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BrBRHUHu0101-546X2001000200005

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variedadeBr
Country of publicationBR
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-546X
ano2001
Issue0002
Article number00005

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Viagens do Rosário entre a Velha Cristandade e o Além-Mar

Devoção à Virgem Maria e ao seu Rosário na Europa Moderna Com o movimento reformista se espalhando pela Europa, a contestar as figuras santificadas pela Igreja Católica, salvo o Cristo, o culto a Maria ganhou novo reforço e novo papel, escolhido como arma contra-reformista. Assim, o seu culto foi se transformando em símbolo da identidade religiosa, de fidelidade à Igreja Católica na luta contra os protestantes.

Diferenças à parte, a Igreja Católica da época moderna estava marcada pelo espírito do Concílio de Trento, pela defesa do catolicismo frente ao avanço protestante. Era uma Igreja inquieta com a distância que a separava dos fiéis.

E foi pelo espírito da missão que o projeto da Reforma católica penetrou nas colônias ibéricas. A evangelização pôde, então, contar com uma imagem que era símbolo da discordância entre católicos e protestantes: a Virgem Maria.

A expansão ocidental coadunava-se com as idéias de universalidade, integração e unidade, tão caras ao cristianismo da época moderna. A cristandade tinha uma dimensão social que devia ser cumprida. Para Baeta Neves (1978), essa dimensão social refere-se à expansão do universo cristão no mundo profano, tirando deste a sua disformidade e traduzindo-o ao idioma missionário. Assim, territórios eram atravessados para anunciar o Evangelho, onde ele não era conhecido, impondo ao mundo uma homogeneidade ideológica.

O culto à Virgem tornava-se, com a expansão ultramarina, bandeira da conquista espiritual portuguesa, funcionando como poderoso elo entre a cruz e a espada.

"A popularidade e fervor do culto da Virgem não perdeu nada com a emigração através dos Sete Mares e, se possível, teve tendência a aumentar" (Boxer, 1977:130).

Senhora dos mares, rainha da paz e da guerra, durante as cruzadas ajudara os cristãos na luta contra os infiéis e continuaria atuando nas guerras santas entre católicos e protestantes. Mas, se no contexto da Reforma católica sua imagem e força estavam ainda ligadas à sua presença e intervenção nas batalhas, o espírito contra-reformista encontraria eco em uma devoção que, como pretendo sugerir, punha em relevo questões importantes para a Igreja Católica. Refiro-me à devoção ao rosário, método de oração e meditação ensinado, segundo a tradição, pela Virgem Maria e para seu louvor.

Desde meados do século XII vinham surgindo movimentos que criticavam a estrutura hierárquica da Igreja, que reclamavam sua pobreza absoluta ou que rechaçavam abertamente seus fundamentos, como era o caso dos cátaros, também conhecidos como albigenses, por ser Albi, no Sul da França, a cidade onde mais proliferaram. Domingos de Gusmão, em inícios do século XIII, foi para a região e ali desenvolveu intensa atividade no sentido de combater tais heresias e reconverter a região. Apesar dos seus esforços, as dificuldades eram grandes e, certo dia, segundo a tradição, enquanto rezava, apareceu ao religioso a Virgem Maria e ensinou-lhe um método de oração, dizendo que homens e mulheres invocariam sua ajuda com as contas que lhe entregava. Desde Pio V, os papas vêm descrevendo as origens do rosário, em suas exortações, ligadas a essa aparição, e muito se tem representado a imagem de Domingos de Gusmão, aos pés da Virgem, recebendo o colar de contas.

O fato é que a data e o local exatos da introdução do rosário na cristandade ocidental não são conhecidos, mas, segundo Warner (1991), o colar de contas é originário da Índia brahmânica e do hinduísmo, seu uso se estendeu ao budismo e mais tarde ao islã.

O colar se assemelha às contas de âmbar que, por toda Grécia, Ásia e Norte da África, os homens nas mesas de café movem através de seus dedos para acalmar seus nervos, como um cigarro, mas enquanto nestes países adquiriu um caráter laico, se converteu no Ocidente em um hábito exclusivamente religioso. (Warner, 1991:394) Assim, ainda que não seja exato, atribui-se geralmente aos cruzados a extensão do uso do colar de contas, tomado dos mulçumanos.

Importa, no entanto, aqui, marcar que essa devoção ganhou força no contexto da Reforma católica. Por volta de 1470, o dominicano Alano de Rupe publicou uma obra que despertou a crença nos poderes do rosário como meio de obter graças e a proteção da Virgem Maria, sobretudo em Colônia e Augsburgo. Seu livro inspirou outras obras e missionários, em especial os dominicanos. Em 1475, Jacob Sprenger, dominicano, caçador de bruxas e um dos autores do célebre Malleus Malleficarum, fundou a primeira confraria devotada ao rosário, em Colônia, na Alemanha. Vinte anos depois, Alexandre VI, primeiro papa a mencionar o rosário, aprovou a prática, que rapidamente se expandiu.

O rosário foi invocado nas políticas da Reforma católica. O Papa Pio V permitiu a festa de Nossa Senhora da Vitória, em todas as igrejas que tivessem um altar do rosário, para comemorar a derrota dos turcos na batalha de Lepanto, em outubro de 1571, minando o poder destes no Mediterrâneo. Segundo o papa, a vitória teria se dado graças à intercessão da Virgem, em resposta aos rosários a ela oferecidos. A festa deveria ser celebrada todos os anos no primeiro sábado de outubro, dia da semana em que se deu a batalha de Lepanto. Pio V mandou inserir, ainda, na ladainha lauretana, a invocação "Auxílio dos cristãos, rogai por nós".

Em 1573, Gregório XIII mudou o nome da festa para Nossa Senhora do Rosário, reforçando o rosário como arma da vitória, e transferiu a festa para o primeiro domingo de outubro. Na primeira década do século XVIII, o Papa Clemente XI estendeu a festa ao conjunto da Igreja, período em que as frentes católicas venceram os turcos em Petrovaradin, alijando-os de Corfu, seguindo-se outros pequenos triunfos, até a batalha decisiva em Belgrado, que forçou os turcos à paz de Passarowitz, em 1718. "A vitória de Lepanto sobrevive na lenda católica como a última cruzada heróica levada a cabo pelo homem para a instauração do Reino de Deus na terra" (ibidem:398).

Desde o Papa Pio V, como foi dito, foi descrita a origem da devoção quando da aparição da Virgem a São Domingos, conferindo ao rosário um caráter sagrado que confirmava o amor especial da Virgem por ele e o tornava emblema do direito divino na batalha contra os inimigos. "Desde a batalha de Lepanto, a Virgem e sua oração particular, o rosário, têm sido continuamente associados especialmente à luta católica contra seus inimigos" (idem:405).

A devoção ao rosário cresceu, então, quando a Igreja se sentia fraca e a apontava para uma disposição combativa. O método de oração proposto pelo rosário valorizava, ao lado da repetição das ave-marias, a meditação, restabelecendo a contemplação interior. A Virgem e o rosário foram, portanto, armas em um tempo em que, cada vez mais, os católicos pareciam acreditar na exterioridade da e na compra de indulgências para alcançar a salvação.

Segundo Julita Scarano (1978:39), divulgada a devoção na Península Ibérica, a Senhora do Rosário, em Portugal, foi adotada como padroeira de vários grupos, como o dos marinheiros no Porto, e em quase todas as cidades criaram-se igrejas a ela dedicadas. Em Lisboa, o convento dominicano tornou-se famoso por causa de uma imagem da Virgem à qual se atribuíam milagres. Logo surgiram irmandades e, entre as dedicadas à Virgem, a de Nossa Senhora do Rosário foi das mais importantes, rivalizando em número com as irmandades do Santíssimo Sacramento e das Almas, ainda mais populares. As irmandades [...] de Nossa Senhora do Rosário dos pretos surgiu em Portugal a partir de uma transformação gradativa, nascendo realmente das irmandades de brancos que tinham a mesma invocação. No esforço da Igreja católica de integrar o africano recém-chegado ao Reino, atraiu-o para as irmandades e, nesse sentido, os dominicanospodem ter tido mais sucesso em fazê-los ingressar nas associações de seus conventos. Assim, os negros participaram, inicialmente, das irmandades de brancos e, aos poucos, com o aumento numérico daqueles, talvez com apoio dos dominicanos, passaram a se reunir em núcleos separados, formando suas próprias confrarias. É possível que questões de auxílio mútuo e proteção de seus interesses os tenham levado a se desligar dos brancos e a pedir graças e mercês reais para nova associação. (ibidem:40-43) No Brasil, a devoção ao rosário foi introduzida pelos missionários e a devoção a Nossa Senhora do Rosário acabou tendo grande penetração entre os escravos, sendo várias as irmandades de negros consagradas a Nossa Senhora do Rosário na América portuguesa.

Em Portugal, os brancos, temendo ser prejudicados nas esmolas ' que em grande parte eram o sustentáculo das irmandades ' queriam uma união, uma vez que, dentro de uma associação predominantemente de brancos, os pretos teriam posição subalterna. Na Colônia, pelo contrário, preferiram manter a separação, preservando assim suas vantagens, dado o perigo representado pelo elevado número de homens de cor. (idem:44) Cabe, então, ainda investigar os motivos e os instrumentos pelos quais a devoção ao rosário penetrou entre os negros escravos. Segundo Arthur Ramos, os escravos de procedência banto, principalmente os da Angola e os do Congo, foram mais receptivos porque haviam tido contato com a devoção à Senhora do Rosário ' e a tinham como padroeira ' no Continente africano,dado que o rosário fora levado para pelos colonizadores portugueses e primeiros missionários empenhados em convertê-los.

Conquista e Missionação Portuguesa na África Ocidental Até 1460, ainda com o Infante D. Henrique, a exploração da costa africana alcançou o golfo da Guiné. Com D. Afonso V, a conquista prosseguiu com Alcácer- Quibir, em 1468, onde a mesquita local foi sagrada como igreja de Santa Maria da Misericórdia, e Arzila e Tânger, em 1471. Sob o reinado de D. João II, Azamor foi conquistada em 1486. O domínio de Safim, em 1508, e Mazagão, em 1513, com D. Manuel, manteve o projeto português de conquista do Marrocos e duas frentes de penetração no Continente: uma pelo Norte da África e região meridional e outra ao Sul do Senegal e das terras da Guiné.

Para J. F. Marques, pode-se identificar, do ponto de vista missionário, três zonas geográficas de atuação. A primeira delas seria a região da diocese de Ceuta e Tânger. "Terra de cultura vincadamente moura e de mulçumana" (Marques, 1992:125). Eram cidades-fortaleza isoladas, nas quais o catolicismo levado pelos missionários esteve sempre sitiado diante do poder mouro. A atividade dos religiosos, segundo J. F. Marques, ante a vigilância militar, não conseguiu expandir a evangelização das populações de Marrocos e Fez. "O que acontecia, de fato, era a impossibilidade material de uma catequese missionária" (ibidem:126).

A segunda zona ocuparia o extremo Sul da Mauritânia, incorporando o reino de Benim ' a influência árabe tinha penetrado com algum sucesso. Antes da expansão portuguesa, uma expansão interior mercantil mulçumana repercutiu, segundo A. Vasco Rodrigues (1992:553), no plano cultural e no mundo das crenças. E era o mulçumano ' mercador, guerreiro ou pregador do islã ', inimigo tradicional dos portugueses, que lhe fazia concorrência na região.

As influências das civilizações da África mediterrânea chegaram a atingir, para sul, a civilização Nok, a nigeriana e a de Benim. Por vezes tais influências remontam ao Egito faraônico e encontram explicação nas rotas mercantis que demandavam o ouro e o marfim.

(ibidem:543) Desse modo, os portugueses encontraram presente a idéia do monoteísmo em muitas áreas costeiras da África ocidental, mas passada pelos mouros, exercendo, pois, os princípios do Corão, anterior ao catolicismo português, uma poderosa influência nessas populações.

Os primeiros missionários nessas áreas foram os navegadores e mercadores ainda ligados à idéia das Cruzadas. Não raro esses navegadores utilizaram-se do recurso de levar nativos para Portugal para prestarem informações e serem catequizados. De volta às suas terras, esses homens podiam servir como intérpretes, auxiliando os portugueses na sua empresa. Mas, para J. F. Marques, também, muito escassamente foi bem-sucedida a evangelização na Guiné, Senegal e Benim, por causa da influência mulçumana.

a partir das duas últimas décadas do século XV a cristianização da África negra conheceu medidas e resultados consistentes. Com D. João II e D. Manuel I, o esforço apostólico da Coroa portuguesa passou dos atos isolados à adoção de uma política assentada, em traços gerais, na conversão dos reis gentios e na formação de um clero nativo (Riley, 1998:162).

Assim, ao lado das feitorias e dos interesses mercantis, seguiram a construção de igrejas e capelas e a educação na católica de crianças e jovens, transformando-os, posteriormente, em missionários em suas terras de origem. No Senegal, chegou-se a construir o convento de S. Vicente do Cabo, destinado à formação de clero negro.

A terceira zona identificada por J. F. Marquesabrangia o reino do Congo e a ponta meridional costeira da África. A chegada ao Reino do Congo, depois de meio século de investidas para o reconhecimento da costa ocidental da África e do golfo da Guiné, revelou aos portugueses uma área na qual não havia a influência islâmica.

Em fins do século XV, D. João II mandou a primeira expedição,1 sob o comando de Diogo Cão, que saiu do Tejo em direção à feitoria da Costa da Mina. Após curta estada, Diogo Cão rumou para o Sul e alcançou a foz do Rio Congo. Desembarcou na margem esquerda e erigiu em Mpinda, porto de desembarque que seria de passagem obrigatória nos séculos XV e XVI, o padrão de S. Jorge. Ali, entrou em contato com Nsoyo, chefe da localidade e soube que no interior ficava a Corte do mani Congo, Nzinga-a-Nkuwu, chefia máxima do reino. O reino do Congo, naquelaépoca, abrangia grande parte da África centro-oriental e se dividia em províncias, como a de Nsoyo, administradas por linhagens nobres. Mbanza Kongo era a capital, centro de poder de onde o mani Congo administrava a confederação juntamente com um grupo de nobres que formavam o conselho real (Vainfas & Souza, 1998:97).

Diogo Cão enviou emissários portugueses rio acima, levando, segundo a crônica de João de Barros, um presente ao rei da terra. Como não regressaram dentro do prazo, Diogo Cão voltou ao Reino português levando alguns nativos como reféns.

De volta ao Congo, esses homens foram integrados em uma embaixada de D. João II ao mani Congo. Segundo a famosa crônica de Garcia de Resende, do século XV, o rei português ofertava sua amizade e convidava o rei congolês à cristã, recomendando-lhe que deixasse os "ídolos e feitiçarias" que adoravam em seu Reino. Diogo Cão desceu em terra os congoleses que levara para Portugal e recolheu os portugueses que tinham ficado da sua primeira viagem. As informações obtidas pelos dois lados facilitaram a ulterior recepção do mani Congo, tendo cumprido papel importante os reconduzidos reféns congoleses.

Assim, para Julieta Araújo e Ernesto dos Santos (1993:642), dois aspectos marcam o início da exploração da região. Por um lado, a penetração fluvial com a exploração do estuário do Zaire. Diogo Cão subiu o curso do rio até as cataratas do Yelala, atingindo o extremo navegável do rio. Por outro, a penetração terrestre em direção a Mbanza Kongo, que mais tarde seria rebatizada de São Salvador.

Na volta a Portugal, foi a vez do Mani Congo mandar sua embaixada a D. João II.

Junto dos presentes, pedia "que lhe mandassem logo frades e clérigos e todas as coisas necessárias para ele e os de seus reinos recebessem a água do batismo", solicitando igualmente o envio de pedreiros, carpinteiros e lavradores que ensinassem em seus reinos a tratar da terra, mulheres para ensinarem a amassar pão, "porque levaria muito contentamento por amor dele que as coisas do seu reino se parecessem com Portugal" (ibidem:643). Em 1490, partiu para o Congo uma expedição sob o comando de Gonçalo de Sousa,2 na qual retornou a comitiva congolesa, assim como foram enviados os primeiros missionários.3 A expedição chegou ao porto de Mpinda e foi recebida pelo chefe da província de Nsoyo, tio do mani Congo. Ele e seu filho foram os primeiros a serem batizados, recebendo o nome de Manuel, o mesmo do irmão da rainha de Portugal. Com isso, abria-se o caminho para a conversão. Dali partiu a expedição para a capital real. O mani Congo quis ser batizado imediatamente, no que foi atendido e, seguindo o padrão analógico dos primeiros tempos da relação entre os dois reinos, recebeu o nome do rei de Portugal.

D. João I, no entanto, logo abandonaria o cristianismo, pressionado por certa facção da nobreza apegada às tradições bakongo e receosa de perder suas posições com a "nova ordem cristã" que se avizinhava. Foi com seu filho, Afonso, que reinou entre 1506 e 1543, que as bases da catolização foram sedimentadas. Ainda durante o reinado de seu pai, D. Afonso entrou em conflito com seu irmão, governador de Panga, que rejeitara a católica e tinha muitos seguidores. A luta ganhou intensidade com a sucessão no poder. Restabelecida a paz, D. Afonso mandou erigir a igreja de Santa Cruz, templo no qual foram batizados muitos súditos. D. Afonso ordenara ainda aos governadores que entregassem todos os objetos que pudessem lembrar as antigas crenças. "O monarca mandou queimar tais objetos, distribuindo em seguida imagens de santos, cruzes, rosários, etc. Mandou, além disso, erigir três igrejas: a de São Salvador, a da Virgem Maria e a de São Jaime" (idem:651).

Diante das dificuldades e do precário contingente de missionários, Afonso I pediu ajuda à Coroa portuguesa. O rei D. Manuel mandou, então, formar um grupo de moços no convento de Santo Elói de Lisboa, o primeiro seminário europeu para o clero indígena. Entre esses rapazes estava o filho de D. Afonso I, Henrique, que mais tarde seria consagrado bispo titular de Útica.

Em seu reinado, a conversão dos senhores do Congo e seus súditos significou não mudanças na vida espiritual, mas também em aspectos materiais, incluindo desde a alimentação, vestuário e construções, até a reforma administrativa do Reino, que se reorganizou à semelhança do de Portugal.

Segundo A. Custódio Gonçalves (1992:533), com a tentativa de transformar o Congo em um reino cristão, "ponta de lança da conquista espiritual da África", acreditou-se que a introdução de novos modelos culturais através da ação missionária o tornaria uma réplica do reino português. A missionação, a par das deficiências, facilitou a abrangência da educação e a entrada dos modelos de organização política, administrativa e judicial, com a instituição da nobreza, cortesãos e dignatários, insígnias e distintivos de todos os graus hierárquicos, criando no Congo a Corte de São Salvador, cujo rei se dizia irmão do monarca português.

Anterior ao achamento do Brasil e ao domínio da Índia, a descoberta de um espaço geo-humano, tão vasto e receptivo como o oferecido pelo Congo, proporcionaria a possibilidade de materializar um eficaz projecto de aculturação jamais acenado ainda a Portugal. (Marques, 1992:131) A colonização do território de Angola teve sua base inicial nos contatos com o reino do Congo. A ex-província Ngola, após sua independência do reino do Congo, mandou uma embaixada a Portugal pedindo missionários para instruírem o reino de Angola na cristã. Segundo Araújo & Santos (1993:653), entretanto, mais que o interesse na conversão, o soberano de Angola, reconhecendo a importância que as relações com Portugal conferiam ao rei congolês e buscando afirmar sua independência, tentava, com a embaixada, reatar o tráfico de escravos na região e com isso ganhar poder econômico e político em relação ao rei do Congo. Em 1559, foi enviada uma missão chefiada por Paulo Dias de Novais para, entre outros fins, converter o rei angolano e suas gentes.

Embora ao longo de todo o século XVI os portugueses continuassem a enviar escravos a partir do porto de Mpinda e do Loango, via S. Tomé, depois da fundação de Luanda, em 1575-76, Angola tornou-se o principal fornecedor de escravos.

No Congo, como em Angola, a missionação esteve presente junto aos primeiros esforços colonizadores, mas encontrou muitas dificuldades com o passar dos anos. E não se pode deixar de enfatizar que o maior problema da missionação, sem dúvida, foi a escravatura, da qual os religiosos não puderam passar ao largo.

O Rosário de Vieira Embora, originariamente, tenham sido os dominicanos os principais promotores da devoção ao rosário, com a multiplicação das irmandades além-mar eles perderam, se não a primazia, a exclusividade. Julita Scarano diz que desde o século XIV eram numerosos os conventos da ordem dominicana em Portugal, e tanto eles como as associações por eles criadas contribuíram em muito para estimular a devoção ao rosário no reino e no ultramar. Assim, desde 1556 havia confraria dessa invocação em Chaul e em outras regiões da África e Ásia onde se estabeleceram os dominicanos. Mas outras ordens também criaram irmandades do rosário, como os agostinianos e franciscanos. Na América portuguesa, a irmandade do rosário "[...] foi trazida, sobretudo, pelos jesuítas e é mesmo possível que tenha vindo com confrades saídos de Portugal, empenhados em introduzir essa piedade nos lugares que procuravam" (Scarano, 1978:47).

Foi, portanto, pela obra dos missionários que o culto se expandiu nas terras americanas e, através do culto à Senhora do Rosário, os negros rearticularam suas crenças, reinterpretando os rituais de devotamento ao rosário da Senhora.

Os negros, segundo Megale (1998:431), usavam o rosário pendurado no pescoço e, ao final do dia, reuniam-se em torno de um "tirador de reza" e ouvia- se nas senzalas o sussurrar das ave-marias e pai-nossos.

Várias foram as irmandades de negros consagradas a Nossa Senhora do Rosário na América portuguesa, o que, aliás, nos faz pensar sobre o lugar central ocupado pelas irmandades nesse cotidiano religioso colonial. Em todos os quadrantes da América portuguesa elas preencheram inúmeras necessidades de culto, mantiveram viva a chama do catolicismo, erigiram igrejas, empreenderam obras pias, garantiram enterros cristãos, assistiram os necessitados, substituíram, enfim, em diversos aspectos, a débil estrutura eclesiástica que os portugueses estabeleceram aqui.

Segundo Arthur Ramos, a obra dos missionários no Congo preparou a aceitação de várias devoções que chegaram à América portuguesa. Frei Agostinho de Santa Maria, no início do século XVIII, entretanto, tinha uma outra explicação para o início do culto entre os negros. Segundo ele, foi uma imagem resgatada em Argel que deu início ao culto e levou os negros a escolherem-na como padroeira. Gomes & Pereira (1992:346) relacionaram a ligação da festa de Nossa Senhora do Rosário com os negros a partir de um relato do surgimento da imagem nas águas.

Segundo o relato, para louvar a Mãe de Deus, os brancos trouxeram banda de música e cantaram suas loas, chamando a Virgem ' mas a imagem não se movia.

Vieram, então, os negros do Congo, batendo seus instrumentos em ritmo acelerado, e a Senhora moveu-se apenas lentamente, permanecendo nas águas. Foi somente a batida lenta dos tambores do Moçambique que tirou a imagem das águas.

, os brancos levaram a imagem para capela, onde o padre a benzeu. Mas a imagem desapareceu do altar e voltou às águas até que os negros a retiraram, desta vez definitivamente, para torná-la sua padroeira.

Uma opção da Igreja pela Virgem, ou uma opção dos negros por ela, fez da Senhora do Rosário uma devoção especial? Aqui importa pensar as estratégias de promoção do culto na América portuguesa e, desta maneira, reconhecer nos missionários jesuítas seus principais promotores, na medida em que tiveram papel preponderante na ação evangelizadora aqui difundida.

Para pensar a ação jesuítica nesse texto, no entanto, o caminho será servir-se de um dos seus maiores expoentes: Antonio Vieira, que foi, talvez, a maior figura intelectual luso-americana no século XVII. Mas a escolha do seu nome deve-se a uma série de trinta sermões que escreveu sobre o rosário, publicados originalmente em dois volumes, em 1686 e 1688, com o título Maria Rosa Mística.

Nesses sermões, Vieira escreveu sobre a importância da oração verbal e da oração mental; e como no rosário ambas se conjugam, dizia que este era o meio mais eficaz de os católicos guardarem os Mandamentos; também desenvolvia a idéia de como, através da oração do rosário, se poderia combater as heresias.

Preocupava-se, pois, em divulgar a devoção ao rosário e em demonstrar os poderes da oração através dele.

No sermão XII, um dos poucos datados, pregado em 1639, na da Bahia, Vieira dizia que, em 1475, estando a cidade de Colônia bloqueada por todas as partes, devastada e ocupada pelo exército de hereges, apareceu a Virgem Maria a Jacob Sprenger e mandou que ele pregasse e exortasse a devoção ao rosário e que prometesse, em seu nome, que, por meio dela, toda a província ficaria livre das armas inimigas. E assim a Virgem teria cumprido a promessa, pois a vitória foi obtida com a expulsão dos hereges. Ora, assim como a Virgem ordenara que Sprenger pregasse o rosário em Colônia, da mesma forma mandava que Vieira o pregasse na Bahia. Do mesmo modo, ainda, como em vários episódios de batalhas anteriores, em outros lugares da Europa, diante da ameaça herege em Pernambuco, cabia aos nossos soldados colocar a figura da Senhora nas bandeiras e usar o rosário a tiracolo, pois, assim, mesmo em desvantagem numérica, poderiam alcançar a vitória.

Mas, nos sermões XVI, XX e XXVII, Vieira parece ter preocupações para além das exegéticas. Neles, Vieira relacionou a devoção ao rosário ao cativeiro dos negros pela escravidão.

No sermão XVIII, dirigido aos negros escravos, Vieira elegeu como assunto a carta de alforria oferecida a eles pela Senhora do Rosário. O jesuíta dizia que, ao ver os negros tão devotos à Senhora, como filhos dela, concluiu ser "o cativeiro da primeira transmigração [...] ordenado por sua misericórdia para a libertação da segunda". Mais do que isso: sua carta de alforria não era promessa de liberdade eterna na outra vida, mas de os escravos se livrarem do maior cativeiro desta vida. Vieira, então, cita Homero e Sêneca para dizer que os escravos não eram escravos em tudo: a melhor parte do homem, que é a alma, é isenta de todo domínio alheio e não pode ser cativa. Desse modo, os negros, por mais que padecessem no cativeiro, deviam se lembrar que aquele não era um cativeiro total, senão que meio cativeiro.

Ora, Vieira defendia a idéia de que havia dois tipos de cativeiros: o do corpo, no qual os corpos eram cativos involuntariamente e escravos dos homens, e o da alma, em que as almas, por vontade própria, se faziam cativas e escravas do demônio. Se a alma era melhor do que o corpo, e o demônio pior senhor que o homem, se o cativeiro dos homens era temporal e o do demônio, eterno, o maior e o pior cativeiro podia ser o da alma. A Senhora do Rosário, então, segundo Vieira, haveria de libertar, tornar forros os negros do maior cativeiro. Os negros deviam, assim, cativarem-se para se libertarem e se fazerem escravos da Virgem do Rosário para não o serem do demônio; apagarem a marca do demônio, que era a marca dos cativos, e colocarem em seu lugar a marca do rosário, essa, sim, a marca dos libertos.

Segundo Saunders (1982:66), Gomes Eanes de Zurara foi um dos grandes defensores da idéia de que os africanos eram escravos por causa do pecado. Seguindo os filósofos escolásticos, acreditava que ao pecar o homem podia cair no estado servil e justificava a escravidão por ela poder transformar os negros em cristãos e por poder fazer com que usufruíssem de um nível superior de existência material. Para Saunders (idem:68), no que respeita ao século XVI, a justificação suprema para o tráfico de escravos era a que sustentava ser a escravização um método eficaz para trazer os negros à luz da cristã.

David Brion Davis (2001:109) diz que muitos historiadores exageraram a antítese escravidão versus doutrina católica. A defesa da escravidão esteve entrelaçada com conceitos religiosos, e este amálgama, que se desenvolvera na Antiguidade, estava prefigurado no judaísmo e na filosofia grega. A escravidão, desse modo, em um certo sentido era vista como uma punição resultante do pecado, ou de um defeito natural da alma, que impedia uma conduta virtuosa. Era também vista como um modelo de dependência e de submissão. Mas, ainda em outro sentido, a escravidão situava-se como ponto de partida para uma missão divina. Foi da escravidão do corpo corrompido de Adão que Cristo redimira a humanidade.

Vieira, no XXVII sermão, seguindo a visão neoplatônica da distinção entre corpo e alma, defendeu a idéia de que a real escravidão era a da alma, e desta se livrariam convertendo-se à católica, representada pela devoção a Nossa Senhora e ao rosário, possivelmente os maiores símbolos da Igreja Católica missionária e contra-reformista. Na luta pela liberdade da alma, valia mesmo, segundo Vieira, não obedecer ao senhor quando este os levasse a ofender gravemente a alma e a consciência. O jesuíta aproveitava para criticar os senhores que não deixavam serem ministrados os sacramentos para os escravos, que os deixavam sem conhecimento da doutrina, que não os deixavam ir à igreja e os deixavam viver em pecado. Cabia ao escravo, portanto, não ofender a Deus e, caso fossem por isso castigados, deveriam sofrer "animosa e cristãmente", ainda que por toda vida, pois estes castigos eram martírios.

No sermão XX, Vieira tomou como questão qual das irmandades, a de negros ou de brancos, é mais favorecida da Virgem Senhora. Para comprovar o amor da Mãe de Deus pelos escravos, Vieira lembraria do episódio da Anunciação, no qual Maria respondeu ao Anjo: "Eis a escrava do Senhor!". Vieira argumentaria, então, que a razão pela qual Maria se declarou escrava antes de conceber o Filho de Deus teria sido "porque o parto, segundo as Leis, não segue a condição do pai, senão da mãe". Assim, ao fazer essa declaração antecipada, ela quis [...] que o Filho, que havia de ser seu, como filho de Escrava, nascesse Escravo nosso. Enquanto Filho de seu Pai, é senhor dos homens; mas enquanto Filho de sua Mãe, quis a mesma Mãe, que fosse também Escravo dos mesmos homens.

No século XVII, a partir da Espanha, teve grande incremento a devoção à santa escravidão.

Da Espanha, a escravidão mariana passou à França, graças ao Cardeal de Bérulle e ao Arquidiácono de Évreux, H. Boudon, que em 1667 escreveu o livro Deus ou a Santa Escravidão à Admirável Mãe de Deus, no qual esclarece que essa forma de escravidão consiste num "santo comércio com a Rainha do Céu e da Terra, pelo qual se consagra a Ela a própria liberdade para ingressar no número dos seus escravos, constituindo-A patrona absoluta do próprio coração, cedendo-lhe o direito que se tem em todas as boas ações, dedicando-se inteiramente ao serviço de sua grandeza e fazendo disso alto protesto". (Santos, 1996:134) Em 1694, D. Pedro II de Portugal chegou a aprovar os estatutos da Confraria dos Escravos de Nossa Senhora da Conceição então padroeira do Reino e de seus domínios na igreja de Vila Viçosa. A escravidão marial ganhou contrafações e acolhida entre grupos, como o dos quietistas, que foram condenados pela Igreja, influenciada, em muito, pelo ativismo da Companhia de Jesus. Vieira, se em outros sermões pregava a prioridade ao fazer, não parece ter se detido na polêmica entre voluntaristas e quietistas, e, talvez, tenha se influenciado pela escravidão marial na esteira de Bérulle e Boudon e da escola espanhola.

O sermão XIV também dos poucos datados foi pregado na Bahia à irmandade de negros em um engenho, no ano de 1633. Nele, Vieira intentou comparar a paixão de Cristo ao sofrimento dos negros no cativeiro. E, dessa maneira, pode conjugar a exegese, a propaganda e a escravidão negra, ao falar dos mistérios contidos no rosário, compará-los ao sofrimento negro na colônia e apontar para a Virgem como mãe também dos escravos.

A análise da série de sermões Maria, Rosa Mística de Vieira pode iluminar a importância da devoção ao rosário, porém, mais do que isso, como tal devoção se conjuminava com as preocupações de uma Igreja ao mesmo tempo inquieta e expansionista. Mas a penetração da devoção ao rosário e à Senhora do Rosário no Brasil pode ser compreendida no espaço mais amplo da velha cristandade, por um lado, e do Império português, por outro.

A África foi campo de experiências da política de expansão e colonização portuguesas. Sua anterior conquista, a da América, portanto, não pode ser esquecida para avaliação também do papel fundamental que coube ao catolicismo na dominação portuguesa. Mas é ao considerar a concomitante promoção da devoção ao rosário na velha cristandade e no ultramar que podemos percebê-lo como uns dos instrumentos principais de propaganda da , ligado ao espírito da Reforma católica.

Notas 1.

Segundo A. C. Gonçalves, os cronistas João de Barros, Rui de Pina e Garcia de Resende não estão de acordo quanto às datas e número de expedições de Diogo Cão. "A primeira viagem teria sido 1482 83 e a segunda, na qual subiu o rio Congo até as cataratas do Yelala, em 1484 85" (Gonçalves, 1992:525).

2.

"Até as ilhas de Cabo Verde, a armada foi comandada por Gonçalo de Sousa.

Mas, tendo falecido este, assumiu o comando Rui de Sousa [...]" (Araújo & Santos, 1993:646) 3.

"A que Ordem pertenceriam estes três primeiros missionários? Surgem diferentes possibilidades. João de Barros, na sua Década Primeira, capítulo III, quando refere a educação, no convento dos Lóios (frades de São João Evangelista) dos jovens naturais do Congo e do seu baptismo, antes de serem entregues aos cuidados de Gonçalo de Sousa para os restiuir à pátria, diz que foi escolhido um dominicano. Os Lóios, por sua vez, reivindicam para a sua obra a primazia da acção apostólica empreendida e mencionam como superior frei João de Santa Maria, 'religioso de grandes letras e virtudes', bem como Frei João de Portalegre, Frei António de Lisboa e o 'Manicongo', Frei Vicente dos Anjos, assim chamado por ter sido um dos mais notáveis missionários da evangelização do Congo" (Araújo & Santos, 1993:648).


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