A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50
Abdias Nascimento, no prefácio à segunda edição do livro O Negro Revoltado
(Nascimento, 1968), num olhar crítico em direção ao passado, classifica, trinta
anos depois, de "comportamento demasiadamente conciliador para com a posição
dos brancos liberais", o que teria norteado várias atitudes, declarações e
conclusões finais do I Congresso do Negro Brasileiro organizado pelo Teatro
Experimental do Negro (TEN), em 1950. Alguns autores fazem coro com Abdias
quando estudam aquele período. Dentre estes poderíamos destacar Andrews (1991)
e Hanchard (1998).
Andrews refere-se a um grande número de jornais que ressurgem na capital
paulista, no período pós-Estado Novo. No entanto, de acordo com o autor, esses
grupos seriam sensíveis às críticas dos brancos na sociedade paulista e, por
conseguinte, preocupavam-se, através de sua imprensa, em deixar clara a sua
intenção não conflitada de organizar-se racialmente. Conseqüentemente, optaram
por atuar na área da educação, da ajuda mútua e de projetos de solidariedade.
Desta forma, o autor aborda a ocorrência de um certo medo de um possível
confronto, por parte daquelas lideranças. Para Andrews, nenhum deles teria
apresentado um programa ou mesmo organizado alguma ação de cunho político, como
forma de reivindicação de direitos individuais ou coletivos.
Outro autor cujo trabalho também se detém a estudar as organizações negras no
período pós-Estado Novo é Hanchard (1998). Numa proposta de estudar o Movimento
Negro Brasileiro entre 1945 e 1988, o autor acredita que o perfil do movimento
negro de congregar diversos grupos e cada qual com prioridades e estratégias
diversas, impediram que uma força central fosse carreada no sentido de
propiciar uma definição mais clara de objetivos e estratégias, de forma a
construir uma coalizão. Como conseqüência, esta desarticulação teria provocado
o distanciamento do Movimento Negro de uma tática que se empenhasse nas lutas
contemporâneas adotadas por outros movimentos sociais. Por conseguinte, o
movimento passa a recorrer a protestos de natureza apenas simbólica, em que a
cultura afro-brasileira passou a ter papel preponderante.
Reconhecemos a importância, para a organização político-social dos negros
brasileiros, das realizações de diversos grupos, no período do pós-guerra,
dentre os quais o TEN (criado pelo próprio Abdias) se destacou e foi
protagonista em atividades que revitalizaram o espírito coletivo dos negros
imbuídos do desejo de mudança. Ao mesmo tempo, o escopo deste texto não
comportaria maiores considerações a respeito das análises daqueles autores,
cujos trabalhos representam grandes contribuições aos estudos sobre os
movimentos sociais dos negros, ainda tão pouco privilegiados pela academia
brasileira.
Faz-se necessário, no entanto, situar que aqueles eram anos de conflitos
raciais no EUA, os países africanos davam os primeiros passos rumo à
independência e o fantasma do racismo e da discriminação racial rondava o mundo
do pós-guerra. O Brasil do nacionalismo e da escalada crescente para a
modernidade se sobressaía como o lugar da paz racial possível. Exemplo disto é
a realização, aqui, dos estudos da Unesco nos anos 50. A partir do final da
década de 1940 o cenário nacional é marcado por uma urbanização e uma
industrialização crescentes.1 As reações imediatas da sociedade conservadora,
com suas freqüentes demonstrações de racismo, agilizaram o discurso e a atuação
das organizações negras. Paralelamente a isso, o término da ditadura varguista
deu lugar às diversas manifestações de democracia, permitindo que algumas das
organizações negras, que se mantiveram ativas durante o Estado Novo, se
reorganizassem e várias outras fossem criadas, como veremos no tópico seguinte.
Orenascimentodas organizações negras após o Estado Novo
O ano de 1945 foi muito fértil na realização de congressos e
convenções de partidos políticos. Mas, também, houve reuniões,
congressos e convenções da raça negra. Bem ou mal intencionados, os
líderes negros de São Paulo movimentaram-se, fazendo reviver a luta
que os nossos antepassados iniciaram com a campanha da Abolição.
(Luiz Lobato, Senzala' Revista mensal para o negro, 1946, p. 14)
Reações como estas eram comuns na imprensa da época ' aquela feita pelos negros
' dando conta não apenas da grande mobilização das organizações negras, como
também da entrada de um número expressivo de negros nas universidades.
Convém destacar-se ' e isso faço com satisfação ' que o negro de
Pôrto Alegre está sendo atacado de uma sêde de elevação cultural que
muito nos anima. Não é muito raro encontrar-se jovens pretos cursando
as escolas superiores. E isso é indício muito significativo, uma
recomendação para os negros da cidade. (Heitor Nunes Fraga, Quilombo,
jan./jul., 1949:4)
Moura aponta que a partir de 1945 ocorre um Renascimento Negro(Moura, 1989) com
o surgimento de grupos de discussão e ação contra a discriminação racial e o
racismo. Lutavam também pelo "alevantamento moral da gente negra" que pode ser
traduzido como medidas que objetivavam à ascensão social e à destruição do mito
de inferioridade racial (fruto das teorias racistas do século anterior e que
continuavam a permear o imaginário nacional). Para Andrews no entanto, o que
houve foi uma renovação do movimento, já que apesar do banimento da Frente
Negra (nos anos 30), os clubes sociais e associações cívicas continuaram a se
organizar.
A Associação José do Patrocínio (São Paulo), por exemplo, teria apresentado, em
1941, ao presidente Getulio Vargas, uma documentação solicitando a proibição
dos anúncios discriminatórios contra os trabalhadores negros. Seu pedido foi
atendido quatorze meses mais tarde (Andrews, 1991). Desta forma, ancoradas na
esteira da democratização por que passava o país, aquelas novas organizações
negras tinham como objetivo principal cuidar da "redefinição e implantação
definitiva das reivindicações da comunidade negra" (Gonzales, 1982:24). Havia
um sentimento de euforia e realização coletiva expandido pelo território
nacional.
É cedo, muito cedo mesmo para se tentar uma apreciação sociológica ou
histórica do importante acontecimento que assinala o surto, ou
melhor, o ressurgimento de livre associação do negro brasileiro,
sufocado durante vários anos pela orientação política que jugulava a
opinião pública do país.[...] Em São Paulo, como no resto do Brasil,
o negro se movimentou com o objetivo de retornar ao trabalho pela
conquista definitiva daquelas fundamentais, de cidadãos, através de
verdadeiros planos de atividades que permitam a realização dos velhos
anseios acalentados pela grande família. Está-se portanto no início
de uma campanha formidável à qual se deve dar o caráter de uma
revolução construtiva, no sentido social e político. (Alvorada,
janeiro de 1946, p. 1, São Paulo)
Esta longa citação nos auxilia a entender que o ambiente cultural propiciado
pela nova democracia, aliado à insatisfação diante das barreiras raciais
impostas aos negros, principalmente no mercado de trabalho (Huntley e
Guimarães, 2000), deram oportunidade à realização de eventos que davam
visibilidade a uma luta gestada desde séculos anteriores. Assim, no ano de 1945
(10 a 12 de novembro) marcaram a realização da Convenção Nacional do Negro, em
São Paulo (Andrews, 1971), que tinha por objetivo preparar uma plataforma de
ação para a constituinte que se avizinhava, lançando um manifesto à nação.
A esse respeito, noticiava a revista Senzala que teriam estado presentes
participantes oriundos do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São
Paulo e Rio Grande do Sul, Arnaldo de Oliveira Camargo, um dos palestrantes
daquela convenção, escreveu dois meses depois uma coluna que pretendia ser uma
síntese dos debates ocorridos naquele encontro. O autor aludia à formação
mestiça do povo brasileiro mencionando as três raças formadoras. Prossegue com
a reiteração de que tal formação, aliada à democracia que norteava o país,
seriam incompatíveis com as "restrições que elementos reacionários e com
mentalidade nazi-fascista querem impingir ao nosso povo". Camargo ' igualmente
a muitos articulistas negros da época ' atribuiria à educação e ao aspecto
econômico "o problema do negro brasileiro", causados pela escravidão e pela
ausência de solidariedade daqueles que alçaram galgar maior ascensão social
para com os que não o conseguiram. A partir daí o autor propugna por uma maior
união entre os afro-brasileiros e prossegue:
Os negros precisam se unir para reivindicar de fato os direitos que
desde há muito já nos são outorgados por lei. Pois é sabido que até
hoje os negos são barrados na Escola Militar, na Escola Naval, na
Aeronáutica [...]. E o problema não é só de ordem cultural e
econômica. É também de caráter social, pois se é vedado na sociedade
o acesso de grande parte do elemento negro, nós temos que enfrentar
essa sociedade reacionária e anti-cristã, apresentando-lhe a
lamentável falha democrática. (Agnaldo de Oliveira Camargo, Senzala,
Ano I, nº 1, p. 11, janeiro de 1946, São Paulo)
Igualmente, naquele momento de abertura política, a cidade de São Paulo via ser
criada a Cruzada Social e Cultural do Preto Brasileiro, o Centro de Cultura
Luiz Gama e a Frente Negra Trabalhista. Outra organização fundada naquele
período foi a Associação do Negro Brasileiro (ANB), uma das estudadas por
Fernandes (1971) no projeto Unesco e por Andrews (1991). Também em São Paulo
foram criados vários jornais, dentre eles, o Alvorada, o Niger, o Novo
Horizonte, o Mundo Novo, A Tribuna Negra, além da revista Senzala (Bastide,
1971; Andrews, 1991; Hanchard, 1988). Muitos clubes sociais que se espalhavam
pelo interior do estado se fortaleceram a partir daí. Outra iniciativa foi a
fundação do Teatro Experimental do Negro (TEN) de São Paulo, por Geraldo
Campos, que após conhecer Abdias Nascimento no Rio, levou-o para a capital
paulista.2
Dos muitos eventos ocorridos em São Paulo, poderíamos destacar aquele que a
cidade de Campinas sediou, em dezembro de 1945: o Congresso Cultural e
Artístico dos Negros Campineiros, promovido por dois grupos, os Ferroviários e
a União Cultural Artística e Social do Negro. Sob a coordenação de Constâncio
Vitorino Filho, tinha como objetivo "debater os problemas ligados à situação do
negro e traçar normas de ação em prol da elevação cultural econômica, social e
política do elemento afro-brasileiro" (Senzala:30). A independência em relação
aos partidos políticos; a unificação das organizações dos negros, visando o
desaparecimento de todos os preconceitos contra a comunidade negra e a ascensão
cultural e econômica dos negros foram algumas das conclusões às quais chegaram
os participantes daquele conclave.
A realização de eventos com ênfase no debate e na formação de uma identidade
político-racial se dava com freqüência, inclusive contando com a presença de
personalidades da sociedade da época.
Muitas associações tem sido fundadas por todo o país, com o objetivo
de elevar o negro culturalmente [...]. O Sr. José da Silva Oliveira
fundador da Cruzada Social e Cultural do Preto Brasileiro vem
promovendo na capital bandeirante, uma série de conferências com o
fito de interessar a sociedade e o próprio negro na causa da sua
valorização. Ainda a 14 de julho houve a quanta conferência [...] com
a presença de pessoas de relevo na sociedade entre as quais
destacava-se o Sr. Cecil P. Cross, cônsul geral dos Estados Unidos.3
O Rio de Janeiro, por sua face cosmopolita em virtude de ser Capital Federal,
transformava-se em berço de importantes organizações, entre as quais podemos
citar o Grupo de Afoxé Associação Recreativa Filhos de Gandhi, o Teatro
Experimental do Negro4 (TEN)5, a União dos Homens de Cor (UHC), a União
Cultural do Homens de Cor, o Teatro Popular Brasileiro (TPB), o Renascença
Clube e a Orquestra Afro-Brasileira, composta por dezoito músicos. Alguns
advogados, médicos e artistas fundaram, em 1959, a União Cultural Brasileira
dos Homens de Cor (UCBHC) na Cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense.
Solidificava-se naquele momento uma imprensa negra na cidade, onde os jornais
Quilombo, Redenção e Voz da Negritude eram os principais representantes.
Quilombo, com seu subtítulo "Vida, problemas e aspirações do negro", dirigido
por Abdias Nascimento era o combativo órgão da imprensa preocupado em analisar
as conseqüências do racismo sobre a população negra. O espírito organizativo em
função da arte e da conscientização racial, mais que a mera inserção na
sociedade, era constante no periódico. "Trabalharemos Unidos para um Brasil
melhor", este é o subtítulo do jornal Redenção, dirigido por João da Conceição,
que apresentava como princípio a formação educacional do negro a fim de
prepará-lo para alçar uma posição superior na hierarquia social.
O terceiro periódico, A Voz da Negritude, era o jornal da UHC de Niterói. A UHC
que no Rio de Janeiro tinha a liderança de José Pompílio da Hora, estava
presente em pelo menos onze estados do país. Uma outra forma de organização
constituída a partir do direito ao lazer e ao espaço associativo tornou
possível a criação de clubes sociais negros em diversos pontos do território
nacional. No Rio de Janeiro, o pioneiro foi o Renascença Clube, fundado em
fevereiro de 1951 (Silva, 2000).
Continuando nesta efervescência, na década seguinte foram realizadas, sob os
auspícios do TEN, duas Convenções Nacionais do Negro. Ambas encaminharam à
constituinte, através do então senador Hamilton Nogueira, uma "proposta de
inserir a discriminação racial como crime de lesa-pátria" (Huntley e Guimarães,
2000, 97). Prosseguindo na sua intensa lide organizativa, com eventos marcantes
para a atividade política e cultural do negro brasileiro, também sob a batuta
do TEN estavam a Conferência Nacional do Negro Brasileiro, o Primeiro Congresso
do Negro Brasileiro e foi constituído o Conselho Nacional de Mulheres Negras.
Mais ao Sul, em Santa Catarina, ensaiou -se a criação de uma sucursal do TEN.
Lá foi estabelecida e se solidificou a UHC, a respeito da qual falaremos no
último capítulo. Porto Alegre registrava, nesse mesmo período, o Centro
Literário de Estudos Afro-Brasileiros e os clubes Satélite Prontidão e ' desde
o século anterior ' o Clube Floresta Aurora. Salvador viu nascer, em 1946, a
Campanha Pi Racial, cujo objetivo era:
[...] extinguir, anular, abolir o complexo de inferioridade (dos mais
escuros); desmoralizar, esclarecer e purificar um falso complexo de
superioridade (dos mais claros) para que, por processo educacional
justo e perfeito, não haja mais no Brasil, um negro ou branco, mas
simplesmente, brasileiro. (Azevedo, 1952:159)
Também lá, havia a UHC estabelecida com diretoria composta por dez membros.
Em Belo Horizonte atuavam, entre outros, a Turma Auri-Verde e o Grêmio
Literário Cruz e Souza (Nascimento, 1999) e a Associação José do Patrocínio.
Esta última fundada pelo tenente coronel da Polícia Militar, Antonio Carlos,
que realizava, além de atividades recreativas, aulas de artesanato, palestras e
aulas turísticas em viagens às cidades cuja história estivesse associada ao
negro no Estado de Minas Gerais.6
Não é nosso objetivo esgotar aqui a citação de todos as organizações negras
daquele período, até porque pesquisas mais ampliadas para este fim estão por
ser feitas. Nosso intento é apenas dar uma idéia da grande movimentação no
Brasil em torno da denúncia e desmantelamento do racismo e da discriminação
racial, ao lado da amplitude ' em termos geográficos ' das iniciativas
coletivas, organizadas pelos negros. Neste sentido, o documento final do I
Congresso do Negro Brasileiro (São Paulo) em 1950 apontava para criação de uma
Confederação Nacional de Entidades Negras (Costa Pinto, 1952). Independente do
fato de haver ou não sido criada aquela confederação, sua mera citação já dá
mostras da existência de uma teia de grupos, por todo o território brasileiro,
que pudesse vir a sustentá-la.
Todo este cenário de redes, articulações e discussões em torno das relações
entre negros e brancos no país, pulsantes a partir dos anos 40, pode ser
percebido através dos periódicos negros. Havia, entretanto, uma constante
tensão entre a denúncia do racismo, a discriminação racial, a exclusão em que
eram colocados os negros e a reiterada afirmação da especificidade racial do
Brasil, no que tangia à miscibilidade cultural e racial garantidoras de paz
entre negros e brancos. As declarações de diversos líderes negros eram
entrecortadas por linhas que procuravam deixar claro a ausência de práticas
racistas, por parte delas:
A União é apolítica, aceitando em seu seio homens de todos os credos
políticos e religiosos. E também os homens de todas as cores,
inclusive brancos que estejam ligados aos morenos pelo sangue e que
tenham sincera simpatia pela causa. (João C. Alves, Quilombo, Ano I,
nº 1, p. 3, dezembro de 1948)
A razão deste cuidado poderia ser justificada, já que, à primeira vista, seriam
estes líderes os inauguradores de uma reflexão e uma práxis desnecessárias e
perigosas para os destinos da nação. Referimo-nos ao fato de que o Brasil
tradicionalmente construiu uma retórica de não discriminação e de ausência de
racismo. Os diversos documentos e estatutos diziam estar abertos a "negros,
brancos e pardos", ressaltando o espírito "humano, democrático e universalista"
das organizações negras que procuravam evitar represálias diante de suas
demandas reivindicativas em favor dos negros nacionais.
A UHC, por seu turno, não fazia exceção a esta regra, quando afirmava em seu
estatuto: "É contra essa injustiça social que o sonho dos negros, pardos e
brancos da 'União dos Homens de Côr' está colocado. Não é um sonho separatista
' é unitarista, solidarista, cristão social" (José Bernardo da Silva, UHC do
Distrito Federal, outubro de 1953). Observemos, então, que não apenas nos
documentos finais do I Congresso do Negro Brasileiro (1950) este "espírito
conciliador", de que fala Abdias (ao qual nos referimos no primeiro parágrafo
deste artigo), podia ser encontrado. Ele estava presente na gênese mesma dos
diversos grupos, uma vez que constava do seu estatuto. Nossa hipótese é de que
talvez esta fosse uma das estratégias possíveis, encontradas por aquelas
lideranças negras, diante do arraigado discurso oficial brasileiro de igualdade
entre as raças e a existência de uma democracia racial.
Dizíamos na introdução deste trabalho que nosso objetivo é estudar a UHC,
contextualizando-a no "Renascimento Negro" dos anos 40 e 50. Assim sendo,
procuramos apresentar uma breve etnografia a respeito de alguns grupos e
jornais negros brasileiros nas décadas de 40 e 50, de forma a demonstrar que a
criação da UHC incluía-se numa atmosfera de insurgência, reação e discussão por
parte das lideranças negras, em diferentes pontos do território nacional.
Passaremos agora a abordar a organização a partir da qual surge esta pesquisa e
cuja trajetória pretende ser melhor analisada neste trabalho, intitulada a UHC.
União dos Homens de Cor ' UHC
Uma organização destinada à ação contra o preconceito de cor e pelo
alevantamento moral e cultural do negro, por via, principalmente, da
assistência social. (Pinto, 1952: 302)
Esta rede foi fundada em Porto Alegre, em janeiro de 1943,7 por João Cabral
Alves, que segundo seu estatuto era farmacêutico e articulista. Além dele,
assinavam o documento de inauguração mais seis pessoas, sendo cinco homens e
uma mulher, com profissões que variavam entre médico, advogados, funcionários
públicos e uma doméstica. A UHC contava, cinco anos após sua fundação, com
representação em pelo menos onze estados do país: Minas Gerais, Santa Catarina,
Bahia, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Piauí e
Paraná (Nosso Jornal, Curitiba, Ano II, nº 75, março, 1948). Mesmo na Bahia '
que segundo Thales de Azevedo (1975), havia uma grande desconfiança, já que não
havendo racismo, não haveria necessidade de um "movimento isolacionista" ' foi
estabelecida uma sucursal do grupo, sob a direção de Petronildo Mattos. Em São
Paulo, os conselheiros eram Raul Joviano do Amaral, antigo membro da Frente
Negra, e Luiz Lobato, comunista de velha cepa. À medida que ia se expandindo, a
UHC constituía novas sucursais pelo país. A UHC do Distrito Federal, por
exemplo, coordenada por José Bernardo da Silva e Jovino Severino de Mello, foi
fundada em 1949.
A União dos Homens de Cor dos Estados Unidos do Brasil ' ou UAGACÊ, como
costumava ser chamada ' tinha como um dos seus objetivos, expressos no artigo
1º do estatuto, no capítulo das finalidades: "elevar o nível econômico, e
intelectual das pessoas de côr em todo o território nacional, para torná-las
aptas a ingressarem na vida social e administrativa do país, em todos os
setores de suas atividades".A rede constituía-se de uma complexa e sofisticada
estrutura organizativa, já preconizada desde os seus primórdios. As diretorias
estaduais e municipais dividiam-se nos cargos de presidente (no município,
denominava-se presidente ou chefe municipal), secretário geral (no município
eram primeiro e segundo secretários), tesoureiro, inspetor-geral, chefe do
departamento de saúde e conselheiros/diretores. Os departamentos de saúde e de
educação, em alguns estados, estavam sob a coordenação da mesma pessoa. A
diretoria nacional, composta pelos fundadores, possuía a mesma formação que as
estaduais, diferenciando-se apenas pela existência de um consultor jurídico. O
grupo se sustentava nacionalmente numa rede articulada por chefes municipais da
capital.8
Em 1948, a UHC do Paraná registrava 26 zonas municipais da capital. Já no
interior do estado, a rede mantinha-se a partir de inspetorias regionais que
concentravam chefias municipais da mesma região, num total de 23 cidades.9 No
caso das diretorias municipais, havia uma recomendação para que os diretores
procurassem "incluir senhoras e senhoritas nas diretorias em cargos de
responsabilidade".10É interessante notar que a UHC pretendia uma abrangência
nacional, estabelecendo-se em todos os estados. Assim, um de seus periódicos
traz uma recomendação, encaminhada a todos os tesoureiros, de que estaria
vetada a cobrança das mensalidades aos associados (1 cruzeiro), até que uma
ordem direta da diretoria geral outorgasse tal recebimento. A nota prossegue
informando que só quando a "UHC estiver organizada em todo o país, poderá ser
feita a cobrança". A convenção anual era realizada a cada 13 de maio na sede
nacional em Porto Alegre, com a presença de representantes estaduais eleitos
pelos chefes municipais, cuja relação de nomes deveria ser publicada com a
devida antecedência.
A UHC valia-se da estrutura política já estabelecida nos locais em que
estivesse presente. Assim, deputados, médicos, advogados, jornalistas e homens
negros com visibilidade social e política eram convidados a integrar a
organização e tinham na rede um sustentáculo. Vários são os exemplos que
poderiam ser dados para registrar este fato de que homens negros socialmente
destacados são incluídos na rede. Um deles, o Presidente da UHC do Paraná em
1948, Nilton Oliveira Condessa, era advogado, jornalista e professor da
Faculdade de Ciências Econômicas do Estado. O médico baiano, radicado em
Londrina e deputado estadual, Justiniano Climático da Silva, também era membro
da organização.11 O outro exemplo é o de Antenor Pantilo dos Santos, vereador
em Curitiba, em 1948, pelo PSD. Ou seja, estas lideranças fortaleciam-se
politicamente, em nível local, por estarem ligadas a uma conexão nacional de
homens negros com destacada atuação social e política nas suas regiões. Ao
mesmo tempo, auxiliavam a UAGACÊ na expansão dos seus tentáculos que se
espraiavam nas capitais, sobretudo nos municípios de cada estado, sob a
orientação de uma direção estadual.
Esteve entre nós o nosso consórcio Dr. Fernando Lopes de Oliveira, do
Distrito Regional de Arapongas e diretor do Distrito do Jornal
Arapongas. Prestando esclarecimentos sobre o andamento de nosso
trabalhos na região sob sua jurisdição, disse-nos S.S. da simpatia
com que o povo tem acolhido a nossa sociedade [...]. Esperando-se que
atinja em breve a apreciável cifra de dez mil membros [...]. A
Inspetoria Regional de Arapongas compreende os municípios de
Arapongas, Londrina, Assaí, Cornélio Procópio, Apucarana e Uraí.
(Fernando Lopes de Oliveira, Nosso Jornal, Ano II, nº 75, p. 2,
27.3.1948, Curitiba).
O Nosso Jornal, seu informativo e órgão de difusão, podia ser impresso e
reproduzido em cada município, desde que se articulasse com a coordenação geral
do seu estado. Como resultado, a rede, que era estruturada a partir de um
presidência central, tornava-se autônoma e mais ágil no alcance de seus
objetivos. Dentre as atividades desenvolvidas estavam as campanhas
educacionais, cuja meta principal era a integração do negro na sociedade
através da ascensão social e intelectual, a fim de permitir sua inclusão. A
ideologia liberal de mobilidade, ascensão e inclusão social através dos bancos
escolares era perseguida por aquele grupo de emergentes.
A UHC tem por finalidades manter moços e moças em cursos superiores,
concedendo-lhes roupa, alimentação, etc. para que possam concluir os
estudos [...]. E ampla campanha de alfabetização, de forma que,
dentro de 10 anos não exista um único homem de côr que não saiba
ler.12
Note-se que a educação formal e a preparação profissional foram sempre
perseguidos pelos negros organizados, em diferentes épocas. A Frente Negra
Brasileira em São Paulo, nos anos 1930, constituiu extensas turmas de
alfabetização. Os diretores fundadores do Renascença Clube do Rio de Janeiro
(nos anos 1950) chegavam mesmo a comprar livros para os alunos em dificuldades.
O TEN criou escolas de atores e aulas de alfabetização. A União Cultural dos
Homens de Côr do DF constituiu diversos cursos de corte e costura para
empregadas domésticas. Outro ponto do seu estatuto determinava que todos os
seus membros alfabetizados deveriam tomar para si a responsabilidade de
alfabetizar pelo menos uma pessoa ligada aos seus quadros, garantindo, desta
forma, que no fufuto todos os que a ela fossem filiados, deixassem de ser
analfabetos.
Além da educação, a UHC dedicou-se a atender os problemas mais imediatos e
visíveis ligados às mudanças sociais e educacionais para os negros no geral e
para aqueles associados a ela.
Daí depreende-se que a UAGACÊ não pretende estimular o preconceito de
cor. Inversamente, até quer diluí-lo de todo, combatendo-o da melhor
maneira possível, no entender de seus dirigentes: educando e
instruindo o negro para que ele, uma vez capacitado a desempenhar
melhores encargos, possa fazer vida social em comum com os brancos.13
Desta forma, o direito à moradia, também como estratégia de inclusão e ascensão
social, era parte dos objetivos da entidade:
A UHC (com Deus pela Pátria e a família) tem finalidades
assistenciais: construir casas próprias para famílias e residências
coletivas para homens e mulheres.14
Fundada em Teresópolis, região serrana do Estado do Rio de Janeiro, a UHC
daquela cidade tinha como uma de suas principais metas adquirir terrenos para a
construção de "casas de tijolos e telhas higiênicas, assoalhadas em condições
de serem habitadas".15
A saúde era outra de suas metas. Desenhava-se um modelo de previdência privada
através da "Assistência médica a todos os membros da União"16 a serem atendidos
por profissionais especializados pertencentes à UHC, no qual em cada município
deveria haver um médico ou cirurgião-dentista voltados aos membros da entidade.
O estatuto, no entanto, deixa claro que estes voluntários deveriam "perceber
honorários correspondentes aos serviços prestados". Afastava-se assim a visão
de voluntariado ou assistencialismo. Era, isto sim, um sistema de previdência
social a ser estabelecido como forma de suprir a ausência do estado.
O capítulo do estatuto geral ' que deveria ser aplicado por todos os ligados à
UAGACÊ, em âmbito nacional ' refere-se a "um programa pré-eleitoral de partido
político", que foi desenvolvido em muitas localidades. Seu fim era procurar
eleger lideranças da rede UHC nas eleições municipais e estaduais. O presidente
da UHC do Distrito Federal, por exemplo, foi eleito deputado estadual em 1950.
Assim, presentes na educação, na saúde e na política institucionalizada,
acreditavam os da UHC que estariam abrindo caminho para o "alevantamento moral
das pessoas de côr". A assistência social era, então, o caminho mais imediato
para se conseguir este objetivo. Em muitos eventos, a UHC aproximava-se do
perfil das antigas irmandades religiosas ao organizar caravanas de doação de
roupas, alimentos e medicamentos aos pobres.
Ultrapassando as caravanas assistenciais: estratégias políticas
Um dos poucos estudos já realizados sobre a UHC foi feito por Costa Pinto a
respeito de sua sucursal do Rio de Janeiro. A comparação direta com o TEN leva
o autor a interpretá-la muito mais como uma das associações intermediárias do
que aquelas que propõem uma mudança de parâmetros na sociedade brasileira. À
primeira leitura do estatuto da UHC, pode-se pensar que sua tarefa fosse apenas
de assistência social ou de simples iniciativas de "estratégias
integracionistas e assimilacionistas" (Santos, 1986: 289). No entanto, uma
observação mais atenta sobre suas iniciativas, deixa transparecer uma maior
abrangência de ações, como veremos posteriormente e como se pode observar numa
entrevista dada a um dos periódicos da imprensa negra do Rio de Janeiro, pelo
seu presidente estadual:
A UHC, por intermédio do seu presidente, faz apêlo para que seja
abandonada a idéia geral que é a falta de cultura que caracteriza o
desajustamento do negro na sociedade brasileira. Nós temos negros de
valor [...] Isto demonstra ao mundo que não há raça superior em face
das raças judaicas e negras, as mais perseguidas no mundo.
Seus líderes chegavam, algumas vezes, a sugerir uma possível crítica ao
sistema, sem, contudo, reivindicar uma postura de confronto com o Estado ou
seus representantes. "Os administradores, em 63 anos de abolição, não fizeram
jus, de um certo modo, às reivindicações da causa abolicionista. Porque nós
vivemos geralmente afastados dos altos cargos da administração pública".
Uma das estratégias adotadas era organizar-se a partir do estabelecimento de
parcerias e alianças com personalidades e autoridades locais, não negras, que
se mostravam sensíveis a uma cruzada anti-racista no país. A UHC do Distrito
Federal realizou uma homenagem por ocasião do centenário de José do Patrocínio,
para a qual afluíram importantes lideranças da cidade de Campos (RJ), em 1949.
A atividade foi possível devido ao concurso de um deputado estadual, cujo
projeto teria permitido a realização da homenagem. Nesta tática de arrebanhar
presentes e futuros aliados, as palavras finais do conferencista nos permitem
vislumbrar esta metodologia.
Quero pedir ao deputado Celso Peçanha, autor principal do projeto que
tanto serviu para dar a esse preito de veneração um cunho menos
regional, que não se esqueça de que é campista e carrega a
responsabilidade do sobrenome daquele que serviu de amparo ao sonho
do homenageado. Os homens vigilantes sois vós campistas, que
certamente providenciareis para que o grupo étnico que vos deu um
Patrocínio dê centenas de outros Patrocínios a fim de que se projetem
todos eles pelo Brasil inteiro e lutem pela culturação e educação de
seus irmãos de côr. ( José Bernardo da Silva, Nosso Jornal, outubro
de 1950, p. 4)
Lembremos que José do Patrocínio esteve prestes a criar um dirigível e foi por
isto duramente combatido pelos políticos e autoridades da época. Dentro do
pequeno grupo de defensores estava Nilo Peçanha, de quem o aludido deputado era
herdeiro. Assim, ao evocar este fato histórico, cem anos depois, usando o
sobrenome do deputado presente (Peçanha), o orador procurava comprometê-lo numa
causa mais ampla, que ultrapassasse o momento da homenagem a uma liderança
histórica.17 Tornava-o partícipe e suposto seguidor de uma tradição, iniciada
por um de seus ancestrais, de vir a público aliar-se aos negros de forma a
coibir injustiças e discriminações. Dito de outra forma, o representante da UHC
procurava restabelecer uma aliança iniciada um século antes e assim elaborar
uma parceria possível.
Os líderes da UHC demonstravam estar atualizados com o fluxo de discussões
acadêmicas e científicas da época, através das reflexões pioneiras que
provocavam. Um de seus jornais, publicado em Santa Catarina em 1950, estampa
uma frase da autoria de Donald Pierson.
Outro exemplo neste sentido é um trecho do discurso pronunciado durante as
festividades do centenário de José do Patrocínio (1949), pelo segundo homem na
hierarquia da entidade no Distrito Federal:
Nós, da União dos Homens de Cor, temos sido combatidos no nosso sonho
humanístico de vermos os pretos e pardos do Brasil dignificados pela
cultura, educação e moral [...] Uns nos combatem por não saberem dos
nossos reais intuitos, outros fazem isto por adotarem as idéias de
Gobineau, um dos pais do racismo.
O tom quase intimista com que Gobineau é citado nos permite observar que as
teses científicas transpunham-se dos compêndios acadêmicos e eram lidas pelas
lideranças negras da época. Assim, um dos artigos refere-se à "lastimável
incúria em que estiveram os estudos sobre o negro no Brasil" e segue numa
crítica ácida em relação aos trabalhos de Spix e Martius e de como "a
autoridade de ambos" teria levado a conclusões equivocadas a respeito das
populações africanas chegadas ao Brasil. Reiterando a tese da destruição dos
documentos, que poderia atestar os números e a origem real dos africanos
trazidos ao Brasil, o jornal passa por Silvio Romero, critica negativamente o
seu trabalho e conclui fazendo uma longa enumeração dos vários povos africanos
que aqui vieram e para quais estados ou regiões foram transportados.18 Esta
atualidade sobre as idéias consentâneas do mundo e na ausência de maiores
instrumentos legais aos quais se referir ' a Lei Afonso Arinos ainda não havia
sido sancionada ' a Declaração Universal do Direitos Humanos, recém-publicada
pela ONU, passou a servir de parâmetro a subsidiar aquela rede.
Ações de governo que pudessem reverter, direta ou indiretamente, benefícios à
população negra eram focalizados e relatados no seu periódico. Em outras
palavras, as políticas que tivessem como alvo o benefício da população pobre
eram repercutidas no jornal. Outra estratégia adotada era ' tendo como um de
seus objetivos o "combate a todo tipo de descriminação racial" [extrato do
estatuto] ' promover movimentos de pressão que davam visibilidade e serviam
como denúncia pública de situações de racismo e discriminação racial, como
informava José Bernardo da Silva, presidente da UHC do Distrito Federal, nos
anos 60.
Assim que Getulio Vargas fora eleito Presidente da República,
estivemos com Sua Excelência expondo-lhe as aspirações da UHC e
pedindo o seu apoio. Queríamos que Vargas nos facilitasse os meios
necessários para fundarmos escolas até mesmo profissionais e órgãos
assistenciais em benefício dos pretos e pardos atirados à margem da
sociedade e sofrendo mais que os brancos [...]. Nada de positivo
resultou dessa entrevista. A documentação que entregamos ao então
presidente da República não sabemos que destino tomou.
Costa Pinto refere-se à visita feita por um de seus diretores à uma firma
norte-americana em companhia da imprensa. O objetivo era exigir um ato de
desagravo por parte do gerente que negara emprego a uma mulher negra (Pinto,
1952). Outra ação de pressão foi a campanha de inclusão de negros nas
propagandas oficiais. O racismo brasileiro acabava sendo visibilisado
internacionalmente, a partir da participação da UHC no Conselho das
Organizações não Governamentais pertencente ao escritório da UNESCO no Rio de
Janeiro.
Percebemos, então, que embora a visibilidade da organização se desse através
das caravanas de doações de roupas, alimentos e remédios, estas funcionavam
apenas como um grande outdoor, diante do qual desfilavam ações mais
contundentes dos diversos grupos da rede, espraiados pelo país. Assim sendo, as
parcerias políticas, as pressões contra as autoridades constituídas e as
críticas em relação às teorias raciais que atribuíam ao negro as marcas de
inferioridade eram estratégias que demarcavam as verdadeiros objetos UHC. Ainda
nesta linha estratégica de defesa de direitos civis, o emprego da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, recém-elaborada pela ONU, os colocava em
diálogo direto com as reivindicações por cidadania correntes para além das
fronteiras do estado brasileiro.
Conclusão
O novo momento político e econômico da redemocratização após a ditadura Vargas
estimulou o aparecimento de manifestações negras de diversas naturezas. O
movimento social dos negros estava, então, em constante interlocução com os
mecanismos estabelecidos pela sociedade buscando influenciá-la e sendo por ela
influenciado. A criação e a expansão da UHC foi precipitada por três fatores
principais: em primeiro lugar, havia a discrepância entre a identidade de
racialmente inferiores, atribuída aos negros, e sua crescente ascensão social e
cultural, que acabava por criar barreiras socioestruturais para a sua inclusão
político-social. Em segundo lugar, estava o surgimento de diversas formas
organizativas que permitiam aos negros aglutinarem-se em torno de questões com
as quais se identificavam. Ou seja, havia uma atmosfera que estimulava a
criação de novas entidades e aquecia os debates em torno dos direitos a serem
conquistados. O terceiro fator repousa na influência da circulação de idéias no
mundo, onde o retorno da racialização preocupava a todos. Era a luta contra o
racismo empreendida em âmbito mundial dentro do espírito político e ideológico
do pós-guerra, quando os documentos da ONU, criados para este fim, ajudavam a
estabelecer bases e critérios para uma cruzada anti-racista.
Ao longo de sua trajetória, que se iniciou no pós-guerra, estabeleceu-se nos
anos 50 e expandiu-se pelos 60, a UHC buscava reconhecimento para os negros no
âmbito do Estado-nação brasileiro. Se considerarmos que, pautado no discurso
liberal e universalista, o nacionalismo tende a estimular a negação das
diferenças (Anderson, 1994/ Mauss,1969), o Estado brasileiro era em sua
formação excludente e discriminador. Então, a UHC e muitos dos grupos seus
contemporâneos, mais do que tratar de inclusão e ascensão social, buscavam a
participação dos negros no projeto nação brasileiro. A luta era, então, contra
o Estado, na sua forma racializada. Em última análise, suas ações buscavam
inseri-los no Estado-nação, a partir da participação igualitária nas instâncias
de poder nacionais. Um exemplo que poderíamos citar seria a preocupação
constante ' demonstrada em suas publicações ' em inserir seus representantes em
cargos eletivos e a atração de negros parlamentares (estaduais ou municipais)
para aliarem-se aos quadros da organização.
Desta forma, o estudo da trajetória da UHC pode nos auxiliar a perceber a
construção de identidades que embora tenham a etnicidade como base de
construção, apresentam-se, ao mesmo tempo, diversas e heterogêneas em suas
formas de expressão. Estudar o passado pode nos ajudar a observar o quanto
diferentes práticas e manifestações culturais e políticas contribuíram para a
organização dos negros no presente.
Notas
1. A esse respeito nos fala Santos: "O espetáculo era insólito: viam-se negros
operários (e sobretudo após o estancamento da imigração); negros biscateiros;
negros pequenos empresários (quase sempre comerciários públicos (militares,
sobretudo, mas também administrativos); negros radialistas, jogadores de
futebol, cabos eleitorais ' as profissões que a Revolução inventou; e assim por
diante" (Santos, 1985:288).
2. "O próprio Geraldo dirigiu o Teatro e com a renúncia de Jânio, aquela
confusão, o Geraldo foi para o Rio de Janeiro com um cargo no Ministério do
Trabalho e deixou o teatro na mão do de um jovem chamado Dalmo Ferreira . O
Dalmo pegou todo o teatro e fez uma reviravolta, porque em vez do teatro ser um
grupo que ia levar peças tradicionais, o Dalmo fez um tipo de teatro popular,
intercalando de músicas, pegando as nossas coisas, aí começou esse tipo de
teatro". (Aristides Barbosa apud Márcio Barbosa, (1998:32).
3. Jornal Quilombo, Ano I, nº 4, p. 9, julho de 1949.
4. Fundado por Solano e Margarida Trindade e Edson Carneiro em 1950.
5. Pela extensão e alcance de sua atuação, o TEN mereceria um capítulo
específico neste trabalho. Evitamos fazê-lo num esforço de não desviar de nosso
foco principal, que é atuação da UHC. A esse respeito, sugerimos a leitura de
Nascimento (1999), revista Thoth (nº 1, 1997), Hanchard (1998), Mendes (1993),
Andrews (1991).
6. Entrevista dada à autora por Efigênia Carlos Pimenta, filha do fundador e
atual militante do movimento negro de Belo Horizonte ( junho, 2003).
7. Embora fundada em 3 de janeiro de 1943, o registro de seu estatuto ocorre em
janeiro de 1946. Acreditamos que esta defasagem se deva ao fato de que a
diretoria tenha achado por bem aguardar o período da ditadura varguista, para
só então oficializar a organização.
8. "Os chefes municipais nomearão um distrital para cada distrito de seus
municípios, os quais organizarão as respectivas diretorias, compostas de tantos
membros quantos se façam necessários, observando sempre a organização das
diretorias dos municípios" (Nosso Jornal, 27.3.1948, Ano II, nº 75, p. 4,
Curitiba).
9. "É uma sociedade legalmente registrada para todo o país, existindo uma
diretoria para toda a nação, uma diretoria em cada município com um único
estatuto" (extrato do estatuto)
10. Nosso Jornal, Ano II, nº 75, p. 4, 27.3.1948, Curitiba.
11. Cf. Nosso Jornal, janeiro de 1948, Curitiba.
12. João C. Alves, jornal Quilombo, Ano I, nº 1, p. 3, dezembro de 1948.
13. Jornal Quilombo, Ano I, nº 1, 9.12. 1949, p. 3.
14. Depoimento de João C. Alves, jornal Quilombo, Ano I, nº 1, p. 3, dezembro
de 1948.
15. Jornal Redenção, 30.12.1950, p. 3.
16. Cf. jornal Quilombo, Ano I, nº 1, p. 3, dezembro de 1948.
17. José do Patrocínio, Cruz e Souza, Luiz Gama e Henrique Dias eram os grandes
heróis negros homenageados por diversos grupos em âmbito nacional.
18. Nosso Jornal, outubro de 1950, Curitiba.