A gramática social da desigualdade brasileira
No âmbito da sociologia internacional, assim como no contexto da sociologia
brasileira, o paradigma dominante nas ciências sociais do século XX considera o
subdesenvolvimento social brasileiro a partir do encadeamento das noções
complementares de personalismo, familismo e patrimonialismo, de modo a
fundamentar a idéia de uma sociedade pré-moderna. As mazelas sociais de países
periféricos como o Brasil ' grande desigualdade social e sua naturalização,
marginalização em massa de setores expressivos da população e dificuldades de
consolidação de uma ordem democrática e de um mercado competitivo e eficiente '
seriam conseqüências dessa expansão pré-moderna de modelos familísticos para
todas as esferas sociais. A partir de um paradigma explicativo semelhante
àquele do culture and personality, dominante na sociologia e na antropologia
norte-americanas da primeira metade do século XX,1 parte-se de uma perspectiva
culturalista sem que se faça uma vinculação adequada com a eficácia de
instituições fundamentais e onde a cultura é percebida como uma entidade
homogênea, totalizante e auto-referida. Seria por conta dessa soberania do
passado sobre o presente que nos confrontamos com solidaridades verticais,
baseadas em critérios de favor e subcidadania para a maior parte da população e
no abismo material e valorativo entre as classes e os grupos sociais que
compõem nossa sociedade.
A tese que pretendo desenvolver nesse texto parte de uma outra perspectiva.
Pretendo demonstrar como a naturalização da desigualdade social e a conseqüente
produção de "subcidadãos" como um fenômeno de massa em países periféricos de
modernização recente como o Brasil, pode ser mais adequadamente percebida como
conseqüência, não de uma suposta herança pré-moderna e personalista, mas
precisamente do fato contrário, ou seja, como resultante de um efetivo processo
de modernização de grandes proporções que se implanta paulatinamente no país a
partir de inícios do século XIX. Nesse sentido, meu argumento implica que nossa
desigualdade e sua naturalização na vida cotidiana é moderna posto que
vinculada à eficácia de valores e instituições modernas a partir de sua bem-
sucedida importação "de fora para dentro".2 Assim, ao contrário de ser
"personalista", ela retira sua eficácia da "impessoalidade" típica dos valores
e instituições modernas. É isso que a faz tão opaca e de tão difícil percepção
na vida cotidiana.
A importância de uma mudança de paradigma nesse campo não tem apenas
repercussões teóricas. A ausência de perspectivas de futuro em países
periféricos como o Brasil tem a ver com a obsolescência dos antigos projetos
políticos, pautados em análises tradicionais criticadas acima. A tendência a se
criar o que poderíamos chamar de "fetichismo da economia" ' como se o
crescimento econômico por si só pudesse resolver problemas como desigualdade
excludente e marginalização3 ', o hábito de se estabelecer clivagens regionais
entre partes modernas e tradicionais dentro do país ou ainda as cruzadas
populistas contra a corrupção são legitimados por essa suposta herança pré-
moderna e personalista, idéias que servem como máscara ideológica contra a
articulação teórica e política dos conflitos específicos de classe na
periferia.
A dificuldade teórica de avançar uma hipótese construtiva nesse terreno exige a
articulação de dois passos subseqüentes: 1) reconstruir a configuração
valorativa subjacente ao racionalismo ocidental ao seu ancoramento
institucional, ou seja, reconstruir uma versão sociocultural do tema marxista
da "ideologia espontânea do capitalismo"; em seguida 2) refletir acerca de sua
aplicação no contexto da "modernidade periférica". Para isso, em primeiro
lugar, acredito que seja proveitoso confrontar um insight não completamente
desenvolvido por Max Weber no âmbito de sua sociologia comparada das religiões
à perspectiva de duas das mais promissoras abordagens críticas surgidas na
sociologia da segunda metade do século passado, a saber, a teoria crítica do
reconhecimento, cujo expoente principal é o filósofo social canadense Charles
Taylor, e a sociologia de Pierre Bourdieu. Essas duas abordagens trazem
concepções complementares interessantes, que podem ser utilizadas, com muito
proveito, para a análise da modernidade periférica.
Na sua monumental sociologia das grandes religiões mundiais, Weber interessa-se
primariamente por uma análise comparativa do racionalismo ocidental com as
grandes religiões orientais, de modo a esclarecer por que, apenas no Ocidente,
surgiu, impondo transformações estruturais em todas as esferas da vida social,
uma sociedade que denominamos capitalista, moderna e ocidental. Como a
"revolução de consciências" do protestantismo ascético foi considerado um
momento importante na explicação desse desenvolvimento singular do Ocidente, a
sociologia comparativa neo-weberiana foi marcada pela procura de "substitutos
da ética protestante" para identificar tanto os processos de modernização com
chances de sucesso como os fadados ao fracasso na hipótese contrária.
Um pressuposto implícito dessa estratégia analítica era o fato de que se
mantinha não apenas as premissas do "culturalismo essencialista", mencionado
anteriormente, mas também a noção "etapista" da sociologia tradicional da
modernização, uma vez que se assumia que as sociedades não-ocidentais ou bem
repetiriam os passos das sociedades ocidentais centrais por meio de símiles da
revolução protestante ' o caso do Japão é o mais eloqüente nesse contexto4 ',
ou estariam condenadas à égide da pré-modernidade. Apenas a repetição do
processo contingente de "modernização espontânea" ocidental garantiria o
passaporte para relações modernas na economia, na política e na cultura. Uma
grande parte da sociologia culturalista e institucionalista que se deteve no
estudo da América Latina, escrita tanto por autores latino-americanos como por
não latino-americanos, estava e ainda está marcada explícita ou implicitamente
por essa pressuposição.
Para Max Weber, no entanto, parecia claro que a explicação do surgimento
"espontâneo" do racionalismo ocidental na Europa e na América do Norte diferia
da explicação do desenvolvimento ulterior do arcabouço valorativo e
institucional desse racionalismo como conseqüência da expansão da sociedade
ocidental para todo o mundo. Fundamentalmente, essa expansão dar-se-ia pela
exportação, sob a forma de "artefatos prontos" ' fertigen Gebildes als Artefakt
(Weber, 1998, p. 251) ', das principais instituições do racionalismo ocidental:
o mercado capitalista com seu arcabouço técnico e material e o Estado racional
centralizado com seu monopólio da violência e poder disciplinador.
A dificuldade em se discutir esse tema tem a ver com a concepção
necessariamente naturalizada que temos da eficácia social do mercado e do
Estado. Às gerações que nascem sob a égide das práticas disciplinarizadoras já
consolidadas nessas instituições, a hierarquia valorativa implícita, opaca e
contingente que as perpassa de maneira instransparente e oculta assume a forma
naturalizada de uma realidade tácita, que dispensa, por isso mesmo,
justificação. Responder aos imperativos empíricos do Estado e do mercado passou
a ser tão evidente quanto respirar ou andar. Somos continuamente modelados para
atender a esses imperativos. Essa realidade permite e confere credibilidade às
concepções científicas que desconhecem a lógica normativa contingente desses
subsistemas. Ela assume a forma de qualquer outra limitação natural da
existência, como a lei de gravidade, por exemplo, contra a qual nada podemos
fazer.5
Para avançar em direção a uma concepção alternativa acerca da lógica implícita
ao funcionamento dessas instituições, portanto, é necessário reconstruir o que
gostaria de chamar, lembrando Karl Marx, de "ideologia espontânea do
capitalismo". Uso o termo "ideologia" pois tanto o mercado como o Estado são
perpassados por hierarquias valorativas implícitas e opacas à consciência
cotidiana, cuja naturalização, que a transveste de "neutra" e "meritocrática",
é responsável pela legitimação da ordem social que essas instituições
atualizam. A compreensão dessa "ideologia espontânea" é fundamental para que
possamos perceber a importância do componente simbólico e cultural na produção
social da desigualdade e da subcidadania, sem apelar para o "essencialismo
culturalista", típico das abordagens que articulam personalismo, familismo e
patrimonialismo, as quais descuram da articulação entre valores e seu
necessário ancoramento institucional, único vínculo que poderia explicar de que
modo valores influenciam o comportamento efetivo dos agentes.
Para este desiderato, no entanto, as contribuições dos clássicos da sociologia
são precárias. Karl Marx, inventor da expressão "ideologia espontânea" como a
marca específica da dominação social no capitalismo, "apenas" descreveu a
descontinuidade entre produção e circulação de mercadorias, o que faz com que a
mercadoria "força de trabalho" apareça à consciência dos envolvidos como
vendida efetivamente pelo seu justo valor, tornando, desse modo, não
transparente o processo de exploração da força de trabalho. Falta em Marx uma
articulação explícita da "hierarquia valorativa" que se atualiza na ação do
mercado. De outro lado, o ponto de partida weberiano, por estar preso às
categorias da "filosofia da consciência", que forçava Weber a perceber no
sujeito a fonte de todo sentido e moralidade,6 não dá conta, em toda sua
dimensão, da extensão do horizonte valorativo, moral e simbólico presente
nessas configurações institucionais exportadas do centro para a periferia como
"artefatos prontos", segundo sua própria formulação.
É precisamente para esclarecer esse aspecto fundamental da hierarquia
valorativa que perpassa a eficácia institucional do mercado e do Estado que
gostaria de incorporar as reflexões de Charles Taylor acerca das fontes do self
moderno (Taylor, 1989). Aqui não me interessa o uso que Taylor faz de suas
investigações no contexto do debate sobre o multiculturalismo ou sobre a
querela entre liberais e comunitaristas, mas a idéia comunitarista como uma
hermenêutica do espaço social quando critica o "naturalismo" da prática
científica e da vida cotidiana, como meio de articular precisamente a
configuração valorativa implícita ao racionalismo ocidental, que dá ensejo,
como veremos, a um tipo específico de hierarquia social e a uma noção singular
de reconhecimento social baseada nela. Sua crítica à concepção reificada de
Estado e mercado como grandezas sistêmicas, como vemos em Jürgen Habermas por
exemplo, parece-me certeira e decisiva para uma compreensão mais adequada do
processo de expansão do racionalismo ocidental do centro para a periferia, o
qual se realiza pela exportação dessas instituições como artefatos prontos no
sentido weberiano do termo. A negação do caráter simbólico e cultural
contingente dessas materializações institucionais ' causada por sua percepção
como grandezas regidas segundo critérios de eficácia formal ' equivaleria a
reduplicar, na dimensão conceitual, o efeito do "naturalismo" na vida prática.
Fundamental na empreitada tayloriana, e o que leva Taylor, neste particular,
muito além da reflexão weberiana, é que ele consegue reconstruir a hierarquia
valorativa que se materializa nas duas instituições centrais do mundo moderno '
mercado e Estado ', que comanda de maneira quase sempre irrefletida e
inconsciente nossas disposições e nosso comportamento cotidiano. A reconstrução
da "história das idéias" não é um fim em si na reflexão tayloriana, e isso
suscita seu interesse para as ciências sociais. Sua estratégia é compreender a
gênese ou a arqueologia das concepções de bem e de como elas evoluíram e
adquiriram eficácia social. Este ponto é crucial. Não interessa a Taylor uma
mera história das idéias, mas como e por que elas lograram tomar os corações e
as mentes das pessoas comuns. Daí sua empresa ser sociologicamente relevante.
Em primeiro lugar, ele se interessa pela eficácia das idéias, e não por seu
conteúdo, o qual só é importante na medida em que explica as razões da sua
aceitação coletiva.
A obra de Platão é central nesse contexto. Ele sistematizou uma idéia
fundamental para a concepção moral do Ocidente, qual seja, a idéia de que o
"eu" é ameaçado pelo desejo (em si insaciável), devendo, portanto, ser
subordinado e regido pela razão. O cristianismo adotou a perspectiva platônica
da dominância da razão sobre as paixões, uma vez que a santidade e o "caminho
da salvação" passaram a ser expressos nos termos da pureza platônica. Santo
Agostinho, por seu turno, ao se apropriar da tradição platônica, engendrou uma
idéia radical nessa concepção, e essencial para a sociedade ocidental: a noção
de interioridade. Foi essa vinculação com a necessidade motivada pela religião
que tornou a linguagem da interioridade irresistível. O vínculo entre as idéias
dominantes no Ocidente e sua eficácia é percebido ' em uma evidente
correspondência com Max Weber ' como um processo interno à racionalização
religiosa ocidental. Desse modo, as concepções do bem estão presas a interesses
ideais específicos por meio do "prêmio" religioso da salvação. Isso explica o
lugar paradigmático de Santo Agostinho na obra tayloriana.
O processo de interiorização iniciado por Santo Agostinho foi radicalizado por
Descartes. A partir daí, mudaram-se os termos e a forma como a virtude era
concebida (Taylor, 1989, pp. 159-176). Houve uma inversão da noção de virtude e
de bem que imperava até então. A ética da honra na Antigüidade é reinterpretada
em termos do ideal cartesiano de controle racional. A racionalidade deixa
também de ser substantiva, tornando-se procedural. "Racional" passa a
significar pensar de acordo com certos cânones. É esse novo sujeito moral que
Taylor chama de "self pontual". Locke sistematizará o novo ideal de
independência e auto-responsabilidade, interpretado como algo livre do costume
e da autoridade local, transformando o self pontual no fundamento de uma teoria
política sistemática.
O self é pontual, porque desprendido de contextos particulares e, portanto,
remodelável por meio da ação metódica e disciplinada. Dessa nova maneira de ver
o sujeito, desenvolveram-se teorias no campo da filosofia, da ciência, da
administração, das técnicas organizacionais, todas destinadas a assegurar seu
controle e disciplina. A noção de self desprendido, por estar arraigada em
práticas sociais e institucionais, é naturalizada. Essas idéias, germinadas
durante séculos de razão calculadora e distanciada e da vontade como auto-
responsabilidade, não lograram dominar a vida prática dos homens até a grande
revolução da reforma protestante. Tanto para Max Weber, como para Taylor, a
reforma trouxe à tona a singularidade cultural e a moral do Ocidente. A
revolução protestante impôs no espaço do senso comum e da vida cotidiana essa
nova noção de virtude ocidental. Daí que, para Taylor, à noção de self pontual
deve ser acrescida a idéia de "vida cotidiana", no sentido de compreender
melhor a configuração moral dominante hoje.
O tema da vida cotidiana opõe-se à concepção platônica ou aristotélica de
exaltação da vida contemplativa por oposição à vida prática. A revolução de que
fala Taylor é aquela que redefine a hierarquia social a tal ponto que as
esferas práticas do trabalho e da família, precisamente esferas nas quais
todos, sem exceção, participam, passam a definir o lugar das atividades
superiores e mais importantes. Em contrapartida, observa-se o desprestígio das
atividades contemplativas e aristocráticas de outrora. A sacralização do
trabalho, sobretudo do trabalho manual e simples, de origem luterana e, depois,
genericamente protestante, ilustra a transformação histórica de grandes
proporções que redefiniu a hierarquia social, fio condutor deste texto.
Taylor percebeu que as bases sociais para uma revolução desse porte tiveram a
motivação religiosa do espírito reformador. Ao rejeitar a noção do sagrado
mediado, os protestantes rejeitaram também toda a hierarquia social ligada a
ela. Isso foi decisivo naquele momento. Como as gradações da maior ou da menor
sacralidade de certas funções são a base da hierarquia religiosa das sociedades
tradicionais, desvalorizar essa ordem é retirar os fundamentos da hierarquia
social como um todo, tanto na esfera religiosa em sentido estrito como nas
outras esferas sob sua influência. Desse modo, dado seu potencial equalizador e
igualitário, abriu-se espaço para uma nova e revolucionária, noção de
hierarquia social, baseada no self pontual tayloriano, ou seja, em uma
concepção contingente e historicamente específica de ser humano, presidida pela
noção de cálculo, raciocínio prospectivo, auto-controle e trabalho produtivo
como fundamentos implícitos tanto da auto-estima como do reconhecimento social
dos indivíduos.
Os suportes sociais dessa nova concepção de mundo, para Taylor, são as classes
burguesas da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, disseminando-se em
seguida pelas classes subordinadas desses países e, mais tarde, por diversos
países com desvios e singularidades relevantes (Taylor, 1989, pp. 289-290). A
concepção do trabalho nesse contexto vai enfatizar não o que se faz mas como se
faz (Deus ama advérbios). O vínculo social adequado às relações interpessoais
passa a ser de tipo contratual (e, por extensão, a democracia liberal
constitucional como tipo de governo). Em linguagem política, essa nova visão de
mundo consagrar-se-á sob a forma de direitos subjetivos e, de acordo com a
tendência igualitária, definidos universalmente. Taylor chama o conjunto de
ideais que se articulam nesse contexto de princípio da "dignidade"; por
exemplo, a possibilidade de eficiência igualitária no que diz respeito aos
direitos individuais potencialmente universalizáveis. Em vez da "honra" pré-
moderna, que pressupõe distinção e privilégio, a dignidade pressupõe o
reconhecimento universal entre iguais (Taylor, 1994).
Nesse contexto, interessa-nos menos a tensão tayloriana entre a razão
disciplinadora homogeneizante e a razão expressiva singularizadora como o
conflito existencial e político por excelência da modernidade tardia,7 e mais
as repercussões da discussão acerca dos princípios que regulam a nossa
atribuição de respeito e deferência, isto é, a atribuição de reconhecimento
social como base da noção moderna de cidadania jurídica e política. A
localização e a explicitação desses princípios podem ajudar a identificar os
mecanismos que operam de maneira opaca e implícita na distinção social entre
classes e grupos distintos. Pode ainda ajudar a identificar os "operadores
simbólicos" que permitem a cada indivíduo na vida cotidiana classificar os
outros como mais ou menos dignos de seu apreço ou desprezo.
Assim, ao contrário do critério classificatório da civilização hindu, por
exemplo, em que o princípio da pureza hierarquiza as castas sociais (Weber,
1998, pp. 1-97), no Ocidente passa a ser o compartilhamento de uma determinada
estrutura psicossocial o fundamento implícito do reconhecimento social. É essa
estrutura psicossocial o pressuposto da consolidação de sistemas racionais-
formais como mercado e Estado e, depois, produto principal da eficácia
combinada dessas instituições. A generalização dessas precondições torna
possível a concepção de "cidadania", ou seja, um conjunto de direitos e deveres
no contexto do Estado-nação compartilhado por todos numa pressuposição de
efetiva igualdade. As considerações de Taylor sobre a "dignidade", como
fundamento da auto-estima e do reconhecimento social do indivíduo, remetem,
portanto, à relação entre o compartilhamento de uma economia emocional e moral
contingente à possibilidade de reconhecimento social para indivíduos e grupos:
para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção
da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada.
No entanto, neste nível de abstração, não fica claro na reflexão de Taylor de
que modo essa nova hierarquia se torna eficaz como base da classificação social
e do valor diferencial entre indivíduos e classes sociais. Portanto, para
adensar a discussão deste ponto específico, as investigações de Pierre Bourdieu
são, a meu ver, imprescindíveis no sentido de pensar o reconhecimento social,
produzido e implementado institucionalmente como núcleo mesmo de possibilidade
do estabelecimento de distinções sociais a partir de signos sociais opacos
perceptíveis por todos de maneira pré-reflexiva.Para ambos os autores, a
singularidade da sociedade moderna se dá precisamente pela produção de uma
configuração formada por ilusões do sentido imediato e cotidiano, que Taylor
denomina "naturalismo", e Bourdieu, doxa. Tais ilusões produzem um
"desconhecimento específico" dos atores acerca de suas próprias condições de
vida. Apenas uma perspectiva hermenêutica, genética e reconstrutiva, ainda de
acordo com eles, poderia restabelecer as efetivas, ainda que não transparentes,
precondições da vida social na sociedade moderna. No entanto, o desafio aqui é
o de articular, sistematicamente, também as unilateralidades de cada uma das
perspectivas estudadas, de modo a torná-las operacionais no sentido de permitir
compreender a maneira peculiar de como moralidade e poder se vinculam no mundo
moderno, e sobretudo no contexto periférico.
A união das perspectivas de Taylor e Bourdieu parece-me sob vários aspectos
interessante. Diria mesmo que elas se completam ao desenvolverem aspectos que
suprem deficiências importantes de uma e outra. Se falta a Taylor uma teoria
contemporânea da luta de classes, uma vez que o autor mantém o ponto de vista
de um intelectual norte-americano ou europeu do final do século XX, quando as
sociedades centrais, supostamente pacificadas dos conflitos de classe mais
virulentos, estariam entrando em uma nova fase de articulação de suas lutas
políticas,8 temos em Bourdieu uma sofisticada análise da forma opaca e
refratada que a dominação ideológica, mascarando seu caráter de classe, assume
na modernidade tardia. A perspectiva de Bourdieu permite, acredito, ir além de
um conceito de reconhecimento que assume, pelo menos tendencialmente, como
realidade efetiva a ideologia da igualdade prevalecente nas sociedades centrais
do Ocidente. Esse ponto de partida parece-me também fundamental, ainda que com
modificações importantes no seu instrumental teórico, para uma análise da
modernidade periférica.
Em contrapartida, a genealogia da hierarquia implícita que comanda nosso
cotidiano, desenvolvida de forma soberana por Taylor, ajuda a esclarecer o
calcanhar de Aquiles de todo o argumento de Bourdieu. Afinal, Bourdieu, ao se
concentrar apenas no aspecto instrumental da disputa por poder relativo entre
as classes em luta por recursos escassos, não percebe que essa mesma luta se dá
em um contexto intersubjetivamente produzido, o que mantém sua contingência e,
com isso, a necessidade de seu aperfeiçoamento crítico, mas retira, ao mesmo
tempo, o dado arbitrário de mera imposição de poder do mais forte. A teoria do
reconhecimento pode, nesse sentido, dar conta do mecanismo generativo do
"consenso normativo mínimo" compartilhado intersubjetivamente e que, na
realidade, contextualiza e filtra as chances relativas de monopólio legítimo na
distribuição dos recursos escassos pelas diversas classes sociais em disputa em
uma determinada sociedade; mecanismo esse secundarizado e não devidamente
tematizado por Bourdieu. Apesar da sua unilateralidade, no entanto, a
contribuição deste autor para uma compreensão da forma ideológica específica à
modernidade tardia, seja central, seja periférica, parece-me fundamental.
O próprio Taylor, em seu texto "To follow a rule" (1993), oferece uma
interessante visão da aproximação entre as duas perspectivas que pretendemos
conjugar aqui. Ele, na realidade, aproxima Bourdieu e Wittgenstein tendo em
vista um aspecto essencial de sua própria teoria, a saber, a noção de
"articulação". Taylor afirma: "Se Wittgenstein nos ajudou a quebrar a servidão
filosófica do intelectualismo, Bourdieu explorou como a ciência social pode ser
refeita, desde que livre de seu ponto de partida distorcido" (Idem, p. 59).
Aqui, o inimigo comum é a tendência racionalista e intelectualista dominante
seja na filosofia, seja nas ciências sociais. Enquanto a tradição
intelectualista tende a perceber uma regra social , por exemplo, como um
processo que se consuma no plano das representações e do pensamento, tanto
Wittgenstein como Bourdieu enfatizam seu componente corpóreo e contextual.
Obedecer a uma regra é antes de tudo uma prática aprendida, e não um
conhecimento. Além disso, essa prática, quando desafiada, pode explicitar as
razões pelas quais age de tal maneira e não de outra, mas, na maior parte das
vezes, o pano de fundo inarticulado permanece implícito, comandando
silenciosamente nossa atividade prática e abrangendo muito mais do que a
moldura de nossas representações conscientes.
Enquanto, para Taylor, a prática não articulada que comanda nossa vida
cotidiana implica a necessidade de articular uma hierarquia de valores
escondida, que guia nosso comportamento, daí sua empreitada de nomear e
reconstruir as fontes da nossa noção de self, para Bourdieu o mesmo fato torna
urgente uma "psicoanálise do espaço social". O que para grande parte da
tradição sociológica é "internalização de valores", gerando uma leitura
racionalista, que enfatiza o aspecto mais consciente e refletido da reprodução
valorativa e normativa da sociedade, para Bourdieu a ênfase recai, ao
contrário, sobre o condicionamento pré-reflexivo, automático, emotivo e
espontâneo; em outras palavras, "inscrito no corpo" de nossas ações,
disposições e escolhas.
Nesta análise, a noção de habitus é fundamental. Esse conceito, ao contrário da
tradição racionalista e intelectualista, permite enfatizar todo o conjunto de
disposições culturais e institucionais que se inscrevem no corpo e que se
expressam na linguagem corporal de cada indivíduo, transformando, por assim
dizer, as escolhas valorativas culturais e institucionais em carne e osso.
Enquanto para Marx a "ideologia espontânea" do capitalismo era o fetichismo da
mercadoria, que encobria, sob a máscara da igualdade do mercado, relações de
produção desiguais, para Bourdieu, trata-se do conjunto de disposições ligadas
a um estilo de vida particular, o qual conforma o habitus estratificado por
classes sociais e legitima, de forma invisível e subliminar, o acesso
diferencial aos recursos materiais e ideais escassos, ou seja, a "ideologia
espontânea" do capitalismo tardio.
No seu texto já clássico sobre a distinção, Bourdieu (1984), tendo como
universo empírico a sociedade contemporânea francesa, explora a hipótese de que
o "gosto" seria a área por excelência da "negação do social", ao se mostrar
como uma qualidade inata e não produzida socialmente. O processo primário de
introjeção naturalizada desse critério legitimador de desigualdades se dá a
partir da herança cultural familiar e da escola em todos os seus níveis. O que
Bourdieu tem em mente é a formação de um habitus de classe, percebido como um
aprendizado não intencional de disposições, inclinações e esquemas avaliativos,
que permitem ao indivíduo perceber e classificar, numa dimensão pré-reflexiva,
os signos opacos da cultura legítima. Como a distinção social baseada no gosto
não se limita aos artefatos da cultura legítima, mas abrange todas as dimensões
da vida humana que implicam alguma escolha ' vestuário, comida, formas de
lazer, opções de consumo etc. ', o gosto funciona como o sentido de distinção
por excelência, permitindo separar e unir pessoas e, conseqüentemente, forjar
solidariedades ou constituir divisões grupais de forma universal (tudo é
gosto!) e invisível.
Nas melhores páginas dessa obra, Bourdieu logra demonstrar, com o uso farto de
material empírico, que mesmo as escolhas consideradas mais pessoais e
recônditas, desde a preferência por carro, compositor ou escritor até a escolha
do parceiro sexual, são, na verdade, frutos de fios invisíveis que interligam
interesses de classe, fração de classe ou, ainda, de posições relativas em cada
campo das práticas sociais. Esses fios tanto consolidam afinidades e simpatias,
que constituem as redes de solidariedade objetivamente definidas, como forjam
antipatias firmadas pelo preconceito.
Essa interessante idéia do habitus funcionando como fios invisíveis que ligam
pessoas por solidariedade e identificação e as separam por preconceito, o que
equivale a uma noção de coordenação de ações sociais consideradas inconscientes
e cifradas, impede, entretanto, a riqueza da noção de "articulação", cara a
Taylor, a qual permite pensar num transfer entre o refletido e o não-refletido.
Afinal, se existe algo que possa ser articulado é porque existe algo para além
do puro habitus irrefletido. Por conta disso, a ausência dessa dimensão na
reflexão de Bourdieu faz com que a contraposição em relação à "grande ilusão"
do jogo social só seja possível de maneira reativa, sem o questionamento das
regras do jogo como tais. Essa posição reativa advém da concepção de Bourdieu,
elaborada como uma crítica ao subjetivismo (1990, pp. 42-51), que reduz o
espaço social a um espaço de interações conjunturais, de que toda a estética e
a moral (os dois termos vêm sempre necessariamente juntos) de classe se
contrapõem a seu duplo e contrário, mas nunca em relação a um patamar
compartilhado de regras comuns (Bourdieu, 1984, p. 244).
Esse é o terreno onde as contradições da análise de Bourdieu vêm mais
facilmente à tona. O raciocínio da lógica instrumental que reduz todas as
determinações sociais à categoria do poder mostra-se aqui em toda sua
fragilidade. No limite, torna-se incompreensível por que algumas estratégias
sociais e alguns "blefes" dão certo e outros não. Para sairmos da absoluta
arbitrariedade nessa dimensão da análise, é necessário se pleitear "alguma
coisa" para além da mera illusio do jogo social. Como aponta Axel Honneth, a
competição dos diversos grupos sociais entre si só tem sentido se houver o
pressuposto da existência de interpretações conflitantes acerca de um terreno
comum de regras que logram ser reconhecidas de maneira transclassista (Honneth,
pp. 178-179). A falta dessa dimensão obscurece as razões pelas quais uma dada
classe dirigente teria supostamente "escolhido" um objetivo e não outro. Do
mesmo modo não se explica também por que ocorrem as mudanças no "comando" do
processo social, como, por exemplo, a substituição da aristocracia pré-moderna
pela burguesia no alvorecer da modernidade.
Talvez o aspecto que mais explicite as deficiências da teoria bourdiesiana,
tornando necessário vinculá-la a uma teoria objetiva da moralidade, como a de
Taylor, seja o radical contextualismo de sua análise da classe trabalhadora
francesa. Isso o impede de perceber os processos coletivos de aprendizado moral
que ultrapassam em muito as barreiras de classe. Como se pode observar, o
último patamar da análise de Bourdieu sobre o caso francês, que fundamenta uma
infinidade de distinções sociais, é a situação de "necessidade" da classe
operária. O caráter histórico contingente e espaço-temporal dessa "necessidade"
mostra que ela se refere à distinção de hábitos de consumo dentro da dimensão
de pacificação social, típico do Welfare State. O que é visto como
"necessidade", neste contexto, comparando-se a sociedades periféricas como a
brasileira, adquire o sentido de consolidação histórica e contingente de lutas
políticas e de múltiplos aprendizados sociais e morais de efetiva e fundamental
importância, os quais passam desapercebidos na análise de Bourdieu.
Assim, proponho uma subdivisão à categoria de habitus, de tal modo a lhe
conferir um caráter histórico mais matizado, acrescentando, portanto, uma
dimensão genética e diacrônica à temática de sua constituição. Assim, em vez de
utilizar o conceito de habitus genericamente, aplicando-o a situações
específicas de classe num contexto sincrônico, como faz Bourdieu, talvez seja
mais profícuo se pensar em uma pluralidade de habitus. Se para o indivíduo o
habitus representa a incorporação de esquemas avaliativos e disposições de
comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural, então
mudanças fundamentais na estrutura socioeconômica deve implicar,
conseqüentemente, mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para
todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças.
Este foi certamente o caso da passagem das sociedades tradicionais para as
sociedades modernas no Ocidente. A burguesia, como a primeira classe dirigente
que trabalha, conseguiu não só romper com a dupla moral típica das sociedades
tradicionais baseadas no código da honra, como também construir, pelo menos em
uma medida apreciável e significativa, uma homogeneização de tipo humano a
partir da generalização de sua própria economia emocional ' domínio da razão
sobre as emoções, cálculo prospectivo, auto-responsabilidade etc. Esse processo
deu-se em todas as sociedades centrais do Ocidente das mais variadas maneiras.
A idéia de criar um tipo transclassista foi um desiderato perseguido de forma
consciente e decidida, e não deixado a uma suposta ação automática do progresso
econômico. Assim, esse gigantesco processo histórico homogeneizador,
aprofundado posteriormente pelas conquistas sociais e políticas da própria
classe trabalhadora, pode ser entendido como um processo em larga escala de
aprendizado moral e político de profundas conseqüências. Evidentemente, não
equalizou as classes sociais em todas as esferas da vida, mas sem dúvida
generalizou e expandiu concepções fundamentais em torno do ideal de igualdade
para as esferas civis, políticas e sociais, como analisou Marshall em seu
célebre texto.
Precisamente esse processo histórico de aprendizado coletivo não foi
adequadamente tematizado por Bourdieu no seu estudo empírico acerca da
sociedade francesa. Ele representa o que gostaria de denominar consolidação de
um "habitusprimário", de modo a chamar atenção a esquemas avaliativos e
disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados, no
sentido bourdieusiano do termo, que permitem o compartilhamento da noção de
"dignidade" no sentido tayloriano. É essa "dignidade", efetivamente
compartilhada por classes que lograram homogeneizar a economia emocional de
todos os seus membros numa medida significativa, que me parece ser o fundamento
do reconhecimento social infra e ultra jurídico, o qual, por sua vez, permite a
eficácia social da regra jurídica da igualdade, e, portanto, da noção moderna
de cidadania. É esta dimensão da "dignidade" compartilhada, no sentido não-
jurídico de "levar o outro em consideração", denominado por Taylor (1986, p.
15) de respeito atitudinal, que tem de estar disseminada de forma efetiva na
sociedade para que se possa vislumbrar concretamente a dimensão jurídica da
cidadania e da igualdade garantida pela lei. Vale a pena reiterar: Para que
haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da
igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada.
É essa dimensão, a qual exige, portanto, um efetivo consenso valorativo
transclassista como condição de existência, que não foi percebida como tal por
Bourdieu. Isso permite que ele pense as relações entre as classes dominantes e
dominadas como relações especulares, reativas e de soma zero. A radical
contextualidade de seu argumento o impede de perceber a importância de
conquistas históricas desse tipo de sociedade, como a francesa, as quais se
tornam evidentes em comparação com sociedades periféricas, como a brasileira,
em que tal consenso inexiste. Portanto, quando chamo a generalização das
precondições sociais, econômicas e políticas do sujeito útil, "digno" e
cidadão, no sentido tayloriano de ser reconhecido intersubjetivamente como tal,
de habitusprimário, é para diferenciá-lo analiticamente de duas outras
realidades também fundamentais: o habitusprecário e o que gostaria de denominar
habitussecundário.
O habitusprecário seria o limite do habitusprimário em sentido descendente, ou
seja, aquele tipo de personalidade e de disposição de comportamento que não
atende às demandas objetivas para que um indivíduo ou um grupo social possa ser
considerado produtivo e útil em uma sociedade moderna e competitiva, podendo
gozar de reconhecimento social com todas as dramáticas conseqüências
existenciais e políticas aí implicadas. Para alguns autores, mesmo em
sociedades afluentes como a alemã, já se observam hoje segmentos de
trabalhadores e de indivíduos de baixa renda que vivem do seguro social,
apresentando justamente os traços de um habitusprecário (Bittlingmayer, 2002,
pp. 225-254), uma vez que o habitusprimário tende a ser redefinido segundo
novos patamares adequados às recentes transformações da sociedade globalizada e
da nova importância do conhecimento. Contudo, como analisarei adiante, essa
definição só adquire o estatuto de um fenômeno de massa permanente em países
periféricos como o Brasil.
O que denomino habitussecundário tem a ver com o limite do habitusprimário em
sentido ascendente, ou seja, com uma fonte de reconhecimento e respeito social
que pressupõe, no sentido forte do termo, a generalização do habitusprimário
para extensas camadas da população de uma determinada sociedade. Nesse sentido,
o habitussecundário já parte da homogeneização dos princípios operantes na
determinação do habitus primário e institue, por sua vez, critérios
classificatórios de distinção social a partir do que Bourdieu chama de "gosto".
Porém, para uma problematização mais adequada, a determinação conceitual dessa
diferenciação triádica da noção de habitus deve ser acoplada à discussão
tayloriana das fontes morais ancoradas institucionalmente no mundo moderno,
seja no centro, seja na periferia. Como a categoria de habitusprimário é a mais
básica, pois é a partir dela que se torna compreensível seus limites "para
baixo" e "para cima", devemos nos deter ainda na sua determinação. Afinal, as
pessoas não são aquinhoadas eqüitativamente com o mesmo reconhecimento social
por sua "dignidade de agente racional". Essa dimensão não é tão "rasa" quanto
sugere a simples dimensão política dos direitos subjetivos universalizáveis e
intercambiáveis. A esfera jurídica da proteção legal é apenas uma das dimensões
' apesar de fundamental ' desse processo de reconhecimento.
Se é o trabalho útil, produtivo e disciplinado que parece estar por trás da
"avaliação objetiva do valor relativo" de cada indivíduo nesta dimensão, então
aquilo que camufla as desigualdades e que subjaz à noção de "dignidade" do
agente racional deve se manifestar mais facilmente nesta mesma dimensão.
Reinhard Kreckel (1992) chama de "ideologia do desempenho" a tentativa de
elaborar um princípio único, para além da mera propriedade econômica, a partir
do qual se constitue a mais importante forma de legitimação da desigualdade no
mundo contemporâneo. A idéia subjacente a esse argumento é a necessidade de um
"pano de fundo consensual" (Hintergrundkonsens) acerca do valor diferencial dos
seres humanos, de tal modo que possa existir uma efetiva ' ainda que
subliminarmente produzida ' legitimação da desigualdade. Sem isso o caráter
violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma clara, a
olho nu.
Para Kreckel, a ideologia do desempenho baseia-se na "tríade meritocrática" '
qualificação, posição e salário. A qualificação, que reflete a importância do
conhecimento com o desenvolvimento do capitalismo, é o aspecto mais relevante
que condiciona os outros dois. Trata-se de uma ideologia, uma vez que não
apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetiva, mas também
legitima o acesso diferencial permanente a oportunidades na vida e à
apropriação de bens escassos (Kreckel, 1982, p. 98). Apenas a combinação da
tríade torna o indivíduo um "cidadão completo" (Vollbürger) e também
reconhecível, pois somente por meio da categoria do "trabalho" é possível
assegurar sua identidade, auto-estima e legitimação social. Nesse sentido, o
desempenho diferencial no trabalho tem de se referir a um indivíduo e só pode
ser conquistado por ele próprio. Apenas quando essas precondições estão dadas é
que o indivíduo pode obter sua identidade pessoal e social de forma completa.
Isso explica por que uma dona de casa, por exemplo, passa a ter um status
social objetivamente "derivado", ou seja, sua importância e reconhecimento
sociais dependem de seu pertencimento a uma família ou a um "marido". Ela se
torna, nesse sentido, dependente de critérios adscritivos, já que no contexto
meritocrático da "ideologia do desempenho" não possuiria valor autônomo
(Kreckel, 1982, p. 100). A atribuição de respeito social nos papéis de produtor
e cidadão passa a ser mediada pela abstração real já produzida pelo mercado e
pelo Estado nos indivíduos pensados como "suporte de distinções" que
estabelecem seu valor relativo. A explicitação de Kreckel acerca dessas
precondições é essencial, pois é necessário não apenas fazer referência ao
mundo do mercado e da distribuição de recursos escassos como perpassado por
valores (cf., por exemplo, Nancy Fraser, 1997a), mas também explicitar que
valores são esses.
Afinal, o poder legitimador do que Kreckel denomina "ideologia do desempenho"
irá determinar aos sujeitos e aos grupos sociais excluídos de imediato da
dimensão competitiva pelo desempenho diferencial, em virtude da falta de
pressupostos mínimos para uma competição bem-sucedida, a ausência de
reconhecimento social e auto-estima. A "ideologia do desempenho" funcionaria,
assim, como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano,
refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em insituições não
transparentes, como é o caso do mercado e do Estado. Ela é intransparente posto
que aparece à consciência dos indivíduos no dia-a-dia como se fosse um efeito
de princípios universais e neutros, abertos à competição meritocrática. Creio
que essa idéia ajuda a conferir concretude ao conceito de "fonte moral",
elaborado por Taylor a partir da noção de self pontual, embora seu poder
ideológico e produtor de distinções não tenha sido explicitamente tematizado
por este autor.
Na reconstrução que estou propondo, ao definir a ideologia do desempenho como
um mecanismo legitimador dos papéis de produtor e cidadão, o que se equivale ao
conteúdo do habitusprimário, é possível compreender melhor seu limite "para
baixo", ou seja, o habitusprecário. Assim, em uma sociedade capitalista moderna
se o habitusprimário implica um conjunto de predisposições psicossociais que
reflete, na esfera da personalidade, a presença da economia emocional e das
precondições cognitivas para um desempenho adequado ao atendimento das demandas
(variáveis no tempo e no espaço) do papel de produtor, com reflexos diretos no
papel do cidadão, a ausência dessas precondições implica a constituição de um
habitusmarcado pela precariedade.
Nesse sentido, habitusprecário pode se referir tanto a setores mais
tradicionais da classe trabalhadora de países desenvolvidos e afluentes
(Alemanha, por exemplo), como aponta Uwe Bittlingmayer (2002, p. 233) '
incapazes de atender as novas demandas por contínua formação e flexibilidade da
assim chamada "sociedade do conhecimento" (Wissensgesellschaft), a qual exige,
atualmente, uma ativa acomodação aos novos imperativos econômicos ', como à
secular "ralé" rural e urbana brasileira. Nos dois casos, a formação de todo um
segmento de indivíduos inadaptados ' fenômeno marginal, em sociedades
desenvolvidas; fenômeno de massa, em sociedades periféricas ' é resultado de
mudanças históricas, implicando a redefinição do que estou chamando
habitusprimário. No caso alemão, a disparidade entre habitusprimário e
habitusprecário é causada pelo aumento de demandas por flexibilização, o que
exige uma economia emocional peculiar.
No caso brasileiro, o abismo foi criado já no limiar do século XIX, com a re-
europeização do país, e se intensificou a partir de 1930, com o início do
processo de modernização em grande escala. A linha divisória passou a ser
traçada entre os setores "europeizados" ' aqueles que conseguiram se adaptar às
novas demandas produtivas e sociais, lembrando que esse processo implica a
importação de instituições européias como "artefatos prontos", no sentido
weberiano, e, portanto, a importação da visão de mundo subjacente a elas ' e os
setores "precarizados", os quais tenderam, por seu abandono, a uma cada vez
maior e permanente marginalização.
Com a designação do termo "europeu", eu não estou me referindo, vale a pena
esclarecer, à entidade concreta "Europa", nem muito menos a um fenótipo ou tipo
físico, mas ao lugar e à fonte histórica de uma concepção de ser humano
culturalmente determinada e cristalizada na ação empírica de instituições, como
o mercado competitivo e o Estado racional centralizado, as quais, a partir da
Europa, se expandiram por todo o mundo, em todos os seus rincões e cantos,
inclusive a América Latina. A "europeidade", mais uma vez, está sendo usada
aqui como referência empírica de uma hierarquia valorativa peculiar, que pode,
por exemplo, como no caso do Rio de Janeiro do século XIX, ser personificada
por um "mulato". Esse critério transformar-se-á na linha divisória que separa o
cidadão (habitusprimário) do "subcidadão" (habitusprecário). Em sociedades
periféricas modernizadas de maneira exógena, como a brasileira, é o atributo da
"europeidade" que se constituirá no critério por excelência de segmentação
social entre indivíduos e classes sociais classificados e desclassificados.9
Como vimos, o princípio básico do consenso transclassista é o do desempenho e
da disciplina (fonte moral do self pontual para Taylor); portanto a aceitação e
a internalização generalizada desse princípio fazem com que a inadaptação e a
marginalização de certos setores sejam percebidas como um "fracasso pessoal",
tanto por aqueles que se encontram incluídos, como pelas próprias vítimas da
exclusão. É também a centralidade universal do princípio do desempenho, com sua
conseqüente incorporação pré-reflexiva, que faz com que a reação dos
inadaptados ocorra num campo de forças que se articula precisamente em relação
ao tema do desempenho: positivamente, pelo reconhecimento da intocabilidade de
seu valor intrínseco, apesar da própria posição de precariedade; negativamente,
pela construção de um estilo de vida reativo, ressentido, ou abertamente
criminoso e marginal (Fernandes, 1978, p. 94).
Já o limite do habitusprimário "para cima" tem a ver com o fato de o desempenho
diferencial na esfera da produção estar necessariamente associado a uma
"estilização da vida", de modo a produzir distinções sociais. Nesse sentido,
habitussecundário aqui diz respeito ao estudo das "sutis distinções",
analisadas por Bourdieu (1984). É nessa dimensão que o "gosto" passa a ser uma
espécie de moeda invisível, transformando tanto o capital econômico puro como,
sobretudo, o capital cultural, travestidos em desempenho diferencial por conta
da ilusão do "talento inato", em um conjunto de signos sociais de distinção
legítima, a partir dos efeitos típicos do contexto de opacidade em relação às
suas condições de possibilidade.
Mas, também aqui, é necessário acrescentar a dimensão objetiva da moralidade, a
qual permite, em última instância, todo o processo de fabricação de distinções
sociais. Como vimos, tal processo foi negligenciado por Bourdieu. Assim, também
o conceito de habitus secundário10 deve ser vinculado, a exemplo do que fizemos
com os conceitos de habitus primário e precário, ao contexto moral, não
obstante ser opaco e naturalizado, que lhe confere eficácia. Se percebemos na
"ideologia do desempenho", como corolário da "dignidade do ser racional" do
selfpontual tayloriano, o fundamento moral implícito e naturalizado das duas
outras formas de habitus, acredito que o habitus secundário possa ser
compreendido na sua especificidade, antes de tudo, a partir da noção tayloriana
de expressividade e autenticidade.
O ideal romântico da expressividade e da autenticidade é interpretado pelo
Taylor do The sources of the self como uma fonte moral alternativa ao
selfpontual e ao princípio do desempenho que o comanda, uma vez que implica a
reconstrução narrativa de uma identidade singular, para a qual não há modelos
preestabelecidos. Assim, se o selfpontual é constituído por critérios que
implicam universalização e homogeneização, assim como as categorias de produtor
e cidadão que o realizam concretamente, o "sujeito" do expressivismo é marcado
pela busca da singularidade e da originalidade, pois o que deve ser "expresso"
é precisamente o horizonte afetivo e sentimental peculiar a cada indivíduo.
Atualmente, é esse ideal, formado tardiamente como uma reação a demandas
racionalizantes e disciplinarizadoras do selfpontual ancorado nas instituições,
que está sujeito a se transformar em seu oposto. O mote do disgnóstico da época
levado a cabo por Taylor em The ethics of authenticity (1991) é precisamente a
ameaça crescente de trivialização desse ideal, de seu conteúdo dialógico e de
auto-invenção em favor de uma perspectiva auto-referida, simbolizada no que o
autor denomina quick fix ' solução rápida (Idem, p. 35).
O tema do "gosto", como base das distinções sociais fundadas no que estamos
chamando de habitussecundário, compreende tanto o horizonte da individualização
"profunda", baseada no ideal da identidade original dialógica e constituída em
forma narrativa, como o processo de individuação superficial, pautado no quick
fix. Bourdieu não cogita a diferença entre essas duas formas, já que, para ele,
por força de suas escolhas categoriais, a estratégia da distinção é sempre
utilitária e instrumental. Para os fins deste ensaio, no entanto, essa
diferença é fundamental. Afinal, a recuperação da dimensão trabalhada por
Taylor é o que explica, em última instância, o apelo e a eficácia social,
inclusive da versão pastiche dessa possibilidade de individualização.
A personificação do "gosto" para Bourdieu serve, antes de tudo, para a
definição da "personalidade distinta" que surge como resultado de qualidades
inatas, como expressão de harmonia e beleza e como reconciliação entre razão e
sensibilidade ' a definição do indivíduo perfeito e acabado (Bourdieu, 1984, p.
11). As lutas entre as diversas facções da classe dominante ocorrem,
precisamente, pela determinação da versão socialmente hegemônica do que é uma
personalidade distinta e superior. A classe trabalhadora, que não participa
dessas lutas, seria um mero negativo da idéia de personalidade, quase uma "não-
pessoa", como deixa entrever as especulações de Bourdieu acerca da redução dos
trabalhadores à pura força física (Idem, p. 384). Nesta dimensão do
habitussecundário não me parece existir qualquer diferença relevante entre as
sociedades modernas do centro e as da periferia. Nessa dimensão da produção de
desigualdades, ao contrário do que proclama a ideologia da igualdade de
oportunidades nos países avançados, os dois tipos de sociedade encontram-se no
mesmo patamar.
A distinção fundamental entre esses dois tipos de sociedade parece-me
localizar-se na ausência de generalização do habitusprimário, ou seja, do
componente responsável pela universalização efetiva da categoria de produtor
útil e de cidadão. Em todas as sociedades que lograram homogeneizar de maneira
transclassista, este aspecto fundamental, tratou-se de um objetivo perseguido e
estabelecido na forma de uma reforma política, moral e religiosa de grandes
proproções, não deixada ao encargo do "progresso econômico". Os great
Awakenings dos séculos XVIII e XIX nos Estados Unidos conseguiram levar à
fronteira e ao Sul escravista a mesma semente moral e fervorosamente religiosa
das treze colônias originais (Bellah, 1975). As poor laws inglesas podem também
ser compreendidas como uma forma autoritária de forçar os inadaptados da
revolução industrial à adoção dos requisitos psicossociais da sociedade que
então se criava. Também na França, como mostra de modo exemplar o livro
clássico de Eugen Weber, cujo título Peaseants into Frenchmen (1976) já denota
o processo de transformação social de homogeneização, que é o pressuposto da
eficácia social da noção de cidadania.
Um exemplo concreto talvez ajude a esclarecer o que tenho em mente quando
procuro ressaltar a importância desse aspecto para uma percepção adequada
daquilo que é específico nas sociedades modernas central e periférica. Desse
modo, se estou certo, seria a efetiva existência de um consenso básico e
transclassista ' representado pela generalização das precondições sociais que
possibilitam o compartilhamento efetivo, nas sociedades avançadas, do que estou
chamando de habitus primário ' que faz com que, por exemplo, um cidadão alemão
ou francês de classe média ao atropelar por negligência um compatriota
proveniente da classe baixa seja, com altíssima probabilidade, punido de acordo
com a lei. Se essa cena fosse transposta para a realidade brasileira, as
chances de a lei ser efetivamente aplicada neste caso seria, ao contrário,
baixíssima.11 Isso não significa que as pessoas não se importem de alguma
maneira com o ocorrido. O procedimento policial é geralmente aberto e segue seu
trâmite burocrático, mas o resultado é, na grande maioria dos casos, a simples
absolvição ou o estabelecimento de penas dignas de mera contravenção.
Com certeza, na dimensão infra e ultra jurídica do respeito social
compartilhado socialmente, o valor do brasileiro pobre "não-europeizado" ' ou
seja, aquele que não compartilha da economia emocional do selfpontual, criação
cultural contingente da Europa e América do Norte ' é comparável ao que se
confere a um animal doméstico, o que caracteriza objetivamente seu status
subhumano. Existe, em países periféricos como o Brasil, toda uma classe de
pessoas excluídas e desclassificadas, posto que não participam do contexto
valorativo de fundo ' o que Taylor chama de "dignidade" do agente racional ',
primeira condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento, por todos,
da idéia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um
habitus que, por incorporar as características disciplinarizadoras, plásticas e
adaptativas básicas para o exercício das funções produtivas no contexto do
capitalismo moderno, podemos denominar habitusprimário.
Permitam-me tentar precisar ainda melhor essa idéia central para meu argumento
neste ensaio. Falo de habitus primário, já que se trata efetivamente de um
habitus no sentido que essa noção adquire em Bourdieu. São esquemas avaliativos
compartilhados objetivamente, embora opacos e insconscientes, que guiam nossa
ação e nosso comportamento efetivo no mundo. É apenas esse tipo de consenso,
como que corporal, pré-reflexivo e naturalizado, que pode permitir, para além
da eficácia jurídica, uma espécie de acordo implícito, em que alguns estão
acima da lei, como sugere o desenrolar daquela cena de atropelamento no Brasil.
Existe uma espécie de rede invisível que une desde o policial na abertura do
inquérito até o juiz na sentença final, passando por advogados, testemunhas,
promotores, jornalistas etc., os quais, por meio de um acordo implícito e
jamais verbalizado, terminam por inocentar aquele que incorreu no delito. O que
liga todas essas intencionalidades individuais de forma subliminar,
constituindo o acordo implícito entre elas, é a idéia objetiva e ancorada
institucionalmente da condição subhumana da vítima do atropelamento, já que o
valor diferencial entre os seres humanos está atualizado de forma inarticulada
em todas as nossas práticas institucionais e sociais.
Não se trata de intencionalidade. Nenhum brasileiro europeizado de classe média
confessaria, em sã consciência, que considera seus compatriotas das classes
baixas não-europeizadas "subgente". Grande parte dessas pessoas votam em
partidos de esquerda e participam de campanhas contra a fome e coisas do
gênero. A dimensão aqui é objetiva, subliminar, implícita e não transparente.
Ademais, ela não precisa ser mediada pela linguagem nem simbolicamente
articulada; implica, como a idéia de habitusem Bourdieu, toda uma visão de
mundo e uma hierarquia moral que se sedimentam e se mostram como signo social
de forma imperceptível a partir de signos sociais aparentemente sem
importância, como, por exemplo, a inclinação respeitosa e inconsciente do
indivíduo "inferior" na escala social quando encontra com um "superior", pela
tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc. O que existe aqui são
acordos e consensos sociais mudos e subliminares, mas por isso mesmo tanto mais
eficazes, que articulam, como que por meio de fios invisíveis, solidariedades e
preconceitos arraigados. É este tipo de acordo, para usar o exemplo analisado,
que está por trás do fato de que todos os envolvidos no processo policial e
judicial na morte por atropelamento do subhomem não-europeizado, sem qualquer
acordo consciente e até contrariando expectativas explícitas de muitas dessas
pessoas, terminem por inocentar seu compatriota de classe média.
Bourdieu não percebe, pelo seu radical contextualismo, que implica um
componente a-histórico, a existência do componente transclassista, que faz com
que, em sociedades como a francesa, exista um acordo intersubjetivo e
transclassista que pune, efetivamente, o atropelamento de um francês de classe
baixa, posto que a vítima é considerada, na dimensão subpolítica e subliminar,
"gente" e "cidadão pleno" e não apenas uma força física e muscular ou uma mera
tração animal. É a existência efetiva deste componente, no entanto, que explica
o fato de que, na sociedade francesa, numa dimensão fundamental,
independentemente da pertença a uma determinada classe social, todos sejam
cidadãos. Isso não implica, contudo, que não existam outras dimensões em torno
da questão da desigualdade, manifestadas de forma também velada e não
transparente, como tão bem demonstra Bourdieu em sua análise da sociedade
francesa. Mas a temática do gosto, separando as pessoas por vínculos de
simpatia e aversão, pode e deve ser analiticamente diferenciada da questão da
dignidade fundamental da cidadania jurídica e social, a qual estou associando
aqui ao que chamo de habitusprimário.
A distinção a partir do gosto, tão magistralmente reconstruída por Bourdieu,
pressupõe, no caso francês, um patamar de igualdade efetiva na dimensão tanto
do compartilhamento de direitos fundamentais como do respeito atitudinal de que
fala Taylor, no sentido de que todos são considerados membros "úteis", ainda
que desiguais em outras esferas. Ou seja, à dimensão do habitusprimário se
acrescenta uma outra, que também pressupõe a existência de esquemas avaliativos
implícitos, insconscientes e compartilhados, a saber, o habitussecundário. Este
corresponde a um habitusespecífico, demonstrado de maneira exemplar por
Bourdieu quando analisa as escolhas do gosto.
Essas duas esferas, evidentemente, interpenetram-se de diversas maneiras. No
entanto, devemos separá-las analiticamente, uma vez que obedecem a lógicas
distintas de funcionamento. Como diria Taylor, as fontes morais são distintas
em cada caso. No caso do habitus primário, o que está em jogo é a efetiva
disseminação da noção de dignidade, que torna o agente racional um ser
produtivo e cidadão pleno. Em sociedades avançadas, essa disseminação é
efetiva, e os casos de habitusprecário são fenômenos marginais. Em sociedades
periféricas, o habitus precário ' que implica a existência de redes invisíveis
e objetivas que desqualificam os indivíduos e os grupos sociais precarizados
como subprodutores e subcidadãos, e isso, sob a forma de uma evidência social
insofismável tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da
exclusão ' é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que a produção
social de uma "ralé estrutural" é o que diferencia substancialmente esses dois
tipos de sociedades.
Essa circunstância não elimina a existência, nos dois tipos de sociedade, da
luta pela distinção, baseada no que chamo de habitussecundário. Isso diz
respeito à apropriação seletiva de bens e recursos escassos, e constitue
contextos cristalizados e tendencialmente permanentes de desigualdade. Mas a
consolidação efetiva, em grau significativo, das precondições sociais que
permitem a generalização de um habitusprimário nas sociedades centrais torna a
subcidadania, como fenômeno de massa, circunscrita apenas às sociedades
periféricas, o que marca sua singularidade e chama a atenção para o conflito de
classes específico da periferia do capitalismo.
O esforço dessa construção múltipla de habitus serve para ultrapassar as
concepções subjetivistas da realidade, que a reduzem a interações face a face.
A situação descrita a propósito do exemplo do atropelmento seria explicada,
dessa perspectiva, pelo paradigma personalista hibridista.12 Em outras
palavras, as "relações pessoais" do infrator de classe média constituiriam o
suporte para sua impunidade. Esse é um exemplo típico do despropósito
subjetivista de interpretar sociedades periféricas, complexas e dinâmicas, como
a brasileira, como se o papel estruturante coubesse a princípios pré-modernos '
por exemplo, o capital social em relações pessoais. Nesse terreno, não há
qualquer diferença entre países centrais e periféricos. Relações pessoais são
importantes na definição de carreiras e chances individuais de ascenção social
tanto num caso, como no outro. Entretanto, nos dois tipos de sociedade, os
capitais econômico e cultural são estruturantes, o que não é válido para o
capital social de relações pessoais.
Se minha análise estiver correta, o esquema interpretativo que proponho permite
explicitar tanto a hierarquia valorativa e normativa subjacente ao
funcionamento do mercado e do Estado, embora de forma subliminar e não
transparente, como a forma peculiar com que esses signos opacos adquirem
visibilidade social, ainda que de modo pré-reflexivo. Esse ponto de vista
permite ainda discutir a especificidade das sociedades periféricas, ao analisar
a desigualdade, a complexidade e a dinâmica que lhes são peculiares, sem apelar
para essencialismos culturalistas ou explicações personalistas, algumas de nova
roupagem como as abordagens "hibridistas", que são obrigadas a defender a
existência de um núcleo pré-moderno quando analisam as causas das mazelas
sociais nessas sociedades. O anacronismo desse tipo de análise, que nunca
enfrenta teoricamente a questão central de explicitar de que modo os princípios
"híbridos" se articulam, parece-me evidente.13
No entanto, o Estado e o mercado não são as únicas instituições fundamentais
das sociedades modernas. Habermas (1975) apresenta a esfera pública como a
terceira grande instituição da modernidade, destinada precisamente a
desenvolver a crítica reflexiva e as possibilidades de aprendizado coletivo. No
entanto, como o próprio Habermas aponta, uma esfera pública efetiva pressupõe,
entre outras coisas, um mundo da vida "racionalizado", ou seja, uma efetiva
generalização do habitusprimário em suas virtualidades de comportamentos
público e político. Isso implica que, no caso do Brasil, por exemplo, a esfera
pública seria tão segmentada internamente quanto o Estado e o mercado. Esse
aspecto vai de encontro a certas análises excessivamente otimistas acerca das
virtualidades dessa instituição fundamental entre nós.
Porém, as sociedades modernas, mais uma vez, sejam centrais ou periféricas,
também desenvolvem "imaginários sociais" mais ou menos explícitos e refletidos,
para além da eficácia subliminar do aparato institucional típico do que
denomino "ideologia espontânea do capitalismo". Certamente, esses imaginários
possibilitam a produção de identidades coletivas e individuais a cada contexto
cultural ou nacional (Taylor, 2003). Quando pensamos no imaginário social da
sociedade brasileira, constatamos que sua versão mais definitiva e duradoura se
formou com a consolidação de uma nation building sedimentada pelo Estado
corporativo e arregimentador de 1930. Nesse sentido, a ideologia explícita
apenas corrobora e justifica a dimensão implícita da "ideologia espontânea",
constituindo as condições específicas do imaginário social brasileiro. Gilberto
Freyre, que se não foi certamente o iniciador, já que muito antes dele essa
construção simbólica vinha se constituindo e ganhando contornos mais ou menos
claros, foi o grande formulador da versão definitiva dessa ideologia explícita,
que se tornou a doutrina de Estado, passando a ser ensinada nas escolas e
disseminada nas mais diversas formas de propaganda estatal e privada, a partir
de 1930.
Segundo Freyre, a singularidade de nossa cultura é a propensão para o encontro
cultural, para a síntese das diferenças, para a unidade na multiplicidade. É
por isso que somos únicos e especiais no mundo. Devemos, portanto, ter orgulho
e não vergonha de sermos "mestiços"; o tipo físico funcionaria como um
referente de igualdade social e de um tipo peculiar de "democracia". Uma maior
afinidade com a doutrina corporativa que passa a imperar a partir de 1930, em
substituição ao liberalismo anterior, é difícil de ser imaginada. Essa visão
hoje faz parte de nossa identidade individual e coletiva. Todos nós "gostamos"
de nos ver dessa forma; a ideologia adquire, assim, um aspecto emocional
incompatível com uma ponderação mais racional, o que cria dificuldade para quem
se propõe a problematizar essa verdade tão agradável aos nossos ouvidos. O
poder de influência desse imaginário coletivo é impressionante.
A partir de Freyre, essa maneira de entender a sociedade brasileira tem uma
história de glória. Pelo conceito de "plasticidade", importado diretamente de
Freyre, tal concepção passa a ser central em todo o argumento do homem cordial
de Sérgio Buarque de Holanda, alicerce de sua visão do personalismo e do
patrimonialismo, que representam a singularidade valorativa e institucional da
formação social brasileira. Sérgio Buarque torna-se o criador da auto-
interpretação dominante dos brasileiros no século XX. No contexto deste ensaio,
convém destacar a idéia do homem cordial reproduzindo a essencialização e
indiferenciação características da noção de hibridismo e de singularidade
cultural como uma unidade substancializada. O homem cordial é definido como o
brasileiro de todas as classes, uma forma específica de ser gente humana, que
tem sua vertente tanto intersubjetiva, na noção de personalismo, como
institucional, na noção de patrimonialismo.
Para os meus objetivos, no entanto, o fundamental é que essa ideologia
explícita se articula com o componente implícito da "ideologia espontânea" das
práticas institucionais importadas e operantes também na modernidade
periférica, construindo um contexto extraordinário de obscurecimento das causas
da desigualdade, seja para os privilegiados, seja, e muito especialmente, para
as vítimas desse processo, com conseqüências para a reflexão teórica e para a
prática política.14 Este, parece-me, é o ponto central quando se discute a
questão da naturalização da desigualdade, abissal como ela é, entre nós.
Notas
1 Uma excelente exposição da pré-história, desenvolvimento e contradições
internas ao paradigma da teoria da modernização pode ser encontrada em Wolfgang
Knöbl (2001).
2 A interpretação dominante considera o processo de modernização brasileiro
como endógeno, tendo São Paulo como núcleo. Confunde-se aqui causa e resultado.
Para uma crítica em detalhe a esse respeito, ver Souza (2003)
3 O fato de o Brasil ter sido o país de maior crescimento econômico do mundo
entre 1930 e 1980, sem que as taxas de desigualdade, marginalização e
subcidadania tivessem sido alteradas significativamente, deveria ser um
indicativo evidente do engano dessa pressuposição.
4 Ver sobre esse tema o clássico trabalho de Bellah (1985) e a coletânea de
Eisenstadt (1968).
5 Não admira que até uma teoria crítica como a habermasiana, que admite esse
tipo de construção, perceba os conflitos sociais preferencialmente apenas no
front entre sistema e mundo da vida, e não mais no interior das realidades
sistêmicas. Ver a crítica de Joahannes Berger (1986).
6 O mesmo acontece com a noção, meramente descritiva, de "carisma". Como não
existe a pressuposição de "sentidos coletivos" inarticulados, os quais caberia
ao líder articular e conferir uma direção própria, o vínculo do líder com seus
seguidores torna-se "misterioso" e passa a depender da suposição de existência,
por parte da população, em atributos extracotidianos ou mágicos da
personalidade do líder.
7 Esse aspecto foi desenvolvido de forma polêmica e estimulante, servindo de
pano de fundo para uma gramática das lutas políticas contemporâneas a partir
dos pólos de distribuição e reconhecimento, em Fraser (1997b). Para os aspectos
problemáticos entre as dimensões individuais e coletivas do tema do
reconhecimento, ver Benhabib (1999, pp. 39-46).
8 Para uma crítica das posições de Taylor e de Fraser, ver Honneth (2001, pp.
52-53).
9 A discussão acerca da especificidade da modernização brasileira, levada a
cabo em detalhe em Souza (2003), não poderia ser feita no espaço restrito deste
ensaio.
10 Axel Honneth, em sua interessante crítica a Bourdieu, tende a rejeitar in
toto o conceito de habitus, dado o componente instrumental e utilitário que o
perpassa. Ao fazer isso, no entanto, Honneth corre o risco de "jogar a criança
fora junto com a água suja do balde", como os alemães gostam de dizer em um
provérbio popular, pois o que me parece importante é, precisamente, reconectar
o conceito de habitus a uma instância moral que permita iluminar, nas dimensões
individual e coletiva, além do dado instrumental que é irrenunciável, o tema do
aprendizado moral. Ver Honneth (1990).
11 Este exemplo poderia ser, no caso brasileiro, facilmente multiplicado. Há,
inclusive, casos notórios de discriminação de classe amparados por estatuto
legal ' como no caso da prisão especial para os portadores de diploma
universitário ' e não apenas exemplos retirados efetivamente do cotidiano, e
que se impõem apesar da regra legal inclusiva. O objetivo principal deste texto
é precisamente esclarecer o por quê e como se dá a sobreposição da regra social
da desigualdade em relação à regra legal da igualdade no caso brasileiro.
12 Na versão, por exemplo, de DaMatta (1978). Cabe esclarecer ' o que talvez
não tenha feito em outros momentos ' que em minha polêmica contra o
personalismo assumo como interlocutor principal Roberto DaMatta porque
reconheço a importância de sua obra e o considero nosso intérprete mais
sofisticado e sistemático das últimas décadas. Sua atualização do ponto de
partida personalista articula fatos observáveis com uma explicação dos
mecanismos societários profundos que a explicam, o que é um desempenho raro.
13 A esse respeito, ver Souza (2000, esp. pp. 183-204).
14 Ele explica, também, o fato de que o potencial de insurreição da ralé
durante todo o século XIX até hoje se reduza a rebeliões localizadas e
passageiras ' quebradeiras, arrastões e violência pré-política ' em que a
articulação consciente de seus objetivos jamais chega a ocorrer.