Três teses comparativas entre os pensamentos de Weber e de Nietzsche
Há um fio condutor das teses que aqui serão apresentadas com intuito de
comparação entre elementos do pensamento de Max Weber (1864-1921) e o de
Friedrich Nietzsche (1844-1900). Trata-se da hipótese central do estranhamento,
a qual perpassa todo o texto e é sustentada pelo combate permanente de idéias,
perspectiva comparativa que, como se poderá bem notar, não exclui a busca das
afinidades e de possíveis conciliações entre aspectos de idéias que, no
fundamental, se mostram díspares. As as três teses serão expostas na seguinte
seqüência: a primeira tratará do tema conhecimento, abarcando dois subitens '
um que se refere ao "estatuto da verdade" e outro ao "estatuto da ciência" '; a
segunda tratará do tema da dominação, igualmente central em ambos os
pensamentos, mas que engloba pressuposições e recebe tratamentos bastante
singulares em cada autor; e a terceira tese tratará do tema da tragédia,
aplicado especialmente ao âmbito da cultura moderna.
Primeira tese: sobre o conhecimento
São muito distintas as concepções de conhecimento sustentadas por Weber e por
Nietzsche. Este é um dos pontos de maior distanciamento entre os dois
pensadores, o que não impede que também aí o sociólogo apresente algumas
concordâncias com o filósofo que ele teria considerado, juntamente com Marx, um
referente matricial para o pensamento moderno.1 A distância que os separa na
tematização do conhecimento não tem a ver pura e simplesmente com a distinção
entre um pensamento científico e um pensamento filosófico, dado que o primeiro
se ocuparia mais com produção do conhecimento e teria preocupações
metodológicas e, o segundo, mais com a justificação do conhecimento e teria
preocupações epistemológicas. Tal distinção tem certa aplicação, mas deve ser
relativizada, em parte porque tanto Weber como Nietzsche se ocuparam com
questões de fundamentação e de produção, mesmo que em graus variados.
A relevância da separação entre o pensamento científico weberiano e o
pensamento filosófico nietzschiano melhor se define quando se trata da oposição
entre uma concepção racionalista e uma concepção transracionalista de
conhecimento. Essa distinção estabelece uma barreira definitiva entre Weber e
Nietzsche quanto ao tema do conhecimento, para além de uma mera divisão de
funções entre ciência e filosofia, a qual poderia sugerir, inclusive, uma
complementaridade entre os autores, quando o que se vê, ao se examinar mais
profundamente cada pensamento, é um forte estranhamento. Esta pode, então, ser
melhor denominada como a diferenciação entre a racionalidade teóricaweberiana e
a transracionalidade vital nietzschiana.
Estritamente no que diz respeito às questões relativas ao conhecimento, pode-se
sintetizar a diferença nos seguintes termos: enquanto a racionalidade teórica
designa a busca do "conhecimento válido" e prescreve, para tal, o uso rigoroso
de recursos lógicos formais (conceitos e juízos causais) voltados para a
explicação e evidência empírica, a transracionalidade vital, por sua vez,
designa a busca de um "conhecimento ativo" e prescreve, para tal, o uso
expressivo de recursos estilísticos (tropos, adjetivos, entonações, humor etc.)
voltados para a simbolização e assimilação psíquica. De um lado, o encontro
entre formalismo e empiria, de outro, o encontro entre poesia e vida; de um
lado, impessoalidade e neutralidade, de outro, pessoalidade e incorporação; de
um lado, a reflexão, de outro, a inspiração.
Ainda assim, o leque das questões atinentes ao conhecimento continua muito
aberto e impreciso. Poder-se-ia, por exemplo, querer perscrutar o significado
da distinção em termos das metodologias de investigação utilizadas pelos
autores, ou em termos das linguagens e dos aspectos da escrita e do estilo, ou
em termos da relação com a tradição filosófica como o kantismo, o positivismo e
a hermenêutica, ou em termos da relação com a história, e tantas outras
possibilidades. Sendo várias as direções que se poderia perseguir, escolheu-se,
para as reflexões que se seguem, o seguinte mote: pensar a distinção no tocante
ao conhecimento em termos das diferentes interpretações dos problemas da
verdade e da ciência. Dito isso, passarei às considerações de tais problemas.
Nietzsche pressupõe uma acomodação de impulsos diferenciados no fundamento de
tudo que reputamos "verídico", "evidente", "lógico" ou "verdadeiro". Os "jogos
de forças" se dão em função de serem elas designadas como "vontade de
potência", e a manifestação de uma vontade só pode se dar como potencialização
em direção a outra vontade. Das relações de afetação mútua entre vontades,
formam-se hierarquias e domínios conforme a intensidade das explorações e a
qualidade das assimilações de forças. Ao sentido fundamental da hierarquia num
jogo de forças Nietzsche chama de afeto de comando, cujo termo ele aplica
especialmente à conformação, no homem, do caráter como corporeidade de forças.
Quanto ao princípio de conformação dos afetos de comando, ele o chama de
incorporação. Uma espiritualidade é feita de hierarquias e regida pelo
princípio da incorporação, como toda a vida, daí a metaforização do espírito
como um estômago (Nietzsche, 1992, §230, p. 137). A sensibilidade filosófica
diz, então: "verdadeiro" é tudo aquilo que se encontra incorporado (Nietzsche,
2001, §110, pp. 137-139), e digno é o espírito que ousa fazer as incorporações
mais intensas, que é perpassado por grandes forças e grandes contradições.
Tudo que se considera serem "verdades", morais ou lógicas, mascara as
diferenças e as contradições que as sustentam como perspectivas primárias. Os
valores absolutos e as "verdades" são máscaras que ocultam conflitos,
desajustes, desfigurações, descontinuidades, esquecimentos. Na pré-história do
perdão cristão, há ressentimento; o homem bom é o masoquista cruel da má
consciência; e "o curso dos pensamentos e inferências lógicas, em nosso cérebro
atual, corresponde a um processo e a uma luta entre impulsos que, tomados
separadamente, são todos muito ilógicos e injustos" (Idem, §111, pp. 139-140).
De modo geral, contra a metafísica ' que o filósofo caracteriza como a "crença
nas oposições de valor" ' ele sustentou a tese de que um valor pode
precisamente nascer do seu oposto (Nietzsche, 1992, §2, p. 10). Como
destruidor, Nietzsche foi um (des)codificador e o fez embaralhando e
confundindo signos e significações. Quanto à crença no verdadeiro, o filósofo
criou uma designação geral para o afeto de comando que a rege: vontade de
verdade [Wille zur Wahrheit].
Pela interpretação nietzschiana da origem ilógica da lógica, todos os
mecanismos a ela associados são falsamente tomados como "verdadeiros". São os
casos da crença na "consciência", no "eu", na "causalidade", nas "leis", nas
"substâncias", nas "idéias". Tem-se a ilusão de ser a lógica uma faculdade da
mente humana, quer transcendental (Kant) quer histórica (Weber), à qual
corresponderia um sujeito cognoscente; tem-se a ilusão de que uma coisa é causa
de outra coisa, ou seja, que há entre as coisas relações lógicas; tem-se a
ilusão de que há igualdade entre as coisas, ou, simplesmente, tem-se a ilusão
de que existem "coisas". No caso da ciência, o raciocínio em termos de causa e
efeito fere a arbitrariedade, a singularidade e a plasticidade que existem na
produção de cada acontecimento e está intimamente ligada à propensão de se
tratar dois ou muitos fenômenos como iguais.
Em termos gerais, a estratégia nietzschiana para dar conta do "estatuto da
verdade" consistiu em retirá-lo do registro da epistemologia cientificista para
inseri-lo nos registros da fisiologia e da psicologia. Se o "verdadeiro" não é
o que é provado ou logicamente sustentado, mas o que é incorporado ou
afetivamente produzido, significa que a verdade se refere à constituição dos
corpos e dos espíritos como configurações de forças e suas figurações. Sabendo-
se, de antemão, que a distinção entre corpo e espírito é tão-somente
esquemática, porque um espírito é feito de incorporações e todo corpo é uma
estrutura anímica. Nietzsche viu a psicologia como a arte de interpretação dos
"tipos espirituais" como incorporações afetivas. Por exemplo, os tipos
religiosos assimilam sob condições de "obstrução fisiológica" e produzem
valorações morais idealistas; já os "espíritos livres" assimilam sob condições
de "intensificação fisiológica" e produzem valorações práticas e artísticas.
Os novos registros da "verdade" operam sobre a noção de causalidade no sentido
que Nietzsche preferirá, no lugar do esquema causa-efeito, o esquema dominação-
submissão. Significa que, se queremos perscrutar a relação entre impulsos ou
acontecimentos diferenciados, devemos perguntar pelo sentido do comando e das
assimilações, não pelo sentido da causalidade e das conseqüências. Isso porque
uma coisa não diz nada sobre a sua causa, pois ela não é efeito de nada, mas
tão-somente uma nova efetivação; o que reputamos necessidade e causa não passa
de uma dedução colada àquilo que surgiu (Nietzsche, 2001, §205, p. 173). Mais
precisamente, o esquema causa-efeito é um perspectivismo estreito, demasiado
humano, pois entre o que consideramos a causa e o que consideramos o efeito há
uma miríade de vontades e atos que passam ao largo da consciência; daí o
esquema causa-efeito ser tão-somente uma interpretação, um artifício, nunca uma
efetiva explicação (Nietzsche, 1992, §21, pp. 26-28). Um sentido não provém de
um outro, mas estabelece com os demais relações (hierarquizadas) de potência.
Na verdade, o que há, o tempo todo, são relações, forças em ação, jogos de
dominação e de submissão. Não se concebe uma situação de vazio de poderes,
porque não há ausência de forças, e toda força é exercício de potência. Entre
as forças ou os fenômenos de forças não há enlaces causais e lógicos, mas
estratégicos e vitais.
Weber tem uma visão completamente distinta. Primariamente porque o seu
pensamento sociológico procura operar de maneira rigorosa nos registros
articulados da história e de uma metodologia racionalista. Cada um desses
registro implica numa ruptura com a visão nietzschiana. Histórica é a
perspectiva de se pensar as causas singulares das conformações sociais, do
presente e do passado, as quais ganham autonomia cultural (sentido próprio)
ante o registro natural dos impulsos nietzschianos. E racionalista é a
perspectiva de se pensar os fenômenos sóciohistóricos quanto ao sentido e grau
de coerência racional, o que envolve procedimentos lógicos que operam a
despeito das irracionalidades. Não que Weber negue a existência de
determinações corpóreas ou sentimentais, mas, por aqueles registros, para ele
"verdadeiro" é tudo aquilo que pode ser logicamente sustentado e empiricamente
validado. Em oposição formal ao princípio nietzschiano de incorporação, pelo
qual o "verdadeiro" é apresentado como configurações de afetos, impulsos pré-
conscientes e valores, o princípio weberiano de objetivação representa o
"verdadeiro" como configuração de significações conscientes e de fatos
verificáveis. Mais do que isso, a própria conquista de uma tal significação
"científico-metodológica" para a verdade ' pensada como enunciados submetidos a
critérios lógicos, causais e empíricos ' é um fato histórico, correspondente ao
processo ocidental de racionalização e autonomização do intelecto, jamais uma
faculdade transcendental (Kant) ou a uma crença enganosa (Nietzsche).
A lógica ' pensada sob o signo da coerência e do universalismo argumentativo '
tem seus registros históricos e corresponde a uma efetividade irredutível a
fatores ilógicos. Não há a "origem da lógica" como acomodação tardia da luta de
impulsos diferenciados, como quis Nietzsche; o que há é a formação histórica
das categorias lógicas do pensamento científico, que carregam a sua autonomia,
posto basearem-se em interesses conscientes específicos. A modernidade é o
contexto histórico que sustenta esse parecer weberiano na medida em que é nela
que se desenvolve a plena autonomia de uma lógica investigativa da realidade. O
registro decisivo da lógica não é o ilógico, mas o histórico e o científico.
Sendo a ciência moderna a realização mais significativa do pensamento lógico, a
sua afirmação pode até ser pensada como uma coisa "tardia", mas não no sentido
de ser um resultado secundário do movimento de impulsos diferenciados em luta,
e sim no sentido de ser o resultado de um processo recente de objetivação do
pensamento sob o signo da coerência. No parecer weberiano, as operações lógicas
não são de modo algum enganosas e secundárias; elas são, ao contrário, as
condições primárias de possibilidade da produção de verdades válidas. No caso
do esquema causa-efeito aplicado ao mundo empírico, embora formal, ele não é
uma ficção convencional, mas uma conquista intelectual com potencial de
explicação dos cursos dos eventos. Ao contrário de Nietzsche, Weber aposta no
método explicativo, mesmo que, no âmbito das ciências da cultura, o juízo seja
sempre precedido do momento interpretativo. De modo geral, a intelectualização
lógica reflete, em si, um processo de racionalização e um princípio de domínio.
Definitivamente, o que Weber quis dizer sobre a relação entre conhecimento e
realidade no plano das ciências da cultura foi o seguinte: o fato de os homens
se orientarem por valores e de essa orientação, em seu fundamento último, não
ser passível de uma compreensão racional demonstra, sem dúvida, a impropriedade
de se expressar em termos de uma "realidade em si" passível de ser conhecida.
Disso não se deduz, todavia, que as orientações valorativas não possam se
apresentar ou não existam como realidades concretas, mas apenas que o
conhecimento válido das "configurações concretas de relações significativas"
tem que ser, necessariamente, lógico-significativo. O que desencadeia a
pesquisa é sempre um ponto de vista valorativo especificante do "real", o qual
passa a obedecer um percurso lógico para sua validação objetiva. Mas o lógico,
como condição formal de objetivação e validação, não refuta a noção do concreto
ou do empiricamente dado. Há o válido e há o concreto.
Ao operar distinções entre o vivido e o efetivado, o intencionado e o
concretizado, o escolhido e o conhecido, Weber afasta-se ainda mais do
imaginário nietzschiano. É que Nietzsche recusara tais distinções. Por meio da
noção de acontecimento do diferente, ele rejeita a idéia do coerentemente
efetivado ' como ilusão de que há racionalidades autônomas ', tanto quanto por
meio da idéia de incorporação afirma que tudo que é da ordem do efetivo também
é da ordem do vivido inconsciente. A separação weberiana entre um plano "supra-
empírico" [Überempirische] e um plano "empírico", entre o plano dos
posicionamentos últimos de valor e o plano dos procedimentos concretos (Weber,
1991, p. 100), seria falaciosa porque supõe uma dualização da vida e abre
espaço para a produção de um conhecimento supostamente purificado de
ingerências irracionais, supostamente extrafisiológico, quando tudo na vida é
figuração de jogos de forças e todo conhecimento é irracional e afetivamente
motivado e sustentado.
Nietzsche e Weber, por certo, negam o real como dimensão absoluta. O que existe
é inexoravelmente múltiplo, fluido e incompatível em seus sentidos mais
profundos. Há, contudo, uma importante diferença. Weber concebeu uma dimensão
empírica, e, embora ela só se ascenda à consciência de maneira ordenada e
validada pela lógica formal, isso não lhe subtrai a condição de facticidade e
não faz da coerência uma mera ilustração lógica. Nietzsche, por seu turno,
desdenhava dos que acreditavam em fatos, em sentidos coerentes, em causa e
efeito, em evidência empíricas, vendo tudo isso senão como efeito de
interpretação, como demasiadamente humano e historicizado. Disso, temos a
distinção entre uma concepção de conhecimento formal e aproximativo em relação
ao concreto e uma concepção de conhecimento ativo e criador de "realidades".
O fundamental na epistemologia weberiana é o pressuposto de que a ciência é a
validação lógica do concreto. A ciência não funda e não reproduz o concreto e
nem é o concreto mera representação científica, com o que a pesquisa científica
seria mera abstração; não por acaso, metodologicamente falando, o percurso
lógico deságua na prova empírica. O que a ciência faz é dar validade ao
concreto, e isso não é pouco, pois simplesmente ela o faz reconhecível. A
verdade lógica é válida como modo de representação que ordena e confirma a
ordem do possível.
Aqui, toca-se diretamente no problema do estatuto da ciência em Weber. Para
ele, a ciência representa, para as consciências, a máxima evidência do concreto
e do efetivado no plano da cultura. Demos a palavra a Weber:
Com os meios da nossa ciência, nada poderemos oferecer àquele que
considere que essa verdade não tem valor, dado que a crença no valor
da verdade científica é produto de determinadas culturas e, não, um
dado da natureza. Mas o certo é que buscará em vão outra verdade que
substitua a ciência naquilo que somente ela pode fornecer, isto é,
conceitos e juízos que não constituem a realidade empírica nem podem
reproduzi-la, mas que permitem ordená-la pelo pensamento de modo
válido (Weber, 1991, p. 100, grifo do autor).
Como acontecimento cultural, a ciência tem o monopólio do proferimento da
verdade válida.
Quanto à visão de Nietzsche da ciência ou, melhor ainda, da cientificidade
moderna, o que falta à mesma ' e a todo ascetismo ocidental ' seria a "grande
fé", o "grande amor', uma "meta além de si". A "meta" ascética é a crença no
uno (o bem, a verdade, a justiça) e a conseqüente recusa do outro (o mal, a
loucura, a injustiça), por isso ela se encontra no espaço de significação do
"ser" e do "dever". Já a "meta do além de si" é radicalmente antiidealista e
antimoral, como um estar "além do bem e do mal", além do "outro", interno e
externo, como símbolo afirmativo do "devir", contra o "ser" e o "dever", e
símbolo da leveza da criação contra o peso da obrigação. No caso da ciência, a
obrigação da busca do "verdadeiro". A ciência como Quimera de "leão" e
"camelo": diz não ao dogmatismo mas continua a carregar o fardo do ideal '
busca da "verdade" e fidelidade à "realidade". A ciência se fecha numa meta, e
não mostra a inocência da "criança" que diz sim ao devir.2
Na crítica à ciência, Nietzsche não esteve preocupado tanto em discutir o
estatuto da verdade quanto em mostrar que a disposição e o sacrifício afetivo
na busca da "verdade" ' chamada de "objetiva", "lógica", "válida" ' é um dos
mais expressivos sintomas do niilismo, na sua variante passiva, o que se nota
na prescrição à imparcialidade e à impessoalidade. Assim, onde não é
simplesmente "a mais nova manifestação do ideal ascético",
[...] a ciência é hoje um esconderijo para toda espécie de desânimo,
descrença, remorso, despectio sui [desprezo de si], má consciência '
ela é a inquietude da ausência de ideal, o sofrimento pela falta do
grande amor, a insatisfação por uma frugalidade involuntária... A
ciência como meio de auto-anestesia: vocês conhecem isto? (Nietzsche,
1998, III, §23, pp. 135-137).
Nietzsche se recusa, então, a direcionar a discussão do problema da verdade
para o fórum da ciência e seus instrumentos de validação e objetivação, ou
seja, para o fórum do entendimento racional. Isso significaria valorar o mais
refinado disfarce ascético do intelectualismo, com o qual o homem "objetivo"
acredita estar além do "bem e do mal". Acontece que ele não está, porque,
embora a verdade não seja mais vista como absoluta e caminho para a paz ou para
a felicidade, a disposição para a mesma é um sintoma de persistência das forças
decadentes que vêm trançando a intricada teia das significações modernas. Como
"valor", a verdade prescreve uma moralidade; como "sintomatologia", a valoração
da verdade prescreve uma moral decadente, edificada sobre condições doentias,
que caracteriza a modernidade e que Nietzsche quis superar.
Em que consiste o diagnóstico da decadência e em que sentido o valor da verdade
é um problema moral? Nietzsche deu uma resposta decisiva, quando selou a
decadência como impulso de se negar a vida e querer outro mundo, que se
manifesta na prescrição de "não querer enganar os outros nem a si mesmo"
(Nietzsche, 2001, §344, pp. 234-236). A ciência avançou sobre a tradição e as
certezas absolutas, o que a fez abandonar a esperança de "não querer deixar-se
enganar", pois já aprendeu que as convicções podem ser muito mais perigosas e
prejudiciais do que a dúvida e a desconfiança. Apesar dessa consciência
antidogmática, Nietzsche se surpreende de os homens continuarem a "querer a
verdade", quando a vida é feita de erros, desvios, desacertos, descontinuidades
' algo que a própria recusa das convicções já demonstrava. Ele reagirá
percebendo que a ciência só realizou uma crítica parcial da moral, só superou o
niilismo mais tosco e ingênuo, mas não o niilismo tardio. Ela é um sintoma da
decadência moral porque continua querendo o que não existe na vida, na
natureza, na história; por isso, então, o diagnóstico "irônico": "'vontade de
verdade' bem poderia ser uma oculta vontade de morte". E, com isso, Nietzsche
define a presença na ciência de um niilismo decadente ao lançá-la de vez em
direção à velha "crença metafísica" que instaurou Deus como sendo "a verdade" e
abriu caminho para a divinização do verdadeiro. As "crenças metafísicas"
tomadas como o supra-sumo da decadência moral, e os valores que sobre elas
repousam, como sintomatologias doentias.
No prefácio para O nascimento da tragédia, escrito dezesseis anos depois do
lançamento do livro, Nietzsche apresenta o "problema da ciência" como aquilo
que ele aprendeu de novo. Ele não aprendeu apenas que o "problema da ciência
não poderia ser reconhecido no terreno da ciência" ' com o que concordará Weber
', mas, também, que era preciso "ver a ciência da ótica do artista e a arte, da
ótica da vida". A arte rasga a teia conceitual, distrai a consciência racional
e destrata dos seus principais disfarces. A cultura cientificista tem uma visão
instrumental dos fenômenos e dos conhecimentos; os fenômenos servem a tal causa
e o conhecimentos servem para tal causa. Uma visão artística dissolve a
instrumentalidade e contempla os fenômenos e a obra como criação arbitrária e
inútil. Para Nietzsche, a ciência protege-se dos riscos, por isso quer
conhecer; a arte arrisca-se, por isso quer enganar. Weber não compactuou dessa
conclusão de submeter o problema da ciência à apreciação artística ou qualquer
uma outra que lhe seja exterior, recusando-se, mesmo, a dar uma resposta ao
problema da ciência, aceitando-o como uma irracionalidade última, uma
pressuposição, uma fé. Para ele, as esferas definitivamente já se extraviaram
umas das outras, já firmaram os seus domínios e demarcaram sua legalidade.
Para Nietzsche, porém, um fundamento, uma interrogação, uma pergunta, um
problema, uma razão: tudo isso deve também ser avaliado, e é mais profundo um
conhecimento que o faça. Uma interrogação já pode ser sintoma de uma ilusão. Ao
mesmo tempo, e contra o racionalismo, os maiores conhecimentos podem se
expressos como indagações e enigmas, como o que não é compreendido ' mas
perturba... Quanto a Weber, ele não quis avaliar os problemas e os fundamentos,
mas tão-somente lhes dar consistência lógica para lhes entender o sentido e as
motivações concretas. Vê-se bem essa diferença no caso da ciência. Weber
concorda que a ciência trabalhe a partir de pressupostos e guarde, nisso, sua
fundamentação irracional, mas ele toma isso como dado e não avalia a sua
significação última; tudo porque, do ponto de vista científico ' ou seja,
lógico-empírico ' não cabe discussões sobre pressupostos; só cabem discussões e
avaliações (lógicas) de procedimentos e conexões coerentes de sentido. Weber
não só não submete o científico a uma razão alheia, como procede a partir das
suas premissas internas. Com Nietzsche, ao contrário, são principalmente os
pressupostos que devem ser avaliados ou questionados de modo valorativo, pois,
embora de raízes irracionais, eles se inscrevem na semiótica das forças. No
caso da ciência, por exemplo, ele avaliará o pressuposto do valor da verdade
como signo da tradição metafísica ocidental, de origem platônica e cristã.
Há mesmo um elo definitivo entre Weber e Nietzsche, que é o fato de ambos
entenderem a dimensão do pensamento e da vida como um todo em termos, em última
instância, de um compromisso de valor ou de uma "visão de mundo"
(Weltanschauung). Mas, é exatamente nisso que está a razão principal do
estranhamento, pois, na medida em que cada um firma um compromisso valorativo
ou assume uma Weltanschauung absolutamente inconciliável ' por vezes,
exatamente oposta ' com a do outro, a compatibilidade se desfaz em si mesma
como barreira intransponível entre as causas. As interpretações díspares da
ciência ' num caso, como "negação do mundo", no outro, como "afirmação do
mundo", é uma ilustração precisa disso.
Segunda tese: sobre poderes e dominações
Uma afinidade pelo reconhecimento da cultura e da vida como campos de domínio e
de luta é, sem dúvida, um ponto forte na relação entre Weber e Nietzsche. Ela
pode ser expressa em dois sentidos: um primeiro ' que se pode dizer analítico '
diz respeito ao apontamento das formas e dos sentidos dos domínios nos estudos
históricos, sociais ou filosóficos, com especial atenção aos poderes dominantes
e modos de apropriação típicos da modernidade, fixando-se características e
limites. Um segundo sentido ' que se pode chamar ético ' diz respeito ao
posicionamento que cada autor julga o mais digno ante os poderes dominantes na
contemporaneidade.
No tratamento desses dois sentidos, contudo, os autores se distanciam nas
considerações dos poderes, tanto ao definirem a natureza última dos domínios '
se de tipo vital e efetivo, como pensou Nietzsche, ou se de tipo histórico e
efetivado, como analisou Weber ', como também ao definirem o posicionamento
ante os poderes hegemônicos ' se se trata da ousadia na constituição de novos
domínios da subjetividade e de novas formações culturais, como quis Nietzsche,
ou se se trata da inserção consciente e corajosa num determinado campo de
domínio, com o reconhecimento das suas exigências e conseqüências, como pensou
Weber.
Considerem-se as diferenças nos tratamentos conferidos ao sentido da
apropriação, aplicável a ambos os autores, pois os domínios ' quer vitais, quer
histórico-culturais ' envolvem sempre modos de apropriação ou de disposição
sobre bens. Em Nietzsche, temos o princípio geral das forças que se apropriam
de "territórios" e "elementos" de outras forças como modo de intensificação de
potências, o que vale para todos os momentos ou as figurações de forças; mais
precisamente, a efetivação de potências é sempre um modo de apropriação, de
ocupação de espaços e criação de novas significações, porque destruir é
condição imprescindível às estratégias de apropriação. Para Nietzsche, entre o
homem e a vida, a consciência e a matéria, os sentimentos e as idéias, o social
e o individual, o que há são diferenças de intensidade e de ritmo, de sentido e
de complexidade nos processos de assimilação. Enfim, viver é, essencialmente,
apropriar-se; e a noção de incorporação expressa diretamente um sentido de
apropriação.
No caso de Weber, temos o profeta que se apropria dos afetos, o sacerdote que
se apropria dos instrumentos da graça, o Estado que se apropria da violência, a
burocracia que se apropria das normas de administração; a instituição que se
apropria dos instrumentos de execução das tarefas etc. Na verdade, os sujeitos
dessas frases são, eles próprios, processos construídos como modos de
apropriação. As relações sociais que interessaram a Weber eram as que se
apresentavam explicitamente como modos de dominação, ou seja, em que as
regularidades das condutas eram dependentes do funcionamento de uma fonte
reconhecida de autoridade, em que há, pois, apropriação "legítima". Há
mecanismos de apropriação no domínio de toda autoridade. Ao nuclear as relações
sociais sob a temática da dominação, Weber aproxima-se sensivelmente do
imaginário nietzschiano, e talvez tenha, em certo sentido, realizado o anseio
do filósofo por uma sociologia das estruturas de dominação contra o positivismo
francês e o utilitarismo inglês do seu tempo.
Todavia, a despeito desse forte ponto de contato, Weber manteve-se
deliberadamente distante do sentido nietzschiano de incorporação, porque, para
ele, o mesmo não se distinguia da "possessão" e da velha ilusão da plenitude ou
da experiência do mundo como vivência íntima, ou, ainda, da vida como "grande
obra de arte". Mas também porque, pensar a apropriação como incorporação
implicava em dar atenção maior aos mecanismo psíquicos de assimilação e
subjetivação, quando Weber dedicou-se aos mecanismo sociais de extensão e
objetivação dos sentidos humanos. Por isso, a noção de apropriação melhor se
define como "poderes de disposição" (sobre bens, corpos, valores etc.), e não
como "incorporação".
Um aspecto muito relevante das diferenças entre os autores sobre o tema é a
singularidade radical dos mecanismos de apropriação e, conseqüentemente, do
tipo de autoridade, que Weber verificou no contexto da modernidade. Diz
respeito ao grau de impessoalidade na apropriação de importantes meios de
dominação, que deixam de pertencer diretamente à pessoa da autoridade e passam
a designar um "senhor" impessoal. E o fenômeno da institucionalização de meios
impessoais de dominação social é mesmo a marca singularizante da modernidade.
Nela, a autoridade político-administrativa não reporta mais aos atributos e aos
privilégios pessoais; as pessoas que ocupam as posições de poder legítimo estão
submetidas aos mecanismos impessoais de domínio. Além do que, nas instituições
formais, produz-se uma expropriação privada via institucionalização dos meios.
A ciência, o exército, as fábricas, o Estado: em todas essas áreas verifica-se
a concentração institucional dos recursos operacionais ' tecnologias,
armamentos, maquinário, repartições. É claro que continua a haver apropriações
pessoais relevantes, seja em microrelações, seja nas grandes relações sociais
no que elas ainda comportam de traços tradicionais ou carismáticos de
autoridade, seja na economia aquisitiva privada. Não se trata, pois, da
ausência absoluta de exercícios pessoais de poder, mas da sua limitação e até
inexistência em situações de domínio formalmente legítimas e onde há a
institucionalização dos recursos. De todo modo, como pensador que reconheceu a
natureza objetiva e impessoal dos processos de apropriação que constituem a
faceta mais institucional da modernidade, Weber foi muito mais íntimo de Marx
do que de Nietzsche.
A idéia de uma sociabilidade fortemente embasada em referências impessoais nos
leva à noção de "racionalismo de domínio do mundo", a qual constitui a
interpretação weberiana geral da cultura moderna como um modo de vida
fortemente referido às representações formais e ao cálculo instrumental. Só é
possível falar em "racionalismo" em meio a uma variedade de processos
racionalizadores e por conta de similitudes entre esses processos. Nesse
sentido, a combinação de uma racionalidade formal com uma racionalidade
instrumental é a base da convergência entre cursos de ações tão singulares e
irredutíveis uns aos outros. As racionalizações são muito distintas enquanto
refletem a dimensão de um posicionamento, enquanto se definem conforme suas
significações últimas, base da sua legalidade própria [Eigengesetzlichkeit],
mas são muito parecidas por comportarem a conjunção de um formalismo e um
instrumentalismo. Isso só se aplica àquelas esferas que se situam no plano
ordinário da cultura, onde prevalecem interesses conscientes e onde há uma
intensa institucionalização das relações, como são os casos da economia
capitalista, do Estado burocratizado, do direito formal e das ciências
empíricas; é por esse plano, e somente por ele, que se pode aplicar à cultura
moderna o epíteto "racionalismo de domínio do mundo".
Já na visão de Nietzsche, o que se reputa objetividade, impessoalidade,
universalidade, como supostos atributos "exteriores" das esferas mais
racionalizadas, é, na verdade, apenas uma disposição niilista dos espíritos
fracos ou "escravos". Mais do que isso, a dedicação ao Estado, à economia e ao
conhecimento técnico é uma grande ilusão e um "ridículo delírio" (Nietzsche,
1983, p. 177), como abandono de si e uma perigosa inclinação ao "nada". O
filósofo aristocrático não lamenta que os "escravos" assim se dediquem aos
"alvos inferiores" que consomem e despersonalizam o espírito, como o são as
instituições que apenas servem à utilidade e à conservação, incluindo-se os
funcionários da ciência. Ele acreditava, todavia, que os espíritos elevados
poderiam se esquivar dessa dedicação e potencializarem suas forças em direção a
alvos "superiores". Para isso, seria mesmo útil a escravidão. Os grandes homens
têm que escapar do filisteísmo, do publicismo, do utilitarismo e do
profissionalismo modernos. E Nietzsche afirma, não sem certa ironia: "Nosso
século, que tanto fala de economia, é um esbanjador: esbanja o mais precioso, o
espírito" (Idem, ibidem). O "espírito livre" deveria seguir na superação de si,
livrando-se das disposições gregárias, não tanto para negar o "escravo" e o
"pequeno", mas para afirmar o senhorio de si em sua maioridade psicológica,
solitária, supragregária. Ao se referir ao caráter ascético e decadente dos
valores modernos, o filósofo-médico sentenciou: "quem comigo neste ponto está
em desacordo, eu o considero infectado... Mas o mundo inteiro está comigo em
desacordo" (Nietzsche, 1995, p. 80). Então, no bojo de sua purificação pessoal,
desejou, para a cultura, um novo futuro, uma nova elite, um posicionamento
social para além da moralidade gregária.
Apesar de não ser um sociólogo, como Weber, ou até mesmo conferir um papel
secundário às demandas coletivas, certamente a vida social figura como muito
importante para compreensão do mundo em Nietzsche, como a mais decisiva
perspectiva de acomodação do homem como espécie gregária. A vida gregária é
apenas uma perspectiva entre outras, ela não define a natureza do homem mas,
sem dúvida, representa a condição da maioria. Viver em sociedade é,
fundamentalmente, estar sob a coação de sentidos comuns, é viver conforme os
outros, as regras e as normas comuns, é, afinal, não ser soberano. O social é
uma acomodação de forças à qual tendem os tipos escravos, aqueles que dependem
do "outro" como referente de reconhecimento de si (e o que seria a ação social
weberiana, como orientação pela conduta imaginada ou real do(s) "outro(s)",
senão um comportamento reativo nos termos do julgamento nietzschiano?). Os
nobres podem constituir autoridades e relação sociais, mas uma alma nobre é,
essencialmente, distinta e especial, inclusive perante os seus congêneres.
A relação dos "senhores" com a sociabilidade caracteriza-se pela submissão e
instrumentalização das relações sociais e dos escravos em nome de fins
culturais mais elevados, o que implica em não se misturar nem ter compaixão
pelos "pobres coitados" dos dominados. Sobre as "ovelhas", as "aves de rapina"
dizem a si mesmas: "nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário,
nós as amamos: nada mais delicioso que uma tenra ovelhinha". Moral da história:
toda força tem que se exercer como tal (Nietzsche, 1998, I, §13, pp. 35-37).
Seu instinto é o da distinção, e o social que se caracteriza pela perspectiva
nobre é uma figuração mais primária da natureza egoísta dos impulsos vitais,
como ilustrado pelo período em que a justiça senhorial se baseou na crueldade e
na diferenciação entre "bom" e "ruim", ao invés de "bom" e "mau". Já o social
da perspectiva escrava, como instinto gregário e moralizante, é feito de
resíduos de forças ' tal como um conceito é o resíduo de uma metáfora intuitiva
', correspondendo a um estágio de assimilação tardio e secundário; fruto de
processos de obstrução fisiológica e de desvio das potências cruéis para dentro
' o que levou à formação da "má consciência" (Idem, II dissertação). São os
espíritos mais elevados quem, de fato, pode sofrer com a doença em que se
tornou o homem, a norma, a sociedade etc., pois têm saúde para reagir com
repugnância, e tal repulsa já é sinal de uma relativa afirmação de vida, de um
pathos de distância. Os escravos referenciam-se no comum e na norma, os nobres,
na distinção e na soberania.
Feitas essas considerações, elas nos sugerem que a tematização nietzschiana da
idéia de dominação difere da perspectiva weberiana por duas razões basicamente:
o filósofo opera com a noção de incorporação e, portanto, pensa a constituição
dos tipos espirituais de domínio como parâmetro para avaliação dos tipos
societários; e a interpretação do sentido da dominação tem um caráter
valorativo, ou seja, toma um tipo como parâmetro superior. Com isso, tem-se em
Nietzsche a primazia do traço psicológico sobre os traços sociológico e mesmo
histórico, e a primazia da avaliação conforme valores sobre a avaliação lógica.
Nietzsche quis dotar sua filosofia de uma sapiência "médica", analisando as
perspectivas humanas como sintomatologias de disposições fisiológicas, tanto
quanto quis fazer da fisiologia uma psicologia, considerando o corpóreo como
transfiguração anímica de afetos. Psicologia e fisiologia se cruzam porque o
que está em jogo é uma leitura da espiritualização como disposições afetivas
transfiguradas. A psicologia diagnostica. A fronteira entre os saberes dilui-se
no intercâmbio dos signos e dos significados. Ou: o pensamento nietzschiano
exercita-se como licença poética de se embaralhar signos e significados.3 Toda
a perspectiva filosófica de Nietzsche se aplica, de modo especial, ao estudo
dos dois tipos psicológicos de homens: o escravo e o senhor. O escravo é o tipo
fisiologicamente obstruído, para quem as "medicações" se produzem no interior
da própria lógica da fraqueza, que não atingem as causas, mas apenas os
sintomas da doença, como são os casos da "curas" sacerdotal e socrática (Idem,
III, §17, pp. 119-123). O senhor é um tipo fisiologicamente aberto, o que o faz
corajoso e capaz de incorporações saudáveis; nele, a doença é estranha,
casualidade, nunca um pathos, e advém do contato descuidado com os inferiores.
Quando molestado pelas perspectivas fracas, apresenta saúde para reagir.
A doença de um e a saúde de outro podem, então, ser diagnosticadas pelo estudo
dos valores ou, o que dá no mesmo, na semiótica dos afetos. De um lado, há o
escravo, que tem no signo do "mau" a sua criação primária, mais original e
autêntica, o qual diz respeito ao "outro" mais forte e dominador. Nisso há
sinal de ressentimento, reatividade, obstrução. De outro, há o senhor, que tem
no signo do "ruim" ' que se refere ao "outro" ' uma criação secundária e
posterior, evidenciando-se um caráter alegre, ativo e desobstruído, que gera
uma moralidade baseada na veneração de si como tipo heróico e "bom" (Idem, I
dissertação). Na visão nietzschiana, a disposição para a vida, seja boa ou má,
é, antes de tudo, corporal, e toda moral é uma interpretação que reporta a
disposições fisiológicas. Fisiologia entendida, é bom frisar, não como redução
ao corpo físico-químico, mas como corporeidade que só pode ser apreendida como
espiritualização, ou mais precisamente, como sintomatologias anímicas. O que
distingue as estirpes e as personalidades nobres é precisamente uma digestão
mais profunda a ponto de se saber cuidar da saúde. Porém, para eles, que sofrem
de multidão e de mansidão, há o perigo do nojo do homem. "A visão do homem
agora cansa ' o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do
homem...", afirma Nietzsche. Como lógica dos cuidados que tomou para que o
cansaço em relação ao homem não contaminasse o espírito ao ponto de se fazer
cansaço com a própria vida, foi que Nietzsche aspirou à "superação do homem" '
na verdade, do homem moderno, doente, domesticado e moralizado ', a fim de
afirmar-se um novo tipo de homem, que o filósofo chamou de Übermensch.4 E,
diante de uma modernidade em que os espíritos aristocráticos não tinham mais
lugar, Nietzsche desejou que o sentido do Übermenschfosse incorporado pelos
filósofos e espírito mais elevados, capazes que são de construir domínios
nobres, ao que o autor denominou a "grande política", ou os "legisladores do
futuro", ou a "autêntica cultura".
A visão das relações cotidianas e institucionalizadas, do Estado e da economia
como "alvos inferiores e não totalmente indispensáveis", e a avaliação da
dedicação dos homens a tais relações como um "grande e ridículo delírio",
refletem uma concepção que insere as questões últimas do espírito e da cultura
acima das questões da civilização. Daí a certeza de Nietzsche de que os
espíritos singulares e soberanos poderiam se cultivar independentemente da
normalidade e da legitimidade social, assim como a cultura mais elevada poderia
sobreviver ao Estado, ao capitalismo e a todas as perspectivas demasiadamente
modernas e desencantadas. Para ele, se quisermos ser precisos com o sentido
mais autêntico da idéia de cultura, veremos que o moderno não a comporta, pois
é mais um amálgama anárquico de coisas, pessoas e ações sem singularidade e
profundidade, articulados de modo fundamentalmente instrumental, sem a
presença, portanto, das codificações que distinguem uma comunidade e, no
interior desta, uma elite temida e venerada em seus atos.
Pelo que foi exposto do pensamento nietzschiano, vê-se claramente onde não é
possível acordo com Weber, pois será precisamente nas avaliações e nas
expectativas do filósofo que este último verá ilusão e delírio. Porque, para o
sociólogo historiador, o espírito está imbricado nas relações e nas formações
socioculturais, e a resposta pessoal ao problema dos sentidos só pode se dar na
consideração de tais relações e formações, como exercício de escolhas e
renúncias conscientes. O que o filósofo considerou "alvos inferiores e não
totalmente indispensáveis" tornava-se, em Weber, fins culturais cultivados como
objetividades históricas, que, uma vez estruturados sobre um arsenal de meios
necessários à orientação das ações, ganham autonomia e significação universal.
Para Weber, não há mais lugar para "a cultura" superior ou "a personalidade"
plena; ambas foram fragmentadas, e a integridade maior do espírito reflexivo
consistia, a partir de então, em encarar de frente o destino histórico no qual
se encontra submerso.
Nietzsche continuou a crer no espírito "criador de valores", para além dos
desígnios da história e do projeto civilizatório "humanista"; Weber declarou a
inevitabilidade da "servidão" aos valores historicamente situados, ao mesmo
tempo em que viu a criação de novos valores especificada como tarefa de uma
esfera situada no interior do cosmo cultural cultivado ' a política. Ambos os
autores descobriram a solidão na subjetivação do homem sem-Deus, mas um
procurou vivê-la como extemporaneidade, e o outro, como contemporaneidade.
Vou aqui recorrer a uma análise de Norbert Elias (1997) pelo quanto nos auxilia
no entendimento do estranhamento "ético" entre nossos dois autores. Ainda no
século XIX, segundo Elias, os alemães se distinguiam dos franceses e dos
ingleses por manterem-se na tradição da Kultur, que designava tanto a
supremacia das questões mais elevadas do espírito, traçadas nos planos
artístico, intelectual, moral e religioso, como os problemas práticos do homem
de ação, traçados nos planos econômico e político, evidenciando-se a recusa dos
setores médios mais cultos de imiscuírem-se nos assuntos práticos do governo e
nos negócios (Idem). Em contrapartida, o que se verificava na França e na
Inglaterra era uma forte interação entre burguesia e nobreza, particularmente
no sentido da participação político-administrativa da primeira. Assim, ao invés
da noção de Kultur, prevalecia a noção de Civilization, quando "não se opõe ao
homem civilizado um modelo humano radicalmente diferente, como o faz a
Intelligentsia burguesa alemã com o termo gebildeter Mensch [homem instruído] e
com a idéia de 'personalidade'" (Idem, p. 55).
Essa distinção apresentada por Elias muito esclarece sobre os diferentes
posicionamentos de Nietzsche e de Weber. Enquanto este aceitou os desígnios da
civilização e sua pletora de interesses racionais, com o inevitável efeito de
fragmentação e limitação das personalidades, tendo também participado de
funções políticas junto ao Império, o filósofo manteve-se atrelado à tradição
mais aristocrática de uma intelectualidade que via na vida ordinária e na
prática dos interesses mais imediatos modos de contaminação da alma, daí a
manutenção de uma concepção de cultura e de destino espiritual acima dos
poderes civilizatórios, bem como a esperança de cultivo de uma personalidade
soberana e distinta. Weber, como cientista, aspirou a um conhecimento que
auxiliasse nas tomadas de decisão, e, como político, discutiu os problemas do
seu tempo e fez proposições para a correta direção política, em especial
perante o futuro da nação alemã; Nietzsche, na contramão disso, aspirou a um
conhecimento valorativo e que expressasse tomadas de decisão, ao mesmo tempo em
que se declarou antipolítico e antinacionalista.
É verdade que Weber, na medida em que também nutria um desejo de distinção da
espiritualidade, concordava, com Nietzsche, que as rotinas e os vínculos
institucionais ferem a soberania do espírito e que as almas mais excelsas devem
aprofundar suas questões para além das superficialidades e dos prazeres
cotidianos. A diferença na avaliação é que, para o sociólogo o espírito estava
definitivamente transformado, como impossibilidade de conquistar a plenitude e
a soberania da personalidade; ao mesmo tempo, a dedicação corajosa do homem a
um "deus" ou "demônio", mesmo sabidamente histórico e impessoal, é a maneira
possível de se engrandecer e singularizar a relação com os fins socialmente
cultivados. Weber enfrenta o "consumo do espírito", fazendo-o reflexivo sobre
as condições que envolvem a sua presença na cultura, em busca de um
posicionamento responsável e consciente. Se seguirmos a análise de Ringer,
veremos que Weber fazia parte dos "mandarins modernizantes", os quais
[...] propunham-se encarar os fatos, aceitar que algumas facetas da
vida moderna são inevitáveis ou mesmo desejáveis, procurando ao mesmo
tempo abrandar seus aspectos mais acidentais e menos toleráveis. Essa
atitude levou-os a controlar sua reação emocional no macro ambiente,
a manter um ideal heróico de clareza racional perante a tragédia
(2000, p. 159).
Nietzsche, ao contrário, opõe-se francamente aos tempos modernos, distanciando-
se das perspectivas impessoais e das objetivações institucionais e lançando-se
na busca de metas rigorosamente pessoais. Ele estaria mais próximo daqueles que
Ringer nomeia "mandarins conservadores". Se, diante da "maquinaria social" ou
das "técnicas de vida", vimos que o sociólogo defende a dignidade da inserção
crítica na história moderna como modo de o homem "consciente" encontrar o
sentido do seu ser e do seu fazer, quanto ao filósofo, ele defende a dignidade
da solidão e do distanciamento da história moderna como modo de o espírito
"ativo" superar tudo que lhe consome a singularidade. A "maquinaria social" e a
"benção do trabalho" têm o mesmo sentido do apaziguamento místico da alma ' a
saber, livrar os fracos do infortúnio e da tristeza de se sentir fraco,
obstruído, dependente ', mas apenas o fazem com sinais trocados. E, de modo
mais amplo, a principal ameaça do processo civilizatório é mesmo os seus
efeitos devastadores sobre os comandos mais pessoais. Daí, o desafio:
Serão vocês cúmplices da atual loucura das nações, que querem
sobretudo produzir o máximo possível e tornar-se o mais ricas
possível? Deveriam, isso sim, apresentar-lhe a contrapartida: as
enormes somas de valor interior que são lançadas fora por um objetivo
assim exterior! (Nietzsche, 2004, §206, pp. 151-152, grifo do autor).
Os dois pensadores almejaram a sabedoria, o cultivo de si e a impressão, em
seus atos, de um traço de si; mas, se em Nietzsche trata-se de uma sabedoria
vital, do cultivo de uma natureza pulsional e de um traço de caráter, em Weber
trata-se de uma sabedoria reflexiva, do cultivo de uma vocação íntegra e de um
"traço profissional". Do ponto de vista nietzschiano, a perspectiva weberiana é
um inevitável e decadente "renunciar-se a si mesmo"; do ponto de vista
weberiano, a perspectiva nietzschiana é um inevitável e romântico "renunciar-se
às exigências do momento". E porque afirmam "mundos" diferentes é que são, cada
qual na visão radical do outro, proponentes de algum tipo de "fuga".
Terceira tese: sobre as tragédias
As respostas "éticas"5 díspares remetem a uma imagem comum da vida ou da
cultura trágicas. Todavia, as diferenças no tratamento do tema dos poderes e
das dominações, bem como as ênfases dadas ora à cultura (Weber) ora à vida
(Nietzsche) fazem com que a "imagem comum" se despedace em visões bem
distintas. Comecemos por Nietzsche que, afinal, foi o único dos dois pensadores
que efetivamente debruçou-se sobre o tema da tragédia.
Com Nietzsche, temos a tragédia essencial da vida pensada como encontro de
forças inauditas, em especial, embates entre forças ascendentes e forças
descendentes. Ele ilustrou as lutas por meio de diferentes figurações:
Zaratustra em relação aos "últimos homens", o Übermensch em relação às sombras
de Deus, o espírito livre em relação às "crenças metafísicas", Napoleão em
relação à Europa liberal e democrática, o dionisíaco em relação ao cristão, a
alegria em face do desencanto, o próprio Nietzsche diante dos alemães. Para o
filósofo-psicólogo, a tragédia da vida ou da cultura era, necessariamente, a
sua tragédia pessoal, não no sentido de a alma ser maior do que a vida ou a
cultura, mas da estilização de um caráter peculiar, superior e irredutível, via
experimentação dos terremotos impulsivos e das contradições culturais.
"O grande e o pequeno pertencem à vida": a aceitação dessa idéia fez estremecer
a alma de Zaratustra quando este convalescia da luta contra a "serpente" do
niilismo. Na verdade, eram duas as suas angústias: "Demasiado pequeno, o maior!
Esse era o meu fastio do homem! E o eterno retorno [ewige Wiederkunft] também
do menor! ' Esse era o meu fastio de toda a existência!" (Nietzsche, 1998a, p.
225). O maior é o sentido da ascendência e, o menor, o seu oposto. Vencer os
fastios: em relação à vida, amando-a, em relação ao homem cultivado, superando-
o. Nietzsche procurou desfazer uma angústia na outra, erigindo o gesto de
afirmação incondicional da vida [amor fati] como signo da "maioridade"
ascendente. (Se em Kant o termo maioridade é sinônimo de liberdade para o
exercício das potencialidades universais da razão, o seu emprego, em Nietzsche,
é sinônimo de saúde pulsional e senso de distinção.) Trágica é a condição do
homem perpassado "pelo maior e pelo menor", e mais trágica ainda é a grandeza
ética de se afirmar "o maior e o menor", eternamente.
A tragédia que Nietzsche reivindica para si é tipicamente dionisíaca, a qual
procurara entender já no seu livro de partida, O nascimento da tragédia, mas
que só veio de fato a assimilar alguns anos mais tarde, após muitas vivências e
incorporações. Na autocrítica que escreveu para o livro, ele reconheceu-se,
ali, como um jovem discípulo de Dionísio, cujo nome, porém, aparecia impresso
como um ponto de interrogação. Somente depois foi que ele veio a se reconhecer
um discípulo afirmativo, quando se sentiu suficientemente leve para a alegria e
o prazer que distinguem o dionisíaco. A "maioridade" do jovem discípulo teria
sido atingida por perigosas experiências de auto-superação e de destruição
criadora. De modo especial, viu-se liberto das corrupções modernas, que ainda
estavam no seu primeiro livro, especialmente a sedução pelo alemão, seja na
consolidação do Reich, seja na música wagneriana. Em O nascimento da tragédia,
a despeito das críticas à base da tradição moderna, ainda havia uma impotência
de se compreender decididamente o dionisíaco. A luta contra o niilismo
decadente, expresso na compaixão e no fastio contemporâneos, foi precisamente a
grande batalha do herói trágico nietzschiano, quando então ele pode declarar,
na voz de Zaratustra: "Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda-de-rosas: a
vós, meus irmãos, eu vos atiro esta coroa! O riso eu declarei santo: vós,
homens superiores, aprendei ' a rir!". Dionísio ' a divindade da embriaguez, da
loucura e do riso ' foi a derradeira assinatura exclamativa de Nietzsche.
O estilo final que ele imprimiu ao seu caráter remete à visão da vida como
vontade de potência e, como tal, sinônimo de vontade de mais vida. A vida como
atividade criadora, pura imanência de potências edificadoras de formas e
momentos, sempre essencialmente isso, quer no forte quer no fraco, quer na
saúde quer na doença, quer no clássico quer no moderno, quer no senhor quer no
escravo. Essa visão é decisiva para que Zaratustra possa superar o fastio;
sobre ela é que se alicerça o sentimento de afirmação do eterno retorno da
vida. A vida como uma plástica de potências criadoras constitui, para
Nietzsche, o seu desafio e a sua alegria mais profunda, a imagem última no seu
"vaso de Pandora", cujo mistério se revela no espírito como amor fati. É este o
sentimento que guiará ' qual o "manobreiro" weberiano ' os "trilhos" que levam
Zaratustra a superar o perigo do fastio pela vida. A vida não deve ser julgada,
muito menos lamentada e caluniada, porque ela é pura inocência, pura vontade,
pura potência. O que Nietzsche se permite, e até mesmo se obriga, é perguntar
pelas perspectivas humanas como sintomas, ou seja, se elas, como manifestação
de potências, evidenciam fraqueza ou pujança, decadência ou ascensão, obstrução
ou incorporação, doença ou saúde. Em tudo há potência, mas as potências têm
intensidades e sentidos diferenciados.
Mas como poderia, efetivamente, uma "vontade de mais vida" exprimir-se como
decadência ou vontade de nada e de morte? Por um lado, é preciso entender que o
sentido "para o nada" não está na vontade em si ' até porque esta não existe ',
mas na figuração das forças; neste caso, ele pode indicar um domínio de
potências enfraquecidas ou uma anarquia das mesmas. Em ambas as situações um só
signo: o da desvitalização e da decadência. Historicamente falando, isso pode
provir da mistura de raças ou classes muito heterogêneas (a Europa moderna), um
imigração inadequada de um agrupamento (os hindus na Índia), velhice e cansaço
de uma raça (pessimismo parisiense de 1850), um erro na dieta (alcoolismo na
Idade Média), um afluxo de doenças (os alemães após a Guerra dos Trinta Anos)
(Nietzsche, 1998, III, §17, pp. 119-123). Em todos esses exemplos, vigora a
carência ' nunca a ausência ' de potência. O filósofo perscruta os fenômenos e
as personalidades como sintomatologias de impulsos vitais, indicando-lhe o
sentido fundamental de doença ou de saúde. Por outro lado, é preciso entender
que o "sentido de morte" ou a condição doentia dos domínios de forças é
necessariamente um diagnóstico perspectivista, que provém de uma outra
referência espiritual de domínio de forças, mais saudável e abundante, capaz de
reagir aos sinais de fraqueza e doença. Talvez possa se concluir sobre a
diferença pontuando-se que, quanto ao sentido, os fortes são ativos e os
fracos, reativos; e, quanto à intensidade, a abundância é o atributo da força,
enquanto a falta, o atributo da fraqueza.
Com Weber, temos a tragédia moderna dos valores como politeísmo das divindades
impessoais, o que a faz tipicamente "socrática", pois referida aos homens e
suas cultivações conscientes. É o estranhamento entre os valores cultivados, a
distinção das conexões de sentidos organizadas como institucionalidades
socioculturais, a luta dos "deuses" culturais. O trágico está no hiato de
sentidos que se vê entre as grandes conexões significativas, o qual impõe à
alma o desafio da escolha. A consciência plena da tragédia da cultura diz
respeito à compreensão humana da inserção num universo conflituoso de
significações que são autônomas e inconciliáveis, fazendo da cultura um
universo "sem-sentido". Tal compreensão só se faz possível no âmbito de uma
modernidade prenhe de racionalizações, e encontra, na ciência, a sua melhor
representação, como a única esfera cultural capaz de, a partir do exame das
grandes significações, apontar para o abismo entre os valores e sobre eles
refletir com rigoroso distanciamento. A perspectiva científica ' de se olhar
diretamente para as questões últimas associadas às cultivações culturais e suas
conseqüências inevitáveis ' é o fruto mais moderno, e também o mais amargo, da
"árvore do conhecimento".
Comparativamente, vemos que a tragédia é igualmente pensada por Nietzsche e por
Weber a partir do entendimento da vida ou da cultura moderna como uma
multiplicidade de forças que não se entendem e não podem formar uma unidade em
seus sentidos últimos. Para Weber, trata-se da multiplicidade de domínios que
se autonomizaram, como campos de significações irredutíveis uns aos outros,
alguns com significado e validez universal (Weber, 1995, p. 315). Para
Nietzsche, trata-se da multiplicidade de forças hierarquizadas conforme
sentidos de comando; entre as forças não há entendimento nem anarquia, há
comandos. A hierarquização significa, fundamentalmente, a onipresença de jogos
de forças definidos pela lógica das intensidades. Quanto à multiplicidade
weberiana das "autonomias" que não se conciliam, Nietzsche também a percebera
na modernidade, mas a rejeitou como uma relação anárquica, uma paralisia das
vontades, um estado doentio; e, diferentemente de Weber, a fragmentação não
derivava de uma suposta autonomização das potências, mas da ausência de afetos
de comando.
Weber, por sua vez, não viu hierarquia nem anarquia: para ele, o que as
autonomizações evidenciavam era a ausência de uma coerência de sentidos, quer
moral quer lógica, entre as esferas culturais. As potências, como astros
autônomos, não orbitavam em torno de um "astro" Deus desencantado e esquecido,
mas, sim, em torno de um "buraco negro" desprovido de significação. O cientista
do desencantamento resignou-se com o entendimento de que há uma zona vazia de
valores, de poderes, de sentido ' e buscou retirar, dessa certeza, a sua
integridade, ou seja, "o sentido do seu ser e do seu fazer". Diferentemente,
Nietzsche entendeu o vazio e o deserto dos valores como uma interpretação
equivocada, produto de forças decadentes, que alimenta a disposição humana para
o impessoalidade e a passividade, enquanto as forças ascendentes afirmam
hierarquias e distinções, recriando continuamente sentidos e domínios,
precisamente porque são abundantes e não admitem o "vazio". E, deste embate dos
pensamentos, mais uma vez, o fulcro do estranhamento.
NOTAS
1 Conforme o relato de Eduard Baumgarten sobre uma declaração informal de Weber
a estudantes (1964, pp. 554-555).
2 Sobre o camelo, o leão e a criança ver Assim falou Zaratustra, "Das três
metamorfoses".
3 O experimento literário de Zaratustra talvez seja a realização máxima do
princípio de que o espírito filosófico só é efetivamente livre quando concede a
si mesmo a liberdade da criação lingüística.
4 Habitualmente, a expressão Übermensch tem sido vertida para o português como
"super-homem". Como esta tradução pode sugerir uma interpretação "humana,
demasiado humana" do sentido original do termo, prefiro a tradução como "além
do homem", que respeita mais diretamente o sentido fundamental de "superação".
Para justificativa dessa opção, reporto o leitor à nota de Rubens Rodrigues
Torres Filho, em Nietzsche (coleção Os Pensadores), pp. 228-229.
5 Em relação aos valores de Nietzsche, o termo pathos é mais conveniente de ser
empregado do que a noção de "ética". O próprio filósofo deu-nos a deixa para
essa opção quando esclareceu que a sua preferência pelos "hábitos breves" e
pelas vivências pulsionais, mais intensas e transitórias, indica um pathos, ao
invés de um ethos (FW, §317).