No governo dos mundos: escravidão, contextos coloniais e administração de
populações
Como é largamente conhecido, o império português foi um dos mais poderosos da
Era Moderna. Contava com uma das maiores armadas do período e possuía colônias
(e possessões) ao redor do mundo: América do Sul, África (Guiné, Angola,
Moçambique etc.) e Ásia China (Macau), Índia (Goa) e Malaca (entre outras
possessões coloniais no Sudeste Asiático) e até no Japão.
Estes colonizadores desenvolveram rotas e iniciaram redes de comércio entre
pontos distantes do mundo. De fato, não eram apenas formas de comércio que
estas colônias compartilharam, mas, sobretudo, a administração de bens e
mercadorias dentro de uma perspectiva imperial. Espécies animais (especialmente
pássaros), tipos de frutas, variedades de árvores etc., em um enorme gradiente
de espécies naturais, foram transpostas entre as colônias e entre estas e as
metrópoles européias, em um ritmo bastante dinâmico, durante toda a Era Moderna
(Crosby, 1986; Grove, 1996). Essas transferências modificaram os meio ambientes
locais, ecossistemas, culinária, tanto quanto costumes, formas de trabalho,
relacionamentos e hierarquias sociais (Russell-Wood, 1993). A combinação de
todos estes elementos teria criado o que Gilberto Freyre (1940) chamou de
"o mundo que o português criou".
Sendo tão amplo e possuindo colônias em tantos lugares, este império português
teve de lidar com diferentes grupos populacionais. Desde o princípio da
colonização brasileira, no século XVI, por exemplo, estes colonizadores lidaram
com: populações indígenas nativas (submetidas a formas de trabalho
compulsório), degredados, escravos negros trazidos da África para trabalhar nas
plantações de cana-de-açúcar etc. Especialmente a experiência de administrar
grupos sociais entre diferentes partes do mundo era muito usual. Escravidão e
diferentes formas de trabalho compulsório foram utilizadas (muitas vezes
simultaneamente) na produção de riquezas neste império. Para que se tenha uma
pequena idéia da significância deste fluxo populacional, o Brasil foi, no Novo
Mundo, a região que recebeu o maior número de escravos a partir do tráfico
Atlântico. De acordo com o estudo clássico de Phillip Curtin (1969), estima-se
que perto de 15 milhões de pessoas foram transferidas da África para as
Américas, entre os séculos XV e XIX, dos quais 4 milhões foram para o Brasil.
Assim, estamos lidando aqui com um processo de desterritorialização de bens e
especialmente pessoas (populações), expansão de contatos culturais e fluxo de
comércio, associados à expansão da fé católica e de caracteres ibéricos de
civilização. Neste sentido, desde o século XV os portugueses ampliaram o
tamanho deste(s) mundo(s) conectado(s) para usar a expressão cunhada pelo
historiador Sanjay Subrahmaniam (1997). Mesmo a percepção do mundo com
relação às diversidades humanas, por exemplo mudou muito depois deles
(Bouchon, 1999).
Para pensarmos esta problemática, partimos aqui numa jornada, seguindo o
expansionismo imperialista português, as colônias e possessões que este
processo foi fazendo. Nesta tarefa, escolhemos duas localidades deste
"mundo português" distintas e distantes, como pólos de uma reflexão
comparativa e conectada: as cidades do Rio de Janeiro e Goa, colônias que
viveram períodos e ritmos de ascensão e declínio diferenciados (das atividades
econômicas e da importância estratégica), dentro do sistema colonial português.
Não obstante, e talvez até por estas características, pólos interessantes de
serem considerados relacionalmente, especialmente levando-se também em conta
aspectos ligados à vida urbana e gestão de populações na própria metrópole
lisboeta.
O olhar sobre este cenário será também balizado pela consideração de uma
problemática que vem sendo bastante explorada pelas ciências sociais na última
década tanto do ponto de vista empírico, quanto das discussões analíticas ,
propondo questões cruciais sobre a percepção e a ordenação da vida de grupos
populacionais em diferentes pontos do globo: o chamado processo de
globalização. Estaremos aqui, portanto, especialmente interessados nas formas
de governo de populações ligadas ao trabalho escravo, servil ou outras formas
de trabalho compulsório (africanas negras ou não) diante da perspectiva de um
império de amplitude global.
Ao Sul do Equador
A cidade do Rio de Janeiro é palco inicial desta jornada.3 O projeto
colonizador português no território que mais tarde seria chamado de Brasil
começa oficialmente em princípios do século XVI. Ainda durante esse século,
estes colonizadores empreendem uma ordenação administrativa do território,
introduzindo a cultura da cana-de-açúcar como base econômica de um sistema de
exploração e povoamento, baseando-se em modelos de ação colonial já
experimentados, por exemplo, em São Tomé entre os séculos XV e XVI (Alencastro,
2000). A cultura do açúcar é primeiramente introduzida na região Nordeste,
migrando também para o Sul da colônia nos séculos seguintes (Freyre, 1954).
Embora a importação de escravos negros africanos para o Brasil para a
manutenção das atividades econômicas primordiais desta empresa colonizadora
fosse verificável desde o século XVI, a escravização de indígenas nativos foi
também muito largamente utilizada (Monteiro, 1988), embora a historiografia
brasileira pouco atente para esta dimensão.
Ainda no século XVI a cidade de Salvador passa a ser a sede administrativa da
colônia, que é, desde logo, inscrita numa rede mundial(comercial, mas também de
transferência de contingentes populacionais, e de hierarquias sociais)
submetida à autoridade administrativa metropolitana portuguesa. Carl Boxer
(1982) chega a estimar que ao fim da União Ibérica, no século XVII, o Brasil já
fosse, econômica e demograficamente, mais importante do que o Estado da Índia
na estrutura do império português.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII a cidade do Rio de Janeiro cresce
sensivelmente em significância dentro da estrutura do ultramar português
(Bicalho, 1997; Alencastro, 2000). Tal processo se deveu ao aumento da
importância do Atlântico Sul (especialmente a relação entre Brasil e Angola), e
também à descoberta e exploração de ouro no Centro-Sul do Brasil. Ao longo dos
séculos XVIII e XIX, o porto do Rio de Janeiro passa a se configurar também em
uma referência no tráfico de escravos para as Américas. Em fins do século
XVIII, já era o principal porto da colônia na comercialização de africanos
escravos e certamente um dos mais importantes no comércio em geral do
ultramar português , com um índice de comércio ilegal, porém regular, bastante
significativo. Entre fins do século XVIII e as primeiras três décadas do XIX,
foram registrados os maiores índices de entrada de africanos escravos pelo
porto do Rio de Janeiro, testemunhando-se também a prosperidade dos grandes
comerciantes locais dedicados a esta empreitada (Fragoso, 1992). Neste período,
a cidade passa a abrigar a capital da colônia brasileira transferida de
Salvador (em 1763) e vai assim se configurando progressivamente como um dos
mais, se não o mais, importante porto do Atlântico Sul.
O século XIX testemunha um crescimento ainda maior da cidade. Logo na primeira
década (1808), chega ao Brasil, instalando-se na cidade, toda a Corte de D.
João VI, vindo fugida de Lisboa em função da invasão daquela cidade pelas
tropas napoleônicas. A vinda da Corte (e toda a estrutura burocrático-
administrativa do império português) para o Rio de Janeiro não se refletiu
apenas em um crescimento demográfico exacerbado já que esta Corte
representava cerca de 15 mil pessoas (entre nobres, a elite cortesã e seus
criados, mas também toda espécie de funcionários da burocracia do Estado
português)4 , mas num total reordenamento da estrutura urbana e social em
todos os seus níveis. A instalação da Corte portuguesa, somada ao longo período
de desenvolvimento econômico que a cidade (e seu porto) já experimentavam,
fazem desta uma das maiores e mais importantes urbes do Novo Mundo (Malerba,
2000).
Com a instalação da Corte metropolitana, a cidade do Rio de Janeiro transforma-
se de capital da colônia em capital de todo o império português, passando a
sediar a maioria de suas instituições administrativas (escolas de medicina e
cirurgia, tribunais e demais instituições jurídicas, órgãos de polícia,
academias militares, bibliotecas, a Imprensa Régia, academias de artes, museus
etc.). Além disso, um variado gradiente de tipos étnicos diferentes incluindo
indígenas de grupos nativos, europeus de várias nacionalidades (vindos como
integrantes de missões diplomáticas, científicas ou artísticas), asiáticos
(como chineses, vindos para instalar a cultura do chá), somados ao amplo e
variado número de etnias africanas dos escravos negros passa a ser visível no
cotidiano da vida urbana.
É preciso marcar que a vinda da Corte lusitana para o Rio de Janeiro, além de
dinamizar a vida na cidade, já com uma certa pujança, sobretudo econômica,
redefiniu uma série de elementos, costumes, ordens sociais etc. Em suma,
difundiu novos padrões de civilização na colônia. É claro que muitos destes
novos signos de civilização, etiquetas, símbolos de prestígio, restringiram-se
mormente ao ambiente dos salões da Corte (como o hábito de falar-se apenas o
francês no tratamento entre os nobres). Contudo, esses novos costumes,
guardados os limites e especificidades situacionais, circularam com alguma
amplitude em outras esferas dessa sociedade, que foi se marcando pela
concorrência de um enorme caleidoscópio de hierarquias que se cruzavam e se
sobrepunham, reordenando posições de reinóis e nacionais, brancos e negros,
pobres e ricos, escravos e livres.
Vida Urbana e Vivências da Escravidão
Se, por um lado, havia esta vivência urbana de pujança e grande variabilidade
de signos de civilização e urbanidade, por outro, este era um império que se
baseava no uso (intensivo e extensivo) da escravidão, especialmente negra
africana. Neste sentido, a cidade do Rio de Janeiro de meados do século XVIII e
XIX (que contava com um número expressivo de africanos escravos entre seus
habitantes) experimentou, tanto quanto outras cidades escravocratas no Novo
Mundo (Wade, 1964), um tipo de escravidão urbana bastante distinta dos sistemas
(clássicos) da plantation escravista latino-americana.
Ocorre que virtualmente todos os serviços urbanos eram realizados por escravos:
os transportes da cidade (tanto de mercadorias, como de pessoas); construção de
estradas; calçamento das ruas; edificação de prédios etc. Além disso, havia uma
associação especial entre escravidão e a estrutura das residências. Como a
cidade não dispunha de serviços de esgoto sanitário e de fornecimento de água
encanada, cabia aos escravos da casa irem diariamente às fontes e chafarizes
buscar água para a cozinha e a higiene dos moradores, bem como correr ao mar
para despejar grandes barris de excrementos. Na maioria dos casos, todas as
demais necessidades diárias das residências compras dos alimentos e outros
gêneros, por exemplo também eram realizadas pelos escravos.
A utilização dos escravos se dava tanto no serviço das necessidades pessoais do
proprietário (em serviços nas residências, ou em oficinas, obras, indústrias
etc),5 quanto trabalhando para terceiros, ou seja, outras pessoas que não seu
proprietário. Ocorria, com bastante freqüência, que muitos dos escravos não
eram utilizados por seus proprietários como força de trabalho trabalhando em
suas próprias residências, oficinas ou negócios , mas prestando serviços a
terceiros, obtendo por isso uma remuneração (ou seja, como fontes de renda).
Quando se viam privados do rendimento proveniente do trabalho de seus escravos,
muitos senhores acabavam em situação de penúria material, como era o caso dos
diversos proprietários que anunciavam escravos fugidos nos periódicos, ou
daqueles que enviavam pedidos às cadeias e prisões da cidade (através da Câmara
Municipal), para a soltura de seus únicos "meios de subsistência". O
emprego de escravos em atividades que remunerassem seus proprietários parece
ter acompanhado a estrutura de posse de cativos na cidade. A maior parte dos
habitantes possuía poucos escravos (de 1 a 3) e era nessa faixa que se
registravam a maioria dos pedidos para "trazerem [os escravos trabalhando]
ao ganho" (Pinheiro, 1998:82-102).6 Esta estrutura urbana de ordenamento
social dos indivíduos fazia com que o recurso aos escravos fosse
imprescindível, especialmente nas unidades residenciais familiares
("fogos"). Nas três primeiras décadas do século XIX, estima-se que
90% dos habitantes da cidade possuísse ao menos um escravo (Fragoso, 1992:76).
Durante todo o século, Mary Karasch (1987:61) calcula que houvesse nos
domicílios uma média de moradores que oscilava entre 6 e 10 pessoas, dos quais
de 3 a 4 eram escravos o que fazia com que aproximadamente 40 a 50% dos
habitantes de residências da urbe fossem cativos. A posse de escravos fazia
parte das exigências da vida dos habitantes da cidade, já que se por um lado
emprestava distinção e prestígio o trabalho mecânico era visto de maneira
pejorativa , por outro, em muitos casos, garantia o sustento da casa. A
concentração de escravos negros africanos era tamanha que vários cronistas que
passaram pela cidade entre fins do século XVIII e o XIX, reportam o fato de se
sentirem numa cidade africana. Em números absolutos, entre os anos de 1820-50
aproximadamente, a cidade do Rio de Janeiro representava a maior concentração
urbana de escravos do mundo, desde o fim do Império Romano (Alencastro, 1997:
24-5).
Estas circunstâncias combinadas fizeram surgir uma série de conhecimentos e
práticas específicos sobre a administração, controle e gestão desta população
escrava negra que estava profundamente imbricada no cotidiano da vida dos
habitantes da cidade do Rio de Janeiro e que, por isto mesmo, preocupava tanto
as autoridades e os habitantes. O Brasil da primeira metade do século XIX
apresenta uma situação especial para observarmos como foram aos poucos se
constituindo, e se complexificando, a racionalização dos saberes de
administração e o controle de populações (especialmente os
"escravos"), migradas (compulsória ou voluntariamente), de todos os
cantões do vasto Império ultramarino português (Pinheiro, 1998). Considerado de
maneira mais ampla, este é um período no qual grande parte dos empreendimentos
coloniais europeus no Novo Mundo acumulam um rol bastante significativo de
conhecimentos sobre a utilização e o governo de negros africanos escravizados
em suas colônias nas Américas.
No caso brasileiro percebe-se a intensificação de escritos, de natureza
bastante variada, sobre as condições de vida dos escravos no Brasil, indo bem
além de simples registros (eclesiásticos, jurídicos, policiais etc) da
existência destes cativos. Estes textos, a despeito de serem elaborados com
finalidades e para públicos leitores bastante diversos, tinham em comum a idéia
de se conseguir um "melhoramento da sorte dos escravos no Brasil".
Essa produção incluía desde ensaios jurídicos até textos econômicos sobre o
comércio de escravos, memórias sobre a escravidão, projetos políticos
proferidos na Câmara dos Deputados, códigos de posturas da Câmara Municipal,
teses médicas etc, que, associados a outros tipos de registros consultados
correspondência entre as autoridades policiais da cidade, anúncios de escravos
nos periódicos urbanos (de compra, venda, aluguel e fugas) e mesmo a literatura
ficcional brasileira contemporânea não apenas enunciavam a preocupação em se
pensar formas de administrar a população de escravos da cidade, mas as formas
de agir em relação a estes. Daí, por exemplo, a quantidade de despesas e
indivíduos (desde corpos administrativos constituídos pela polícia e pela
Câmara Municipal, até pessoas sem profissão definida, que viviam do expediente
de capturar escravos fugidos) que se empregavam na tarefa de controle e
vigilância dos escravos da cidade.
Tanto estes escritos, como os demais registros da vida de senhores e escravos
na cidade, não indicam tanto a produção de novos saberes sobre a escravidão
brasileira, mas o recurso a conhecimentos já amplamente compartilhados
(conhecidos e empregados) nesta sociedade escravocrata (herdeira de um legado
lusitano de governo de populações). Ou seja, muitos destes saberes não teriam
sido desenvolvidos especificamente a partir do transporte de africanos
escravizados para a América portuguesa, mas foram pensados para outras
situações e contextos geográficos e sociais e eventualmente empregados aqui.
Coisas deste império ultramarino que contava possessões em todos os continentes
do globo, e que foi, em função disto, aos poucos produzindo conhecimentos sobre
a administração das populações com as quais se relacionava, quer em paz, quer
em guerra.
Entretanto, essa progressiva expansão e complexificação de saberes
(conhecimentos, informações, modos de classificação) administrativos (práticas
de vigilância, controle e punição) sobre o contingente escravo empregado no Rio
de Janeiro do século XIX, se deu tanto em função das características do uso dos
escravos no ambiente urbano carioca (como vimos acima), quanto pelo temor
generalizado da possibilidade de ocorrência de grandes rebeliões e insurreições
escravas (Klein, 1987; Reis, 1987; Genovese, 1983).
Mas não era apenas em função deste temor que se procuravam pensar em formas de
melhor administrar esta massa de escravos, que constituía, no Brasil, parte
considerável da população. Muitos registros indicam, alguns até prescrevem,
formas de convívio entre senhores e escravos que extrapolam o simples uso da
violência física como elemento responsável pela manutenção da escravidão e da
coerção dos cativos ao trabalho. Como dizia Perdigão Malheiro (1976),
importante jurista brasileiro do século XIX, pensar em melhorias das condições
de vida dos escravos não era apenas uma questão de "humanidade", mas
de "reciprocidade", já que um escravo bem tratado serviria de
"melhor vontade", tornar-se-ia "melhor", e com isso
lucraria não só o senhor, mas a sociedade, pois se conseguiria não apenas a
"paz nas famílias, e portanto na ordem pública", mas "no
resultado econômico em relação à produção". Possuíam, muitos destes
textos, uma visão mais sistêmica, bastante ampla, do que poderia representar a
melhoria nas condições de vida dos escravos: paz e lucro.
Recuperando uma Dimensão Global na Lógica Local
À medida que refletia sobre as formas de governo (gestão e controle) da
população escrava negra urbana no Rio de Janeiro dos oitocentos postas em
prática pela administração deste novo Império brasileiro , perguntava-me de
onde teria vindo o conhecimento de como controlar e ordenar esta população
negra, sobretudo escrava, urbana? Certamente este conhecimento não se fez da
noite para o dia. Como teriam, então, operado estes mesmos saberes e práticas
de controle e dominação escrava para o período anterior à proclamação da
independência do Brasil de sua antiga Metrópole? Como operava esta lógica
administrativa em outras possessões (que também faziam o uso de mão-de-obra
escrava negra africana) do ultramar português? De que maneira teria se dado a
gênese, nos quadros da administração colonial portuguesa, de conhecimentos
(códigos de leis, alvarás, posturas etc.) específicos para o controle de
populações escravas negras africanas nas suas diversas possessões ao redor do
mundo? Teriam estes saberes sido desenvolvidos para outras populações
autóctones de outras áreas submetidas à ordem colonial e posteriormente
aplicados a circunstâncias de uso de mão-de-obra escrava africana (sobejamente
transladada entre as colônias)?
Uma perspectiva interessante diante de tais questões é pensarmos como Impérios
coloniais no Novo Mundo, a partir de características semelhantes, geravam
aparatos administrativos diferenciados para a escravidão negra. Se partirmos de
aproximações, ainda que bastante superficiais, acerca de conhecimentos
desenvolvidos para a gestão da escravidão negra: legislação, instituições
administrativas de Estado etc., podemos notar o quanto estas eram visíveis em
várias das colônias escravistas das demais metrópoles européias no Novo Mundo,
e menos visíveis para o caso luso-brasileiro. Não que não houvesse, no caso
português, leis (alvarás, posturas etc.) específicas para o controle da
população escrava das colônias. Havia.7 Mas não centralizadas na forma de um
código como havia no caso das demais Metrópoles escravistas européias para a
escravidão negra. A exemplo das possessões espanholas com seu "Código
Negro" destinado exatamente à tarefa de regular a vida desta população
, em muitas das colônias escravistas americanas (francesas e holandesas, por
exemplo) havia uma legislação específica para o tratamento e administração da
vida escrava (Sala Molins, 1992). A inexistência de um código negro para o
mundo lusófono certamente não era característica, como alguns historiadores
brasileiros já fizeram crer, da absoluta desorganização e caos das estruturas
legislativa e administrativa do Império português. Basta tomarmos
comparativamente a circunstância da administração de populações indígenas
nativas, com as de negros africanos. É curioso perceber como na situação do
"governo dos índios" este mesmo Império foi capaz de gerar um código
legislativo específico preocupado com a administração de uma população
específica (Almeida, 1997), diferente do que ocorrera (não ocorrera) para
populações escravas e negras.
No que se refere a uma produção escrita de conhecimentos luso-brasileiros sobre
a administração da escravidão, verifica-se uma grande concentração destes no
século XIX, o que já marca uma importante diferença em relação às demais
potências européias que possuíram colônias nas Américas. No caso da França, as
primeiras tentativas de sistematizar um conjunto de normas que regulassem a
vida dos escravos negros em suas possessões foram estabelecidas ainda no século
XVII, com o Code Noir (Código Negro de 1685), inicialmente destinado às
colônias das Antilhas e do Oceano Índico (posteriormente em 1724 estendido
à Louisiana). A este código seguiram-se diversas outras publicações oficiais do
governo francês, destinadas à administração dos escravos das colônias. A
exemplo de França, Espanha e Holanda (esta última em 1784, mormente destinada à
Guiana), produziram legislações semelhantes para suas colônias escravocratas
(cf. Perdigão Malheiro, 1976; Sala Molins, 1992). Entretanto, resgatando a
dimensão de que o Brasil, enquanto colônia e mesmo como ex-colônia, integrava
uma estrutura mais ampla a do ultramar português , vemos que os
conhecimentos dirigidos ao controle da população escrava brasileira estava
inscrita nesta estrutura. Estes conhecimentos e práticas abrangiam, no âmbito
do ultramar português, desde técnicas de construção naval, rotas de comércio e
correntes marítimas, cartografias da costa africana, com referências aos portos
de obtenção de negros escravizados, relacionamentos diplomáticos e bélicos com
diversos reinos africanos, até formas de classificar imputando-lhes novas
identidades e de administrar estes enormes contingentes humanos, adequando-os
às novas situações sociais que enfrentariam no Novo Mundo (Zurara, 1994;
Mattos, 2001; Lara, 2002).
Desta forma, um fator e uma possibilidade que se configuraram como primordiais
é a de tentar, a partir das especificidades pensadas e postas em prática no
controle da escravidão negra urbana no Rio de Janeiro, recuperar esta dimensão
absolutamente globalizada e globalizante da administração de populações
cativas no âmbito do império ultramarino português.
Esta operação de restituir a importância da lógica imperial portuguesa no
estudo do Brasil (enquanto colônia de Portugal e/ou já como Império
brasileiro), considerando-o enquanto parte de um sistema muito mais amplo é,
historicamente, mal dimensionada por parte do meio acadêmico brasileiro.8 É
importante recolocar esta dimensão na medida em que não apenas enquanto
colônias, mas posteriormente, como ex-colônias independentes, estes sítios
herdam um legado jurídico, administrativo e institucional das Metrópoles.
Também John Elliot (1987:4) e Anthony Pagden (1987), chamam a atenção para o
fato de que a perspectiva da relação colônia-metrópole é indispensável para se
conhecer colônias e metrópoles (tanto quanto as ex-metrópoles e as ex-colônias
em seu fluxo interativo de mudanças). Afinal, esta é uma relação constituída
pela dimensão dialética e absolutamente dinâmica. Em maior ou menor grau, e por
diferentes vias, todas estas possessões que compunham o ultramar português
estavam integradas. Como salienta Luis Felipe Alencastro (2000), não podemos
compreender o Brasil (e a história de formação deste território) sem
compreendermos a História do Atlântico.9
"Goa Dourada"
Do outro lado do globo, outro pólo de nosso interesse, a estruturação da parte
oriental deste vasto império ultramarino português em Macau, Malaca, Ceilão e
principalmente em Goa também se viabilizou em função do intenso intercâmbio
comercial e de fornecimento de escravos vindos a partir da África,
especialmente de Moçambique (Russel-Wood, 1993; Pinto, 1992).
Certamente, dentro da dimensão de um império que contava com possessões em
pontos tão distantes do mundo, o papel da escravidão (e por extensão do tráfico
de escravos) foi primordial. Trata-se, como chama atenção Jeanette Pinto (1992:
20), de uma das maiores experiências intercontinentais de investimento de
capital da era moderna. Tanto quanto o Atlântico, o Oceano Índico foi de suma
importância dentro da lógica administrativa e de consolidação da presença
portuguesa no Oriente. Se, para alguns autores, como C. Boxer (1982:18), a
parte oriental do império português perde importância, desde meados do século
XVII, em relação à África e ao Brasil dentro da estrutura econômica do ultramar
desgastada que foi pelas sucessivas disputas bélicas com os holandeses por
vários sítios pelo viés da economia política e do exercício do poder, o
Estado da Índia continua a ser peça-chave até, ao menos, meados do século XVIII
(Russel-Wood, 1993).
Desde Moçambique, e especialmente nos séculos XVI e XVII (diminuindo mais
sensivelmente a partir do XVIII), estabeleceu-se um intenso tráfico de escravos
negros africanos com regiões das "conquistas" do ultramar português,
especialmente Goa, Macau, Ceilão e Malaca. Contudo, o comércio português de
escravos no Oriente, não se resumia às suas colônias, conquistas e possessões.
A partir de Goa (especialmente), e passando por Macau, redistribuía-se até às
Filipinas, sendo levados também para a Pérsia, Arábia, Mecca e Cairo. Este
fluxo (humano e comercial) com a África incluía muito dos produtos das colônias
portuguesas orientais.
A cidade de Goa já era um importante entreposto comercial no contexto asiático,
desde antes da presença portuguesa. A região foi palco de inúmeras disputas
imperialistas envolvendo a expansão do islã na Ásia (Bouchon, 1999:23-94).
Durante o século XV, integrou "rota das especiarias", da qual
participavam portos e outros entrepostos comerciais na Ásia, Golfo Pérsico, Mar
Vermelho e Europa mediterrânea. Grande parte dos comerciantes da cidade eram
imigrantes que circulavam entre pontos desta rota, constituindo comunidades
(até princípios do século XVI), em sua maioria islamizadas. Era uma cidade
marcada pelo cosmopolitismo. No curto período do final do século XV e
princípios do XVI conheceu: a velha cidade hindu (vassala do rajá de
Vijayanagar posteriormente destruída pelos muçulmanos); a cidade muçulmana, a
partir da entrada (1475) dos sultões de Bijapur; e o domínio português (desde
1510). Cada um destes períodos presenciou a introdução de um aparato
diferenciado de administração e novo ordenamento da vida social e religiosa
(aspectos indistinguíveis). Na fase do domínio lusitano a cidade foi
caracterizada então pelo convívio destas diferentes populações (hindus,
muçulmanas, cristãs ocidentais etc.) num sistema social complexo que passa, por
sua vez, a integrar esta estrutura colonial global dos portugueses. Segundo
Geneviève Bouchon (1999), a partir da colonização portuguesa testemunhou-se a
primeira vez que ocorreram transformações em grupos sociais asiáticos pela
presença européia.
Goa tornou-se um dos maiores portos do Oriente entre os séculos XVI e XVII,
além de um local de enorme variedade humana e pujança urbana, chegando a ser
conhecida pelos adjetivos de "Goa Dourada" ou "Lisboa do
Oriente". Capital do poderoso Estado da Índia, sediava a estrutura
administrativa portuguesa que controlava possessões desde o Cabo da Boa
Esperança até os entrepostos comerciais lusitanos no Japão. Assim se configura
neste período num dos maiores pólos de circulação e dispersão de pessoas do
Oriente entre eles: membros do staff administrativo metropolitano
(diplomatas, militares, governadores, autoridades eclesiásticas etc.),
comerciantes (como os Mhamais, que operavam dentro deste comércio escravista
envolvendo o Oriente português e a África oriental levando e trazendo
escravos), e negros africanos escravizados. Todas estas características
conferiram a Goa, a exemplo de outras cidades coloniais portuguesas, uma
estrutura urbana bastante rica, tanto do ponto de vista comercial (da
circulação de produtos de diversas localidades deste "oriente" e da
Europa, África e Novo Mundo), como social (dado o intenso trânsito humano).
Segundo Jeanette Pinto, a escravidão urbana em Goa, especialmente entre os
séculos XVI e princípios do XVIII (a partir de quando esta colônia entra em
decadência econômica acentuada) marcou-se pela combinação de aspectos: a)
locais relacionados à propriedade escrava ou seja, características regionais
da escravidão (e outras formas de dominação: servos, criados etc.) que
antecedem a presença portuguesa; b) característicos da base cultural portuguesa
como o desprestígio social pelo trabalho braçal;10 c) da difusão generalizada
da propriedade escrava entre os portugueses que ali habitavam; d) e mesmo das
características particulares das formas de utilização dos escravos no ambiente
urbano.
Ocorre que a escravidão de negros africanos introduzidos pelos colonizadores
portugueses não foi a única vivenciada na região. Mesmo antes da chegada dos
portugueses, diferentes formas de "escravidão" eram reconhecidas e
praticadas, característica que continuou a subsistir no período da dominação
portuguesa. Mesmo o tráfico de escravos já era praticado na região desde longa
data por muçulmanos, envolvendo a troca e comércio de vários produtos asiáticos
(Pinto, 1992:34-35).
Com a colonização portuguesa, o intenso convívio de populações diferenciadas
(muçulmanas, hindus, cristãs etc.) não se refletia apenas no aspecto religioso,
mas também em outras dimensões da vida social, como nas variadas formas de
"escravidão" (seria melhor dizer de exercício do poder ou das
práticas de cativeiro, como veremos abaixo) observadas neste contexto. Esta era
uma sociedade com um interessante grau de plasticidade no estabelecimento de
espaços de convívio de diferentes formas de trabalho e relações sociais. Mesmo
no âmbito do império colonial português, Goa parece ter representado uma
experiência bastante singular em relação a Marrocos, São Jorge de Mina ou
Malabar, já que no caso da Índia estavam lidando, os portugueses, com o
confronto entre grupos sociais complexos e dotados de sistemas de crenças e de
ordenamento sociais bastante ricos. A estrutura social hindu baseada no sistema
de castas também foi, em algum grau, incorporada à lógica administrativa
portuguesa, tanto nas ações de conversão ao cristianismo, ou no que diz
respeito à escravidão.
O aspecto da conversão ao catolicismo também permeou bastante a idéia de
catividade. Especialmente ainda durante o século XVI as conversões de nativos
ao cristianismo acabavam pressupondo a redução destes ao cativeiro, como
indicam as correspondências entre o vice-rei (Sebastião Pires) e o rei de
Portugal, advertindo que tão logo batizados os nativos, passariam a ser
tratados como
cativos
.11 Também com o intuito de garantir a propagação da fé cristã, alvarás dos
vice-reis portugueses na Índia proibiam a venda de escravos convertidos a não
cristãos (procurando, com isso, coibir a reconversão destes a outras
religiões). Na Goa pré-colonial portuguesa, tanto entre hindus quanto entre
muçulmanos o uso da escravidão ("doméstica", assim como
"agrária") era corrente. Jeanette Pinto sugere mesmo que no caso da
escravidão em Goa, os portugueses foram fortemente influenciados por um sistema
escravista árabe: "aquele do patriarcalismo personalizado e das relações
familiares entre senhores e escravos, mais do que imitando o formato impessoal
do sistema de escravidão industrial ou pré-industrial" (ibidem:19).
Especialmente no que tange ao uso urbano dos escravos, sua presença aparece
discriminada em várias atividades da vida diária. Em Goa o trabalho escravo era
intensa e extensamente utilizado tanto, por exemplo, no transporte (de água
para as residências, dos proprietários em seus palinquins, além dos objetos
pessoais destes), como cozinheiras que produziam iguarias para serem negociadas
por vendedores (escravos) ambulantes nas ruas. Em muitos casos a utilização de
escravos no trabalho ambulante sustentava a residência de seus proprietários
(ibidem:52). Mesmo entre a nobreza local também era comum esta circunstância de
os rendimentos das famílias e o sustento das residências ficar a cargo do
trabalho remunerado realizado por seus escravos para "empregadores
temporários" ou seja, para empregadores que não fossem seus
proprietários.
Além destes aspectos, alguns autores (ibidem:24; Saunders, 1994:100-1) reforçam
a idéia de que os colonizadores portugueses possuíam um grande desprestígio
pelo trabalho braçal (ou manual), o que requeria uma grande quantidade de
trabalhadores escravos e servos africanos, hindus ou estrangeiros. Razão pela
qual não apenas a propriedade de escravos parecia ser largamente disseminada,
como também sua alta quantidade.12
Em grande medida, tanto quanto em outros contextos escravistas modernos (em
especial os do Novo Mundo), os escravos também operavam enquanto símbolos de
status social e indicativos da riqueza de seus proprietários.13 Estima-se que
perto de um quarto dos habitantes de Goa em meados do século XVII era composto
de escravos, o que indica uma propriedade bastante disseminada desses entre a
população, aspecto que não se restringia aos colonizadores. Alguns registros
indicam a existência de "nativos" (hindus e muçulmanos) possuindo
escravos entre negros africanos.
O emprego generalizado de escravos no ambiente urbano goês também implicou a
necessidade de se desenvolverem aparatos administrativos, ou minimamente
preocupações definidas da Corte portuguesa com esta dinâmica do controle
populacional em Goa. Tanto assim, que se verifica, desde fins do século XVIII a
produção de mapas de controle (e classificação) populacional, contendo
distribuições sexuais, etárias e profissionais etc., com campos específicos
para escravos, negros e livres.
Os portugueses, como ressalta Pinto (1992), gozavam de uma reputação de
escravistas eficientes entre os Estados colonialistas rivais. Estavam
especialmente preocupados com a boa gestão da população escrava com o bom
governo do cativeiro (Lara, 2003:210) , visível tanto no controle das ações de
castigo e punições infligidas pelos proprietários aos escravos,14 quanto na
preocupação com a segurança da sociedade pela circulação de grupos de escravos
(e ex-escravos) pelas ruas e arredores da cidade.
Produzindo Globalidades
Embora a dinâmica colonial do Estado da Índia e do Brasil estivessem dentro de
ritmos bastante distintos em relação ao ápice do desenvolvimento econômico ou a
pujança da vida social, ambos se aproximam em diversos aspectos. Estando sob o
governo deste império ultramarino, estiveram sujeitos a dinâmicas e projetos
administrativos semelhantes (na ocupação dos territórios coloniais, de
instituição de atividades economicamente produtivas, de circulação de
administradores coloniais e de escravos). Se tomarmos a estrutura da vida
urbana em Goa e no Rio de Janeiro, quanto à relação entre formas de habitar e
diferentes maneiras de emprego da população escrava, é possível estabelecermos
vários pontos de aproximação.
Ocorre que estas características da escravidão urbana não foram exclusivas de
Goa e do Rio de Janeiro dentro do contexto do ultramar português. A. Saunders,
observando as circunstâncias do cativeiro em Portugal continental entre os
séculos XV e XVI, assinala diversos aspectos que, sendo socialmente construídos
neste período, acabam influenciando fortemente as formas de cativeiro
(escravidão, servidão e trabalho compulsório) vivenciadas durante toda a época
moderna até o século XIX. Segundo Saunders este período exigiu procedimentos
para conformar os negros africanos escravos "a uma sociedade que conhecera
sobretudo os mouros e uns tantos escravos canarinos, no decorrer da idade
média" (1994:11, ênfase minha), a partir do crescimento do número de
escravos e libertos em Portugal. Quando da chegada dos negros em Portugal no
século XV, a partir do contato mais intenso com a África, já havia um lugar
social para os escravos neste contexto. Os séculos XV e XVI testemunham um
refinamento das leis sobre os escravos, já que coincidem com um duplo
movimento: primeiro no esforço pela codificação das leis portuguesas, e segundo
com a entrada em massa de negros do ocidente africano. Em 1550 por exemplo, os
negrosjá haviam substituído aos mouros enquanto o principal grupo étnico entre
os escravos, chegando a representar até 10% da população de Lisboa e algumas
das principais cidades, como Évora e Porto.
Desde o século XV em Portugal há o registro da posse de um número exagerado de
escravos pela nobreza como forma de conferir status e prestígio (ibidem:96-7).
Mesmo entre uma nobreza menos abastada, era verificado o costume da utilização
de escravos para gerarem renda (comercializando os produtos do trabalho dos
cativos), chegando algumas casas a sobreviverem da riqueza produzida pelos
escravos. O uso regular de escravos ("mouros" ou "negros")
ganhando com seu trabalho nas ruas o sustento de seus senhores era
circunstância corriqueira em Portugal dos séculos XV e XVI. Tal prática era
ainda mais visível e dinâmica nas cidades, como Lisboa, onde a possibilidade de
lucro dos senhores pela utilização de escravos era maior, quer pela utilização
destes cativos como artesãos ou vendedores, quer alugando-os.15
De fato, o ambiente urbano, diria Richard Wade (1964) em relação aos contextos
urbanos escravistas do Novo Mundo, modificava em muito as relações de trabalho,
a utilização da mão-de-obra escrava ou a própria percepção da função dos
escravos, e assim as formas de exercício do poder senhorial formas de
dominação que se empregavam no tratamento desses, de maneira geral. Como
salienta Max Weber, a cidade oferece novas possibilidades de utilização dos
escravos pelos senhores, redimensionando mesmo as formas como se estruturavam
essas relações em todos os seus espectros (sociais, de trabalho e produção,
econômicas etc.).16 Estas são circunstâncias bem características de cidades-
estado (Polis) do mundo antigo, mas que ocorre, aparentemente com bastante
freqüência, nos usos da escravidão urbana moderna (Weber, 1983; Wade, 1964).
Neste sentido, estes contextos de Lisboa dos séculos XV e XVI, Goa entre os
séculos XVI e XVIII, do Rio entre os séculos XVIII e XIX (e talvez tantos
outros) podem ser percebidos como contextos escravocratas urbanos
característicos da modernidade, inscritos numa lógica imperial. Compunham
cada qual diante das especificidades locais e históricas correspondentes
paisagens humanas tão diversas quanto interativas, dando a estas cidades
modernas (e "ocidentais" no sentido weberiano) um caráter cultural e
sócio-demográfico cosmopolita e porque não dizer, globalizado? Afinal,
estamos diante da convivência de grupos populacionais (e suas estruturas
hierárquicas) desterritorializados, quer fossem escravos africanos,
colonizadores portugueses ou outros grupos étnicos que circulavam entre as
possessões deste "mundo português". Uma vez que estamos lidando com
grandes cidades, com alto grau de concentração de populações
desterritorializadas produzidas por processos de migração (diáspora, em alguns
casos), talvez pudéssemos recorrer ao conceito contemporâneo de "global
ethnoscapes" (Appadurai, 1991)17 para ilustrar esta circunstância.
Desde o início do processo de expansão colonialista portuguesa, império e
escravidão operaram quase como sinônimos. "De fato, os nativos africanos
tornaram-se figura comum tanto na sociedade ocidental, quanto na oriental"
(Pinto, 1992:50). Dentro desta lógica, como podemos pensar em fluxos de pessoas
sem pensar em fluxos de formas de pensamento (e instituições) destinadas a
controlar/ordenar a vida destas pessoas?
Aliás este Estado português globalizado construiu uma especial excelência na
transmigração de pessoas: quer do alto escalão diplomático, magistrados, da
elite nobiliárquica (Russel-Wood, 1993; Gonçalo Monteiro, 1998), quer de mão-
de-obra menos qualificada (inclusive escravos), imprescindível à instalação e
funcionamento da empresa colonial. Este é um império em constante fluxo e
refluxo de pessoas, especialmente no caso da nobreza e da elite administrativa,
que circulava entre as colônias ocupando cargos (burocráticos e de governo)
(Gonçalo Monteiro, 1998; Bicalho, 1997; Russell-Wood, 1993).
A colônia brasileira era apenas mais uma das possessões do ultramar português.
Não uma possessão desprezível, mas (ao menos até o período entre os séculos
XVII e XVIII) nem de longe a mais importante. Por ela circulavam oficiais,
magistrados, administradores do staff da Coroa portuguesa que ocupavam cargos
numa dinâmica que associava prestígios, honrarias e obtenção de recursos
financeiros. Ocupar um cargo de prestígio na administração das colônias do
Brasil ou do Grão Pará eram honrarias intermediárias, em termos de importância,
entre as colônias de África (um pouco abaixo), as do Estado da Índia (conjunto
de possessões mais importantes e valorizadas do ultramar português até o século
XVIII, pelo menos), ou as da própria Metrópole portuguesa, que significavam o
topo da carreira de diplomatas e administradores coloniais (Russell-Wood,
1993).
Em grande medida, as colônias operavam como "bases de experimentação"
de políticas e procedimentos administrativos das metrópoles que posteriormente
eram aplicados em outras colônias ou mesmo na administração das próprias
metrópoles, no controle "doméstico" de populações (Souza Lima, 2002:
155; Alencastro, 2000; Cohn, 1996: 3-15; Stolcke, 2001:3). Como bem lembra
Elliot (1987:7) a experiência da colonização é fundamentalmente uma experiência
de confrontos populacionais. Esta dimensão se torna mais dramática quando
lidamos com a idéia de escravidão e do
conflito
18 enquanto um elemento inerente e estruturante destas sociedades escravistas
coloniais modernas.
Desta forma, a instalação de uma empresa administrativa colonial ordenando a
exploração do território brasileiro pela Metrópole portuguesa pressupunha
também o acúmulo de experiências colonizadoras em outras localidades. A
experiência anterior do aparelho administrativo português no arquipélago da
Madeira e, mais tarde, em São Tomé ambos antes de 1500 funciona no sentido
de um primeiro grande empreendimento tropical colonizador. Experiência que será
capitalizada ao longo do século XVII com o empreendimento da introdução da
lavoura canavieira no Brasil (Alencastro, 2000:63-70). Em outro sentido, a
experiência urbanada gestão de um variado gradiente de formas de catividade em
Lisboa e Goa também parecem ter sido características desta circunstância e se
prestado ao mesmo expediente de acúmulo de experiências, que se traduziam mais
objetivamente em conhecimentos sobre o "governo do bom cativeiro".
Partindo desta perspectiva, como frisou Verena Stolke (s/d:2) a colonização da
Iberoamerica esteve diante da imensa tarefa de administração de
"diversidades" (sociais, políticas e culturais). Na mesma démarche
Souza Lima (2002:155) estando especialmente atento ao governo de povos
indígenas ressalta o fato de que é necessário observar-se como foram pensadas
as "tradições de conhecimento para a gestão da desigualdade", em
larga medida desenvolvidas por este aparelho administrativo do ultramar
português diante destas variadas experiências de colonização.19 No processo de
administração destas populações (autóctones ou transladadas), geraram-se
inúmeros aparatos institucionais, cargos administrativos, corpos de
funcionários, códigos de leis, além de posturas corporais, códigos de etiqueta
etc., destinados especificamente ao governo de determinados grupos
populacionais. Como parte deste processo faces diferentes de uma mesma moeda
, pari passu ao desenvolvimento deste aparato administrativo, inventaram-se
comunidades. Como chamam a atenção Pagden (1987) e Souza Lima (2002) a partir
da leitura de Benedict Anderson (1983) estamos lidando aqui com um processo
de invenção de comunidades imaginadas: "comunidades que não existiam
enquanto realidades percebidas, mas com parte da imaginação cultural ou
política dos indivíduos, [...]" (Pagden: 1987:271).
Uma maneira de exemplificar isto de que se está falando é pensarmos numa das
dimensões que envolvem o processo de criação destas comunidades imaginadas. Em
seu fluxo de estabelecimento de redes de fornecimento de escravos em África,
com a construção de feitorias, o desenvolvimento de alianças com alguns povos e
guerras com outros ao longo de vários séculos e em diversas regiões do
continente, os portugueses lidaram com uma quantidade e variedade de etnias,
grupos tribais e origens diferenciadas de africanos. Nesta dinâmica e como
parte deste fluxo de "administração de diversidades", os
colonizadores acabaram criando uma série de formas diferenciadas, segundo a
região e o período, para classificar os africanos que eram transladados entre
as colônias. Como lembra Stolcke (2001:3), do contato entre colonizadores
europeus, populações indígenas e escravos africanos surge um imenso gradiente
de categorias sociais classificatórias. Classificar também é governar (diria
Pierre Bourdieu, 1989). O desenvolvimento de formas de discriminação (e
classificação) construiu maneiras particulares de racionalizar a dominação
política (Stolcke, 2001:7).
A partir e em função da circulação e incorporação de grupos populacionais
dentro da estrutura do ultramar português também protagonizou-se a invenção de
comunidades: "mouros", "gentios", "degredados",
"órfãos" etc. Penso que podemos considerar os "escravos" e
tratar a idéia de "escravidão" sob esta mesma perspectiva. Ocorre que
o termo e as práticas da escravidão assumiram utilizações distintas dentro da
miríade de contextos que formavam o ultramar português (em tempos e terras
diferentes).
Vivências de distintas e variadas formas de cativeiro eram conhecidas em vários
contextos pré-colonizatórios e colonizatórios europeus, quer no Novo Mundo,
quer na África, ou Ásia. Clarence-Smith (1987:3) sinaliza para este ponto em
relação a sociedades da África oriental subsaariana, dizendo que alguns
"escravos, com o passar do tempo, eram absorvidos nas categorias sociais
de servos, sujeitos, parentes de uma mesma geração ou da seguinte". Outros
autores apontam para o fato de que havia também, na Índia (não goêsa), um amplo
gradiente de formas de servidão reconhecidas e praticadas localmente, mas
classificadas sob a categoria escravidão. Como diz Dharma Kumar (1993), "o
termo escravo, não descreve pormenorizadamente as muitas formas tradicionais de
servidão [bondage] da Índia pré-colonial [que iam] desde a escravidão clássica
até servidão por dívida [from chattel slavery to debt-peonage]". Indrani
Chatterjee (1999:4-5) também estudando as formas de "escravidão" na
Índia (não goesa), aponta para o fato de que a coexistência das formas escravas
e livres (enquanto formas de trabalho e de relação social), podem ter
influenciando e modificado fortemente formas de convívio social "não-
escravas".
Um exercício interessante e produtivo é considerar o termo
"escravidão" neste mesmo sentido, afinal, como aponta Johannes Fabian
(1986), a língua tem um papel fundamental no exercício do poder em
circunstâncias coloniais. Apenas como exemplo, tomando um dicionário português-
konkane (língua nativa da região de Goa) de sinônimos de meados do século XIX
(Xavier, 1868) vemos que esse sinaliza nove diferentes significados para a
palavra portuguesa servo (e dois para serva); três para escravo (outras três
para escrava). Mesmo sem entrarmos na análise pormenorizada destas categorias,
a percepção desta variabilidade classificatória é uma dimensão muito
significativa. Afinal, quantas formas diferentes de vivência da escravidão e de
liberdade este o governo de territórios e populações haveria criado e/ou
subsumido?
Desnaturalizar, portanto, o significado de categorias (e mesmo idiomas) pode
ser um caminho bastante útil mesmo se aliás, ainda mais se estamos lidando
com uma sociedade que "fala" o mesmo idioma do observador, já que
equívocos de utilização descontextualizada de categorias sociais de
classificação pela historiografia são muito corriqueiros.20 Por outro lado, a
percepção dos usos sociais "nativos" destas categorias pode
esclarecer bastante sobre as formas diferenciadas de administração de
populações com as quais os colonizadores tiveram contato tanto em sua gênese
como na dinâmica de flutuação dos significados destas categorias , como também
sobre o próprio funcionamento cotidiano da sociedade.21 O exercício de análise
das categorias classificatórias utilizadas para indexar os indivíduos
submetidos a um variado gradiente de formas de exploração de escravos negros
africanos, populações autóctones submetidas a diferentes formas de servidão
etc., pode se prestar a duas circunstâncias: a) tanto a de se perceber esta
dinâmica de construção e sucessivas transformações das categorias sociais como
mais um elemento concorrente na lógica de administração de sociedades (e
populações) coloniais; como, b) para retomar a perspectiva analítica enunciada
mais acima neste texto, que oferece uma oportunidade de se realizar uma
sociologização do campo intelectual a partir do confronto entre as apreensões
dos significados das categorias nativas pelos nativos, em contraste com as re-
significações das mesmas categorias pelo campo intelectual. Ou seja, esta arena
de embates na qual podemos localizar as categorias pode ser analiticamente
percebida em duas dimensões: uma que se refere à dinâmica de relações e
mudanças a partir das diferentes apreensões feitas pelos "nativos", e
outra de perceber o quanto o campo intelectual realiza um processo de imposição
simbólica (Bourdieu: 1989) de significantes e significados aos usos sociais de
categorias dos nativos.
Como exemplo disto, e retomando o contraponto comparativo indiano, segundo
Chatterjee (1999), no contexto daquela historiografia dos séculos XIX e XX, os
historiadores foram decisivos num processo de construir o estudo da escravidão
como não legítimo do campo historiográfico.22 Por outro lado, incorriam em
outro erro. Em grande medida, acolhiam as categorias de classificação das
diferentes formas de trabalho (e dominação), desenvolvidas nos embates da
burocracia administrativa colonial britânica do século XIX, incorporando-as ao
discurso historiográfico acadêmico sem maiores reflexões teóricas. Dentro desta
démarche, durante muito tempo a noção de "escravidão doméstica" foi
tratada pela historiografia indiana como sinônimo de improdutiva (que não
gerava capital, nem produtos concretos). Ocorre que a noção de escravidão
doméstica não estava associada diretamente à noção daquelas ocupações
realizadas exclusivamente no interior das residências senhoriais e ao
funcionamento interno destas. Estava sim muito mais ligada àquelas atividades
que procuravam garantir o sustento da família dos proprietários. Assim, a
associação da idéia de escravidão doméstica ao trabalho improdutivo obscurece
uma série de formas de trabalho escravo, por exemplo feminino e infantil
(Chatterjee, 1999:3-5 e 1999b).23
Mesmo no caso da escravidão em Portugal, entre os séculos XV e XVI, como
decorrência do processo de expansão marítima portuguesa e do contato com grupos
étnicos diferenciados, foram surgindo categorias classificatórias,
especialmente no trato com grupos populacionais africanos. "Mouro" e
"gentio" foram algumas destas. Mouro em verdade já era uma categoria
largamente utilizada na classificação de grupos étnicos islamizados que foram
sendo submetidos ao cativeiro durante o processo de expulsão da Península
Ibérica e de conquista do norte da África pelos portugueses (Bouchon, 1999:23-
76). O termo "mouro" que designava em última instância cativo, foi
paulatinamente caindo em desuso, dando lugar ao termo "escravo".
Interessante perceber neste contexto de Portugal continental do início do
processo de expansão marítima, os dilemas que a entrada substantiva de negros
africanos causaram nos sistemas classificatórios e de ordenação hierárquica de
indivíduos e identidades sociais do Antigo Regime. Durante parte deste período
mouro e escravo aparecem como sinônimos na legislação portuguesa. É só com as
Ordenações Manuelinas (1514) que se notam diferenciações entre os termos (sendo
mouro mais usado como sinônimo de "muçulmano"), acompanhando as
mudanças na composição étnica da população cativa em Portugal. Como ressalta
Saunders (1994:158), embora o termo escravo tenha aparecido, como um sinônimo,
em substituição a mouro em Portugal no início da Era Moderna, o tipo de relação
de trabalho e cativeiro que o primeiro termo pressupunha não era homólogo ao
segundo.
O historiador Sanjay Subrahmaniam (1997) chama a atenção para o fato de que a
Era Moderna mais especificamente aquilo que ele chama de "early
modernity", que iria de meados do século XIV a meados do XVIII é
bastante marcada pelo aparecimento de conceitos universais e universalistas.
Conceitos cunhados com o tom etnocêntrico europeu moderno e que, além de
esmagar as diversidades locais/regionais (de crenças, conceitos e mesmo dos
significados contextuais de categorias), acabam servindo ao expediente do
controle e domínio de populações.
Portanto, a percepção da existência de diferentes formas de vivência das
relações de dominação sob a rubrica da escravidão neste "mundo
português", não deveria nos demandar o desenvolvimento de conceitos
teóricos mais amplos e refinados, que englobassem esta diversidade?
Uma proposta interessante me parece a de considerar o conceito de
"catividade" como pensou Marc Piault (1975) como uma perspectiva
mais ampla de conceituar a escravidão a partir de diferentes formas de servidão
e dominação em África. Catividade, no sentido que se pretende recuperar, não
está ligada apenas à idéia de pertencimento jurídico que a escravidão moderna
pressupõe, mas a uma variedade de expedientes de dominação e exercício do
poder. Outrossim, recuperar a idéia weberiana de dominação (suas formas e a
sociologia), parece-me extremamente pertinente já que além do conceito ter se
revelado bastante útil para pensar as formas de governo da mão-de-obra escrava,
vemos que grande parte das formulações daquele autor para a idéia de dominação
foram desenvolvidas a partir do contraponto com o Império Romano. Em grande
medida, os impérios colonialistas europeus do período moderno constroem a
própria idéia de império a partir dos impérios clássicos, especialmente o
romano.24 Anthony Pagden (1987; 1995) ressalta o quanto essa característica não
é apenas um mero detalhe, mas um ponto fundamental quando se está pensando nas
formas burocráticas de administração destes impérios coloniais da Era Moderna.
Neste sentido me parece legítimo, além deste trabalho de esmiuçar o léxico
português do exercício do poder e das práticas de dominação do ultramar
português, também tentar buscar a sócio-gênese das idéias de governo de
populações usadas neste contexto, fora dele, tanto na própria Era Moderna,
quanto no Império Romano.
Inventando a Globalização
Muitas das teorias sociológicas que discutem as idéias de globalização
caracterizam este como um processo marcado por interação comparativa de
diferentes formas de vida, com um contato, às vezes traumático (Robertson,
1992:27) ou processos de transmigração e reordenamento de estrutura social.
Levando em conta estas características de governo de populações levadas adiante
pelo império português, poderíamos concordar que globalização, fluxo de bens,
capitais, pessoas e costumes correspondem a um processo contemporâneo recente?
O que é realmente novo, imprecedente e original neste processo de globalização
que não vem ocorrendo, em larga escala, desde o princípio dos tempos modernos?
Não estaríamos diante de uma excessiva valorização de uma agenda do campo
intelectual que não é assim tão nova? Afinal é este um processo tão recente na
história da humanidade, como dizem alguns autores (ibidem; Appadurai, 1991)?
Certamente, muito do que o campo intelectual chama de globalização está
associado a movimentos característicos da Modernidade, como processos de
civilização (Elias, 1990). Por processo de civilização não se quer dizer
ocidentalização. Como nos parece, a relação entre colônias e metrópole(s) é
permeada pelo signo da intensa dinâmica, tanto no fluxo e refluxo de coisas e
pessoas, quanto de formas de pensamento, envolvendo ambos os pólos.
Além de recuperar na história da colonização de Goa e do Rio de Janeiro, a
partir de pontos concretos de contato (rotas comerciais, a circulação de
indivíduos, correspondências entre autoridades administrativas etc.), parece
interessante tentar reconectar estes pontos desde as políticas administrativas
do império ultramarino português quanto às experiências de gestão de grupos
populacionais largamente utilizados como escravos. É certo, porém, que estas
políticas não foram desenvolvidas em um único contexto e aplicadas em vários
outros. Eram produto de constantes mudanças e adequações a conjunturas
específicas (sociais e históricas) de cada sítio (e mesmo readequações dentro
de cada sítio). Ademais, o fato de o aparelho administrativo colonial português
(tanto quanto outros aparelhos coloniais) se servir do expediente de
experimentar formas de governo em um contexto colonial, para posteriormente
aplicá-lo em outro (ou na própria metrópole), não faz com que o tipo de
escravidão urbana carioca seja um produto direto, uma conseqüência, das formas
de administração da escravidão em Goa, em Lisboa, ou em qualquer outra colônia
(ou possessão) portuguesa. Goa e Rio de Janeiro não são, com toda certeza,
universos homólogos em relação às condições e formas de vida escrava urbana.
Entretanto, ambos contam com uma diversidade expressiva de formas de
dominação.25
Se tomarmos as ligações "concretas" (de carne e osso) entre Rio de
Janeiro e Goa iremos verificar que, ainda que existissem (veja-se Anthony,
1990; Pinto, 1990; Shastry, 1990), eram muito tênues as relações entre estas
duas possessões. Por outro lado, e como formula de maneira interessante Sanjay
Subrahmaniam (1997), podemos tomar as ligações entre estes dois pontos a partir
da noção de Histórias Conectadas (conectáveis para ser mais preciso). Se por um
lado ligações "concretas" entre Rio de Janeiro e Goa, a partir da
relação entre estas duas localidades são muito tênues, por outro lado, podemos
nos servir das próprias políticas do Estado ultramarino português para comparar
diferenças de percepção e aplicação de diretrizes imperiais no exercício da
gestão da escravidão. Neste sentido, como bem marcou Jeanette Pinto (1992),
durante o período de expansão imperialista português império e escravidão
operavam quase como sinônimos; é importante acrescentar que escravidão e negros
africanos não eram, originalmente, sinônimos. E mais, que numa estrutura social
baseada no trabalho escravo, muitas formas de trabalho acabavam tendo esta como
uma referência fundamental (um horizonte) na ordenação das relações entre
dominante e dominado, quer fossem eles patrão e empregado, senhor e servo etc.
Pensadas de maneira mais ampla, estas políticas desenvolveram léxicos
relacionados ao exercício do poder que serviram também no expediente de criar
estes grupos sociais (como os escravos, por exemplo), além de políticas
específicas para seu tratamento, como partes integrantes deste processo de
construção de conhecimentos e práticas de governo destas diversidades e da
gestão destas desigualdades. Outra conseqüência disto foi a formação de grupos
populacionais historicamente alijados do processo de participação no mainstream
da sociedade. A observação deste processo também nos mostra muito sobre
circunstâncias históricas específicas na criação de identidades de exclusão
sociais para determinados grupos populacionais específicos.