Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial
O campo dos estudos políticos e sociais não existe sem dissonância. As
categorias que se empregam para interpretar a sociedade, a organização política
e os fatos culturais, por serem históricas e refletirem sempre um compromisso e
uma escolha dos pesquisadores, são muitas vezes fluidas e fugazes.
Inúmeros conceitos da teoria social contemporânea geram controvérsias
constantes. Um deles é o de hegemonia. Trata-se de um conceito empregado
basicamente para caracterizar a capacidade que um grupo tem de dirigir
eticamente e estabelecer um novo campo de liderança. Mas como a palavra tem
origem militar, muitos a aproximam da idéia de monopólio ou uso intensivo do
poder, quer dizer, vêem-na muito mais como sinônimo de força, autoridade e
imposição. O conceito de consenso sofre algo parecido: elaborado para
qualificar uma articulação pluralista de idéias e valores, uma unidade na
diversidade, acaba por ser reduzido a ausência de dissenso e divergência, uma
situação mais de silêncio passivo e unanimidade que de ruído e multiplicidade.
Manuseado com esse registro, o conceito de consenso perde operacionalidade e se
torna um jargão sem maior utilidade. Quando muito, vale para que se demarque
uma ou outra posição em termos políticos mais imediatos.
Ocorre algo ainda pior com o conceito de sociedade civil. Ao se disseminar
largamente e colar-se ao senso comum, ao imaginário político das sociedades
contemporâneas, à linguagem da mídia, o conceito perdeu precisão: empregam-no
tanto a esquerda histórica quanto as novas esquerdas, tanto o centro liberal
quanto a direita fascista. Os vários interlocutores referem-se a coisas
distintas, mas empregam a mesma palavra. Certamente, a referência nem sempre é
Gramsci, mas Gramsci está presente sempre, é sempre lembrado e muitas vezes é
apresentado como parâmetro principal. Inevitável que a confusão prevaleça.
Hoje, como muitos já observaram, continuamos sem uma compreensão única e
consensual do termo (Whitehead, 1999; Cohen e Arato, 2000; Nogueira, 2000/
2001; Lavalle, 1999).
A sociedade civil serve para que se faça oposição ao capitalismo e para que se
delineiem estratégias de convivência com o mercado, para que se proponham
programas democráticos radicais e para que se legitimem propostas de reforma
gerencial no campo das políticas públicas. Busca-se apoio na idéia tanto para
projetar um Estado efetivamente democrático como para se atacar todo e qualquer
Estado. É em nome da sociedade civil que muitas pessoas questionam o excessivo
poder governamental ou as interferências e regulamentações feitas pelo aparelho
de Estado. Apela-se para a sociedade civil com o propósito de recompor as
"virtudes cívicas" inerentes à tradição comunitária atormentada pelo mundo
moderno, assim como é para ela que se remetem os que pregam o retorno dos bons
modos e dos bons valores. É em seu nome que se combate o neoliberalismo e se
busca delinear uma estratégia em favor de uma outra globalização, mas é também
com base nela que se faz o elogio da atual fase histórica e se minimizam os
efeitos das políticas neoliberais. Muitos governos falam de sociedade civil
para legitimar programas de ajuste fiscal, tanto quanto para emprestar uma
retórica modernizada para as mesmas políticas de sempre, assim como outros
tantos governos progressistas buscam sintonizar suas decisões e sua retórica
com as expectativas da sociedade civil. Em suma, o apelo a essa figura
conceitual serve tanto para que se defenda a autonomia dos cidadãos e a
recomposição do comunitarismo perdido, como para que se justifiquem programas
de ajuste e desestatização, nos quais a sociedade civil é chamada para
compartilhar encargos até então eminentemente estatais.
No texto que se segue, pretendo argumentar que convivemos hoje com diferentes
conceitos de sociedade civil, estruturados a partir de distintos programas de
ação e influências teóricas. Flutuamos entre esses conceitos, tanto no plano
teórico como no mais imediatamente político. Eles, na verdade, freqüentam-se
reciprocamente, remetendo-se uns aos outros. Seus impactos e desdobramentos
políticos, porém, são completamente distintos, como veremos.
Para desenvolver a argumentação, este texto toma como parâmetro o conceito
gramsciano de sociedade civil. Ainda que sem pretender reconstruir com detalhes
a concepção de Gramsci,1 nem mapear e deslindar criticamente as diversas
correntes que hoje incidem nos estudos a respeito da sociedade civil, procurar-
se-á fixar o núcleo mais específico da concepção gramsciana e tomá-lo como base
para dialogar com as demais idéias de sociedade civil que hoje procuram se
afirmar no panorama político e cultural.
Com esse propósito, será aqui adotado o pressuposto de que, em Gramsci,
sociedade civil é um conceito, complexo e sofisticado, com o qual se pode
entender a realidade contemporânea. Mas é também um projeto político,
abrangente e igualmente sofisticado, com o qual se pode tentar transformar a
realidade. Diferentemente, porém, do que ocorre em boa parte das formulações
recentes sobre a "nova sociedade civil" - que procuram fornecer um eixo de
orientação para a ação política com base numa oposição axiológica entre Estado
e sociedade (Lavalle, 1999) -, a teoria gramsciana encontra seu alicerce
teórico e sua referência ético-política precisamente na dialética de unidade-e-
distinção daquelas duas instâncias constitutivas do social. Com isso, Gramsci
pôde atualizar o conceito de sociedade civil vis-à-vis as tradições
oitocentistas e assimilá-lo como fundamento de sua teoria da hegemonia
(Frosini, 2003). Para ele, a sociedade civil não é um mero terreno de
iniciativas "privadas", mas tem desde logo uma "função estatal", na medida
mesma em que se põe como "hegemonia política e cultural de um grupo social
sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado" (Gramsci, 2000, p. 225).
O conceito e sua difusão
A história do conceito de sociedade civil remonta ao mundo clássico e medieval,
a partir do qual, após longa maturação, ressurgiu colado à progressiva
afirmação do pensamento liberal. Chegou ao século XIX, passando pelo
Iluminismo, por Ferguson, Adam Smith e Rousseau, e infiltrou-se com destaque
nas formulações de Hegel e Marx, mediante os quais se incorporou à cultura
teórica contemporânea, penetrando particularmente os universos socialista e
comunista.2
Ao longo do século XX, o conceito esteve fortemente associado à elaboração
marxista de Antonio Gramsci, ganhando forte disseminação após a descoberta e o
intenso trabalho de avaliação crítica de Cadernos do Cárcere, no pós-Segunda
Guerra Mundial. A partir dos anos de 1980, os cadernos têm sido objeto de
reconstituição e reinterpretação, ao qual se associam nomes como os de Norberto
Bobbio, Alain Touraine, Charles Taylor, Michael Walzer e Jurgen Habermas, entre
outros.
O debate sobre o tema evoluiu por uma via predominante. Ao passo que a tradição
associada a Gramsci permaneceu vendo a sociedade civil como "parte orgânica" do
Estado, como âmbito dotado de especificidade, mas somente compreensível se
integrado a uma totalidade histórico-social, as correntes mais recentes
tenderam a tratar a sociedade civil como uma instância separada do Estado e da
economia, um reino à parte, potencialmente criativo e contestador, visto ora
como base operacional de iniciativas e movimentos não-comprometidos com as
instituições políticas e as organizações de classe, ora como espaço articulado
pelas dinâmicas da "esfera pública" e da "ação comunicativa" (Habermas, 1997a e
1997b). Transitou-se assim de uma imagem de sociedade civil como palco de lutas
políticas e empenhos hegemônicos, para uma imagem que converte a sociedade
civil ou em recurso gerencial - um arranjo societal destinado a viabilizar
tipos específicos de políticas públicas -, ou em fator de reconstrução
ética e dialógica da vida social. De uma fase em que o marxismo preponderava
nas discussões e deixava sua marca, ingressou-se numa fase em que a perspectiva
liberal-democrática, nuançada ou afirmada de modo ortodoxo, prevalece e opera
como referência principal.
Em termos gerais, essa recomposição e a larga difusão do conceito tiveram na
base um processo objetivo, estruturado por quatro vertentes principais.
Em primeiro lugar, a complexificação, a diferenciação e a fragmentação das
sociedades contemporâneas, subproduto mais expressivo do desenvolvimento
capitalista das últimas décadas. Ainda que cortadas por imponentes processos de
integração e estandartização, as sociedades ficaram mais diversificadas e
individualizadas. Tornaram-se ambientes tensos e competitivos, onde predominam
condutas fechadas em si, pouco dialógicas e muito desagregadas. Sob a base de
uma diminuição do peso relativo do grande sujeito histórico da modernidade
capitalista, a classe operária, que funcionava como vetor de unificação social,
projetou-se um amplo conjunto de "novos sujeitos", que, em sua ação, nem sempre
querem ou conseguem se unificar. A mundialização e a expansão dos mercados, que
em épocas anteriores operaram como inequívoco fator de agregação e estruturação
de ações coletivas, passaram a animar o livre curso de interesses sempre mais
particulares e desagregados.
Em segundo lugar, o conceito foi impelido pela constituição de um mundo mais
interligado e integrado economicamente, submetido tanto a redes de comunicação
e informação, como a dinâmicas estruturais que relativizaram o poder dos
Estados nacionais. O social ganhou maior transparência e maior autonomia
relativa diante do político. As sociedades entraram mais em contato umas com as
outras e passaram a assimilar influxos culturais muito mais padronizados, com
que ficaram ameaçadas a autonomia e a originalidade das culturais nacionais. O
mundo, porém, não se tornou mais igual: tornou-se, na verdade, muito diverso,
com um aumento sem precedentes das distâncias que separam ricos e pobres,
protegidos e desprotegidos, trabalhadores e proprietários.
A difusão do conceito também foi impulsionada, em terceiro lugar, pela crise da
democracia representativa e pelas transformações socioculturais associadas à
globalização, que fizeram com que a política se tornasse bem mais
"espetacular", bem mais midiática e bem menos controlada pelos tradicionais
operadores políticos. O protagonismo adquirido pelos meios de comunicação -
pela televisão em particular - alterou em profundidade toda a esfera do
político, seja modificando os termos da competição inerente a ela, seja
reformulando os circuitos em que se modelam as consciências e a opinião dos
cidadãos: transformou, portanto, o modo mesmo como se produz consenso, como se
formam culturas e orientações de sentido, como se constroem hegemonias. Com a
força adquirida pelo projeto neoliberal e o aprisionamento dos Estados
nacionais (e de seus governos) na jaula da globalização, o modo predominante de
produção de consenso acabou por travar a formação e o desenvolvimento de formas
mais politizadas de consciência, em benefício de formas econômico-corporativas
e da expansão de atitudes mentais consumistas, individualistas, medíocres,
indiferentes à vida comum. Tal situação provocou impactos negativos importantes
sobre o funcionamento e a identidade dos partidos políticos de esquerda, já
abalados pela dificuldade de reprodução dos sujeitos sociais "clássicos" e pela
diminuição do sentido das grandes utopias políticas. Em decorrência, reforçou-
se o protagonismo de organizações e movimentos autônomos em relação à esfera
imediatamente política e a causas de natureza "classista". Com sua firme e
progressiva disseminação, esses movimentos e organizações congestionaram a
sociedade civil, confundindo-se com ela. De espaço dedicado à articulação
política dos interesses de classe - de terreno para a afirmação de projetos
de hegemonia -, a sociedade civil se reduziu a um acampamento de
movimentos. Ganhou-se em termos de organização dos interesses e mesmo de
ativação democrática, mas perdeu-se em termos de unidade política.
Também contribuiu para a "redescoberta" da sociedade civil, em quarto lugar, a
expansão da cultura democrática em geral e da cultura participativa em
particular, com o que ganharam impulso o ativismo comunitário e, na esteira
dele, os assim chamados novos movimentos sociais. Ao lado de determinações de
ordem mais imediatamente econômica e política, foi com base nessa expansão que
se completaram, ao longo dos anos de 1980, o esgotamento e a sucessiva crise
terminal dos regimes ditatoriais na América do Sul, bem como a derrocada
completa do sistema socialista do Leste europeu. Em ambos os casos - que
são bem específicos e não podem ser reduzidos a meras variantes de processos de
descompressão política -, o movimento pela democratização fez-se junto com
uma crise do Estado e dos padrões societais então vigentes. Inúmeros
movimentos, ações e organismos passaram a se enraizar num terreno que já não
podia mais ser plenamente regulamentado de modo estatal, e acabaram, com isso,
por impulsionar a idéia de que teria finalmente surgido uma "terceira esfera,
ao largo do mercado e do Estado moderno" (Avritzer, 1994, p. 12), desvinculada
de partidos, regras institucionais e compromissos formais, terra da liberdade,
do ativismo e da generosidade social, a partir da qual se construiria a
democracia por que se lutava.3 A expressão sociedade civil ficou, assim, colada
a essa "terceira esfera", e para ela foi transferida toda a potência da ação
democrática mais ou menos radical, da luta por direitos e da constituição de
uma esfera pública não integrada ao estatal e assentada no livre associativismo
dos cidadãos.
Em ambos os casos, a democratização combinou-se com avanços em termos de
modernização capitalista e globalização, ou seja, com pauperização,
diferenciação social, crise fiscal, mudanças culturais e recessão econômica,
fatos que iriam comprometer precisamente a consistência, a eficácia e a
qualidade da democracia, bem como das respectivas sociedades civis. Combinou-se
também com enfraquecimento do Estado e da perspectiva do Estado, graças à
progressiva afirmação de um "discurso satanizador do setor público" e de uma
ideologia estatal "auto-incriminatória", que igualará tudo o que era estatal
com a ineficiência, a corrupção e o desperdício (Borón, 1996, p. 78). A
democratização nascerá e avançará, assim, perversamente articulada com uma
desvalorização do político e uma recusa à política institucionalizada, ou seja,
com uma despolitização da política e da cidadania. Num primeiro momento,
portanto, durante os anos de autoritarismo, a sociedade civil apareceu como
cenário opaco, pouco denso e cortado por interesses particulares exacerbados,
divergentes, mal compostos e certamente necessitados de politização, fato que
por si só justificaria a observação de Arato de que "é questionável que uma
coisa inexistente (a sociedade civil num regime totalitário) possa, apesar
disso, contribuir para sua própria libertação" (1995, p. 19). Num segundo
momento, com o avanço neoliberal da democratização, a sociedade civil
fragmentou-se toda, assistiu ao empobrecimento de muitos de seus setores e
ficou ainda mais vazia de dimensão ético-política, com sintomas de um "regresso
hobbesiano" que a incapacitaria para se repor "civilizadamente". Apesar disso,
continuou a crescer o elogio unilateral de uma sociedade civil que conteria as
melhores virtudes sociais e poderia se contrapor ao momento autoritário,
repressivo e burocrático do fenômeno estatal. Ao reconhecido excesso de Estado
típico do período ditatorial e ao mau funcionamento do Estado democrático, iria
se confrontar uma postura tendencialmente hostil a qualquer Estado (Nogueira,
1998b).
Ao longo desse amplo movimento histórico-social, novas idéias de sociedade
civil foram sendo elaboradas e incorporadas ao léxico contemporâneo. Como
representação da prevalência do mercado, ou seja, numa linha doutrinária que se
confundiria com o liberalismo econômico, com o liberismo, cresceu uma imagem da
sociedade civil como expressão ou de uma solidariedade comunitária, ou de uma
espécie de "revanche" do econômico sobre o político, como locus de realização
das potencialidades do indivíduo, do bourgeois sobre o citoyen, para lembrar
uma famosa expressão utilizada por Marx. Com tal inflexão, despolitizava-se a
sociedade civil, que passava então a ser pensada ou como trincheira para
proteger o indivíduo e as associações voluntárias contra o Estado, ou como
ambiente capaz de recompor as tradições cívicas destruídas pelo mercado. A
imagem ficaria bem ilustrada com a definição de Dahrendorf: "A sociedade civil
é a essência vital da liberdade; seu caos criativo de associações dá às pessoas
a possibilidade de viver suas vidas sem ter que mendigar do Estado ou de outros
poderes" (1997, p. 84).
Por outro lado, como representação do crescimento da democracia participativa e
da assimilação pelas esquerdas do núcleo mais "heróico" do liberalismo
democrático, cresceu uma imagem de sociedade civil como esfera plural de
interesses que, mediante progressivas ações associativas meritórias, daria
curso a uma "vontade geral" quase redentora, a um "programa que busque
representar os valores e interesses da autonomia social perante o Estado
moderno e a economia capitalista, sem cair em um novo tradicionalismo" (Cohen e
Arato, 2000, p. 54). Para isso, a imagem criada pela esquerda liberal-
democrática também foi levada a destruir o vínculo orgânico entre a sociedade e
o Estado (peça-chave da operação teórica que chega até Gramsci) e a
hierarquizar axiologicamente essas duas instâncias, de modo a "negativizar" o
Estado e "positivizar" a sociedade civil. Fixou-se assim um conceito de
sociedade civil visto como "momento oposto ao Estado, sem qualquer liame ou
intercâmbio conformativo que não seja dado a posteriori, isto é, apenas como
decorrência de seu confronto" (Lavalle, 1999, p. 131).
De um modo ou de outro, portanto, a "redescoberta" do conceito de sociedade
civil implicou uma revisão radical da formulação gramsciana. Para tornar ainda
mais complexo e confuso o quadro, parte dessa revisão irá se fazer
declaradamente a partir de uma incorporação ativa do léxico de Gramsci e muitas
vezes em seu nome.
A sociedade civil político-estatal
O conceito de sociedade civil foi concebido por Gramsci - que o resgatou da
tradição iluminista e hegeliana dos séculos XVIII e XIX e o renovou com
radicalidade - como parte de uma operação teórica e política dedicada a
interpretar as imponentes transformações que se consolidavam nas sociedades do
capitalismo desenvolvido (alterações no padrão produtivo, expansão da classe
operária, crescimento do associativismo, da diversificação e da organização dos
interesses, socialização da política, maior peso do Estado vis-à-vis o mercado,
aumento da regulação e das políticas de proteção e bem-estar etc.) (Nogueira,
1998a). Gramsci percebia que esse movimento era virtualmente unificador e
continha um impulso claro em direção a formas mais avançadas de convivência,
mas estava cortado por fortes tendências desagregadoras, competitivas,
individualistas. O próprio Estado estava sendo reconfigurado: era invadido pela
socialização da política que se verificava e levado a ir além do aparato
repressivo e coercitivo. A força requeria sempre mais consenso e hegemonia. O
Estado se "ampliava" (Buci-Glucksmann, 1980), articulando-se com a "nova"
esfera do ser social que se objetivava em conjunto com uma maior diferenciação
social e uma melhor organização dos interesses. A idéia gramsciana de sociedade
civil espelharia a nova situação: abrigava a plena expansão das
individualidades e diferenciações, mas acomodava também, acima de tudo, os
fatores capazes de promover agregações e unificações superiores. Ela seria a
sede de múltiplos organismos "privados", mas nem por isto menos estatais. Seus
integrantes estariam dispostos como vetores de relações de força, como agentes
de consenso e hegemonia, candidatos a "se tornar Estado".
Com o Estado reforçado conectando-se com múltiplas associações particulares e
incorporando-as a si, todo o espaço estatal ganhava nova qualidade e o fato
mesmo da dominação política era redefinido: a coerção - "monopólio legítimo
da violência" (Weber), ação típica do Estado visto como "sociedade política"
- tinha de ser cada vez mais sintonizada com a busca de consensos. Nos
Cadernos do Cárcere, Gramsci esclareceu que o ato de governar continuaria a
buscar o "consenso dos governados", mas não apenas como "consenso genérico e
vago" que "se afirma no instante das eleições", e sim como "consenso
organizado". O Estado, observava, "tem e pede o consenso, mas também 'educa'
esse consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são
organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente"
(Gramsci, 2000, p. 119). O terreno das associações privadas tornava-se, assim,
uma espécie de "dimensão civil" do Estado, base material da hegemonia política
e cultural. Estado (coerção) e sociedade civil (consenso) passavam, desse modo,
a ser vistos como instâncias distintas mas integradas, formando uma unidade.
Reuniam-se, portanto, dialeticamente. O Estado, dizia Gramsci, é sempre uma
combinação de hegemonia e coerção. "O exercício 'normal' da hegemonia, no
terreno tornado clássico do regime parlamentar - escreverá -,
caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de
modo variado sem que a força suplante muito o consenso, mas, ao contrário,
tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso
pelos chamados órgãos da opinião pública" (Idem, p. 95).
A sociedade civil gramsciana condensa, nesse sentido, o campo mesmo dos
esforços societais dedicados a organizar politicamente os interesses de classe
- constantemente fracionados pela própria dinâmica do capitalismo -,
cimentá-los entre si e projetá-los em termos de ação hegemônica. O
associativismo é a base de tudo, mas desde que tratado politicamente. Gramsci
não via grande vantagem na agregação pela agregação, na agregação em função de
interesses restritos: sua ênfase repousava na superação política dessa
disposição espontânea dos indivíduos e grupos sociais (Gramsci, 1987). Dava-se
o mesmo com a consciência econômico-corporativa: ela existia como estado
primário da consciência social, e devia ser superada pela forma mais
sofisticada da consciência política, promovendo-se assim, como se diz nos
Cadernos, "a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas
complexas" e o ingresso numa fase em que as ideologias lutam entre si até que
"uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se
impor, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também
a unidade intelectual e moral" (Gramsci, 2000, p. 41). A própria noção de
hegemonia - par lógico e político do conceito de sociedade civil -
desdobrava-se num empreendimento unificador. No entendimento de Gramsci, o
sujeito hegemônico seria aquele que viesse a se mostrar mais vocacionado para
agregar e unificar do que para separar e diferenciar. Seria nessa condição,
aliás, que ele poderia se afirmar como "dirigente intelectual e moral" ou como
fundador de Estados.
Isso significa dizer que a política - entendida como fator de mediação, um
campo onde se combinam atos, regras e instituições voltadas para a conquista do
poder, da direção e da liderança, bem como para a organização dos interesses e
da própria vida comum, ou seja, entendida como campo do Estado em sentido amplo
- é o principal motor de agregação e unificação das sociedades.
Evidentemente, trata-se aqui tanto da política dos políticos, isto é, a
política praticada pelos profissionais da política, como da política dos
cidadãos (Nogueira, 2001, cap. 5) inerente ao modo de ser do homem, ou seja,
tanto da política institucionalizada, como da socialmente experimentada. Para
dizer de outro modo, Gramsci imaginava a política como "ética do coletivo"
(Buey, 2001), já que se destinava a viabilizar uma integração da virtude
privada e da virtude pública, dos interesses particulares e da vontade geral,
do Estado e da sociedade, em suma, a possibilitar uma dissolução das distinções
entre governantes e governados, "simples" e intelectuais (Tortorella, 1998). A
política, para ele, vista como mundo político e como atividade política,
representava o "meio" que viabilizava a "catarse", ou seja, "a passagem do
momento meramente econômico (ou egoístico-passional) ao momento ético-político,
isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos
homens" (Gramsci, 1999, p. 314).
Vê-se, portanto, que a sociedade civil gramsciana não se sustenta fora do campo
do Estado e muito menos em oposição dicotômica ao Estado. Ela é uma figura do
Estado, e foi enfatizada por Gramsci como a grande novidade que, na passagem do
século XIX para o século XX, modificava a natureza mesma do fenômeno estatal,
encaminhando-a em direção à idéia do "Estado ampliado". Ela se articula
dialeticamente no Estado e com o Estado, seja esse entendido como expressão
jurídica de uma comunidade politicamente organizada, como condensação política
das lutas de classes ou como aparato de governo e intervenção. Não se mostra
acertado, portanto, o pressuposto de Cohen segundo o qual "Gramsci foi o
primeiro e o mais importante marxista a refutar a redução economicista do
conceito de sociedade civil e a insistir em sua autonomia e em seu destaque do
Estado, ou seja, da sociedade política" (Cohen, 1999, p. 268).
Gramsci pensava numa sociedade civil que se poderia chamar de político-estatal,
de modo a acentuar que, nela, a política comanda: luta social e luta
institucional caminham juntas, articulando-se a partir de uma estratégia de
poder e hegemonia. A famosa fórmula gramsciana é, aqui, eloqüente: SP + SC =
Estado, quer dizer, "na noção geral de Estado entram elementos que devem ser
remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que
Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de
coerção)" (Gramsci, 2000, p. 244).
Entendida por ele como "conteúdo ético do Estado", a sociedade civil
possibilita a articulação e a unificação dos interesses, a politização das
ações e consciências, a superação de tendências corporativas ou concorrenciais,
a organização de consensos e hegemonias. Seus personagens típicos são atores do
campo estatal em sentido amplo. Em decorrência, o Estado que corresponde a essa
sociedade civil é um Estado que poderíamos chamar de máximo: um Estado social
radicalizado, democrático e participativo, que se põe como dínamo da vida
coletiva e parâmetro geral dos diversos interesses sociais, balizando-os, de
algum modo compondo-os e, sobretudo, liberando-os para uma afirmação plena e
não-predatória.
Nessa concepção, portanto, a sociedade civil é considerada um espaço onde são
elaborados e viabilizados projetos globais de sociedade, se articulam
capacidades de direção ético-política, se disputa o poder e a dominação. Um
espaço de invenção e organização de novos Estados e novas pessoas. Um espaço de
luta, governo e contestação, no qual se formam vontades coletivas.
Para falar em termos de uma metáfora visual, a sociedade civil político-estatal
sugere uma formação em linhas convergentes: fogo concentrado no coração do
sistema, maior capacidade de processar e articular demandas, maiores
oportunidades de interferir na vida coletiva como um todo, eleger ou combater
governos. Dada a maior predisposição ético-política de seus protagonistas
principais (partidos políticos e assemelhados), criam-se nela condições para o
aparecimento de diversos pontos "ótimos" de unificação, o que potencializa e
requalifica a movimentação social.
Em sua configuração típico-ideal, essa sociedade civil produz incentivos
basicamente organizacionais e integradores: unificação, politização e
fortalecimento do interesse público e democrático. Desse ponto de vista, a
sociedade civil político-estatal é o campo por excelência do governo
socialmente vinculado e da contestação política. Nela podem se articular
movimentos que apontam seja para a construção de hegemonias, seja para o
controle e o direcionamento dos governos, seja para a regulação estatal e o
delineamento de soluções positivas para os problemas sociais.
O universo gerencial e o ativismo global
O conceito gramsciano de sociedade civil, porém, não é hoje hegemônico: não é
capaz de dirigir. Justamente porque a globalização traz consigo impulsos
irrefreáveis de fragmentação, diferenciação e individualização, de
"desnacionalização" e fronteiras estatais porosas, de desconexão entre pessoas,
grupos e Estados, de enfraquecimento da solidariedade social (Habermas, 2001),
de "destruição do passado" (Hobsbawm, 1995, p. 13), o político-estatal deixou
de poder funcionar como pólo magnético. Tudo parece "emprestar certo charme à
dissolução crescente da modernidade organizada" e anunciar, como programa pós-
moderno, o "fim da política" (Habermas, 2001, pp. 111-112).
Em decorrência, as categorias referenciadas pelo Estado e pelo político tendem
a perder valor e a ser objeto de múltiplas tentativas de ressignificação. As
idéias alternativas de sociedade civil exprimem bem isso. Tendo como eixo um
esforço comum para pensar o Estado, a sociedade e a economia como âmbitos
autônomos, ainda que relacionados, afirmaram-se nas últimas décadas, em diálogo
com Gramsci e com ele concorrendo, duas vertentes teóricas distintas, mas não
contrapostas.
A primeira e a mais importante dessas idéias - sobretudo pela capacidade de
influência que tem tido - pode ser chamada de sociedade civil liberista.
Nela, o mercado comanda: a luta social faz-se em termos competitivos e
privados, sem maiores interferências públicas ou estatais. Sua expressão
poderia estar numa fórmula oposta à de Gramsci: SC + Mercado != Estado, ou
seja, o Estado mostra-se como o outro lado tanto do mercado e da sociedade
civil, como de eventuais alianças ou combinações entre eles. Numa variante
atenuada, de tipo liberal-social, essa sociedade civil vê-se como um "setor
público não-estatal", palco de organizações que são "públicas" porque estão
voltadas para o interesse geral, mas que são "não-estatais" porque estão soltas
do aparelho de Estado (Bresser-Pereira e Cunilll Grau, 1999).
Nessa idéia de sociedade civil não há lugar para a questão da hegemonia. Nela,
não se trata de saber se algum ator pode ou não prevalecer e dirigir a
sociedade, mas de verificar como os atores atuam para obter vantagens ou
extrair maiores dividendos para si, ou seja, maximizar seus próprios
interesses. Trata-se de um espaço cujos personagens típicos são atores que se
organizam ou de modo restrito, egoístico, ou de modo desinstitucionalizado (por
exemplo, no plano do voluntariado ou do assistencialismo tradicional). Não há
ações que pretendam a conquista do Estado, mas ações contra o Estado ou
indiferentes em relação a ele. Em decorrência, o Estado que corresponde a essa
sociedade civil é um Estado mínimo, reduzido às funções de guarda da lei e da
segurança, mais liberal e representativo do que democrático e participativo.
Nessa concepção, a sociedade civil é externa ao Estado - uma instância pré-
estatal ou infra-estatal -, e nela se busca compensar a lógica das
burocracias públicas e do mercado com a lógica do associativismo sociocultural.
Um espaço a partir do qual se pode ferir e hostilizar os governos, mas de onde
não se estruturam governos alternativos ou movimentos de recomposição social.
Nele, pode existir oposição, mas não contestação.
Essa idéia também encontra um desdobramento de ordem mais "prática". É que a
linguagem do planejamento e da gestão incorporou a tese da participação,
redefinindo-a em termos de cooperação com os governos, gerenciamento de crises
e implementação de políticas. A sociedade civil - locus privilegiado da
participação - ingressou assim no universo gerencial, um espaço
evidentemente "neutro", ocupado por associações não-governamentais despojadas
de maiores intenções ético-políticas, sede de intervenções sociais "privadas" e
sem fins lucrativos dedicadas a ativar determinadas causas cívicas ou a
auxiliar os governos no combate à questão social (Torres, 2003). Com isso, o
conceito de sociedade civil reiterou a ruptura do vínculo orgânico entre
sociedade e Estado, mas também atenuou o fervor ético inerente a formulações
mais progressistas. Como estabeleceu Bresser-Pereira, "a sociedade civil é a
parte da sociedade que está fora do aparelho de Estado. Situada entre a
sociedade e o Estado, é o aspecto político da sociedade: a forma por meio da
qual a sociedade se estrutura politicamente para influenciar a ação do Estado"
(1999, pp. 69 e 72). Apesar disso, "não podemos cometer o equívoco de atribuir
a ela um papel libertador, tornando-a a consubstanciação do interesse público".
Esse conceito de sociedade civil estará na base teórica do chamado "Terceiro
Setor", entendido como um vasto conjunto de organizações sociais voltadas para
o atendimento de necessidades e carências de certos segmentos da população e
unidas por uma mesma legislação reguladora (Coelho, 2000; Bresser-Pereira e
Cunill-Grau, 1999). Ao passo que o movimento progressista tenderá a ver o
"Terceiro Setor" como arena de ações cívicas alternativas e/ou de operações
anti-sistêmicas mais ou menos radicais (Fernandes, 1994; Ioshpe, 1997; Vieira,
2001), a cultura neoliberal não se cansará de saudá-lo como instância
capacitada para "substituir" o Estado, trocando as ações públicas permanentes e
gerais por iniciativas tópicas ou locais não necessariamente coordenadas, tendo
em vista uma gradual eliminação da responsabilidade estatal para com a questão
social (Montaño, 2002; Behring, 2003).4
Recorrendo-se a uma imagem, pode-se dizer que a "sociedade civil liberista"
sugere uma formação em linhas paralelas: as energias sociais correm lado a
lado, mas não se alimentam reciprocamente. Ferem os governos em um número maior
de pontos, mas não chegam propriamente a encurralá-los. São muitas vezes por
eles manipuladas. A dispersão dos movimentos ajuda a que eles apenas margeiem e
irritem o Estado. A dinâmica geral não é anti-sistêmica.
Em sua configuração típico-ideal, essa sociedade civil produz incentivos
basicamente competitivos: re-fragmentação, fechamento corporativo dos
interesses, despolitização. Nela tendem a se articular movimentos direcionados
para valorizar interesses particulares, atender demandas, fiscalizar governos,
desconstruir e desresponsabilizar o Estado, enfraquecer ou desativar
dispositivos de regulação.
A segunda idéia alternativa de sociedade civil costuma ser vista e concebida
como uma extensão crítica do conceito de Gramsci, mas nem sempre se distingue
da sociedade civil liberista. Pode ser denominada de sociedade civil social.
Nela, a política está presente e tem lugar de destaque, mas nem sempre comanda:
a luta social muitas vezes exclui a luta institucional e com ela se choca,
impossibilitando ou dificultando o delineamento e a viabilização de estratégias
de poder e hegemonia. Sua expressão poderia estar na fórmula SC - SP¹
Estado ?
¹Mercado, quer dizer, a sociedade civil surge como uma esfera isolada dos
demais âmbitos. Recusa-se a se deixar "diluir" no institucional (entendido
sobretudo como sistema político e partidário), já que se concebe como maior do
que ele e imune a seus desvios e degradações. Seu lema poderia ser tomado de
empréstimo do velho slogan "de costas para o Estado, longe do Parlamento",
usado como título de um conhecido artigo de Tilman Evers (1983).
Nessa sociedade civil há lugar para a questão da hegemonia, mas ele está
imperfeitamente definido. É que os interesses, aqui, se mostram refratários a
articulações superiores ou à quebra de atitudes corporativas: sua maior virtude
é a autonomia. Seus personagens típicos são atores que operam na fronteira do
Estado: os novos movimentos sociais, fortemente concentrados na vocalização de
metas não "materiais", tópicas e particulares, muitas vezes concebidas como
"políticas de identidade" (étnicas, religiosas, culturais, de gênero). Age-se,
aqui, para usar o Estado tendo em vista a reforma do social. A orientação
supra-institucional soma-se a uma orientação tendencialmente supranacional.
Operando em rede e por intermédio do que se está convencionando chamar de
cibermilitância, os movimentos sociais estariam buscando ativar a constituição
de uma sociedade civil mundial (Moraes, 2001; Gómez, 2000; Walzer, 1998;
Habermas, 2001; Wood, 2001). Em conseqüência, o Estado que corresponde a essa
sociedade civil é um Estado que poderíamos chamar de cosmopolita:
territorialmente desenraizado e categoricamente voltado para a proteção dos
direitos de cidadania - concebidos para serem viáveis num terreno
supranacional -, mas também capacitado para impor limites e restrições ao
mercado.
Tal modalidade de sociedade civil estaria composta por movimentos que se auto-
organizam e se autolimitam e que poderiam, acredita-se, disciplinar as
instituições mais sistêmicas, como o Estado e o mercado. Estruturando-se como
um sistema independente e que se auto-referencia, a sociedade civil poderia
moderar os excessos do Estado e do mercado e estabelecer-se como um campo onde
a composição social se recriaria. Impregnada da função de intermediar o sistema
político e os grupos sociais, a sociedade civil criaria condições para que se
formasse uma "vontade pública" dotada da capacidade de se institucionalizar nos
corpos parlamentares e nos tribunais, para falar num tom não muito distante do
léxico de Habermas. Não é por outro motivo que essa idéia de sociedade civil se
abre bastante para os temas da comunicação intersubjetiva, dos vínculos
culturais espontâneos, da "desobediência civil" e do ativismo ético.
No fundo, a sociedade civil social exclui os interesses e as classes, supondo-
se como uma espécie de universal abstrato, acessível apenas aos bons valores,
aos atores "eticamente superiores", aos representantes da "vontade geral". Os
interesses, em sua materialidade bruta e suja, estariam fora dela: no político,
nos governos, no Estado. Por esse caminho, a sociedade civil social despoja-se
do político e separa-se do Estado. Há política nela, com certeza, mas se trata
de uma política convertida em ética, que não se apresenta como poder,
dominação, hegemonia e Estado e, portanto, com poucas chances de se efetivar.
Por mais generosa que seja essa visão, ela se mostra pouco factível e
seguramente imperfeita em termos lógicos e políticos. Não é por outro motivo
que Habermas, por exemplo, prefira falar em "democracia pós-nacional" e não em
"democracia cosmopolita", para sugerir que a primeira não só mantém ativos os
sistemas político-estatais nacionais, como também preserva as comunidades
políticas nacionais requeridas pelo exercício democrático, ao passo que a
"democracia cosmopolita" conceberia uma comunidade inclusiva carente da
"autocompreensão ético-política dos cidadãos", ou seja, da possibilidade
efetiva de uma "autodeterminação coletiva" (Habermas, 2001, p. 136). Ainda que
os cosmopolitas consigam uma organização global que traga consigo uma
representação democraticamente eleita - coisa, de resto, de difícil
imaginação -, "eles não podem criar a consciência normativa a partir de uma
autocompreensão ético-política, ou seja, diferenciada de outras tradições e
orientações valorativas, mas antes apenas a partir de uma autocompreensão
jurídico-moral". O cosmopolitismo não tem como aceitar a hipótese política da
"exclusão", quer dizer, do estabelecimento de distinções entre membros e não-
membros. Em decorrência, na comunidade cosmopolita, "a moldura normativa
constitui-se apenas de 'direitos humanos', ou seja, de normas jurídicas com
conteúdo exclusivamente moral" (Idem, p. 136).5
A sociedade civil social sustenta-se, assim, sobre uma concepção dicotômica:
nela estariam o universalismo, a ética, o diálogo, ao passo que no político
estariam o particularismo, a força, a corrupção. Sua teoria trabalha com um
construto formal - um modelo - carregado de preferências valorativas, a
partir dos quais se julga a integridade moral e a estatura política dos atores.
Nessa concepção, portanto, a sociedade civil é um espaço situado além da
sociedade política, do Estado e do mercado. Um espaço de onde se busca extrair,
dos governos, elementos para restringir o mercado e liberar energias societais
autônomas. Nele, age-se para contestar o poder e o sistema, mas não para
articular capacidades de direção ético-política ou fundar novos Estados.
Essa idéia também sugere uma formação em linhas paralelas, expressão de uma
certa anarquia ou da ausência de maior coordenação: as ações se fazem quase
sempre em rede, sem prever regularidades ou hierarquias organizacionais. Mas o
alvo aqui é o sistema, mais do que os governos propriamente ditos, que não
chegam a ser muito molestados. Tratar-se-ia bem mais de dar curso à
configuração de uma sociedade civil mundial do que de lutar por governos
alternativos. A dispersão dos movimentos faz com que a aberta contestação do
sistema não chegue a se completar ou a receber um tratamento politicamente mais
produtivo. De qualquer modo, ao menos em boa parte das ações, a expectativa é
que a ativação da sociedade civil mundial promova uma espécie de encapsulamento
dos diversos governos, forçando-os a uma atuação socialmente mais responsável.
Em sua configuração típico-ideal, essa sociedade civil produz incentivos
basicamente libertários e mobilizadores: movimentação permanente, autonomia,
aquisição de direitos. Desse ponto de vista, é um campo de contestação ao
sistema, mas não de governo do sistema. Nela podem se articular ações
direcionadas para criar éticas alternativas, organizar redes e fóruns de
resistência, ativar a cidadania mundial, pressionar e encurralar governos,
postular novos modelos de políticas públicas, maior justiça social ou melhor
distribuição de renda (entre grupos e entre nações).
Tanto a sociedade civil social como a liberista sustentam-se sobre uma
valorização da sociedade civil em si, isto é, como esfera própria, autônoma
diante do Estado e a ele tendencialmente oposta, uma instância homogênea e
integrada por intenções comuns, que se comporiam "espontaneamente". Com isso,
dá-se passagem a uma idéia de sociedade civil vazia de tensões, disputas ou
contradições, uma sociedade civil que "luta" mas que não está atravessada por
lutas e que, por isso, não se estrutura como um campo de ações dedicadas a
organizar hegemonias.
Evoluindo nesse sentido, a sociedade civil passou a ser configurada como uma
arena onde os interesses poderiam se manifestar livremente, onde se
descobririam novas virtudes gerenciais, onde se afirmaria a autonomia social e
onde os atores, por meio de interações dialógicas, comunicativas, como diria
Habermas, criariam as conexões essenciais da convivência democrática. Um
arranjo, portanto, propenso bem mais ao prolongamento da fragmentação e do não-
estatal do que ao encontro de novas bases de unificação e unidade política,
onde haveria, em suma, pouca procura de consenso (hegemonia), pouca organização
e pouca "força", e, em contrapartida, muito agir comunicativo, muita disposição
para o diálogo e a solidariedade. De acordo com Montaño, seja como "agir
comunicativo no mundo da vida" e como "livre associativismo", seja como
"interação" e como "ações voluntárias", os novos conceitos de sociedade civil
isolam essa esfera da tensa e contraditória totalidade social:
{...] pensam a mudança social, a democratização da sociedade, o
aumento de poder e controle do cidadão, como resultado da atividade
cotidiana da sociedade civil (como unidade), contra o Estado, em
parceria com este ou com independência deste. Nenhum resultado, a não
ser a constante reprodução da ordem e do status quo, sairá desta
perspectiva (Montaño, 2002, p. 266).
A sociedade civil, porém, não é a extensão mecânica da cidadania política ou da
vida democrática. Longe de ser um âmbito universal, é um território de
interesses que se contrapõem e só podem se compor mediante ações políticas
deliberadas. Não é uma área social organizada exclusivamente pelos bons valores
ou pelos interesses mais justos, mas um terreno que também abriga interesses
escusos, idéias perversas e valores egoísticos, no qual podem se desenvolver
muitas atitudes e condutas "incivis" (Whitehead, 1999), o que levou alguns
estudiosos a visualizarem uma "sociedade incivil" como caso extremo de uma
sociedade civil tomada pela incivilidade (Keane, 2001, p. 115).
Ao cortarem, portanto, os vínculos da sociedade civil com o Estado e conceberem
essas duas esferas como duais e não-integradas, as novas teorizações sobre a
sociedade civil deixam de reconhecer que os riscos que ameaçam esse espaço
social não derivam do estatismo invasivo, mas da "incivilidade" e do
"canibalismo social" inerentes a uma sociedade "liberada do Estado" (Whitehead,
1999), isto é, não estruturada por um Estado que contrabalance as desigualdades
e faça com que valores gerais (justamente os da cidadania política) prevaleçam
sobre interesses particulares-egoísticos. Do mesmo modo, se se enfatiza
unilateral e axiologicamente o associativismo - considerando-o um âmbito de
autenticidade social e virtude cívica, por exemplo -, pode-se não só
esvaziar o político-estatal de sentido, como também oferecer justificativas
para as posições que, em nome da recuperação das "tradições perdidas", da
pureza popular ou do espontaneísmo social, combatem justamente as funções
reguladoras e distributivas do Estado, valendo-se muitas vezes de expedientes
autoritários ou paternalistas.
Pode-se, por exemplo, na esteira de um certo comunitarismo neoconservador,
concluir que o declínio cívico e moral da sociedade (a violência, a
pornografia, o egoísmo, a droga, o consumismo) deve-se ao excesso de
desenvolvimento, de política institucional (de "politicagem") ou de direitos
regulamentados. Como solução, seria possível acenar-se tanto com a redução do
político-estatal como com a "re-tradicionalização" da sociedade, um fechamento
em si mesma, à margem do Estado, dos direitos básicos do indivíduo, em
benefício da família, da comunidade e do "capital social" como um todo (Cohen,
1999, p. 275).
Desdobramentos possíveis
Todas essas concepções de sociedade civil cabem na realidade contemporânea. Na
verdade, elas espelham essa realidade e tentam ao mesmo tempo direcioná-la:
trazem consigo projetos políticos e sociais correspondentes. Em boa medida,
oscilamos entre elas, sentindo seus efeitos e reflexos.
Muitos dos movimentos ou ações que se vinculam ao chamado "Terceiro Setor"
- hoje bem numerosos, diversificados e ideologicamente plurais -
transitam com bastante desenvoltura por essas modalidades de sociedade civil.
Sem querer simplificar demais um quadro que é seguramente complexo, creio ser
possível sustentar que quanto mais uma iniciativa social se deixa contagiar por
uma perspectiva ético-política superior, mais ela tende a flutuar entre a
sociedade civil político-estatal e a sociedade civil social. Por outro lado,
quanto mais uma ação se explicita, por exemplo, como voluntariado ou
assistencialismo tradicionais, mais ela tende a se firmar no terreno da
sociedade civil liberista.
O fato mesmo de essas modalidades encontrarem ressonância no mundo
contemporâneo faz com que elas, muitas vezes, sobretudo quando traduzidas em
ação prática, se confundam e se interpenetrem umas nas outras. Uma iniciativa
de promoção socioeducacional financiada por uma grande empresa capitalista,
tendo em vista exclusivamente a melhoria de certas condições de vida ou o
atendimento de certas demandas, não deixaria de produzir efeitos de uma
sociedade civil político-estatal, ainda que, em boa medida, deva ser vista como
típica da sociedade civil liberista. Dar-se-ia o mesmo com os movimentos que se
vinculam claramente à sociedade civil social, alguns dos quais trafegam na
fronteira com a sociedade civil político-estatal e com ela dialogam
abertamente.
Tudo somado, a distinguir as ações entre si estaria o modo diverso de pensar o
Estado e de conceber a relação com o governar, assim como o modo de tratar o
problema das tensões entre luta social e luta institucional.
Diante desse quadro, repõe-se a questão de saber como lidar com a fragmentação
que parece ter-se instalado no coração das sociedades contemporâneas, como
unificar os interesses sem diminuir a diferenciação e as grandes margens de
liberdade e individualidade adquiridas ao longo do tempo, como, em suma,
unificar e organizar sem burocratizar, tolher e homogeneizar. A discussão sobre
sociedade civil pode ajudar a que se encontrem respostas para essa questão.
Nela, no fundo, oculta-se um problema maior: o da hegemonia, o de saber com que
valores, projetos e ideais caminharemos ao longo do século XXI.
O conceito gramsciano de sociedade civil - por sua natureza eminentemente
política e estatal, quer dizer, por sua capacidade de refletir aquele espaço
que, na realidade das sociedades complexas, possibilita uma oportunidade de
unificação e agregação superior - mostra sua utilidade justamente por criar
uma espécie de zona-limite da desagregação social.
A sociedade civil social - que, hoje, prepondera nos ambientes democráticos
e de esquerda - expressa uma indignação em marcha. Trata-se, antes de tudo,
de um campo de resistência. Sua fragmentação é em boa medida inevitável, já que
espelha uma situação explosiva, multifacetada, complexa, despojada de centros
organizacionais. Não há nela, ainda, por isso, sujeitos capazes de se
universalizarem, ou seja, de fixarem projetos em condições de converter a
resistência em "ataque", em estratégia de poder, em anúncio de um futuro
desejável para todos. Enquanto projeto político, ela se mostra essencialmente
como uma tradução daquilo que já foi chamado de "sociedade civil de baixo",
seja no sentido de identificar os atores do campo econômico por oposição ao
Estado, seja para reduzir a sociedade civil a tudo o que é considerado "bom e
louvável" (Houtart, 2001, p. 93). A unificação dessa sociedade civil torna-se,
assim, problemática; em certa medida, seu próprio modo de ser a inviabiliza. Ao
mesmo tempo, porém, o constante e dedicado ativismo de seus integrantes pode
facilitar e impulsionar a disseminação de éticas alternativas que, pelos
interstícios do sistema global, contribuem para o desgaste político ou mesmo a
condenação moral de muitas opções governamentais e orientações doutrinárias.
Seja como for, aceitando-se como razoável (ainda que discutível) a tese de que
o século XXI assistirá à transição do Estado-nação a uma "democracia
cosmopolita e transnacional", será preciso estabelecer quais sujeitos se
encarregarão dessa operação e abrir a discussão sobre o tema político do
"partido transnacional de cidadãos globais" (Beck, 2001). Hoje, há uma nova
dialética do global e do local que não se acomoda com facilidade na política
nacional e só pode se resolver adequadamente num contexto normativo
transnacional. Mas não se mostra nada simples o estabelecimento de uma teoria
do partido político cosmopolita, que opere para além dos limites territoriais
do Estado-nação e se cole aos movimentos nacionais e globais, aos fóruns
mundiais, como representante de cidadãos globais, seguindo de perto as
estratégias das grandes corporações transnacionais (Idem). À figura do "Estado-
rede" imaginada por Castells (1999) deverá corresponder a figura de um
"partido-rede", disposto a abrir mão de certas agendas tradicionais e de certos
cálculos políticos e a empreender uma inédita construção institucional,
doutrinária e cultural.
De algum modo, portanto, o avanço da globalização - que conheceu uma fase
abertamente dedicada a desregulamentar e a desconstruir o Estado - trará
consigo uma nova valorização do institucional, do político e do estatal. Um
novo parâmetro de regulação transnacional não virá do esforço de movimentos
sociais referenciados por uma idéia "social" de sociedade civil,
espontaneamente estruturada e eticamente motivada. Uma eventual "sociedade
civil mundial" não poderá se objetivar sem Estados fortes e sem partidos
capacitados para organizar demandas particulares (individuais, grupais, locais,
nacionais) em termos gerais. Por mais que se deva recusar a idéia de um único
partido de vanguarda, detentor de toda a verdade, não há como adotar um
relativismo absoluto, que daria razão às correntes pós-modernas, "para as quais
tudo o que conta é a história imediata dos indivíduos" e o alcance de objetivos
particulares, como se a "expressividade das formas de luta" pudesse substituir
o conteúdo delas (Houtart, 2001, pp. 95-96). Um avanço para além dos Estados-
nação não excluirá as realidades nacionais como centros de vida política e
democrática. Em outros termos, conexões virtuais via Internet não dispensarão
articulações ético-políticas no plano concreto da história (Moraes, 2001).
Qualquer postulação utópica, de resto, deve poder precisar seus objetivos a
médio e a curto prazo, e esses objetivos situam-se inevitavelmente nos campos
concretos do agir coletivo.
A demarcação de um território de lutas que ignore os Estados nacionais
realmente existentes, por exemplo, pode dar margem a um "internacionalismo
abstrato carente de bases materiais", com o que se desfaz a possibilidade mesma
de uma estratégia anti-sistêmica efetiva (Wood, 2001, p. 112). A globalização
não está tornando irrelevante o Estado-nação. Por detrás de cada operação
econômica transnacional há bases nacionais que dependem de Estados locais para
se viabilizarem. O Estado-nação tradicional está certamente mudando sua forma e
tendendo a dar lugar a "Estados mais estreitamente locais e a autoridades
políticas regionais mais amplas". Qualquer que seja sua forma, porém, ele
"continuará sendo crucial e é provável que por um longo tempo ainda o velho
Estado-nação continue desempenhando seu papel dominante" (Idem, p. 117).
Se assim é, o Estado ainda pode ser pensado como uma "eticidade superior", uma
força educativa e unificadora contra a fragmentação e a atomização social
derivadas da objetivação do capitalismo. A política ainda deve se dirigir,
portanto, para "utilizar o poder do Estado para controlar os movimentos do
capital e dispô-los sob o alcance de uma accountability democrática e em
concordância com uma lógica social diferente da lógica da competição e da
rentabilidade capitalista" (Idem, p. 119).
Como então sair desse verdadeiro impasse teórico e político? Uma aposta
razoável seria empreender esforços para que a idéia de sociedade civil
político-estatal (gramsciana) ganhe maior consistência teórica, se mantenha
como parâmetro e, tanto quanto possível, se superponha à sociedade civil
social, isolando ou neutralizando a sociedade civil liberista. A partir de uma
referência como essa, pode-se imaginar o surgimento de uma força que unifique e
organize o atual movimento antiglobalização e a sociedade civil a ele
correspondente.
Não se trata de uma operação simples, até mesmo porque a lógica das coisas
conspira contra ela. Mas, não estando morto o Estado, também não estão
definitivamente enterrados os partidos e os movimentos políticos coesos,
estruturados como organizações permanentes. Estamos paralisados entre a visão
que absolutiza o Estado em detrimento do mercado, do indivíduo e da
espontaneidade social, e a visão que imagina a sociedade como mera extensão do
mercado e da livre concorrência dos interesses?6 Será mesmo que a história,
daqui para frente, transcorrerá sob a pressão dos processos "cegos" e
"incontroláveis" da globalização ou, em outra escala, sob o influxo de
movimentos horizontais, tendencialmente anárquicos e dispersivos, desprovidos
de centros organizacionais? Poderemos seguir em frente apenas com base em ações
éticas e voluntariosas, em batalhas no ciberespaço, numa movimentação
frenética, generosa e incansável para encurralar e desmascarar o sistema? Será
assim que construiremos a almejada sociedade civil mundial, a partir da qual
poderiam ser enquadradas as múltiplas e diversificadas sociedades civis
realmente existentes? Não parece razoável.
Se a resposta a essas questões não se mostra simples e gera dúvidas e
divergências, creio que estamos obrigados, mais uma vez, a pensar em termos
dialéticos e a articular politicamente o que está desagregado e o que se mostra
concebido para funcionar em rede, sem vértices ou comandos. Se pensarmos
dialeticamente, não teremos como virar as costas para o Estado, ficar longe do
parlamento ou fugir da política. Não teremos como glorificar unilateralmente o
mercado ou a "sociedade civil", nem como justapor a luta social à luta
institucional.
O século XX nos fez enveredar por um "futuro desconhecido e problemático, mas
não necessariamente apocalíptico" (Hobsbawm, 1995, p. 16). Espessas nuvens de
fumaça, medo e sofrimento bloqueiam o entusiasmo, mas as possibilidades de
avanço se materializam a olhos vistos.
O que virá pela frente? Tanto quanto em qualquer outra época, a história
continuará a se processar como um movimento aberto, errático, repleto de
alternativas. Mas a história não é apenas um jogo de circunstâncias, decisões
governamentais, crises estruturais, acasos e necessidades. Nela continuarão a
operar o engenho, a generosidade e o empenho democrático dos povos da terra,
com suas organizações, seus líderes, suas culturas. Se o mundo se tornou mais
mundo e os problemas que nos afetam são problemas globais, não há saída sem
diálogo, sem perspectiva política e esforços de unificação, sem soluções
globais. Se os povos da terra souberem se aproximar e dar vida a ações
democratizadoras combinadas, a pressões inteligentes, a alianças sustentáveis,
capazes de impor suas decisões sobre todos, conseguiremos desenhar um pacto
social de novo tipo - um pacto para dignificar a comunidade humana, sem
distinções de qualquer espécie e com a devida promoção dos mais frágeis - e
fazer com que ele prevaleça sobre a globalização econômica.
NOTA
1 Para uma reconstrução desse tipo, remeto a Coutinho, 1999; Bobbio, 1999;
Buci-Glucksmann, 1980; Gruppi, 1978; Ferreira, 1986; Nogueira, 1998a; Semeraro,
1999; Aggio, 1998; Simionatto, 1995; e Soares, 2000.
2 Foge completamente dos objetivos do presente texto a reconstituição histórica
do conceito. A esse respeito, ver Bobbio, 1999; Cohen e Arato, 2000; Costa,
2002; Liguori, 1999 e 2001; Whitehead, 1999; e Bresser-Pereira, 1999.
3 É semelhante a posição de Cohen e Arato, para quem "o conceito de sociedade
civil, em vários usos e definições, tornou-se moda graças às lutas contra as
ditaduras comunistas e militares em muitas partes do mundo; apesar disto, seu
status é ambíguo nas democracias liberais" (2000, p. 7). Seguindo caminho
analítico diverso, já que considera que considerar a sociedade civil uma
terceira esfera ao lado do mercado e do Estado mais confunde do que esclarece a
análise das sociedades contemporâneas, Fábio Wanderley Reis observa que, "do
ponto de vista das discussões teóricas deflagradas no quadro do 'pós-
socialismo', a grande novidade é a retomada e o intenso reexame do conceito de
sociedade civil" (2000, cap. 8).
4 A discussão a respeito do "Terceiro Setor" polariza-se freqüentemente entre a
aceitação entusiasmada e a recusa categórica, ambas revestidas de idêntico
ardor doutrinário. Uma coisa, porém, é pensar o "Terceiro Setor" como criação
mais ou menos "espontânea" do social - um conjunto de iniciativas
efetivamente dedicadas a prestar solidariedade e minorar os efeitos da exclusão
social em áreas de que o Estado se ausenta ou comparece de maneira precária
-, outra coisa é ver o "Terceiro Setor" como receptáculo da transferência
de responsabilidades estatais, um instrumento direcionado para substituir ou
refrear o Estado. Ao passo que a primeira visão não exclui necessariamente o
reconhecimento da relevância estratégica da ação estatal e pode até mesmo
funcionar como fator de reconstrução do pacto social, a segunda visão exige a
subsunção do Estado a um mundo de interesses particulares auto-suficientes e
orientados pelo mercado. Seja como for, não há qualquer motivo lógico ou
político para que o combate à questão social seja travado exclusivamente a
partir da ação estatal (governamental), ou seja, sem o concurso de iniciativas
sociais relativamente independentes e "espontâneas", desde que devidamente
regulamentadas. O mais importante, aqui, não é tanto a postulação de uma
necessária presença "física" do aparato estatal, mas a defesa de uma
perspectiva de Estado, quer dizer, a aceitação de que o social não se viabiliza
sem uma idéia de Estado, sem uma "eticidade superior" que produza parâmetros de
sentido para todos os grupos e indivíduos.
5 Para Habermas, em vez de visar a uma "política múltipla organizada no todo ao
modo de um Estado mundial", o projeto de uma "democracia cosmopolita" deveria
buscar se concretizar "em uma base de legitimação menos ambiciosa, a saber, nas
formas de organizações não-governamentais do sistema de negociação
internacional que já existe em outros âmbitos políticos". Essa orientação
ofereceria a "imagem dinâmica das interferências e das interações entre os
processos políticos se desenvolvendo de modo peculiar nos âmbitos nacional,
internacional e global". Poder-se-ia ter, assim, uma política mundial, mas não
um governo mundial. (Habermas, 2001, p. 138-139).
6 Se a grande lição a ser extraída do colapso do socialismo é a do penoso erro
envolvido na pretensão de construir uma cidadania democrática socialista
prescindindo inteiramente do mercado e do princípio do mercado, a experiência
dos países capitalistas avançados e de tradição liberal-democrática deixa claro
que a construção de uma cidadania democrática no âmbito do capitalismo não
pode, por seu turno, prescindir do Estado" (Fábio W. Reis, 2000, p. 256).