A terceira margem da história: estrutura e relato das sociedades indígenas
A história indígena no Brasil passou para o primeiro plano do interesse dos
antropólogos nos anos de 1980.1 O tema em si não era novo, mas costumava
aparecer nas monografias na forma de um capítulo específico, a saber, o contato
com a sociedade dos brancos que a rigor teria trazido a história para um lugar
onde ela não se encontrava previamente. A história seria uma somatória de
externalidades: frentes de expansão, fricções interétnicas, políticas indígenas
e indigenistas, ações da sociedade nacional e reações nativas. Nas monografias,
podia crescer até tomar conta da descrição e reduzir a prólogo a descrição da
vida "pré-contato" ' distribuição adequada quando se tratava de grupos
"aculturados" ou "integrados" '; ou assumir a forma de um epílogo ou de um
necrológio, quando pelo contrário os protagonistas eram donos de uma cultura
distintiva e ainda vigorosa, cujo crepúsculo mal se iniciava perante os olhos
melancólicos do etnógrafo.
Se o capítulo do contato, maior ou menor, prólogo ou epílogo, não perdeu sua
importância, o florescimento da história indígena extravasou decerto seus
limites, fazendo da história uma dimensão constante e interna das sociedades em
pauta. Essa redistribuição atendia a uma necessidade do movimento indígena que
na época desabrochava com força (Carneiro da Cunha, 1992). Povos que aspiravam
a um futuro deviam ter também um passado, e assumir como própria, e não mais
como resultado de uma intromissão, a capacidade de mudança. O movimento da
história indígena ' e falo em "movimento" porque em vários sentidos
ultrapassava os limites da academia, inserindo-se nas empresas do próprio
movimento indígena ' tomou vários caminhos, alternativos ou combinados. De um
lado, promoveu uma recuperação e uma avaliação mais otimista do acervo
documental produzido ao longo dos séculos pelos agentes da sociedade colonial
ou nacional, maior em quantidade e qualidade e muito menos perdido do que era
de praxe considerar. Com essa revisão o movimento afirmava, ao mesmo tempo, que
o papel dos indígenas na constituição da sociedade nacional era muito mais
constante e profundo do que os grandes relatos da "formação do Brasil" deixavam
entrever.
De outro, somando-se a uma tendência mundial nos estudos sobre sociedades sem
escrita ou sobre setores populares das sociedades letradas, o movimento adotou
uma atitude renovada em relação à tradição oral, aceitando seu valor de
documento, ou mesmo realçando seu significado como visão alternativa à história
oficial. Essa nova legitimidade do oral coadunava-se com uma indagação sobre a
percepção indígena da história, e, portanto, da abertura ao que poderia se
chamar de "historicidades outras", não necessariamente em acordo com os padrões
heurísticos ou cronológicos da historiografia acadêmica.
Em terceiro lugar, e confrontando uma dualidade central na antropologia, o
movimento que nos ocupa se detinha sobre as relações entre estrutura e
história, debelando as versões estáticas da primeira e as versões entrópicas ou
voluntaristas da segunda.
Cada uma dessas vertentes da historiografia dos povos indígenas teve os seus
inspiradores e seus autores emblemáticos, não necessariamente afinados entre
si, tributários e/ou renovadores de todos os paradigmas teóricos da
antropologia. Em comum, havia talvez uma valoração ética da história ou da
historicidade. Afirmar que os índios têm ' e sempre tiveram ', história,
equivalia a uma reatualização de reconhecimentos anteriores; o de que eles têm,
por exemplo, alma, ou racionalidade.
A afirmação da historicidade indígena assumia também a forma de uma revisão dos
pressupostos da antropologia, denunciando essa ficção dos povos sem história
cuja autoria era colocada na conta do evolucionismo, do funcionalismo, do
culturalismo ou do estruturalismo, dependendo da filiação e das desafeições do
crítico. É claro que essa ficção se apresentou de modos muito diferentes, que
foram desde a caracterização dos primitivos como um grau zero da humanidade (ou
de uma história que ainda não aconteceu), até a descrição de suas sociedades
como formações estáveis de fato ou por desígnio próprio, além da alegada
impossibilidade de auferir uma história (entendida de modo estreitamente
positivista) a partir dos dados disponíveis, ou ainda até o não reconhecimento
da continuidade entre formas vigorosamente distintivas e híbridas surgidas da
interação com o exterior. Os primitivos podiam ser ahistóricos por natureza, ou
por vocação, ou por definição, ou por ignorância invencível acerca do seu
passado. Por ser mais recente, ou mais sugestiva, ou mais explícita, a fórmula
levi-straussiana da oposição entre sociedades frias e quentes ' desdobrada em
outras: relógios e máquinas a vapor, por exemplo (cf. Charbonnier, 1989, p. 30;
Lévi-Strauss, 1987) ' foi tomada em muitos casos como antagonista preferente
dos arautos da historicidade indígena, uma opção excessiva na medida em que se
fazia dessa antinomia um resumo do conjunto das negações.
Deixando de lado, por enquanto, a injustiça dessa leitura do binômio levi-
straussiano, é preciso sublinhar que, na decisão desse novo status da história
indígena com respeito à história universal, havia também muito dessa caça às
dicotomias que rivaliza com a sua formulação pela honra de ser o passatempo
preferido dos antropólogos. Dito de outro modo, havia uma ênfase nas
continuidades em detrimento dos contrastes. Mesmo que se postulasse a
historicidade indígena como "outra historicidade", era no termo "historicidade"
e não no termo "outra" que recaia o acento, o que não pode surpreender em uma
tendência que reagia contra o exótico.
Mas os estudos sobre história indígena já contam com uma razoável maturidade, e
pode se esperar que se libertem de alguns movimentos reflexos dependentes de
seu contexto de origem. Nem a afirmação de uma historicidade ecumênica, nem a
articulação de estrutura e história são bandeiras que necessitem de mais
defesa, muito embora haja uma defasagem importante entre sua afirmação genérica
e sua aplicação a descrições concretas. A documentação sobre a história
indígena passou a ser objeto de uma procura intensa. O movimento indígena vai
assumindo como própria ' por exemplo, nos textos usados na educação indígena
diferenciada ' uma historiografia que nem sempre se prende, porém, às pautas
daquela "outra historicidade" descoberta pelos etnohistoriadores. Criado um
consenso sobre generalidades, talvez seja o momento de se voltar sobre a
história indígena e enfocar desta vez não já as suas continuidades com um modo
ocidental de palmilhar o tempo, mas precisamente aqueles contrastes que em
épocas anteriores permitiam imaginar a existência de povos sem história.2
Os Yaminawa foram o tema da minha tese de doutorado (Calavia Sáez 1995), que
tentou se aventurar pelas três vertentes da historiografia indígena antes
citadas ' o resgate da documentação, a definição de uma outra historicidade e a
articulação de descrições estruturais e históricas. Em geral, os Yaminawa são
um excelente ponto de partida para um balanço. De um lado, estão muito longe de
representar aquele modelo cristalino dos povos "sem história", congelados ou
seguros na reprodução de suas estruturas. À primeira vista são evidentes sua
instabilidade social, a alteração constante de seus assentamentos e dos seus
arranjos parentais e a sua mestiçagem. À primeira vista, também, é fácil se
decantar por uma avaliação pessimista das suas relações com o mundo em volta.
Ao mesmo tempo, esses índios desesperadamente históricos parecem encarar a
história com alguma frialdade: fraco record genealógico, escassos vestígios '
nomes próprios de personagens ou lugares do passado, marcos temporais ' para
servir de arcabouço a uma memória coletiva; pouco empenho na transmissão dos
saberes. Nas páginas a seguir, pretendo detalhar essas características e traçar
um balanço da minha experiência de escrita da história Yaminawa, que pode se
estender em alguma medida a outros povos das terras baixas.
A eficácia documental
Em relação à primeira das vertentes da historiografia indígena ' a da
reavaliação das fontes documentais ', cabe dizer que o pessimismo que se
aplicava ao conjunto dos povos indígenas deveria se manter para um setor
considerável destes. Uma busca insistente não conseguiu levantar a respeito dos
Yaminawa senão notas jornalísticas esparsas, citações em longos listados de
etnias, referências de terceira ou quarta mão, relatos de um encontro fugaz ou
estereótipos devidos a etnias vizinhas. Por muito proveito que possa se tirar
de semelhante conjunto, trata-se de dados que não nos situam no interior de uma
sociedade Yaminawa, mas no interior de um campo étnico no qual o termo Yaminawa
ganha sentido. A rigor, dizem-nos muito mais da história de um nome do que da
história de qualquer povo ligado a ele.
Sobretudo, falta o tipo de documentação densa que podem produzir etnógrafos,
missionários ou agentes indigenistas. Essa falta ' que persiste até os dias de
hoje ' pode significar ainda assim alguma coisa, já que missionários, etnólogos
ou indigenistas têm produzido uma literatura considerável sobre quase todos os
povos que encontramos em volta dos Yaminawa. É o caso dos Shipibo-Conibo, dos
Piro, dos Kaxinawá. Que tipo de acaso poderia determinar que os Yaminawa não
tenham sido objeto dessa atenção? De fato, sabemos ' embora os Yaminawa não
lembrem ' que há missionários católicos que os visitaram com alguma freqüência
na década de 1950. Mais próximos, e lembrados por eles, os missionários da
missão Novas Tribos do Brasil ' MNTB se estabeleceram cerca de vinte anos
depois na AI Mamoadate; ocuparam-se muito pouco dos Yaminawa, preferindo
concentrar seus esforços nos Manchineri. A Funai, que só em 1975 se instalou no
Acre, com meios humanos em geral escassos, constituiu um posto na aldeia
Mamoadate, mas nunca o fez na terra indígena das Cabeceiras do Rio Acre, onde
desenvolvi minha pesquisa. A documentação sobre o grupo, mesmo nos últimos
vinte anos, é escassa. Esse desinteresse persistente, provavelmente decorrente
da constatação de que os Yaminawa são um grupo "difícil", indica que missões
religiosas ou leigas, produtoras por excelência da documentação etnológica não
profissional mas de qualidade, fazem consciente ou inconscientemente uma
seleção dos objetos de sua descrição. A vasta e longa documentação sobre os
grupos Pano ribeirinhos elaborada pelos missionários franciscanos ou seus
visitantes (naturalistas, militares, geógrafos, aventureiros, artistas) trata,
evidentemente, dos grupos que se instalaram nas missões, e só de um modo muito
indireto daqueles que as evitavam permanente ou periodicamente, e essa
desatenção é a contrapartida do trabalho etnogenético que se dedica entretanto
aos seus vizinhos. As missões, em sentido amplo, têm um papel importante na
formação de etnias, e a fortiori da memória histórica dessas etnias. Isso é
importante especialmente para os povos Pano ribeirinhos que, parafraseando
livremente a sugestão de Frank (1991), podem ser muito bem entendidos como
híbridos de uma sociedade local e uma elite exótica. O mesmo pode-se dizer
também, em um registro mais discreto, do papel que o Instituto Lingüístico de
Verão ' ILV cumpre com respeito aos Kaxinawá.3 No mínimo, cabe dizer que as
etnias "selecionadas" pelas missões têm, nesse diálogo com os seus diversos
apóstolos, uma boa oportunidade para inventar a sua cultura, no sentido que Roy
Wagner (1975) dá a essa noção, e que muito bem poderia se estender à invenção
da história.4 No máximo, pode-se supor que a acumulação de uma tradição escrita
externa consolida, ou eventualmente cria, uma distinção entre povos "de
referência" ' que atendem aos requisitos mínimos do que se considera ser uma
etnia e uma história ' e povos marginais a esse centro. O contraste entre
documentações ricas e pobres ' sendo as ricas, necessariamente, aquelas em que
os membros de uma etnia jogam um papel ativo, formulando suas memórias ' não é
um simples gradiente quantitativo, mas o resultado de um processo que introduz
divergências qualitativas e distribui papéis diferenciados no campo étnico. A
produção, ou a co-produção de documentos é útil para elucidar a história, mas
não sem antes ser útil para fazê-la, muitas vezes, paradoxalmente, gerando esse
tipo de modelos cristalinos do passado que costumamos entender como a antítese
da história.
O sujeito histórico
Essa questão vincula-se diretamente a uma outra, aparentemente distante, que
diz respeito à especificidade da percepção Yaminawa da história. Qual seria o
sujeito dessa história? O "nós" Yaminawa ' yura, yurawo, isto é, o "corpo", o
grupo de parentes/co-residentes que troca alimentos e substâncias corporais ' é
um sujeito sociológico, mas não um sujeito histórico. Não poderia sê-lo, porque
uma sociedade cognática como a Yaminawa necessariamente vê esse Yura se cindir
ou pelo menos se diluir geração após geração caminho ao passado; segmentos
inteiros de uma sociedade "misturada", que são partes constitutivas do seu aqui
e agora, formam o exterior no passado recente.
A rigor, nada há nisso de especificamente Yaminawa, ou ameríndio. Qualquer
história consciente do caráter construído das identidades enfrenta esse mesmo
problema, trate-se de Yaminawa, da França, dos judeus ou dos ciganos. Mas no
caso esse contraste entre uma história escrita na primeira ou na terceira
pessoa do plural ' essa tensão entre o "nós" da atualidade e o "eles" de tempos
outros ' manifesta-se num limiar muito próximo à enunciação do relato. Para
contar com esse sujeito histórico estável, os Yaminawa deveriam, por exemplo,
adotar uma norma de unifiliação ' e contar sua história em nome de uma linhagem
' ou se dar à empresa de criar uma identidade retroativa. A segunda solução,
padrão nas histórias nacionais, é a seguida por outros povos Pano como os
Shipibo-Conibo e os Kaxinawá, ora se identificando com determinados padrões
culturais (os da "civilização ucayalina"), ora definindo um critério de
identidade (os Huni Kuin, gente verdadeira, tem sua origem narrada num mito, se
reconhecem por determinada organização das suas aldeias etc.). Os Yaminawa
ignoraram ambas as possibilidades: reconhecem-se num etnônimo que lhes foi
atribuído pelos primeiros agentes da Funai que trataram com eles, mas
acrescentam que no passado eram Xixinawa e Yawanawa, ou antes Mastanawa e
Marinawa, ou Déianawa etc. etc., sendo que todos esses nomes designam povos
"outros", diferentes entre si, distantes do narrador. Como historiador, minha
tarefa foi rastrear em conjunto essas referências e as notícias esparsas em
variadas fontes documentais, fazendo o relato não tanto de um "povo", mas de
uma determinada posição dentro do campo étnico.
Além dessa história construída por mim, os Yaminawa possuem uma outra (trata-se
de um outro tipo de história) que me limitei a recolher e comentar: as
histórias dos antigos, chamadas shedipawó. Os Yaminawa, que não se
autodenominam ' são os outros que os nomeiam ', também não contam sua história
senão a de outros, ' os antigos. Não obstante o termo shedipawó sugerir um elo
de parentesco, podendo ser glosado como "os grandes avôs", deve-se sublinhar
que esse parentesco não implica uma identificação. Os yura compartilham netos
(um único termo de parentesco engloba todos os indivíduos dessa geração), mas
não necessariamente "avós": os antigos não são imaginados como um bloco
solidário de ancestrais, mas como uma diversidade incontrolável de eventuais
inimigos. O melhor exemplo são os Rwandawa que, se atendermos às interpretações
de um dos meus melhores informantes, perfazem uma das "metades" do atual povo
Yaminawa, e que nos mitos aparecem constantemente no papel de inimigos semi-
monstruosos. De resto, os "grandes avós" não são uma manifestação de força,
sabedoria ou moral prístinas, mas protagonistas de um modo de vida insano,
inviável; são ignorantes, pobres, violentos (como são também, aliás, alguns
contemporâneos. Antes que "ancestrais" são "marginais". Essa falta de sujeito
histórico transcendental, ou, mais explicitamente, de um sujeito que seja a um
só tempo narrador e agente da história, seria talvez uma característica
distintiva de uma história "fria", mas que convive sem problemas com uma
consciência de mudança.5 Examinemo-los mais de perto.
Os shedipawó diferem consideravelmente de um padrão muito comum na história
oral, que organiza um continuum de proximidade/distância temporal. Atendendo à
habitual taxonomia das narrações, todos eles são inequivocamente "mitos", ou,
para usar a econômica definição levi-straussiana, histórias do tempo em que os
animais falavam. Não há separação entre esse tempo de comunicação universal e
um tempo exclusivamente humano. Cronologicamente os shedipawó são planos: a
única distinção entre o antes e o depois faz parte de um reduzido grupo de
mitos "de origem". Antes do episódio narrado, os homens faziam o amor na dobra
do joelho, as mulheres não sabiam parir, as sementes eram monopolizadas por um
personagem sovina etc. Porém, esses mitos de origem, capazes de traçar uma
linha divisória entre o pretérito e a condição atual, não servem para fazer
dessa linha um marco temporal de validade geral; o antes e o depois se esgotam
dentro de cada narração. Não há um retrato diferenciado do que seria uma
humanidade primeva em contraste com a atual. Em particular, embora os mitos
descrevam o início de algumas capacidades importantes, eles em lugar nenhum
descrevem o fim desse regime de transformações e de comunicação entre as
espécies que serve de eixo ao conjunto das narrações. Em outras palavras, o fim
dos tempos míticos não faz parte desses relatos. Isso é compreensível na medida
em que os fatos extraordinários narrados, e que os Yaminawa sabem muito
distantes da experiência cotidiana, se identificam mais com uma distância
sincrônica do que diacrônica; o tempo em que os animais falam é um outro tempo
atual, o do xamanismo.
Se essa fraqueza de conjunto dos mitos de origem neutraliza a dimensão
cronológica dos shedipawó, ela reforça também uma característica que
convencionalmente marca os relatos históricos por contraste com os míticos. Em
poucas palavras, os shedipawó não são senão residualmente relatos
paradigmáticos. São apresentados como episódios individuais, que alguma vez
aconteceram com um protagonista individual e concreto: os títulos ou os resumos
dos shedipawó falam sempre, por exemplo, do homem que se transformou em
queixada, ou do grupo que se transformou em queixada, não da origem das
queixadas ou da sua caça. Há uma redução daqueles personagens que em outras
mitologias mostram um valor exemplar. Em numerosas ocasiões, por exemplo, os
mitos são protagonizados por dois irmãos com características mais ou menos
gemelares, mas não por isso existe um ciclo de narrações dos gêmeos, nem estes
assumem o papel de demiurgos pelo qual se destacam em outras mitologias
ameríndias. Os shedipawó apresentam-se como fatos que aconteceram uma vez ' não
como fatos que aconteceram, por assim dizer, de uma vez e para sempre. A
considerável liberdade com que são expostos ' sem requisitos ou restrições
quanto aos narradores, à audiência, às circunstâncias da narração etc. '
combina bem com o escasso rendimento social que deles se obtém. Não há esforços
para fazer deles histórias exemplares, para consagrar por meio deles hábitos ou
normas. Embora o acervo dos shedipawó seja uma fonte inesgotável de referências
para os cantos xamânicos ou amorosos, ou para comentários humorísticos sobre a
personalidade de um vizinho (tão esfomeado como Yurapibe, que devorou duas
esposas, por exemplo), não existe uma atividade de exegese socialmente
demarcada que os eleve à categoria de história sagrada.6 Na sua textura mais
existencial que essencial, os shedipawó aproximam-se paradoxalmente de um dos
principais atributos com que a filosofia do ocidente identifica o histórico.
A mitificação dos fatos históricos representa, suponho, o caso que melhor
alimenta a avidez dos defensores da história oral. Depurar o mito de suas
fantasias, localizar nele referências que o atrelem a uma narração fiel aos
fatos, em suma extrair história do entulho mítico seria uma das tarefas
principais do etnohistoriador, e uma das mais produtivas. O caso Yaminawa
mostra, no entanto, que essa tarefa pode estar viciada por um pressuposto
ingênuo: o de que essa racionalização teria ficado à espera de um estudo
formal, o de que gerações e gerações de nativos têm se limitado a uma honesta
acumulação de entulho mítico. Nada impede que a mitificação da história e a
historização do mito tenham se sucedido regularmente ao longo dos séculos, e é
muito provável que, do mesmo modo em que se diz que a história é constantemente
inventada, possa se dizer que ela é constantemente trazida à terra pela
transformação de relatos paradigmáticos em relatos eventuais.
O homem branco
Mas estamos nos desviando justamente do tipo de relato que de praxe tem
provocado as reflexões sobre a história indígena, isto é, aquele que diz
respeito ao homem branco. Durante a minha pesquisa, de fato, o encontro com o
homem branco me foi narrado com freqüência. Sempre me pareceu claro, porém, que
não se tratava de um relato shedipawó. Na ausência de uma diferenciação de
gêneros narrativos ' para a qual os Yaminawa não ofereciam nem muitos subsídios
nem muito interesse7 ', esse relato parece constituir um gênero em si. Trata-
se, na verdade, de um único relato que, com variações mínimas de detalhe, é
repetido por todos os narradores: no início, os Yaminawa não tinham sal,
açúcar, machado de ferro; andavam nus, dispersos na floresta, sempre em
movimento. Os brancos chegaram e os Yaminawa sentiram medo daqueles seres
perigosos e talvez canibais; os índios matavam brancos, os brancos matavam
índios; depois mudou (na versão mais detalhada, trata-se de um menino Yaminawa
raptado pelos brancos que, conhecendo as línguas de uns e outros, estabeleceu
uma mediação) e desde então não há mais medo, os Yaminawa vão agora à cidade,
seus jovens vão estudar com os brancos; agora há sal, açúcar e ferro, há
roupas.
Na sua aparente simplicidade, e na monotonia com que essa sóbria narração se
repete de um enunciador a outro, podem passar despercebidos inúmeros vínculos
com aspectos estratégicos para se entender a diversidade cultural Yaminawa,
como, por exemplo, o açúcar, o canibalismo e o machado de ferro. Além disso, o
relato traz subentendido um paradoxo. Afinal, esse relato, que de certa forma
oferece ao ouvinte estrangeiro uma narrativa histórica plausível dada sua
absoluta verossimilhança, apresenta, em contrapartida, um caráter
definitivamente paradigmático (e por isso, em certo sentido, ahistórico), já
que, repetido sem variação apreciável de um narrador a outro, seja qual for a
origem deste, descreve não um encontro com os brancos, mas O Encontro, em
sentido genérico. Nada que individualize a "descoberta" dos Yaminawa entre
centenas de episódios semelhantes, protagonizados por grupos indígenas de
qualquer língua ou localização, por seringueiros, missionários ou agentes
indigenistas. Poder-se-ia, talvez, alegar que de fato todos os encontros
aconteceram segundo esse mesmo roteiro: a narração monótona de uma história
monótona. Mas não seria essa uma das razões que levaram Euclides da Cunha a
rotular a Amazônia como terra "à margem da história"? A reiteração dos mesmos
episódios, das mesmas estratégias, das mesmas oposições século após século, não
seria justamente o índice da falta de história nas regiões afastadas dos
grandes centros de poder do mundo ' os palcos da história propriamente dita?
Talvez a historicidade desse relato ganhe outro relevo se considerarmos que ele
não só é, com efeito, uma narração sobre os brancos, mas sobretudo paraos
brancos.8
A primeira vez que o "relato do contato" me foi apresentado ' por Clementino,
consensualmente considerado o melhor conhecedor do acervo de shedipawó ',
fiquei perplexo. A história da guerra e da paz com os brancos, da inicial
carência e posterior fartura de mercadorias, figurava como a segunda parte de
um relato que descrevia a aquisição da sexualidade reprodutora: os homens, que
até então só tinham acesso à dobra posterior do joelho de suas companheiras,
aprenderam do macaco prego a utilidade da vagina; desde então, os Yaminawa se
multiplicaram.
Com esse relato híbrido, Clementino provavelmente buscava definir, de um lado,
a relação entre os "relatos do contato" e o mundo dos shedipawó; de outro, o
lugar do branco na cosmologia Yaminawa. Salta à vista o arranjo em paralelo de
duas narrações que, em conjunto, dariam conta da situação atual dos Yaminawa.
Em lugar de introduzir o "branco" como personagem em outras narrativas ' isso
nunca acontece ', em lugar de criar histórias manifestamente híbridas que
pudessem ser lidas como mitificação da história ou historificação do mito, e em
lugar de dedicar um relato a explicar a origem dos brancos, a solução adotada
foi propor um paralelo entre dois episódios que descrevem a aquisição de
saberes básicos dos animais e desse outro importante personagem. A maneira pela
qual Clementino apresentou seu relato cumpriria assim uma dupla função: como
todos os outros relatos sobre o contato joga com o reconhecimento do passado
Yaminawa por parte dos brancos, com sua codificação das relações em termos de
diferencial de mercadorias, os Yaminawa, ou seus ancestrais imediatos, inserem-
se desse modo na história do ouvinte branco. Mas com o segundo segmento, o
relato de Clementino insere também, metaforicamente, o branco dentro da
tradição Yaminawa de fundar o mais íntimo de sua vida na absorção de saberes e
técnicas estranhos. A descoberta do sexo reprodutivo, quem duvidaria, não cede
em radicalidade a todas as mudanças que o homem branco introduziu. A vida dos
Yaminawa experimentou muitas novidades nos últimos trinta anos; apenas a
novidade em si é que não era nova em absoluto para eles.
O relato do contato, centrado na aquisição de saberes estranhos, poderia ser
mais bem entendido em conjunto com uma outra narrativa, dirigida essencialmente
ao interlocutor branco, e que poderíamos chamar de "relato do fim". Depois de
falar eventualmente da perseguição, do cativeiro e do esbulho dos Yaminawa
pelos brancos, e sobretudo da "entrega" desses índios aos invasores, tal
narrativa centra-se no abandono de sua cultura tradicional e em suas
conseqüências previsíveis. Declarações sobre a decadência cultural dos Yaminawa
acompanharam minha pesquisa desde o início, complementadas com previsões
bastante pessimistas acerca do futuro do grupo, que podem ser simbolizadas na
seguinte frase: "daqui a trinta anos não haverá mais Yaminawa". Como no "relato
do contato", é fácil reconhecer nesse tipo de declaração uma avaliação
plausível, neste caso sobre o futuro do grupo; novamente, essa plausibilidade
depende do uso de conceitos e diagnósticos bem conhecidos pelo ouvinte ' um
outro ouvinte, desta vez, não mais o agente do indigenismo oficial ou o patrão
ou o seringueiro branco, mas o militante de uma ONG ou o antropólogo simpático
às tradições alheias. Mais uma vez, o relato abre um nicho para os Yaminawa na
história do interlocutor, garante um diálogo e uma eventual colaboração.
Entretanto, seu conteúdo factual merece algumas ponderações em virtude da
indefinição dessa "tradição" abandonada, assim como das condutas mais
deletérias para o bom governo do grupo (brigas internas, constante
deslocamento, cisões) que, relatadas em outros momentos como características
dos "antigos", parecem mostrar de modo mais evidente a continuidade essencial
dessa tradição "perdida".
Em suma, podemos dizer que o papel do branco nos relatos shedipawó evoca em
certo sentido o jogo que alhures as artes gráficas Pano estabelecem entre fundo
e forma, o que permite a leitura de uma e outra trama no primeiro plano. À
primeira vista, essas narrativas não fazem alusão alguma ao homem branco, ao
contrário, descrevem um mundo livre de suas mercadorias, de seus deuses. De
outro lado, tratam dele constantemente, isto é, a todo momento aparecem os
nawa, os inimigos, ora semelhantes ora monstruosos ' "nawa" é o termo que
designa os homens brancos e que atualmente denomina os outros por excelência. À
primeira vista, não mais que uma homonímia, embora tenazmente mantida: ao
reproduzir os relatos shedipawó ao idioma português, os Yaminawa costumam
traduzir "nawa" por "branco", mesmo que isso tenha como resultado a aparição de
"brancos" atirando flechas ou compartilhando a língua, os costumes ou os
cordões penianos dos antigos. Mas será plausível supor uma simples homonímia
quando se trata de um aspecto tão estratégico? Como já analisei em outro estudo
(Calavia Sáez, 2002), o conjunto dos usos do termo "nawa" nos leva a uma
conclusão contraintuitiva. Obcecados com a presença dos brancos, atraídos
fatalmente por suas cidades e suas mercadorias, os Yaminawa não se deram ao
trabalho de criar uma categoria nova para esse ser, mas optaram, antes, por lhe
outorgar o usufruto de uma categoria central da sua cosmologia. Isso faz que o
branco, de um lado, atraia para si a visão dos Yaminawa ' como acontece em
todas as avaliações que se estendem sobre a deculturação do grupo ' ou se torne
invisível ' como ocorre quando lemos o mundo Yaminawa através dos relatos
shedipawó. Em qualquer caso, não há um marco que permita falar em antes e
depois do branco; o nawa já existia antes da chegado do homem branco. É
evidente que isso não faz do universo Yaminawa uma mónada surpreendentemente
cega à ubiqüidade dos brancos ' não haveria nenhum interesse em afirmar essa
enormidade contra todo o senso comum. Trata-se, pelo contrário, de notar que o
conjunto das categorias usadas para descrever as relações possíveis no cosmos '
que contava com a alteridade já em seu âmago ' fica perfeitamente frio ante
essa presença.
Inventar a história
Devo reconhecer que a historificação dos relatos shedipawó pode ser resultado
do contexto narrativo, isto é, da pergunta acerca do passado Yaminawa que o
motivou. Foi perguntando por história ' e não, por exemplo, pedindo exegeses de
tal ou qual prática ' que obtive a coleção de narrações.9 Em outras palavras,
minha pesquisa ofereceu uma oportunidade ' pela primeira vez por escrito ' para
a invenção da história Yaminawa. Já aludi às suas duas principais versões ' a
dos shedipawó e a do relato do contato. Mas houve mais uma versão de
características muito diferentes, formulada por quem dispunha de maior fluência
na língua e nos modos discursivos do branco. O relato do chefe Correia, líder
do grupo na ocasião, foi essencialmente uma lista de lugares e vizinhos: em tal
lugar, os Yaminawa convivem com Shipibo, Piro e Catiana, em outro, com
Sharanawa, Mastanawa e Marinawa; aqui, eles conhecem os peruanos, lá, ficam
sabendo de índios selvagens que vivem escondidos na floresta. Entre uma e outra
localização, como motor contínuo dessa história, surgiram conflitos que
determinaram a saída dos ancestrais em direção a novos lares; em conflito com
outros índios, eles viram também se multiplicar as divisões internas ' os
Yaminawa não são senão um conjunto de povos que só o homem branco tem decidido
resumir nesse nome.
Pela ausência de elementos míticos e pela relevância das informações e dos
conceitos obtidos no diálogo com indigenistas ou antropólogos (por exemplo, as
noções sobre um tronco lingüístico Pano, ou os nomes dados aos antigos vizinhos
peruanos), trata-se, sem dúvida, de um relato híbrido. Seria por isso um relato
espúrio? O próprio enunciador é, biográfica e funcionalmente, um mestiço que
durante muito tempo transitou entre a aldeia, a cidade e os seringais e que
tanto assumiu o papel de chefe indígena como de chefe de posto. Mas deveríamos
trazer para a historiografia indígena uma adaptação torpe da pureza étnica já
descartada em outros âmbitos? Deveria a história indígena se limitar aos
recursos da memória, descartando o uso de informações obtidas direta ou
indiretamente de uma tradição escrita? O problema aqui não é se esse relato
pode ou não ser considerado a legítima história yaminawa. Isso foi ao menos
garantido na medida e no tempo em que o chefe-historiador o socializou entre
seus seguidores. Mas ele é suficientemente "outro" para oferecer uma
contribuição original, ou não passa de um reflexo, de uma reelaboração do
escrito por outros, do saber depositado nas bibliotecas? Como em tantas outras
ocasiões, a elucidação da história indígena recupera como problema um processo
raramente tematizado, mas habitual em qualquer consciência histórica, a saber,
a transformação em memória própria de informações obtidas de outrem.10 No caso
indígena, a fronteira entre o próprio e o alheio, supostamente mais clara,
sugere o paradoxo comum da fixação do factual mediante uma memória fictícia.
Cabe no entanto dizer que no relato de Correia há ingredientes valiosos dessa
história "outra" que cobiçamos para além de dados inéditos na bibliografia
recopilados nas memórias dos seus seguidores ' o chefe é não só um narrador,
mas também um pesquisador. Refiro-me à ordenação desses dados, os quais não se
pode dizer que devam muito a qualquer uma das grandes narrativas da nossa
historiografia, e menos ainda das que os nossos mediadores põem à disposição do
historiador Yaminawa. Refiro-me em especial à definição do protagonista não a
partir de uma origem, mas em contraste com seus "outros", que vão mudando de
capítulo em capítulo: Shipibo, Catiana, Mastanawa etc. A narração do chefe
Yaminawa apresenta um alto grau de sistematização: a história não é uma ilação
de eventos, mas uma sucessão de estruturas ' de relação interétnica ' unidas,
ou mais precisamente separadas, por eventos pontuais. Uma história em última
análise consideravelmente fria, que leva as estruturas a gerar novas variantes
de si mesma.11
Nem reis nem batalhas
Nenhum texto foi tão citado na bibliografia sobre história indígena dos anos de
1980 quanto os artigos de Marshall Sahlins sobre a história havaiana,
especialmente sobre a dramática identificação entre o capitão Cook e o deus
Lono. À parte de um argumento geral sobre a necessária articulação entre
estrutura e história, Sahlins sublinha de modo provocativo a capacidade de reis
e batalhas (marcos da depreciada histoire évenementielle) de encarnar e
modificar estruturas duráveis. Também nessa rubrica a memória dos Yaminawa ' à
diferença da memória de muitos outros grupos indígenas ' recusa oferecer
satisfações imediatas ao pesquisador. Nos relatos do passado não há nomes
próprios, não há personagens heróicos, não há monumentos; em suma, não há
pontos de acumulação de informação que precisem ser reduzidos à estrutura. Mas
esse perfil discreto em nada modifica aquela articulação a que Sahlins se
refere, pelo contrário, a leva a terrenos mais necessários.12
No caso dos Yaminawa pode-se rastrear em pelo menos dois domínios clássicos do
que costumamos considerar estruturas, a saber, a mitologia e o parentesco.
Quanto ao parentesco, não há dificuldade alguma em identificar a marca da
história; mas sim, talvez, em reconhecer nela algum aspecto construtivo. É
fácil perceber a diversidade de critérios no momento de classificar parentes,
atribuir nomes, formular regras matrimoniais ou definir filiações ou
agrupamentos. A precariedade dos dados genealógicos impede hierarquizar esses
critérios ou medir sua efetividade. O parentesco seria assim ' não faltam
exegeses nesse sentido no seio do próprio grupo ' um argumento em apoio da
desorganização cultural e étnica dos Yaminawa, uma estrutura não articulada na
história, mas desagregada por ela. Entretanto, será que o modo de articulação
histórica das estruturas não está precisamente nesse contraste entre a ordem
sempre discreta do passado (ou de um futuro postulado) e a pluralidade
desordenada do presente? Quando se enuncia uma ordem autêntica, a autoridade
moral do grupo ' seja do chefe, seja dos velhos, seja ainda "daqueles que
sabem" ' lança mão em primeiro lugar desse contraste entre temporalidades,
baseando o discurso sociológico no discurso histórico. A suposta "imobilidade"
das estruturas advém de se identificar como "estrutura" esse modelo legitimado
(isto é, "tradicional"), e não o conjunto de variantes em que ele ganha
sentido. O sistema de parentesco Yaminawa, que oscila entre modelos
dravidianos, australianos ou dakotas, não ilustra pois uma confusão entre
ordens, senão o aspecto de conjunto de uma estrutura13 na ausência de uma
autoridade capaz de maximizar um desses aspectos sobre os outros, o que, em si,
faz dos Yaminawa uma variante peculiar dentro do conjunto Pano, dotado de
exemplos cristalinos de ordens "tradicionais".14 As possibilidades históricas
da estrutura não residiriam na sua capacidade de responder a acontecimentos
externos, ou de se desdobrar neles, mas justamente na sua variabilidade
interna, que permite, ou obriga, diversas leituras consecutivas. Os
acontecimentos históricos ' os reis e as batalhas de Sahlins ' seriam, assim,
fundamentalmente pontos discretos de releitura de uma estrutura suscetível de
muitas versões.
Quanto à mitologia, é evidente o seu caráter de obra aberta. Parece claro que
determinadas narrativas foram improvisadas para o pesquisador, com base em
algumas fórmulas conhecidas que permitiam faze-lo sem muito esforço. A
comparação dos mitos Yaminawa com seus correlatos de grupos Pano muito próximos
mostra, para além de uma surpreendente continuidade de temas e argumentos, a
facilidade com que esses mitos vêm se transformando, acompanhando alterações em
outros âmbitos, como o do parentesco e o da autoridade política. Em diversos
artigos (Calavia Sáez, 2000, 2001, 2002, 2003) tenho tentado mostrar como os
mitos Yaminawa são capazes de sintetizar os contrastes que opõem esse grupo a
outros com os quais compartilha um mesmo acervo narrativo, tanto na montagem de
episódios e na caracterização de personagens, como no estilo e no contexto de
enunciação. Em outras palavras, trata-se de uma mitologia inequivocamente
yaminawa, cuja coerência surpreende: coligidos de um número elevado de
informantes, procedentes de grupos diferentes e que poderiam fazer da oralidade
Yaminawa uma federação de tradições particulares, esses mitos formam, pelo
contrário, um acervo bastante consolidado. As variações que podemos perceber
entre as diversas versões, apesar da diferença de estilos entre os narradores,
são mínimas, o que garante relatos homogêneos em contraste com as narrativas de
povos muito próximos. Essa divergência ordenada em relação a outras mitologias
vizinhas sugere que os mitos Yaminawa estão longe de representar um material
conservador. Muito pelo contrário, são especialmente sensíveis ao curso da
história e permitem ao pesquisador detectar tendências pouco reconhecíveis em
outros campos da vida social yaminawa. Maleáveis para o narrador, mas
submetidos a um processo de comunicação que descarta ou normaliza as novidades,
isto é, que as estrutura. Não é surpreendente que, a partir de Lévi-Strauss,
uma versão móbil da noção de estrutura que não se opõe à mudança, mas que a
exige como condição permanente, tenha se baseado precisamente nos mitos. Em
última análise, que melhor lugar para esse curso da história senão um modo
cambiante de contá-la? Os mitos Yaminawa são história não porque abarquem
informações inéditas e irredutíveis sobre o passado, mas porque o reformulam
constantemente. Fazem-no agora e nada indica que não o tenham feito
anteriormente.
A terceira margem
A história, submetida às condições do caso Yaminawa, tem a possibilidade de
recuperar algumas feições originais. E não porque permite grandes aproximações
entre nosso relato histórico e um relato histórico de outro tipo; antes, nos
devolve, reformulada, a distância estabelecida entre os povos com ou sem
história. O que os Yaminawa nos narram carece desses marcos que habitualmente
têm servido como pedras de Rosetta na interpretação das memórias indígenas como
história: grandes acontecimentos, divisão em grandes períodos. Além disso, a
própria precariedade dos documentos referidos aos Yaminawa e a indeterminação
de uma identidade transtemporal impedem que pensemos o discurso Yaminawa sobre
o passado como uma "tomada de consciência" de uma história já existente.
Dirigidos ao homem branco, e elaboradas com um uso generoso de seus termos, as
narrativas Yaminawa mostram freqüentemente a história como invenção. Essa
ausência de uma historia "dada" ' da qual o discurso histórico construído seria
um reflexo mais ou menos fiel ' sublinha em contrapartida dois aspectos
importantes que costumam não aparecer na historiografia dos povos "com
história". O primeiro diz respeito ao papel relevante que saberes outros
adquirem nesses relatos, ou seja, a história entendida como narração de outros
ou sobre outros. O segundo concerne ao papel essencial que o discurso histórico
assume na história em si: não como reflexo dela, mas como fator de primeira
linha na sua prática. A formulação da história dissimula sua eficiência quando
encomendada a um corpo de especialistas distantes do palco político, e assim,
paradoxalmente, à margem da história, mas se mostra a plena luz quando, em
função de uma liderança política, passa a ser entendida como um acontecimento
central.15 Nesse ponto estratégico, o discurso histórico ocupa, para os povos
indígenas, o mesmo lugar em que se encontra a absorção de alteridade via a
aliança matrimonial e o ingresso de mercadorias ou doutrinas, além de estar
provavelmente sujeito aos mesmos filtros cosmológicos que regulam essas outras
incorporações. Os povos indígenas absorvem a história alheia não porque careçam
dela, mas porque a submetem ao mesmo regime de subjetivação que é aplicado ao
material sociológico, ideológico ou técnico.
Mas a ausência na história Yaminawa de grandes acontecimentos, de reis,
batalhas e seqüências temporais ' em suma de motivos narrativos ' serve para
que a história se localize onde ela está dada, antes da sua elaboração
narrativa, isto é, na variabilidade mandatória das estruturas, que só podem ser
percebidas em seu contraste e em sua alteração. A alteração é, pois, o estado
normal; ao contrário da estabilidade primitiva (entre os Yaminawa sempre se
espera que a autoridade de um chefe seja capaz de implementar na realidade ou
na memória tal estabilidade), ela é um fruto selecionado da história que nem
sempre amadurece.
Retomando o início deste artigo, lembremos que a reivindicação da história
indígena se deu em duas frentes: a da historicidade objetiva dos povos
indígenas (que não são imagens congeladas de um estado primitivo) e a da sua
subjetivação, isto é, a presença de um saber histórico e, portanto, de uma
consciência histórica peculiar. Parece claro que essas dimensões devem estar
articuladas, isto é, a constatação de que a maneira pela qual os povos percebem
e narram sua história é parte essencial dessa história. É nesse ponto que
podemos perceber quão errada foi a leitura do binômio sociedades frias/
sociedades quentes como uma negação da história, quando deveria ter sido
considerado justamente a chave para a elucidação do contraste entre
historicidades diversas. Apenas os relatos propagandísticos do Progresso, das
Luzes ou da Revolução ' cuja importância não deve ser desdenhada, pois cumprem
um papel muito importante no percurso dos povos "com história" ' fazem da
distinção entre quente e frio uma questão de dados. Na prática, os dados só
aparecem ordenados em relatos, que são os que definem o seu valor. É assim que
revoluções se travestem de restaurações, e restaurações de revoluções; é assim
que tudo muda para que tudo permaneça igual, e que as grandes mudanças atuam
como velhas toupeiras socavando um solo aparentemente imutável. Entretanto,
somente a concepção de Lévi-Strauss16 tendia a fazer desse jogo não uma astúcia
da história, mas uma ação humana suscetível de versões alternativas. Para
entender as manipulações da temperatura histórica é preciso perceber que, na
versão lévi-straussiana, as estruturas são incapazes de dar conta de ambos os
feitos que se lhes atribui: o de permanecer incólumes (constituídas de
contradições entre os termos ' sua estabilidade seria uma contradição nos
termos) e o de abolir-se para dar lugar a estruturas absolutamente novas (seus
termos são demasiado básicos para que se possa imaginar uma nova configuração
que prescinda deles). A comparação dos contrastes existentes no relato
histórico é que torna possível perceber que a história, quer se trate de
revoluções, quer se trate de permanências, é sobretudo um efeito de sentido,
amplamente eficaz sobre a realidade.
A terceira margem da história é habitada por esse historiador orgânico que
seleciona dados, ritmos e direções, que determina o frio ou o calor do relato.
Talvez, mais do que encontrar história lá onde alguém supôs que ela não
existisse, no estudo da história indígena é importante reencontrar, na invenção
do sujeito, na variação mítica, na mimese de outros relatos, os traços vivos
originais da prática da história, tantas vezes apagados pela rotina da
historiografia.
Notas
1 Estou pensando sobretudo em atividades como os Grupos de Trabalho (GTs) sobre
história indígena nas reuniões da ABA e da Anpocs, a elaboração do Guia de
Fontes sobre a História Indígena no Brasil, e em grupos especializados como o
Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, criado na USP por Manuela
Carneiro da Cunha. Contudo, muitas outras iniciativas individuais ou coletivas
trilharam esse campo nesse período, embaladas por um interesse geral em relação
a temas como, por exemplo, a memória e a história oral, considerando esta um
método e um movimento político-cultural.
2 Não cabe no espaço restrito deste artigo uma avaliação geral ' de resto,
muito necessária ' da extensa bibliografia sobre história indígena produzida
nos últimos decênios. Ver mais detalhes da revisão aqui esboçada em Viveiros de
Castro et al., 2003.
3 Somente depois de uma presença continuada de pregadores/pesquisadores do ILV
que aflora com notável clareza um modelo Kaxinawá que não se reconhecia em
documentos mais antigos. Ver Calavia Sáez (2000, pp. 25-27).
4 Uma boa oportunidade não é necessariamente a única oportunidade. Qualquer
reconstrução de longo prazo do passado Pano (ver Lathrap et al., 1985) adverte
a existência de contatos muito anteriores ao dos brancos e, sem dúvida, não
menos dramáticos.
5 Esse sujeito impossível da história Yaminawa acrescenta uma nova dimensão às
discussões sobre a possibilidade de uma história ou de uma agência histórica
"sem sujeito" (cf. Palti, 2004); a alternativa sujeito/não sujeito estaria "na
história" e não somente na teoria da história.
6 De maneira significativa, o xamanismo, tão intimamente ligado a esses
relatos, é uma atividade afastada da esfera pública.
7 Algo parecido acontecia com os relatos protagonizados exclusivamente por
animais, que de um lado pareciam ficar fora do campo dos shedipawó stricto
sensu, mas que ao mesmo tempo acabavam se alinhando a eles, na falta de uma
categoria específica na qual se pudesse inseri-los.
8 O destinatário, e o contexto que ele aporta, é raras vezes levado em
consideração ao se tratar de história indígena. O trabalho de Gow (2001) é uma
exceção notável, útil também para apreciar a relevância do improviso nesse
diálogo histórico.
9 No entanto, é preciso dizer que, durante a pesquisa, foram oferecidas também
oportunidades ao discurso exegético, mas não se obteve resultados apreciáveis.
A historificação das narrativas não se deu às custas de um hábito exegético
recalcado. Ademais, a exegese acontecia eventualmente por meio da
historificação ' uma restrição alimentícia, por exemplo, deveria ser um costume
dos antigos, porque havia um relato que fazia tal referência.
10 Em contrapartida, a oralidade eminente atribuída naturalmente à história
indígena dissolve um outro problema que na historiografia escrita se deixa
captar melhor, a saber, o do esquecimento. Saber quais dados foram apagados da
memória pode ser tão revelador quanto a memória preservada em si. Essa vertente
da historiografia indígena continua inédita, embora não faltem dados para
explorá-la.
11 Vale dizer, porém, que no relato em pauta essas variações tinham uma direção
definida: a do progressivo isolamento e desagregação dos Yaminawa.
12 Segundo uma crítica recente de Peter Gow (2001, p. 18), as análises de
Sahlins mostram mais a possibilidade de dar valor antropológico a
acontecimentos históricos do que um modo de se fazer história a partir de
estruturas.
13 Sobre a possibilidade, ou a necessidade, de convivência desses sistemas, cf.
Viveiros de Castro, 1995.
14 O que equivale a sugerir (seguindo a referência clássica de Leach sobre a
Alta Birmânia) que esse conjunto deve ser lido como um sistema de situações
políticas, e não só como um agregado de etnias.
15 Essa situação se equivalente, no nosso caso, se a presidentes e reis
correspondesse constitucionalmente a enunciação da história oficial. Algo,
afinal, não tão longe assim da nossa experiência: basta lembrar que a primeira
História General da Espanha leva a assinatura do rei Alfonso X, que Thiers foi
um historiador importante e que o imperador Pedro II teve um papel relevante na
formulação de uma história do Brasil. A desatenção para os elos entre
acontecimento e estrutura, porém, podem levar o estudioso a imaginar tais
empresas como uma espécie de atividade de lazer.
16 O binômio de Lévi-Strauss parte da textura sociológica das sociedades, e não
da percepção e do relato da história. Estes últimos são abordados
principalmente na sua polêmica com Sartre (Lévi-Strauss, 1962).