo, mesmo descontando-se a inflação (ver Gráfico_9). Mas, logo após o
governo dar o primeiro passo em direção ao crescimento impulsionado pelo
consumo doméstico, os interesses ligados ao setor exportador passaram a
reclamar ruidosamente da deterioração de suas perspectivas. Reivindicaram-se
políticas compensatórias para assegurar sua competitividade e tentou-se sabotar
iniciativas adicionais para elevar o padrão de vida das classes trabalhadoras,
tais como a Nova Lei do Contrato de Trabalho, que aumentaria a remuneração dos
trabalhadores e dificultaria sua demissão, e a apreciação controlada do iuane.
[/img/revistas/nec/n89/02g09.jpg]
Quando a crise global estourou, emperrando o motor exportador da China, o
governo lançou imediatamente, em novembro de 2008, um megapacote de estímulo
fiscal somando US$ 570 bilhões (incluindo gastos do governo e empréstimos
direcionados dos bancos públicos). De início, muitos comemoraram essa
intervenção substancial como uma oportunidade preciosa para acelerar o
reequilíbrio da economia chinesa em direção ao consumo doméstico e torceram
para que o estímulo consistisse sobretudo em gastos sociais, como financiamento
de seguro de saúde e seguridade social, que poderiam elevar ainda mais a renda
disponível e, assim, o poder de compra das classes trabalhadoras. No entanto,
não mais do que 20% do pacote de estímulo foi alocado para despesas sociais. A
grande maioria destinou-se a investimento em ativos fixos em setores já minados
por sobrecapacidade, tais como aço e cimento, e na construção do maior sistema
ferroviário de alta velocidade do mundo, cuja lucratividade e utilidade são
incertas12. Sem fornecer muito auxílio para as instituições de bem-estar social
ou para as pequenas e médias empresas de trabalho intensivo, o pacote de
estímulo gerou apenas uma melhora limitada da renda disponível e do emprego.
Pior, o governo central, aparentemente horrorizado com o colapso repentino do
setor exportador, recuou dos seus esforços reequilibradores e retomou inúmeras
medidas de promoção de exportações, como abatimentos em impostos sobre o valor
adicionado das exportações e a interrupção da apreciação do iuane. Industriais
desses setores valeram-se da crise para demandar, como questão de
sobrevivência, uma suspensão da Nova Lei do Contrato de Trabalho, de 200713.
A despeito de seu tamanho impressionante, o estímulo fiscal fez pouco para
promover o consumo doméstico e, assim, reduzir a dependência da China em
relação às exportações. Ainda que uma grande quantidade de recursos tenha sido
direcionada para as províncias ocidentais, para aliviar a disparidade de
desenvolvimento entre o litoral e o interior, o crescimento promovido pelo
estímulo, majoritariamente intensivo em capital e orientado para as cidades, na
realidade agravou a polarização rural-urbana (ver Tabela_3). Enquanto o grande
viés urbano do investimento em ativos fixos prosseguiu, a disparidade rural-
urbana no crescimento da renda, que se reduzira após 2005, ampliou-se novamente
sob esse estímulo, freando a melhora relativa do padrão de vida rural, que
havia ajudado a estimular um crescimento modesto no consumo doméstico.
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Os gastos substanciais na realidade logram manter a economia aquecida graças a
um surto de curto prazo de investimento impulsionado pelo Estado, enquanto se
aguarda mercado para as exportações melhorarem. Até o verão de 2009, os dados
mostravam que o estímulo interrompera de forma bem-sucedida a queda livre da
economia chinesa e encorajara uma modesta recuperação. Mas, ao mesmo tempo,
quase 90% do crescimento do PIB nos primeiros sete meses de 2009 foi
impulsionado somente por investimentos em ativos fixos estimulados por uma
explosão de crédito e um aumento do gasto do governo14. Muitos desses
investimentos são ineficientes e, em geral, não são lucrativos (ver Tabela_3).
Se a recuperação do mercado para a exportação não ocorrer a tempo, o déficit
fiscal, empréstimos não executáveis e uma exacerbação da sobrecapacidade vão
gerar um declínio mais profundo no médio prazo. Nas palavras de um eminente
economista chinês, esse megaprograma de estímulo é como "beber veneno para
matar a sede"15.
PERSPECTIVAS
Nas últimas duas décadas, a China emergiu como montadora final e plataforma de
exportação da rede produtiva do Leste Asiático. Ela também obteve o status de
maior credor dos Estados Unidos e maior portador de reservas internacionais, e
demonstrou potencial tanto para ser a fábrica do mundo como para se tornar seu
maior mercado. A China está, pois, preparada para estabelecer uma nova ordem
econômica regional e global, auxiliando a Ásia e o Sul global a sair de suas
posições de dependência econômica e financeira em relação ao Norte em geral e
aos Estados Unidos em particular.
O potencial de liderança da China, contudo, está longe de ser realizado. Até
agora, a estratégia chinesa de emprestar para os Estados Unidos a fim de
facilitar suas compras de exportações chinesas apenas aprofundou a dependência
do país, assim como de seus fornecedores, em relação aos consumidores
americanos e ao mercado de títulos dos Estados Unidos. A competitividade de
longo prazo das exportações da RPC está enraizada em uma abordagem
desenvolvimentista que arruína o campo e prolonga a oferta ilimitada de mão de
obra migrante de baixo custo para os setores exportadores do litoral. O
superávit comercial resultante, em permanente crescimento, pode inflar o poder
financeiro global da China, na forma de acumulação ampliada de dívida
americana, mas a repressão salarial de longo prazo limita o crescimento de seu
poder de consumo. A crise financeira atual, que dizimou a demanda por consumo
do Norte global e aumentou a probabilidade de um colapso do mercado de títulos
dos Estados Unidos e do dólar, é um alerta tardio para a urgência de uma
mudança de rumo.
Pequim sabe muito bem que a acumulação contínua de reservas internacionais é
contraprodutiva, uma vez que elevaria o risco associado aos ativos que a China
já detém ou então induziria um deslocamento para outros ainda mais arriscados.
O governo também sabe da necessidade de reduzir a dependência do país em
relação às exportações e de estimular o crescimento da demanda doméstica por
meio do aumento da renda disponível das classes trabalhadoras. Tal
redirecionamento de prioridades deve envolver o afastamento dos recursos e das
preferências políticas das cidades litorâneas para o interior rural, onde a
prolongada marginalização social e o subconsumo abriram um amplo espaço para
melhorias. Mas os interesses que se enraizaram ao longo de várias décadas de
desenvolvimento impulsionado pelas exportações tornam essa tarefa intimidadora.
Oficiais e empresários das províncias litorâneas, que se tornaram um grupo
poderoso capaz de moldar a formação e a implementação das políticas do governo
central, estão até agora inflexíveis em sua resistência a tal reorientação.
Essa facção dominante da elite chinesa, como exportadores e credores da
economia mundial, estabeleceu uma relação simbiótica com a classe dominante
americana, que tem se empenhado em manter sua hegemonia doméstica assegurando o
padrão de vida dos cidadãos dos Estados Unidos, como consumidores e devedores
do mundo. A despeito de rusgas ocasionais, os dois grupos da elite de ambos os
lados do Pacífico compartilham um interesse em perpetuar os seus respectivos
status quo doméstico, assim como o atual desequilíbrio da economia global.
A não ser que haja um realinhamento político fundamental que desloque o
equilíbrio de forças da elite urbana litorânea para as forças que representam
os interesses populares rurais, a China deve continuar liderando os outros
exportadores asiáticos na tarefa de servir diligentemente os Estados Unidos -
mantendo-se refém deles. O establishment anglo-saxão tornou-se recentemente
mais respeitoso em relação aos seus parceiros asiáticos, convidando a China a
se tornar uma "parte interessada" na ordem global "ChiAmericana", ou "G2". O
que eles pretendem é que a China não complique a situação, mas continue
contribuindo para manter a dominância econômica americana (em retorno, talvez,
de mais consideração em relação às preocupações de Pequim no que diz respeito
ao Tibet e a Taiwan). Isso permitiria a Washington ganhar um tempo precioso
para assegurar o seu comando sobre setores emergentes da economia mundial por
meio de investimentos do governo, financiados com emissão de dívida, em
tecnologia verde e outras inovações, transformando, assim, sua combalida
supremacia em hegemonia verde. Isso parece ser exatamente aquilo em que o
governo Obama está apostando como resposta de longo prazo para a crise global e
o poder americano declinante.
Se a China reorientasse o seu modelo de desenvolvimento e alcançasse um
equilíbrio maior entre consumo doméstico e exportações, poderia não apenas se
livrar da dependência em relação ao mercado de consumo em queda dos Estados
Unidos e do vício em relação à arriscada dívida americana, mas também
beneficiar em outras economias asiáticas industriais igualmente ansiosos para
escapar desses perigos. Mais essencialmente, se outras economias emergentes
adotassem uma reorientação similar e o comércio Sul-Sul se aprofundasse, elas
poderiam, então, tornar-se consumidoras umas das outras, prenunciando uma nova
fase de crescimento autônomo e justo no Sul global. Até isso ocorrer, no
entanto, uma recentralização do capitalismo global do Ocidente para o Oriente e
do Norte para o Sul, na sequência da crise global, é pouco mais do que uma
ilusão.
HUNG HO-FUNG é professor de Sociologia na Universidade de Indiana, Bloomington.
Organizou recentemente o livro China and the transformation of global
capitalism (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2009).
[*] Publicado originariamente em New Left Review, nº 60, nov.-dez. 2009, pp. 5-
25.
[**] Agradeço às sugestões à tradução feitas por Raphael Neves e Lucia Del
Picchia. [N. T.]
[1] Uma versão anterior deste ensaio foi apresentada na conferência em
homenagem a Giovanni Arrighi, promovida pela Universidad Nómada e pelo Museo
Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madri), entre 25 e 29 de maio de 2009.
Agradeço aos comentários dos participantes presentes na ocasião.
[2] A distinção entre global North [Norte global] e global South [Sul global] é
comum na literatura ligada às teorias do sistema-mundo, à qual este artigo se
filia. Por esse motivo, optou-se por traduzir essas expressões de forma
literal, ainda que resultem incomuns em português. [N. T.]
[3] Ver Altman, Roger. "The great crash, 2008: a geopolitical setback for the
West". Foreign Affairs, jan.-fev. 2009.
[4] Lie, John. "The State, industrialization and agricultural sufficiency: the
case of South Korea". Development Policy Review, vol. 9, nº 1, 1991, pp. 37-51.
[5] Li, Cheng. "One party, two coalitions in China's politics". Brookings
Institute, 16/08/2009.
[6] Jikun, Huang, Rozelle, Scott e Honglin, Wang. "Fostering or stripping rural
China: modernizing agriculture and rural to urban capital flows". The
Developing Economies, vol. 44, nº 1, 2006, pp. 1-26.
[7] "A panda breaks the formation". Economist, 25/08/2001.
[8] "A billion three, but not for me". Economist, 18/03/2004.
[9] "Speed bumps for automakers in China, India". Forbes, 26/03/2007.
[10] Refere-se a Arthur Lewis (1915- 1991), economista que formulou um
influente modelo de desenvolvimento econômico caracterizado por uma oferta
ilimitada de trabalho. Esse modelo foi muito utilizado para interpretar o
desenvolvimento de economias subdesenvolvidas e, graças a ele, Lewis ganhou o
Prêmio Nobel de economia em 1979. [N. T.]
[11] Fang, Cai e Yang, Du (orgs.). The China Population and Labor Yearbook .
Leiden: Brill, 2009, vol. 1.
[12] "Siwanyi neiwai" [Por dentro e por fora dos quatro trilhões]. Caijing, 16/
03/2009.
[13] Ver "Jiuye xingshi yanjun laodong hetong fa chujing ganga" [Grave
desemprego ameaça lei do contrato de trabalho]. Caijing, 04/01/2009.
[14] "Zhongguo GDP zengzhang jin 90% you touzi ladong" [Aproximadamente 90% do
crescimento do PIB da China foi impulsionado pelo investimento]. Caijing, 16/
07/2009.
[15] Xu Xiaonian, da Escola Internacional de Negócios China-Europa, em Xangai,
citado em "China stimulus plan comes under attack at 'Summer Davos'". China
Post, 13/07/2009.