Democracia cosmopolita: déficits conceituais e equívocos políticos
Früher wurden in Revolutionen Bahnhöfe besetzt, heute besetzen wir Begriffe
[Antigamente, nas revoluções, as estações de trem eram ocupadas, hoje ocupamos
conceitos].
Heiner Geißler1
As duras feridas na ordem mundial abertas pelo ataque terrorista aos Estados
Unidos ainda levarão muito tempo para se cicatrizar. A bem da verdade, os
movimentos mais recentes e a guerra dos Estados Unidos e da Inglaterra ao
Iraque aprofundam as ameaças de ruptura do frágil consenso em favor da
manutenção da paz, criando um fosso intransponível entre povos e culturas.
Se no plano político, o cenário é sombrio, o dano observado entre correntes que
vinham se transformando no mainstream da teoria política contemporânea não foi
menor. Trata-se aqui dos diferentes aportes que, fraseando suas teses de formas
diversas, convergiam em apontar a confluência para uma paz duradoura nos termos
de uma ordem mundial cosmopolita. Os acontecimentos recentes trouxeram à tona a
evidência de que as teorias da democracia cosmopolita se equilibram,
analiticamente, sobre um conjunto frágil de conceitos. Politicamente, seu motor
é um wishful thinking, levado ao paroxismo, que transforma o imperativo
categórico da ordem cosmopolita em materialidade empírica e o dever ser da
justiça além fronteiras no ser generalizado de pessoas e Estados nacionais
altruístas.
Em sua vertente mais explícita, a defesa da democracia cosmopolita proclamou,
no âmbito do paradigma da modernização reflexiva, a completude do projeto
moderno. Para autores como Giddens (2000) e Beck (1999, p. 319), "a jaula da
modernidade se abriu", libertando-se dela o espírito reflexivo que governaria o
mundo sob a égide de uma ética universal.2
A tese da democracia cosmopolita recebeu, desde os anos de 1990, formulações
muito diversas e não faria jus à abrangência e à complexidade desses diferentes
aportes, resumi-los e descartá-los, genericamente, desconsiderando seus nexos
internos e as diferenças que os separa. No âmbito deste artigo, o percurso
seguido será outro. Primeiro, procurar-se-á delinear, brevemente, os contornos
mínimos do projeto ou dos projetos teóricos da democracia cosmopolita. Em
seguida, tomam-se dois elementos recorrentes nas diferentes contribuições, a
saber, a aposta numa "sociedade civil mundial" e numa ética universal dos
direitos humanos. A intenção é mostrar como as formulações assentam-se sobre
uma premissa problemática: confere-se, em ambos os casos, implícita ou
explicitamente uma anterioridade ontológica e histórica às chamadas sociedades
do Atlântico Norte na produção da ordem cosmopolita, como se estas detivessem o
monopólio de produção dos ingredientes considerados básicos para a democracia
mundial, tese que é, empiricamente, infundada e, politicamente, inoportuna.
Democracia cosmopolita: contornos mínimos
O temor e a suspeita, presentes até muito recentemente entre vários autores e
lideranças políticas, de que a alusão à necessidade de relativizar o princípio
da soberania nacional em favor de uma visão transnacional da política
constituía, na verdade, um mero estratagema ideológico para justificar novas
formas de imperialismo, parecem finalmente dissipados. Assim, são,
afortunadamente, poucos os que seguem acreditando que o apelo a uma política
global dos direitos humanos ou a uma política mundial para o meio ambiente
representa uma armadilha retórica, criada no bojo das relações de poder Norte/
Sul, com o propósito de manter e legitimar o jogo desigual de exploração dos
países pobres pelos ricos. Entendeu-se que, a despeito de possíveis
instrumentalizações ideológicas, as transformações efetivas ocorridas levaram à
necessidade de uma revisão da chamada Paz de Westfália, que consolidou, no
século XVII, a ordem dos Estados-Nação (ver McGrew, 1997).
Trata-se aqui de um feixe de processos simultâneos que atingem de forma
variável, mas inevitável, todos os grupos demográficos em todas as regiões do
mundo e nos diferentes campos da topografia social.
Na esfera da economia, sabe-se que a interpenetração das diversas partes do
mundo remonta à descoberta da América - ou é até mais antiga do que esta, a
depender da perspectiva adotada. Igualmente conhecidos são os números vigorosos
do comércio e dos fluxos financeiros internacionais observados já na virada
para o século XX, concomitante à chamada pax britannica. Entretanto, nos anos
recentes, configurou-se, pela primeira vez, aquilo que pode ser denominado uma
economia mundial, conceito que tem um sentido preciso: significa não apenas que
os diferentes países intercambiam produtos, serviços e capitais, mas que o
conjunto da superfície terrestre, excetuadas muito poucas regiões, tornou-se
uma plataforma da acumulação e reprodução capitalista, não apenas em seu
sentido financeiro, mas também naquilo que concerne ao capital produtivo. Isso
significa que, para os cálculos locacionais, as fronteiras dos Estados-Nação
perderam sua relevância, o que conta é apenas o trade-off risco/remuneração
observado nas diferentes possibilidades de investimento. Com isso, o Estado-
Nação não perde inteiramente sua função reguladora sobre a economia, afinal
continua mantendo o controle sobre um fator que, a despeito de todas as
inovações, ainda é decisivo para a produção de bens e serviços, a saber, o
trabalho. No mínimo, o Estado mostra-se, portanto, presente ao construir
muralhas - algumas vezes físicas - à globalização da força de trabalho.
Não obstante, aquela possibilidade de impor regulações efetivas ao capital,
permitindo-se que, por meio do Estado, sejam conduzidas políticas
redistributivas efetivas, simplesmente não existe mais. No limite, se for
premido por restrições e regulações, o capital migrará gerando desemprego e
falta de legitimidade aos governos nacionais que o queiram controlar.
Tais mudanças na economia associadas à construção - factual e discursiva
- de ameaças globais (ambientais, terroristas, bélicas etc.) levam ao
deslocamento - até a completa suspensão - da fronteira entre política
interna e externa (Beck, 1998). Tornou-se evidente que nenhum Estado Nacional
individual pode garantir segurança e bem-estar à sua população, se não puder
construir as condições externas, vale dizer internacionais, para a existência
desses.3
Internamente, os Estados-Nação passam também por transformações profundas. Em
primeiro lugar, a pressão homogeneizadora de uma cultura mundial global leva ao
aparecimento de movimentos de resistência cultural regionais que, de forma
reativa, revivificam e buscam difundir as identidades locais, estabelecendo
conexões e relações com o resto do mundo que prescindem da mediação nacional.4
Em segundo, os cada vez mais intensos movimentos migratórios do sul para o
norte reconfiguram as democracias maduras, confrontando-as, nos casos bem-
sucedidos, com uma pluralidade de caráter novo ou realimentando, entre seus
membros, nos casos mais problemáticos, regressões nacionalistas e
segregacionistas.
Ressalte-se que os movimentos migratórios contemporâneos têm natureza distinta
daqueles que levaram ao deslocamento de milhões de europeus para as Américas no
período anterior às guerras. Tratava-se, naqueles casos, da interrupção
praticamente definitiva dos contatos com o lugar de origem, num contexto em que
as políticas de completa assimilação ao país de adoção, seja pela pressão
moral, seja pela simples coerção, eram aceitas como legítimas.5 Nos dias que
correm, há pressões de toda ordem contra a implementação de políticas
assimilacionistas e, em muitas sociedades, a valorização da diversidade
cultural e o elogio da diferença dão o tom das políticas culturais. Ao mesmo
tempo, as novas possibilidades de comunicação e circulação permitem os contatos
permanentes dos imigrantes com suas regiões de origem, perdendo a integração
social ao país de adoção sua compulsoriedade.
O terceiro fator que favorece a pluralização cultural no interior dos Estados-
Nação são as mobilizações sociais transnacionais e os intercâmbios
comunicativos entre grupos sociais de diferentes regiões do mundo. O incremento
das trocas materiais e simbólicas para além das fronteiras da nação leva à
condensação e à difusão de novos estilos de vida e novas visões de mundo, assim
como ao descolamento ou à desterritorialização das diversas manifestações
culturais de seus loci de origem. Assim, da mesma forma como os jovens da
periferia paulistana recriam no Brasil o hip hop, em Moçambique, o incipiente
movimento de mulheres procura fazer valer a eqüidade de gênero, em consonância
com os direitos conquistados pelas feministas européias ou norte-americanas.
Apresentadas nessa forma muito resumida, é essa ampla reconfiguração das
relações econômicas, políticas e sociais que, evidentemente, não tornam o
Estado-Nação obsoleto, mas o redefinem funcionalmente, que constitui a base
empírica da qual partem os defensores do projeto de uma democracia cosmopolita.
É precisamente esse complexo deslocamento das fronteiras da economia, da
cultura e da política que originaria o esforço recente de se buscar formas de
"governar para além das fronteiras do Estado-Nação", conforme o título
sugestivo de Zürn (1998).
Se o diagnóstico de época que os alimenta é, em grande medida, comum, os
projetos de democracia cosmopolita já em circulação são, como se afirmou acima,
muito variados, incluindo desde o mero fortalecimento dos organismos
multilaterais até um translocalismo basista com vistas a criar, a partir da
eticidade comunitária, os termos de uma ordem mundial cosmopolita justa.
Roland Roth (2001) coligiu, recentemente, as diferentes contribuições e
concepções ao tema da democracia cosmopolita numa classificação preliminar, a
qual procura-se reorganizar e completar no Quadro_1, de sorte a oferecer uma
idéia aproximativa da diversidade e da multiplicidade dos termos do debate em
curso.
Observe-se que as diferentes correntes e princípios identificados no quadro não
são mutuamente excludentes: tanto pode haver instrumentos que se repetem em
diversas visões, como combinações, nas formulações de um mesmo autor, de
elementos de correntes aqui tratadas como distintas. O sentido do quadro é
apenas diferenciar ênfases, razão pela qual se renuncia aqui a uma explicação
detalhada de seus termos. Para nossos objetivos, o que parece mais relevante é
detalhar aspectos não explicitados dos modelos.
Sociedade civil global: implausível e indesejada
Sociedade civil na constelação nacional
O conceito de sociedade civil percorreu uma trajetória teórica e política
absolutamente ímpar nos anos recentes. Redescoberto, simultaneamente, ou com
pequenas diferenças temporais, em diferentes contextos, o conceito acabou
prestando-se a objetivos muito diversos, cumprindo em quase todos os casos a
promessa política que trazia consigo. Em geral, o conceito pôde, como mostra
Dubiel (2001, p. 135), "abarcar uma multiplicidade de modelos interpretativos,
narrativas e expectativas normativas que um marxismo debilitado" não conseguia
mais decodificar.
Assim, a polissemia do termo civil permitiu que, a partir do final dos anos de
1970, a sociedade civil se tornasse sinônimo, em países assolados pela guerra
(civil, diga-se) na África subsaariana e na América Central, de "algo contrário
aos atores da guerra" (Centro de Estudos Africanos, 2002). Em muitos desses
casos, a retórica da sociedade civil permitiu juntar inimigos irreconciliáveis
em torno dos programas de pacificação (Kurtenbach, 2000).
Na América do Sul, o termo civil foi tomado como uma oposição a militar,
prestando-se de ligadura à aliança que reunia parceiros pouco prováveis, como
empresários e sindicalistas, setores da igreja progressista e movimentos de
gênero ou movimentos étnicos e nacionalistas de esquerda (Costa, 1997). No
Leste Europeu, civil significou não-estatal, nomeando-se com o termo os poucos
campos da vida social que se mantinham preservados da influência do Estado
socialista onipresente. Aqui, a sociedade civil não ia, portanto, muito além da
vida privada e da religião (Cohen e Arato, 1992, pp. 32 ss.).
Nos Estados Unidos, em contrapartida, civil adquiriu, tanto na versão liberal
como na visão comunitarista, o sentido de virtude pública, nomeando o mínimo de
altruísmo necessário para manter a reprodução da ordem liberal num contexto de
pluralismo de valores (Walzer, 1991; Shils, 1991). Nas democracias européias, o
conceito assumiu uma feição distinta de todas as anteriores. Civil tornou-se
oposição a burocrático, desvitalizado, inflexível, características atribuídas
ao Estado de bem-estar social, o qual cabia à sociedade civil reformar (Keane,
1988).
No plano analítico, a reconstrução do conceito segue uma lógica igualmente
autônoma e descentralizada. Em consonância com os objetivos políticos colimados
e a partir do repertório teórico disponível em cada contexto, valeu-se algumas
vezes de Hegel e Marx, em outros casos de Tocqueville e Durkheim ou Gramsci e
Arendt, para delinear, em cada caso particular, o conceito de sociedade civil
que parecesse mais adequado. Só mesmo ao final dos anos de 1980, o conceito
ganharia, com o trabalho de Cohen e Arato, uma interpretação hegemônica, que
busca dialogar com as diferentes vertentes que haviam procurado reinventá-lo
nos anos anteriores. Permita-se aqui relembrar um breve momento da
reintepretação feita por esses autores do modelo de dois níveis de sociedade de
J. Habermas, já que a passagem é fundamental para o argumento desenvolvido a
seguir.
Trata-se da definição proposta por Cohen e Arato, segundo a qual a sociedade
civil corresponde à dimensão institucional do mundo da vida (em contraste com
sua dimensão lingüístico-simbólica) e abrange, assim, as estruturas "cuja
tarefa é preservar e renovar as tradições, as solidariedades e as identidades"
(1989, p. 495). Recorde-se, ainda, que Habermas incorpora a definição dos
autores a seu modelo discursivo da democracia, atribuindo à sociedade civil um
caráter duplo. No plano cultural, a sociedade civil atuaria, conforme Habermas,
defensivamente, como locus de formação de uma opinião pública ancorada no mundo
da vida. No plano político, caberia à sociedade civil a função ofensiva de, ao
lado do direito, atuar como um decodificador que verte as demandas nascidas no
cotidiano para a linguagem sistêmica da política institucionalizada.
Sociedade civil worldwide
Para os democratas cosmopolitas, a sociedade civil global ganha sua
plausibilidade empírica a partir da emergência de incontáveis atores não
estatais que se encontram em Porto Alegre, Seattle ou Gênova para tratar de
questões que não podem ser associadas a uma constelação nacional particular,
conforme atestam os casos das reivindicações por uma justiça social global ou
pela preservação da biodiversidade. Do ponto de vista das expectativas
políticas e normativas, a sociedade civil mundial ocupa, nos variados aportes à
democracia cosmopolita, papéis distinto.7
Na versão mais moderada, a função atribuída à sociedade civil se restringe à
participação nos fóruns consultivos e deliberativos existentes ou a serem
constituídos globalmente, seguindo a lógica da criação de "regimes"
internacionais (convenções do clima, biodiversidade, drogas etc.). Os
representantes da "sociedade civil mundial" defenderiam, nesses fóruns,
interesses e pontos de vista do conjunto da sociedade mundial, em oposição à
visão particularista das grandes corporações e mesmo dos Estados nacionais
(Vieira, 2001).
Uma versão mais enfática da democracia cosmopolita atribui aos atores da
sociedade civil global o poder de imprimir, na política mundial, um impulso
democratizante semelhante àquele que as sociedades civis nacionais injetaram em
diferentes países. Nessa visão, a sociedade civil mundial costuraria os laços
de uma integração societária global num momento em que, sistemicamente, o mundo
é, de fato, uno (Habermas, 2001, pp. 17 ss.; Brunkhorst, 2002, pp. 171 ss.).
A importância política das novas formas de mobilização transnacional é
indiscutível. Contudo, compará-las às sociedades civis nacionais parece, por
várias razões, um procedimento não autorizado. Caso se tome, por exemplo, o
mencionado caráter bidimensional da sociedade civil, fica evidente que falta à
sociedade civil global a dimensão cultural/defensiva. Falta, ressalte-se, o
ancoramento no mundo da vida, aquela caraterística que assegura precisamente o
caráter democrático/democratizante da sociedade civil. Ou seja, se deve caber
mesmo à sociedade civil manter e reproduzir o repertório de tradições,
solidariedades e identidades no interior da nação, há que se perguntar: quais
são, propriamente, as representações e os valores que caberá à sociedade civil
global preservar? Afinal, não existe um mundo da vida mundial, a partir do qual
situações-problema detectadas por uma sociedade civil global possam ser
lançadas a uma esfera pública mundial.
Sociedade civil - assim como esfera pública -, antes de serem
categorias da teoria da democracia, são conceitos da história social e se
referem, em cada contexto nacional particular, a uma trajetória própria e
específica. Como se sabe, as sociedades civis (e as esferas públicas) formam-se
no âmbito de processos extremamente complexos que acompanham o aparecimento das
nações modernas como "comunidades imaginadas" e são indissociáveis, nesse
sentido, do aparecimento das estruturas comunicativas de abrangência nacional
(meios de comunicação supralocais, sistema escolar unificado etc.), assim como
das grandes narrativas (bélicas, históricas etc.) que culminam com a formação
de um público nacional com interesses compartilhados (Costa, 2003a).
Naturalmente, não se verificou nem está se verificando, no âmbito global, um
processo semelhante. No lugar de uma sociedade civil global, as mobilizações
transnacionais de atores não estatais conformam uma gama variada de redes
temáticas fragmentadas. Os problemas aí discutidos não convergem para o
estabelecimento de uma comunicação global, envolvendo um público mundial. São
tratados, ao contrário, em espaços comunicativos transnacionais segmentados,
aos quais só tem acesso aquela elite de militantes internacionalizada.
Discutidas transnacionalmente por um grupo restrito de ativistas, é por meio
das estruturas das esferas públicas nacionais que as questões tratadas nesses
contextos comunicativos transnacionais ganham repercussão, apresentando em cada
país uma lógica nacional própria. Por exemplo, quando, por ocasião de uma
conferência de cúpula, determinados temas entram simultaneamente nas agendas de
diferentes esferas públicas nacionais, o que se verifica não é um intercâmbio
comunicativo entre as populações das diferentes regiões do mundo. Há, nesses
casos, uma troca de informações e experiências entre um conjunto reduzido de
ativistas políticos que se incumbem então de fazer com que os temas discutidos
com os colegas de diferentes países circulem nas respectivas esferas públicas
nacionais. A forma, contudo, como tais temas são discutidos internamente em
cada país segue uma dinâmica própria, determinada por fatores nacionais, como o
nível de articulação dos atores sociais responsáveis pela difusão do tema, o
grau de integração internacional da mídia nacional, o interesse do governo
nacional em incorporar o tema em questão à sua agenda etc.
O conceito de sociedade civil global é equívoco porque sugere que está se
formando uma agenda social a partir das experiências acumuladas nas diferentes
regiões do mundo e, mais, que tal agenda permanece submetida ao crivo de uma
esfera pública mundial porosa e democrática. Na verdade, a retórica da
democracia cosmopolita acaba ocultando a distribuição desigual de chances e de
poder que reina na Realpolitik mundial. Como mostra Roth:
O discurso que trata de redes e nós não pode encobrir o fato de que,
na cooperação transnacional entre ONGs e mesmo nas ONGs
transnacionais, a distribuição de influência, poder, recursos,
pessoal e temas apresenta um claro desnível norte-sul. [...] Isso
vale não apenas para os quadros de pessoal e estruturas de decisão,
mas também para a escolha das campanhas, as quais são feitas sob
medida para atender o gosto do público generoso da OCDE (2001, p. 9).
Essa passagem responde, de certa maneira, à questão levantada, relativa às
tradições, identidades e solidariedades que a suposta sociedade civil mundial
deveria preservar. Com efeito, a nova agenda social global decorre,
fundamentalmente, das experiências de umas poucas sociedades civis nacionais
que dominam o mundo global das ONGs. Assim, o risco sério que corre o programa
de uma democracia cosmopolita que tenha sustentação na sociedade civil global é
o de buscar difundir, mundialmente, as experiências, as formas de percepção e
os valores de uma meia dúzia de sociedades civis específicas. Esse risco
abstrato ganha contornos claros na forma como muitos autores buscam justificar
a implementação de uma política mundial de direitos humanos.
A universalidade dos direitos humanos
Ao declarar, sua guerra incansável ao "eixo do mal", Bush acabou externando,
por descuido político, várias das fragilidades teóricas presentes nos aportes à
democracia cosmopolita. Sem dúvida, a declaração simbólica de guerra dividia o
mundo em duas partes, estabelecendo de saída, como verdade ontológica, a que
representava o bem e a que representava o mal. A justificativa para buscar
fazer valer o catálogo ocidental de direitos humanos em todas as regiões do
mundo, construída pelos teóricos da democracia cosmopolita, mesmo que menos
grosseira, não difere, em sua natureza, da perspectiva de Bush. Em ambos os
casos, constrói-se uma história teleológica, segundo a qual aquele conjunto de
sociedades que se industrializou pioneiramente constitui um bastião de valores,
instituições e formas de vida moralmente mais avançados. Nesse raciocínio, não
haveria razões para deixar os quatro quintos da população do mundo que vivem
nas demais regiões do globo privados de tal iniludível evolução (ver Habermas,
1998; para uma crítica, ver Costa, 2003b).
Em sua discussão com críticos que se opõem à universalização dos direitos
humanos em nome da preservação imperativa de particularidades culturais,
Habermas leva ao paroxismo tal visão. Segundo o autor:
Hoje as outras culturas e religiões do mundo do mundo estão expostas
aos desafios da modernidade societária de forma semelhante àquela que
esteve a Europa, em seu devido tempo, quando os direitos humanos e o
Estado de direito democrático foram, de certa forma, inventados
(1998, p. 181, grifo nosso).
Tratado nesses termos, o catálogo de direitos humanos representaria algo como
uma ajuda ao desenvolvimento humanitário dos países pobres, permitindo que
esses, valendo-se do exemplo das sociedades mais "avançadas", queimem etapas em
seu processo de desenvolvimento moral, encurtando o tempo de sofrimento da
população que ainda está privada do acesso aos direitos "universais".
O paralelo entre tal visão e uma teoria da modernização à la Parsons, dominante
até os anos de 1970, é inevitável. Como se sabe, essa teoria caracterizava as
sociedades localizadas na região do Atlântico Norte como uma espécie de ponto
de chegada da história moderna, cabendo reformar as instituições e as
estruturas vigentes no "resto" do mundo, à sua imagem e semelhança, de sorte
que todos pudessem ter acesso ao progresso material e à racionalidade
axiológica supostamente reinantes no hemisfério norte.8 No presente, as visões
da democracia cosmopolita prescrevem uma reforma ainda mais profunda e uma
intervenção ainda mais direta nas regiões "atrasadas": a modernização deve
atingir as bases morais de tais sociedades.
O argumento mais recorrente contra a plausibilidade da universalização dos
direitos humanos, nos termos propostos pelos democratas cosmopolitas, provém da
corrente "realista", presente no campo disciplinar das relações internacionais
(Giesen, 2000). Conforme esses autores, a pauta dos direitos humanos não pode
ser separada do jogo real e das relações assimétricas de poder na arena
internacional. Em outras palavras, as disputas entre os países configura uma
ordem hobbesiana, na qual cada Estado-Nação busca fazer valer seus interesses
próprios, recorrendo, se for o caso e por puro oportunismo, à alusão retórica a
valores universais. Tratar-se-ia, portanto, de um novo imperialismo cultural
que só legitima e faz crescer o poder dos países ricos.
Um argumento realista adicional enfatiza a influência do complexo industrial-
militar nas relações internacionais, que faz com que as "intervenções bélicas
humanitárias", independentemente de sua real inevitabilidade, sejam
apresentadas de quando em quando como inescapáveis (Roth, 2001, p. 7). Ou seja,
a suspeita é que a máquina de destruição bélica tem uma dinâmica sistêmica
própria e imperativa: não espera razões políticas para ser acionada, ao
contrário, põe a política em ação para que esta construa os argumentos que
legitimem a condução de mais uma "guerra justa".
As intervenções bélicas, em nome da defesa dos direitos humanos, desde a Guerra
do Golfo em 1991 parecem dar razão aos realistas. Afinal, em todos os casos
ocorridos, seja em Kosovo, no Afeganistão ou mais recentemente no Iraque, pode-
se identificar, em cada situação particular, a maneira específica pela qual os
interesses de grupos e países determinados buscaram abrigo sob o manto da
alusão retórica a valores universais. Outro aspecto que ficou evidente em todos
os casos é que, no complexo jogo de poder verificado na arena internacional, a
defesa dos direitos humanos em uma região fez agravar o desrespeito a outros
grupos em outras regiões. Assim, por exemplo, a chamada aliança contra o
terror, ao mesmo tempo que libertou o Afeganistão de uma dominação tirânica,
implicou, por exemplo, maior liberdade para os russos reprimirem os chechenos
ou para o governo norte-americano flexibilizar o respeito aos direitos civis
dos imigrantes árabes nos Estados Unidos.
Por último, o risco de que a tese da guerra preventiva postulada pelos Estados
Unidos, se transforme em nova doutrina das relações internacionais põe fim à
ambigüidade das "intervenções humanitárias" (ver Lindgren Alves, 2002, pp. 110
ss.). Afinal, se num quadro de absoluta assimetria de poder bélico, a potência
militar hegemônica logra legitimar o ataque a um país soberano, usando o
argumento de que suspeita que tal país representa uma ameaça à segurança
interna de quem profere o ataque, já não há mais razões para supor que
interesses humanitários ainda desempenhem alguma função nos confrontos
internacionais. O que há, nesse caso, são apenas interesses nacionais numa
disputa de poder hobbesiana, cujo final é previsível: os mais fortes decidirão
o jogo a seu favor.
Há, ainda, restrições de outras naturezas ao argumento dos democratas
cosmopolitas, quando defendem estender, globalmente, a validade do catálogo
ocidental de direitos humanos. Trata-se, aqui, da descrição da história
universal numa linha evolutiva que culminaria com o lugar privilegiado ocupado
pelas nações "modernas", como parâmetro de respeito aos direitos humanos.
Ora, ainda que o Giddens ideólogo, eloqüente mas pouco convincente na defesa de
seu programa da Terceira Via, insista em desmenti-lo, aprendemos anos atrás com
o Giddens, sociólogo preciso e consistente da teoria da estruturação, que o
evolucionismo não faz bem às ciências humanas. Naquela ocasião, o autor
(Giddens, 1984, pp. 240 ss.) alertava para vários riscos evolucionistas, dos
quais pelo menos dois parecem vitimar os teóricos da democracia cosmopolita, e
, ironicamente, o próprio Giddens, a saber:
i) Tratar uma seqüência particular de eventos ocorridos numa
sociedade determinada como uma lei histórica de transformação.
ii) Confundir a superioridade, em termos de poderio tecnológico,
econômico ou bélico com superioridade moral, como se as sociedades
mais desenvolvidas tecnologicamente fossem necessariamente mais
avançadas moralmente.
Ao estabelecer um paralelo entre a Europa do século XIX e o restante do mundo
hoje, supondo que as "outras" sociedades representam um estágio anterior da
modernidade, o enfoque da democracia cosmopolita incorre no primeiro erro
evolucionista citado. Quando busca estabelecer o catálogo ocidental dos
direitos humanos como meta para todos os países do mundo, comete o segundo
erro.
O problema analítico, nos dois casos, é que se desconsidera as histórias
entrelaçadas (entangled histories, Randeria, 2001) do ocidente e do restante do
mundo e, mais do que isso, o caráter meramente contingente dos desenvolvimentos
que levaram os países do hemisfério norte a adquirir uma posição privilegiada,
recentemente, na defesa dos direitos humanos. Essa posição não é
necessariamente definitiva, isto é, não representa um lugar definido numa linha
de evolução inelutável e imutável da modernidade, é antes o reflexo momentâneo
de um conjunto de injunções políticas.
Não se pode esquecer, por exemplo, que no momento em que "inventava" os
direitos humanos e o Estado de direito, a Europa praticava o colonialismo e a
escravidão moderna, no outro lado do Atlântico. Foi também no seio da ciência
iluminista do século XIX que se "inventou" a fundamentação biológica da
desigualdade entre as pessoas de características físicas distintas e lançou-se
as bases para a legitimação moderna das hierarquias raciais. Lembre-se também
que, até finais dos anos de 1940, fontes tão diversas quanto ativistas negros
norte-americanos, Unesco e exilados judeus fugidos do nazismo pensavam que o
Brasil representava para o mundo um modelo de respeito aos direitos humanos e
de estabelecimento de uma igualdade efetiva entre todos os grupos
demográficos.9
Ou seja, do ponto de vista da história social, a descrição da modernidade como
uma trajetória linear, na qual os países tecnologicamente mais avançados do
Atlântico Norte representam, por desígnio e pela lógica interna de um ciclo
evolutivo, uma certa vanguarda moral do mundo contemporâneo, não tem
sustentação nos fatos. Nesse sentido, reivindicar que as sociedades civis e os
governos nacionais do Atlântico Norte definam e ponham em vigor um catálogo de
direitos humanos de validade ampla é tão plausível quanto foi, no século XIX,
pretender que o proletariado se tornasse o ator universal da história moderna.
O que se quer dizer é que o argumento de que há uma evolução desigual dos
valores iluministas nas diferentes regiões mundo e que, portanto, é legítimo
que as regiões mais avançadas em sua consecução prescrevam às demais regiões a
trilha a ser seguida é insustentável teórica e historicamente. Definitivamente,
tal argumento não serve como fonte de legitimação de um catálogo universal dos
direitos humanos.
No raciocínio desenvolvido até aqui, a questão de fundo permanece ainda
intocada. Afinal, desconstruir teórica e analiticamente as expectativas dos
democratas cosmopolitas não soluciona os problemas político-morais que eles
buscam enfrentar, como a necessidade de re-regular a economia, sob a égide da
justiça social global, a proteção contra as ameaças globais, a concretização da
justiça de gênero, étnica, o combate à violação dos direitos humanos etc. Isto
é, parece justo argumentar que, no âmbito da democracia cosmopolita, indica-se
a oportunidade política de se estender as conquistas inegáveis efetivadas pelas
sociedades civis do norte ao "restante" do mundo e qualquer restrição teórica
parece menor diante de uma possibilidade política de tal ordem.
Com efeito, para quem descarta o argumento universalista dos democratas
cosmopolitas só restam duas saídas: o cetismo e a capitulação diante de um
mundo que "é, mesmo assim, desigual e injusto" ou o ônus de buscar alternativas
mais satisfatórias para os problemas enfrentados pelos democratas cosmopolitas.
Formulada nesses termos, a primeira possibilidade descredencia como
neoconservador quem a tome como alternativa. A segunda é por demais ambiciosa
para as limitações deste artigo. Permita-se, assim, que se restrinja aqui à
demarcação apenas indicativa de alguns passos necessários para fugir aos
equívocos cometidos pelos democratas cosmopolitas.
Em primeiro lugar, há que se desfazer a impressão de que o debate em torno da
globalização dos direitos humanos encerra um confronto entre, de um lado,
particularistas, presos a valores conservadores, identidades e formas de vida
locais fossilizadas e, de outro, universalistas, que defendem valores
desarraigados, desenraizados de contextos culturais específicos. Ora,
aprendemos com o debate entre liberais e comunitaristas nos anos de 1980 e 1990
que há uma distinção fundamental a ser feita entre princípios de justiça,
regulados pelo código binário justo e injusto e concepções de bem, que
diferenciam a vida virtuosa da vida indesejada. Os direitos humanos precisam
ser tratados como um conjunto abstrato de princípios de justiça que podem (ou
não) ganhar concretude nos diferentes contextos culturais. Implicam, por
exemplo, eqüidade de gênero, fim da opressão étnica e racial etc., mas não uma
forma cultural de vida particular, por meio da qual essas metas foram
concretizadas num contexto específico. Essa distinção é fundamental porque
afasta a tentação de hierarquizar, num procedimento evolucionista, as
diferentes culturas, além de mostrar a necessidade de se compreender a
concretização dos direitos humanos, nos termos da gramática moral de uma
sociedade particular. Nada aqui deve lembrar a relativização cultural que
transforma, por exemplo, o machismo ou o racismo em práticas culturais a serem
preservadas. Pode-se, por exemplo, reconhecer que os Estados Unidos ou a Suécia
fizeram avanços mais significativos do que o Brasil ou o Sudão no sentido de
construir a igualdade de oportunidades para negros e brancos, homens e mulheres
e, ao mesmo tempo, rejeitar a transposição das relações étnicas e de gênero dos
Estados Unidos e da Suécia para o Brasil e o Sudão. Afinal, a maior eqüidade de
gênero e étnica encontrada na Suécia ou nos Estados Unidos não é traço imanente
das relações de gênero e raciais desses países. O mesmo modelo transposto para
outras sociedades pode dificultar e não facilitar as chances de reconhecimento
social de mulheres e negros.
Essas diferenciações pavimentam o caminho para um passo adicional, qual seja,
mostrar que a diversidade de identidades e formas de vida culturais concretas
existentes não constitui um obstáculo, e sim condição de possibilidade para a
concretização de uma política global dos direitos humanos.
Cabe aqui uma pequena digressão em torno da articulação percebida por Joas
(1997) entre os planos da integração cultural e da integração social que,
combinados, determinam os contornos de uma configuração social específica. Para
o autor, os diferentes sistemas de valores ou formatos de integração cultural
apresentam graus de correspondência bastante variável com um sistema de normas
universalmente válidas, constatando-se a existência de formatos de integração
cultural particularistas, uma vez que se mostram ineptos para a consideração de
pontos de vista universais. As democracias diferenciam-se precisamente por
revelarem um alto nível de aproximação entre os valores e as disposições
inscritas nos processos de integração cultural e as normas reconhecidas
universalmente e corporificadas nas instituições políticas. Contudo,
[...] a idéia de que, para superar o particularismo, a
particularidade como tal deve desaparecer desconhece o caráter
necessariamente contingente dos valores. Condena-se a si própria a
permanecer uma mera moral, rompendo com a atratividade dos valores
para declarar a motivação [para a ação] assente unicamente na moral
como possível (Joas, 1997, p. 174).
As formulações de Joas representam um argumento mais contra o relativismo
cultural, na medida em que permitem identificar sociedades, cujo sistema de
valores dificulta a implementação de normas que valham igualmente para todos.
Não obstante, servem de alerta para aqueles democratas cosmopolitas que julgam
possível implementar, nas diferentes sociedades, um catálogo de regras
universais que não apresente articulação com os diversos sistemas particulares
de valores. É só na interação com esses sistemas concretos de valores e não a
despeito deles que as normas universais podem ganhar legitimação e, mais do que
isso, validade efetiva e eficácia. De outra maneira, transformam-se em leis que
não "pegam", nossas velhas conhecidas.
Conclusão
Os diferentes aportes à tese da democracia cosmopolita buscam mostrar a
necessidade e a viabilidade de se encontrar formas de governar o mundo para
além das fronteiras dos Estados existentes, uma vez que a economia, a política
e a cultura se descolaram da moldura territorial do Estado-Nação. Dois
componentes, apresentados ora como dados da realidade, ora como desiderato
político, aparecem como ingredientes recorrentes de um tal governo global
"cosmopolita", a saber, a existência de uma ética universal dos direitos
humanos e de uma sociedade civil mundial.
Procurou-se mostrar que os conceitos de sociedade civil mundial e de uma ética
universal dos direitos humanos, nos termos formulados pelos democratas
cosmopolitas, apresentam dificuldades empíricas e teóricas e acabam legitimando
uma hierarquia moral no mundo contemporâneo, segundo a qual, instituições,
valores e formas culturais de vida vigentes nas sociedades situadas na região
do Atlântico Norte constituem modelos de aplicação geral.
Essas restrições às concepções da democracia cosmopolita não resolvem os
problemas políticos e morais que tais aportes buscam enfrentar. Indicou-se, por
isso, esquematicamente, pressupostos para uma reflexão acerca das
possibilidades de uma legitimação não evolucionista das redes transnacionais de
ação coletiva e de um catálogo universal dos direitos humanos.
Trata-se, em primeiro lugar, de desvincular a dimensão política da dimensão
cultural das sociedades civis. Nesse caso, as conquistas democráticas obtidas
pelos movimentos sociais nos países de industrialização pioneira deixam de
estar necessariamente associadas às formas culturais de vida concretas
verificadas nesses contextos. O que se quer dizer é que, de um lado, se
reconhece que o respeito aos direitos humanos ou a reivindicação por eqüidade
étnica, de gênero etc. têm um apelo universal indiscutível. De outro lado,
constata-se que a forma particular como se buscou, pioneiramente, fazer valer
tais reivindicações em alguns países é necessariamente contingente e
intransferível. Portanto, a mesma norma universal pode encontrar formas
diversas e particulares de concretização cultural.
A ação das organizações e dos movimentos sociais transnacionais visa, em geral,
ao combate ao particularismo de uma ordem social racista, sexista ou opressora
das minorias étnicas, sem que isso implique que as relações de gênero,
"raciais" ou entre diferentes etnias vigentes nos países em que os movimentos
sociais avançaram mais constituam modelos válidos para todas as partes. Nesse
sentido preciso, não se trata de uma sociedade civil global, uma vez que não há
nem deve haver a reprodução ampliada no restante do mundo dos repertórios de
tradições e experiências coletivas presentes no Hemisfério Norte. O que se tem
é o apelo em estender para as diversas regiões o esforço de superação dos
particularismos, preservando, no melhor dos casos, as particularidades dos
contextos regionais diversos.
Dessa maneira, parece possível construir a legitimidade da ação das
organizações e dos movimentos sociais transnacionais sem que se recorra à idéia
de uma sociedade civil global, seja ela dada como existente, seja sua
construção apontada como imperativo moral. Desenraizadas dos contextos
culturais concretos em que surgem, as reivindicações por justiça trazidas pelas
organizações transnacionais circulam nos fóruns internacionais e retornam, por
intermédio dos ativistas, das organizações locais e dos meios de comunicação,
aos espaços públicos nacionais. É nessas arenas que tais reivindicações são,
por assim dizer, interpeladas em sua aspiração de universalidade, induzindo,
localmente, processos de inovação cultural e social.
NOTAS
1 Deputado democrata-cristão alemão.
2 Zizek (2001, p. 479) diz que a ruptura representada pelo paradigma da
modernização reflexiva (ou da segunda modernidade) nos coloca diante de uma
situação semelhante àquela representada pela forma como Habermas se distingue
de Adorno e Horkheimer. Para Zizek, tal similaridade está assente no fato de
que, tanto para Habermas como para Giddens ou Beck, "os problemas, como regimes
políticos totalitários ou a chamada alienação da vida moderna, não são, enfim,
resultados da dialética própria do projeto da modernidade e do esclarecimento,
mas do uso inconseqüente destes". A comparação, ainda que sugestiva, é
imprópria, porque o sistema de dois níveis de sociedade, vislumbrado por
Habermas, reconhece a força colonizadora da racionalidade instrumental,
identificando especificidades no mundo da vida. Ou seja, não recusa, mas aceita
a dialética da Aufklårung: é em seus termos que busca alternativas à jaula de
ferro. Não há também, em Habermas, uma prescrição prévia de uma forma de vida
que os atores sociais "deveriam" desejar como no elogio do self reflexivo de
Giddens e Beck, mas o delineamento de um contexto no qual pretensões de
validade possam se manifestar e construir sua legitimidade. No marco da segunda
modernidade, o pólo negativo da relação dialética desaparece, é positivado,
retoricamente: os riscos tornam-se chances e as incertezas, possibilidades de
autotransformação das estruturas opressivas.
3 As campanhas eleitorais de 2002, tanto para o Parlamento alemão, como para a
presidência no Brasil, trouxeram exemplos incontáveis de que a ruptura da
fronteira nacional/internacional tornou-se palpável no cotidiano. No Brasil,
para além da objeção maldosa, mas frágil, de que faltava ao candidato do PT um
diploma universitário para governar o país, o argumento substantivo para buscar
desencorajar o apoio a Lula foi o temor à reação dos "mercados mundiais". Na
Alemanha, é consenso de que três temas decidiram a eleição em favor da coalizão
governista de social-democratas e verdes: o desemprego, as enchentes de agosto
e a guerra do Iraque. No primeiro caso, o primeiro ministro Schröder conseguiu
convencer o eleitorado de que não pôde cumprir sua meta de baixar as taxas de
desemprego, em função do grau de integração das economias alemã e mundial.
Quanto às enchentes, os verdes se beneficiaram da associação - diga-se
tecnicamente duvidosa - entre as tempestades e a mudança do clima global.
Finalmente, a garantia de que a Alemanha não participaria de uma guerra ao
Iraque rendeu os votos que faltavam à coligação. Um dos slogans da campanha dos
verdes, valendo-se da popularidade de seu expoente Joschka Fischer, ministro
das Relações Exteriores, indica também como a política interna e externa se
confundem. Dizia: "Fischer - aussen Minister, innen grün" [Fischer -
ministro do Exterior; no interior, verde].
4 Benhabib (1999, pp. 28 ss.) vê manifesto, na emergência das identidades
locais e regionais, o paradoxo entre a integração sistêmica global cada vez
maior e o declínio da forma moderna, por excelência, de integração social, qual
seja, a pertença nacional construída por meio de instituições, da "invenção" da
história nacional, das narrativas bélicas heróicas etc. Leis (2002, p. 199)
aponta um outro paradoxo na emergência de novos localismos, regionalismos e
nacionalismos. Ele mostra que a defesa teórica destes, quando supõe a
existência de um Estado de direito, pode ter um sentido de aprofundamento da
democratização. Defender as diferenças culturais, no plano das relações
internacionais, contudo, tem, para o autor, o sentido de se mostrar, na
prática, a favor de limpezas étnicas e genocídios. O que se procurará mostrar a
seguir é que a preservação das diferenças culturais é o único sentido possível
para uma política universal de defesa dos direitos humanos.
5 A campanha de nacionalização levada a efeito por Vargas no Brasil e estudada
a fundo por autoras como Neide Fiori ou Giralda Seyferth exemplifica como se
deu a supressão à força da diversidade cultural, políticas antes legítimas e
elogiadas e hoje fora de lugar (ver Costa, 2002, cap. 6).
6 Na classificação de Roth, apenas a última da correntes, aqui denominada
"cidadanismo mundial", corresponde ao que chama de democracia cosmopolita. As
demais seriam formas de democracia transnacional. Como, no debate, as
diferentes denominações confundem-se, optou-se aqui por usar a expressão
democracia cosmopolita como conceito "guarda-chuva", que abriga as diferentes
tendências.
7 Na verdade, a proclamação da sociedade civil global, a partir da segunda
metade dos anos de 1990, coincide, no âmbito nacional, com um refluxo da idéia
de sociedade civil naqueles países, em que a sociedade civil, como conceito e
"contexto de ação" (Rödel, 1992), desempenhara anos antes papel relevante. Como
exemplo paradigmático servem os trabalhos sobre a trajetória recente das
sociedades civis na América Latina, reunidos por Dagnino (2002), que revelam
como a "confluência perversa" entre democratização e crescimento da
participação cívica, de um lado, e o ajuste neoliberal, de outro, deixara
marcas profundas na história recente das sociedades civis na América Latina.
8 S. Hall (1996) descreve, de forma breve mas impecável, como é construída,
histórica e narrativamente, na política e na teoria social, a imagem ideológica
do "West" em oposição ao "Rest". Knöbl (2001) atualiza essa discussão ao
mostrar que teóricos como Habermas, Giddens e Beck compartilham das mesmas
premissas da "velha" teoria da modernização, na medida em que ignoram a
multiplicidade de formas assumidas pela modernidade. Trata-se não de uma
modernidade, mas de múltiplas modernidades que seguem, em cada região, formas e
padrões muito diversos.
9 Terminada a Segunda Guerra Mundial, a Unesco pretendeu reavivar os ânimos do
mundo ainda traumatizado, divulgando a bem-sucedida experiência brasileira no
combate ao racismo. Esbarrou, como se sabe, nas desigualdades raciais
detectadas.(ver Maio, 2000). De forma semelhante, os ativistas afro-americanos
chegaram a enviar delegações ao Brasil para conhecer o "paraíso racial"
brasileiro (ver Hellwig, 1992, pp. 40 ss.). As palavras do escritor judeu-
alemão Stefan Zweig (1941), comparando o Brasil e a Europa, são também
conhecidas e servem aqui de ilustração: "O Brasil tratou o problema racial que
está assolando o mundo europeu - e o significado deste experimento me
parece exemplar - de uma forma absurdamente singela: simplesmente ignorou
sua suposta validade".