"Quimeras" da ciência: a perspectiva de profissionais da saúde em casos de
intersexo
A ciência, além disso, não pode fazer milagres e, menos ainda, lançar
profecias.
Herculine Barbin, em Foucault (1985, trad. minha).
Os inegáveis avanços tecnológicos na área da saúde alargam, cada vez mais, o
campo das "possibilidades técnicas" disponíveis a profissionais de saúde nas
suas mais diversas especialidades. Para os médicos, esse desenvolvimento não
apenas os consolida, ainda mais, como atores fundamentais na construção e na
prescrição de normas, condutas e referências em relação ao corpo na sociedade
ocidental moderna, mas também os posiciona diante de grandes impasses, dilemas
e de novas situações para as quais antigas soluções se tornam obsoletas, ao
mesmo tempo em que antigos valores e representações se mantêm vivos, sob nova
roupagem.
Uma das áreas biotecnológicas de avanço expressivo nos últimos anos diz
respeito à medicalização da reprodução humana e, também, às possibilidades de
intervenção no que se refere à "(re)definição de sexo" em crianças e adultos
(Brauner, 2003). As questões em torno da sexualidade, já de longa data esfera
privilegiada das prescrições médicas e psicológicas, retornam com toda sua
força nas decisões estabelecidas em um contexto social específico ' o hospital
' quando o assunto é o da "construção do sexo". Isso torna-se especialmente
evidente nas decisões que envolvem crianças nascidas com os "genitais ambíguos"
ou intersexuadas, embora também se identifique nos debates sobre novas
tecnologias reprodutivas visando à seleção de sexo (Idem) e sobre cirurgias de
troca de sexo em transexuais (Zambrano, 2003).
Os "estados intersexuais" referem-se, de forma geral, a corpos de crianças
nascidas com a genitália externa e/ou interna nem claramente feminina, nem
claramente masculina (Kessler, 1996). De acordo com a literatura médica, podem
ser divididos em quatro principais grupos: pseudo-hermafroditismo feminino (o
bebê possui ovário, o sexo cromossômico é 46 XX,2 a genitália interna é
feminina, mas a genitália externa é "ambígua"); pseudo-hermafroditismo
masculino (a criança possui testículos, cariótipo 46 XY, mas a genitália
externa é "feminina" ou ambígua); disgenesia gonadal mista (o bebê nasce com
gônadas disgenéticas3); hermafroditismo verdadeiro (crianças que possuem tecido
ovariano e testículos na mesma gônada ou separadamente) (Freitas, Passos, Cunha
Filho, 2002).
Nesse sentido, e recolocando questões mais antigas para a área médica, como
aquelas que perseguiram os autores das teses de medicina da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro no período de 1833 a 1940, analisadas por Fabíola
Rohden (2001), a suposta "ambigüidade" dos genitais reforça e impulsiona, do
ponto de vista médico, a busca por elementos que esclareçam o "mistério" da
diferenciação sexual. "O que faz de um homem, homem, e de uma mulher, mulher?",
"o que constitui o substrato mais essencial de um homem e o de uma mulher?",
"ondeele deve ser procurado?" ' essas parecem ser perguntas cujas respostas
devem ser arduamente perseguidas e rapidamente encontradas por aqueles que
lidam com essas situações.
Durante muito tempo ouviu-se em alto e bom tom, e certamente ancorado em um
determinado status quoda ciência médica, o emblemático trocadilho: "It is
easier to dig a hole than to erect a pole" [É mais fácil cavar um buraco que
erigir um poste]. Essa não foi apenas uma frase ruim, que ainda circula, mesmo
que mais timidamente, em certos círculos de profissionais. Esse foi, de fato,
um discurso que atribuiu marcas significativas na vida e nos corpos de crianças
que nasceram intersexuadas. É preciso, evidentemente, situá-lo em um dado
contexto histórico e de produção de conhecimento tecnológico, sem perder de
vista, contudo, sua enorme força simbólica e sua herança no nível das
representações.
Assim, não se pode negar que o progresso da ciência ' trazendo avanços no que
se refere às técnicas cirúrgicas, ao diagnóstico e à investigação cirúrgica,
genética e endocrinológica e às novas medicações na área da endocrinologia '
fez com que o emprego descompromissado da frase citada passasse a ser atribuído
àqueles que desconhecem a "complexidade" do corpo humano e, nesse caso
especificamente, do seu sexo. No entanto, embora a técnica em si não se
configure mais como o problema central para a medicina, existem outras tantas
questões que rondam a prática de profissionais que lidam, em seu cotidiano, com
decisões que supõem uma "definição" de sexo.
Conforme aponta a antropóloga Mariza Corrêa (2004), apenas agora a questão da
intersexualidade tem chegado à academia como um tema contemporâneo. Assim, nas
ciências sociais, existem poucas referências específicas sobre ele. Mesmo na
literatura médica, ainda que se perceba um verdadeiro investimento atual nesse
assunto,4 pode-se dizer que o volume de produções ainda é relativamente escasso
e as lacunas são explicitamente admitidas. O tema do "hermafroditismo" também
tem ganhado alguma atenção na mídia, que, entre outras questões, atua dando
visibilidade a casos de descontentamento com a decisão médica. Ainda, as
próprias pessoas operadas passaram a se organizar em entidades e a pedir o fim
das cirurgias precoces, como é o caso da Intersex Society of North América
(ISNA).5
Este artigo propõe-se, portanto, a problematizar o tema da "definição de sexo"
quando existe um "diagnóstico" médico de "genitália ambígua". O processo das
decisões que acontecem nesse contexto, na medida em que aciona, nos atores
sociais nele envolvidos ' profissionais, familiares, intersexuados ' diferentes
representações sobre o corpo, a saúde e a doença, é revelador de determinadas
lógicas culturais que dotam essas definições de significado. Para os objetivos
deste estudo, centrarei minha análise nas representações e nas práticas sociais
acionadas por profissionais de saúde no momento das decisões no que se refere à
"correção da genitália" em casos de intersexo, o que inclui desde o momento de
perceber uma determinada alteração, diagnosticá-la como intersexo até decidir
por uma intervenção visando à adequação do corpo a um ou outro sexo.6 Para
tanto, a lógica biomédica é considerada, como qualquer outra lógica cultural,
em seu atravessamento por condicionantes sociais, sobre os quais incidem
diversos fatores como, por exemplo, o gênero, o pertencimento social e as
relações de poder de uma dada sociedade.
Por intermédio dessa relativização do saber científico, que se pretende
preferencialmente neutro e racional, busco ensaiar uma antropologia da ciência
biomédica. Nesse sentido, a própria construção da "patologia" ou do
"diagnóstico" e a idéia de "má-formação" são tomadas como objeto, partindo-se
do entrelaçamento e da problematização de dois eixos analíticos: 1) a noção de
campo de saber e 2) a perspectiva de gênero.
No primeiro eixo, trata-se de operacionalizar o conceito de campo científico,
conforme proposto por Bourdieu (1984), demonstrando a forma como ele atravessa
as decisões. Assim, estarei considerando a medicina e a psicologia como campos
científicos mais abrangentes, sendo que a primeira é ainda dividida em
subcampos, as especialidades médicas, que compõem um espaço de disputas e de
(des)legitimação de saberes sobre os corpos. A existência de diferentes
perspectivas nas tomadas de decisões faz com que elas se complexifiquem, e o
jogo entre os níveis da decisão é revelador da lógica cultural que o perpassa.
No segundo eixo, que remete à perspectiva de gênero, dedico-me a demonstrar
como a desejada neutralidade científica é informada constantemente por fatores
culturais. Decisões tomadas a partir da biologia abandonam, paradoxalmente,
possibilidades por ela aventadas em função de valores sociais mais amplos como
os de gênero. As evidências da dicotomia masculino-feminino são, assim,
buscadas nos corpos nos seus mais diferentes níveis.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, socioantropológica, na qual foi adotado o
método etnográfico, considerado a partir da tradição inaugurada por Malinowski
(1976). Foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas com oito
profissionais de saúde ' dois psicólogos (Psi1 e Psi2), dois cirurgiões
pediátricos (CirPed1 e CirPed2), um residente7 de cirurgia pediátrica (Res), um
endocrinologista pediátrico (EndoPed), um geneticista (Gen) e um pediatra
(Ped)8 ' que se encontram envolvidos nessas decisões. Por meio da entrevista
buscou-se entender o processo de tomada de decisão e os elementos pesados na
situação. Todos os profissionais entrevistados trabalham no mesmo hospital9 e a
maioria deles possui entre si uma antiga relação de trabalho.
Além das entrevistas semi-estruturadas, foram realizadas entrevistas informais,
bem como observação participante em um ambulatório de cirurgia/urologia
pediátrica, em reuniões de equipe e em discussões dos casos de mais difícil
resolução médica. Todos os informantes assinaram um Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, autorizando a utilização dos dados com a devida garantia
de confidencialidade das informações concedidas. O projeto desse estudo foi
avaliado e aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa.
O sexo como diagnóstico: os campos de disputa
Retomando o primeiro eixo de análise que proponho neste artigo, o de campo de
saber, levanto a hipótese de que é a partir da conformação e da disputa entre
campos e/ou subcampos de conhecimento sobre o corpo que o sexo emerge como uma
categoria médico-diagnóstica. É o sexo como diagnóstico que impulsiona e
movimenta uma série de negociações dentro do contexto das decisões que visam,
em última instância, a encontrar a verdade sobre a diferenciação sexual.
Segundo Pierre Bourdieu (1984), a estrutura do "campo científico" tem um efeito
de legitimação de uma determinada compreensão ou visão de mundo, um habitus,
que é compartilhado por aqueles que o integram. O campo científico define o que
é um conhecimento "científico", ou seja, mais racional e verdadeiro sobre o
mundo social, adquirindo sua força como sistema explicativo. Dessa forma, o
campo científico tem o poder de dizer. Mas existem diferentes posições em cada
campo, o que, para fins de análise neste artigo, correspondem às diferentes
especialidades e à produção de um saber específico em cada uma delas, que ocupa
um lugar mais ou menos valorizado nos jogos que acontecem nas decisões clínico-
cirúrgicas. Ednalva Neves (2004), ao trabalhar com o "campo epidemiológico",
define campo como um espaço de relações sociais, onde são apreendidos
determinados conceitos que fundamentam um olhar sobre o objeto (no caso, a
saúde e a doença), bem como significados que estarão na base de uma série de
argumentos iniciados a partir daí.
No interior do campo biomédico, algumas premissas são consideradas fundamentais
para a "boa conduta": realizar um bom diagnóstico, investigar a causa da
patologia, intervir e acompanhar o enfermo. Assim, uma vez identificada uma
"genitália ambígua" ou que, do ponto de vista dos profissionais, não possa ser
considerada nem masculina nem feminina, dá-se início ao processo de definição
da causa da "ambigüidade". Nesse momento, conforme apontam todos os
profissionais entrevistados, são acionadas as diferentes especialidades '
endocrinologia, genética, cirurgia/urologia pediátrica, psicologia (não
imediatamente, como será abordado adiante), o que normalmente é realizado pelo
pediatra ou neonatologista. Ainda que alguns informantes apontem a fundamental
importância da presença de um membro do Comitê de Bioética do hospital, na
prática o que tenho observado é que essa consulta não é feita de forma
sistemática em todos os casos.
A tomada de decisão envolvendo uma equipe interdisciplinar é percebida como uma
das inovações ocorridas nos últimos anos nessa área. Conforme afirma um dos
entrevistados, antes "quem decidia era uma pessoa só [...]. Normalmente era o
cirurgião". As definições tomadas conjuntamente e os diferentes fatores que
ganham peso nas escolhas apontam para o fato de que o pensamento médico, nesse
caso amparado pelo saber psicológico, é bastante complexo, ainda que exista uma
tendência de outras áreas do conhecimento a analisá-lo de forma simplificadora.
Os diferentes elementos disponíveis aos profissionais de saúde que lidam com
esses casos fazem com que a decisão seja uma espécie de quebra-cabeça, embora a
figura que se pretende montar não seja conhecida de antemão e as peças nem
sempre possuam um encaixe perfeito. Estou considerando, aqui, "peças" as
diferentes visões sobre o corpo que devem ser consideradas pela equipe de saúde
e os "saberes" que possuem legitimidade para falar do sexo de alguém. Conforme
relata um dos informantes, sobre o protocolo geral seguido no hospital quando
se desconfia de um caso de intersexo:
Sempre que uma genitália, no exame, ela tem algumas alterações em
relação ao falos ou à formação da bolsa escrotal, sempre tem que ser
investigada. Então, assim, um falos pequeno ou um... com uma uretra
hipospádica mais abaixo, com criptorquia, a gente considera genitália
ambígua. Tem que se investigar sempre, né. Daí a investigação
consiste de exame físico, né; anamnese com a mãe pra ver se ela usou
algum tipo de hormônio, teve algum problema ou não durante a
gestação; a ecografia abdominal; uma genitografia, que é um raio-
X contrastado pra avaliar o seio urogenital ou a uretra; o perfil
endocrinológico, então a gente sempre pede uma avaliação
endocrinológica; uma avaliação genética, pra fazer cariótipo, também;
tem uma avaliação do cirurgião pediátrico, né. Então, depois de toda
a investigação feita, do perfil hormonal, da avaliação da genética e
do cirurgião pediátrico e do acompanhamento da psicóloga, nós nos
reunimos, daí, em equipe pra decidir qual é o diagnóstico e qual vai
ser a conduta pra aquela criança. Basicamente, de uma maneira geral,
seria essa a abordagem (CirPed2).
Embora em relação a essa conduta mais geral exista um consenso entre os
profissionais entrevistados, não é verdade que as preocupações dos mesmos sejam
idênticas quando estão avaliando os casos. Pode-se dizer que o processo
decisório se dá de forma diferenciada nos diversos campos, provocando
discordâncias e rivalidades entre os saberes bem como pesos diferenciados a
serem atribuídos a cada fator, seja este "biológico" ou "psicológico",
"natural" ou "social".
Em outras palavras, ainda que todas as especialidades se insiram no que se
poderia chamar de um campo biomédico, cada uma constitui um campo de saberes
específicos, o que provoca diferentes posicionamentos dentro do processo
decisório. Os campos de saber endocrinológico, cirúrgico, genético, pediátrico
e psicológico possuem não apenas preocupações diversas quando se deparam com
uma criança na qual identificam uma "ambigüidade" física dos genitais, como
também se lançam no embate por uma posição mais legitimada do saber próprio do
seu campo.
A partir das entrevistas e dos dados de observação, montei um esquema
elucidativo das preocupações peculiares a cada uma das especialidades. No que
se refere à cirurgia, a principal preocupação é com o resultado "estético" ou
"cosmético"10 dos genitais construídos. As técnicas cirúrgicas são empregadas
no sentido de tornar a genitália da criança "o mais próximo possível do
normal", de acordo com determinados padrões de tamanho, forma, "terminação do
trajeto urinário" (mais na ponta do pênis para os meninos; mais abaixo nas
meninas) e uso (construir vaginas "penetráveis" e pênis "que penetrem").
A endocrinologia centra seus esforços no que é denominado "função". Há uma
preocupação explícita que aquele órgão construído pelo cirurgião funcione ou,
ainda, que os sujeitos operados tenham uma genitália externa e interna
funcional. As "funções" são basicamente de duas ordens: reprodutiva e sexual.
Ainda que o endocrinologista refira que a grande preocupação da especialidade é
a de poder identificar se a doença em questão ameaça ou não a vida da
criança,11 o seguimento do trabalho centra-se primordialmente em normalizar as
funções de indivíduos mulheres ou homens. De uma forma geral, a função
reprodutiva remete à capacidade de fertilidade, e a função sexual, à resposta
ao estímulo hormonal ' aumento do pênis e possibilidade de ereção, para os
homens; não-masculinização (não crescimento de pêlos e engrossamento da voz,
desenvolvimento de mamas e menstruação) para as mulheres.
A genética preocupa-se basicamente com o diagnóstico clínico da criança, ou
seja, é a área do conhecimento que possui um arsenal de instrumentos voltados
para esclarecer a "causa" daquela enfermidade. A realidade a ser descoberta
pelo geneticista é bastante complexa e depende de vários fatores, que possuem
uma materialidade própria. Assim, poderia dizer que o geneticista, talvez por
questões pessoais das quais não tratarei neste artigo, mas também por sua
formação, é capaz de ver inúmeras possibilidades no que se refere ao sexo de
uma pessoa. É um discurso peculiar se comparado ao dos outros profissionais, no
qual mesmo fatores biológicos parecem ganhar uma estranha flexibilidade e
relativização.
A pediatria aparece como a área que recebe o paciente. Pertence ao
neonatologista o primeiro olhar sobre a genitália de uma criança. De acordo com
o pediatra, sua "posição como neonatologista é de clínico. E a primeira
[preocupação] é de salvar a vida: identificar precocemente se a criança é ou
não é uma criança que se arrisca a fazer choque por diminuição da quantidade de
sal".
Finalmente, entramos no campo da psicologia, cuja principal preocupação
identificada é com a família da criança. A representação sobre a "identidade
sexual" acionada, aqui, é a de que o psiquismo se constrói adequadamente na
medida em que há uma clareza sobre o anatômico. Nesse sentido, a família
aparece como alvo principal das intervenções e como aliada no estabelecimento
de uma coerência entre o sexo que foi definido para aquela criança e seu
comportamento em relação às expectativas sociais sobre aquele sexo. Como
aparece na fala do psicólogo:
Ficam muito confusos [os pais], né. [...] "Bom, e se ele tiver uma
cabeça de menina e for transformado em menino, como é que isso vai
ser mais tarde? Como é que eu vou criar esse filho, ele vai ser
transformado em menino, e eu vou conseguir criar ele como menino, né,
e eu tinha uma idéia de ter uma menina e agora nasceu com ambos os
sexos. Eu queria muito uma menina, como é que vão fazer?". Bom, e
tem essas confusões, né, que eu acho que aparecem muito. E, claro,
os pais têm que ser muito trabalhados também. E a criança muito,
geralmente, assim, ela é muito invadida por essas sensações que os
pais têm, né, por essas representações que os pais impõem, né, à
criança. (Psi2)
Juntas, essas preocupações constituem os fatores a serem levados em
consideração no momento de decidir se uma criança terá sua genitália
"corrigida" como feminina ou masculina. Na negociação entre saberes desses
diferentes campos, há um entrelaçamento entre as posições hierárquicas ocupadas
por cada campo de conhecimento e as decisões a serem tomadas. Pode-se
identificar, nesse sentido, quatro eixos que são privilegiados nas decisões e
que se combinam de diferentes maneiras para determinar o sexo a ser definido
por meio de intervenções cirúrgicas. Proponho denominá-los da seguinte forma:
a) a materialidade genética; b) a possibilidade técnica de construção dos
genitais; c) a possibilidade endocrinológica; d) os fatores psicossociais.
O campo da genética, na relação com todos os outros, constrói um outro tipo de
saber sobre o corpo, o qual, assim como as diferenças anatômicas percebidas
entre os corpos, possui uma materialidade particular. E, diferentemente das
classificações anatômicas, as classificações da genética escapam de um modelo
bipolar, fazendo com que as informações dos genes apontem, teoricamente, para
muitas possibilidades.
A possibilidade técnica diz respeito à cirurgia e à categoria do "poder fazer".
Com o desenvolvimento das técnicas cirúrgicas, a representação do profissional
cirurgião é a daquele que (re)faz um corpo de menino ou de menina. Existem duas
características encontradas nas falas dos cirurgiões entrevistados. Em primeiro
lugar, a idéia de desafio, que se refere não apenas à prática cirúrgica em si '
idéia de que "toda cirurgia é um desafio" ', mas também à natureza, como
aparece na seguinte fala:
[...] a gente já teve casos, assim, controversos de que a equipe
acharia... achava que não tinha que construir uma genitália
masculina. Às vezes acho que é mais difícil da equipe, não do
cirurgião, mas da equipe em si, em aceitar que dá pra se fazer um
pênis. Tinha uma frase eu mantive assim: que era mais fácil cavar um
buraco que levantar um poste. Mas hoje em dia não, a gente pode fazer
tanto menino quanto menina. (CirPed2)
Dentro da categoria que chamei "possibilidade endocrinológica", há um peso
bastante considerável atribuído ao papel dos hormônios. A endocrinologia atua
dando uma espécie de veredicto final na análise da tão citada, e tão
considerada por todas as especialidades, "funcionalidade" ou "potencialidade"
do indivíduo. Já os fatores psicossociais talvez não pesem tanto em termos
decisórios, mas atuam através da nomenclatura (o uso do termo "falos", por
exemplo) e, também, no entendimento de que existe uma precocidade da
consciência corporal, o que embasa, em grande medida, o discurso em relação à
urgência e precocidade das cirurgias.
O sexo não é apenas um terreno de saber legítimo do campo psicológico no jogo
de posições com as especialidades médicas, mas também constitui material
essencial do trabalho analítico. O sexo é aquilo que influencia todo o resto do
desenvolvimento normal ou patológico de um indivíduo. É assim que, no discurso
dos profissionais da psicologia entrevistados, destacam-se também os elementos
considerados patológicos da sexualidade. Surgem, aí, os monstros psis, aludindo
à noção de monstro elaborada por Foucault (2001),12 quando não há uma adequação
subjetiva do indivíduo com seu estado anatômico. Ressaltam-se as figuras do
borderline ' descrito como aquele indivíduo que possui, entre outros aspectos,
"transtorno de conduta", "tendência anti-social" e "dificuldade de estabelecer
relações estáveis" ' e do perverso, patologia associada diretamente, nesses
casos, à homossexualidade.13
Essas instâncias envolvidas nas decisões diferenciam os profissionais em
relação ao status da sua especialidade. É assim que, como observa Camargo Jr.
(1992) em um estudo sobre a "(ir)racionalidade" da clínica médica, são
atribuídos valores diferentes às diferentes práticas exercidas. De acordo com o
autor, há uma tendência de que as especialidades mais ligadas ao diagnóstico '
como a genética, neste caso ' sejam consideradas mais nobres que aquelas
envolvidas na terapêutica ' como a endocrinologia. Poderíamos acrescentar,
ainda, o lugar privilegiado dado ao cirurgião. Apesar do valor atribuído à
medicina baseada em evidências, o valor atribuído a este profissional remete ao
reconhecimento de que ele faz a sua arte mediado pela sua "experiência". A
"experiência" e o "dom", que resultam na destreza que se tem com as próprias
mãos, não são elementos a serem ensinados. A primeira é adquirida com o tempo;
o segundo, é privilégio de poucos.
Ao mesmo tempo, o resultado do trabalho daquele que opera só pode ser completo
quando há uma boa intervenção endocrinológica. Assim, a idéia da
"funcionalidade" e da busca da melhor "potencialidade" do indivíduo recoloca a
endocrinologia como campo de posição privilegiada, sobrepondo-se, em algumas
decisões, à genética. Arriscaria dizer que entre a genética e a endocrinologia
existe uma relação de complementaridade, mas também de distanciamento, análogo
ao que acontece entre teoria (genética) e prática (endocrinologia).
O que se encontra implícito, no entanto, em todas essas disputas e negociações
envolvendo as decisões são representações em torno da localização do sexo, de
onde reforço a idéia do sexo como diagnóstico. Há uma busca incessante em saber
onde, afinal, o sexo se coloca. Onde se inscreve a diferença entre os sexos e o
que determina os comportamentos de mulheres e homens? A partir das entrevistas,
o que se pode perceber é que o sexo, nas classificações médicas, está impresso
em diferentes níveis: molecular, cromossômico, gonadal, hormonal e psicológico.
De acordo com o geneticista, a diferenciação sexual é uma "cascata de eventos".
Até há pouco tempo, a genética partia do nível cromossômico ' possuir um
cariótipo XX ou XY ' para o entendimento da diferenciação sexual. Assim, a
presença do Y era considerada fator determinante para que uma gônada se
desenvolvesse em um testículo.
Com o avanço tecnológico e o desenvolvimento da biologia molecular, foi
descoberto, por volta dos anos de 1990, o SRY (Sexual region of Y). Nessa nova
perspectiva, pode existir um indivíduo com o cariótipo XY, onde, nesse Y, está
ausente o SRY, o que impossibilitaria o desencadeamento de uma série de eventos
responsáveis por transformar uma gônada em testículo. Por outro lado, pode
haver uma criança XX, com a presença do SRY, o que configuraria, de acordo com
o geneticista, os chamados "homens XX". Já o sexo gonadal diz respeito à
presença de testículos (estrutura masculina) ou ovários (estrutura feminina). O
sexo hormonal remete à produção ou não de testosterona, com a respectiva
existência de receptores funcionantes desse hormônio, sem os quais ele não
seria capaz de atuar e toda a "cascata de eventos" acabaria sendo prejudicada.
Além disso, existe o "sexo social" e o "psicológico", ambos dando mais ou menos
uma idéia de que ao sexo corresponde um gênero, que deve ser vivenciado
psiquicamente, mas que também deve estar adequado às expectativas sociais.
Outro aspecto interessante de notar é que o fator determinante do sexo é
atribuído ao elemento considerado masculino ' e, portanto, ativo (Martin, 1996)
' ou seja, ao Y. Então, tudo depende de ter ou não SRY, de ter ou não Y, de
produzir ou não testosterona. Isso porque, de acordo com todos os profissionais
médicos entrevistados, o desenvolvimento embriológico de homens e mulheres
parte, sempre, de uma estrutura comum, e a ação de algo masculino é que
desencadeará o processo de masculinização. Nessa lógica, o feminino é aquilo
que não se tornou masculino. Entre outros elementos, esse parece ser um fator
que faz com que seja muito mais aceitável construir uma genitália feminina em
um indivíduo XY e não uma genitália masculina em um indivíduo XX.
O que se deve destacar, também, é que a verdade sobre o sexo pode assumir desde
formas mais simplificadas (como "XY é homem" e "XX é mulher") até formas mais
elásticas e de profunda complexidade, como é o caso da genética. Da mesma
forma, existem diferentes interpretações do ponto de vista psicológico.
Encontra-se o argumento de que a presença de XY e testículo é determinante para
que um menino se reconheça como tal, e também o posicionamento de que tudo isso
informa, mas não é o sinal determinante para uma criança ou para os seus pais.
Evidentemente que, neste artigo, não será possível apontar todas as nuanças que
os informantes trazem em relação aos níveis de inscrição do sexo. Mas o que
deve ser salientado é o fato de que a impressão do sexo está para além dos
genitais. Ou melhor, é possível constatar claramente, a partir do material
etnográfico, que a diferenciação anatômica entre dois sexos é uma construção
social. Nesse sentido, como aponta Anne Fausto-Sterling (2000, p. 80), em seu
cuidadoso estudo histórico sobre os protocolos seguidos em casos de crianças
intersexuadas, existe um "imperativo social" de normatização que se transforma
em um "imperativo médico", apesar dos problemas causados pelas cirurgias.
Assim, não se pode dizer que as decisões não se apóiem em "fatos biológicos",
mas pergunto: como se define o que é natural? Ou, mais especificamente, como
definir quem é, essencialmente, homem ou mulher? E a quem cabe, em última
análise, definir?
Olhar sobre a anatomia: aprendendo a ver homens e mulheres
O segundo eixo de análise adotado neste artigo persegue a perspectiva de
gênero, utilizando-a para pensar a forma como fatores culturais perpassam as
decisões médicas, direcionando olhares, criando silêncios e interditos,
inventariando necessidades. Por outro lado, também buscarei apontar os limites
teórico-conceituais da categoria gênero no contexto dos estudos sobre
intersexualidade. O que ela, a seu turno, permite-nos "olhar"?
Mal havia iniciado o trabalho de campo, em um dos ambulatórios da cirurgia/
urologia pediátrica, já me deparava com uma exigência de fundamental
importância àqueles que são ou virão a ser médicos: o treinamento do olhar.
Mediante um exaustivo processo de "aprender a ver", estudantes e residentes vão
recebendo dicas sobre aquilo que é preciso olhar e o que, daquilo que se olha,
é "normal" ou "patológico" (Good, 1994). É dessa forma que, como aponta Michel
Foucault (1988), a medicina conserva e reforça sua legitimidade social de falar
sobre os corpos, produzindo um discurso de verdade sobre os mesmos, exatamente
como o faz sobre o sexo.
É assim que acabei sendo chamada a "olhar uma genitália ambígua". Fui convidada
repetidas vezes, o que já começava a ser feito com um tom de desconfiança em
relação à minha presença no ambulatório. Todos, ali, "olhavam". Quando um
estudante com menor experiência vinha "discutir um caso" mais complicado com
algum residente ou preceptor,14 inevitavelmente era dito, ao final da
explanação do exame realizado: "Vamos lá, então, dar uma olhada".
Implicitamente, o que se transmite é que só é possível falar sobre aquilo que
se vê, mas só é possível ver "corretamente" depois de ter sido iniciado. Isso
não seria diferente para mim.
Em relação ao olhar lançado sobre os genitais, há também um aprendizado, o que
permite que se possa dizer aos pais dos bebês ao nascimento de seus filhos: "é
menina" ou "é menino". No entanto, para aqueles sem muita "experiência", o que
inclui estudantes, alguns médicos e os familiares da criança, nem sempre é tão
claro quando se trata de uma "genitália ambígua", embora, teoricamente, existam
critérios objetivos que devam ser observados para diagnosticá-la. Houve um caso
que acompanhei no ambulatório no qual um residente da pediatria atendeu
juntamente com um residente da cirurgia. Acompanhando a discussão do caso entre
os dois, ouvi o primeiro comentar: "Não é muito ambígua, mas o pênis é meio
mal-formado". Para o que obteve a seguinte resposta daquele supostamente mais
"iniciado": "Não é não. É XY". Sendo o caso discutido mais tarde com um médico
mais "experiente" nessa área, o mesmo respondeu altivo: "É uma genitália
ambígua". Percebe-se a complexidade desse "treinamento" do olhar ' cuja
acurácia pode variar dependendo da socialização do observador ' pela seguinte
fala de um informante, sobre como são estabelecidas as diferenciações:
Eu acho que é uma questão de treinamento. Mas a coisa que mais me
choca hoje em dia, por exemplo, eu sou chamado várias vezes no
berçário por profissionais femininas, mulheres, que não sabem
reconhecer uma genitália feminina. [...] Mas porque não sabem
reconhecer uma genitália normal nem alterada. Claro, a gente sabe que
meninas prematuras têm o aumento do clitóris, né. Mas quando nós
temos uma impregnação anormal de hormônios masculinos sobre uma
genitália, há um aumento de toda a estrutura da genitália. Por
exemplo, se eu tenho um aumento, uma hipertrofia do clitóris, a
glande do clitóris, que é uma estrutura normal, está aumentada
também. Não é só em si o comprimento. Eu tenho que levar em conta a
quantidade de tecido subcutâneo nos grandes lábios, se os pequenos
lábios saem adequadamente da região inferior da glande clitoriana.
Isso são coisas de reconhecimento. A visão da genitália é essa: tu
treina ao longo do tempo, então são muitos anos, vendo o que é normal
e o que é anormal. Mas tu tem que conhecer o normal, se não tu nunca
vai reconhecer o anormal (grifo meu).
Por outro lado, o mesmo informante refere: "Tu é vista como mulher porque tu é
olhada como mulher", sugerindo que a "identidade" depende de fatores sociais
mais que de questões biológicas. Mesmo fatores biológicos considerados
fundamentais nas tomadas de decisões cirúrgicas, como o tamanho do pênis e sua
capacidade erétil, aparecem perpassados por fatores culturais, conforme também
aponta Suzanne Kessler (1996). Nesse sentido, é interessante notar que as
próprias "estruturas" físicas e "órgãos" parecem receber um olhar generificado,
ou seja, o reconhecimento da diferença é marcado por certas atribuições sociais
e culturais de determinado gênero. A utilização do termo "falos", por exemplo,
uma herança da psicanálise, é sustentada a partir da idéia de que o mesmo faz
referência a uma genitália que pode ser tanto de menina como de menino. No
entanto, como é afirmado em uma das entrevistas, quando se tem o cariótipo já é
possível falar de um "clitóris aumentado", por exemplo, e essa estrutura passa
imediatamente a ser reconhecida como feminina. O ato de nomear ' nesse caso, o
de declarar feminino ou masculino ', como argumenta Bourdieu (1982), tem,
assim, o efeito de criar, mas de forma que essa construção seja incorporada
pelos atores sociais como natural.
Londa Schiebinger (1987), em uma análise social e política sobre a busca pelas
diferenças sexuais, por volta do século XVIII, mostra como a descrição médica
da anatomia feminina é reveladora das representações de masculinidade e
feminilidade vigentes em um dado contexto cultural. A autora aponta como as
diferenças passaram a ser procuradas em cada parte do corpo humano, e essa se
torna uma questão central para a medicina moderna, bem como para a sociedade,
na medida em que o conhecimento anatômico não apenas diferenciava, mas
qualificava os corpos, estabelecendo entre eles uma relação hierárquica, com
preeminência do masculino sobre o feminino. De acordo com Foucault (1985), o
privilégio dado ao reconhecimento de uma diferença entre os sexos fez com que,
no caso do hermafroditismo, não se percebesse mais um indivíduo portador de
dois sexos, mas alguém cujo sexo verdadeiro estava para ser descoberto apesar
da falta de clareza anatômica.
Assim, pode-se dizer que o olhar sobre corpos com genitais de tamanhos,
formatos ou cores diferentes (como é o caso de crianças nascidas com
hiperplasia adrenal congênita, por exemplo, enfermidade que leva a uma
pigmentação maior da região genital) aponta para um tensionamento de dualismos
normatizadores, especialmente àqueles que correspondem ao binômio natureza
versus cultura e, conseqüentemente, sexo versus gênero. O cuidado expresso
pelos médicos de não atribuir um sexo para a criança antes de ter certeza de
seu "diagnóstico" e as constantes transgressões dos pais às orientações médicas
de não dar um nome feminino ou masculino às crianças e de tentar tratá-las da
forma mais neutra possível no que se refere ao gênero provocam a seguinte
indagação: é possível pensar em sexo sem gênero?
Teóricos clássicos como Françoise Héritier (1998) apontam o papel da diferença
anatômica e das diferenças em relação à reprodução entre homens e mulheres como
fundamentais na percepção da diferença entre os sexos. É sobre essa oposição,
segundo ela, que opera todo o pensamento da diferença e sobre a qual se
constroem, nas diversas culturas, variadas expectativas sociais e se atribuem
diferentes valores a homens e mulheres. Assim, para Héritier, como para
Bourdieu (1999), as diferenças anatômicas transformam-se em diferenças
socialmente significativas, e essas diferenças se inscrevem, necessariamente,
em uma matriz binária.
Esses autores, entretanto, ainda que sejam capazes de desconstruir algumas
categorias essencialistas, não examinam a própria oposição binária, como
comenta Joan Scott (1995) acerca de certas teóricas do feminismo. Linda
Nicholson (2000), também problematizando essa questão, aponta como algumas
feministas, coladas na idéia de uma espécie de autonomia do sexo em relação ao
gênero, acabaram apoiando um também essencialismo da própria existência
incontestável da oposição. Nesse sentido, o conceito de gênero pode acabar
reificando uma matriz heterossexista de pensamento, na medida em que desloca o
dualismo entre os sexos do lugar de uma também (e muito reificada) construção
cultural, para torná-la uma verdade biológica.
Avançando na discussão, Judith Butler (2003) destaca a impossibilidade de olhar
para o sexo sem que seja a partir do gênero, o que faz com que o sexo se
constitua, desde sempre, como generificado. Ele não é menos cultural ou mais
natural que o próprio gênero. Nessa linha de raciocínio, pensar a temática da
"genitália ambígua" e a percepção médica dos genitais é entender que o gênero é
uma prática que é re-afirmada no social e que faz com que seja possível "olhar"
um corpo de menina ou de menino. Dessa forma, diferentemente da perspectiva de
Bourdieu (1999), que considera os corpos portadores de marcas naturais, nos
quais são inscritas as marcas da cultura (o sujeito faz isso ou aquilo porque é
homem ou mulher), Butler irá propor que o corpo ganha um sentido e é algo
apenas no momento em que está atuando, ou seja, aquilo que o sujeito faz é que
o torna homem ou mulher.
Antes de Butler, Joan Scott (1995) já discutia a idéia de que o gênero e as
diferenças matizadas por ele implicavam em relações de poder e que as
diferenças que identificamos nos corpos são percebidas como diferenças
hierarquizantes porque aquele que olha, ao depositar seu olhar, já está
fabricando um corpo com gênero. Disso resulta que aquilo que é considerado
"natural", a anatomia, é o que será, paradoxalmente, construído por meio de
técnicas cirúrgicas e de intervenções medicamentosas, ou seja, o sexo deixa de
ser "natural". É nesse sentido que aparece o uso da expressão "genitália
incompletamente formada" em detrimento de "genitália ambígua", como ilustra a
fala do informante:
Que na verdade não é uma ambigüidade. A criança tem um sexo definido,
ela tem um genótipo. O que ela não tem é o fenótipo bem definido. Não
se apresenta com a genitália completamente formada (grifo meu).
Assim, ao mesmo tempo em que a natureza do sexo está no corpo, ela não está
"completa". A partir daí, a construção do "sexo completo" segue determinadas
orientações que mesclam a biologia com representações sociais associadas ao
feminino ou ao masculino: o tamanho do pênis, a capacidade reprodutiva, a
adequação dos genitais para o sexo penetrativo e heterossexual, entre outras. É
nesse tensionamento que o sexo não só se consolida como algo a ser
diagnosticado, como também a cirurgia emerge como solução para o problema
social causado pela indefinição do sexo.
Tão logo quanto possível: a cirurgia "reparadora" dos genitais e a urgência
social
Por fim, é da articulação entre os dois eixos analisados que resulta a conduta
dos profissionais. Há um consenso entre eles de que as decisões devam ser
tomadas o mais precocemente possível, assim como de que a cirurgia deva ser
levada a cabo idealmente antes dos dois anos, embora dois dos entrevistados se
perguntem se, talvez, as próprias pessoas não deveriam ter o direito de decidir
sobre aquilo que concerne ao seu corpo quando atingissem a idade para tanto. De
qualquer forma, o argumento baseado no bem-estar psicológico dessa criança que
irá viver em uma sociedade que exige uma definição é o mais apoiado.
Entretanto, é preciso ressaltar que a necessidade cirúrgica se constrói como
uma resposta à necessidade lógica da sociedade de pensar um indivíduo como
masculino ou feminino. A ambigüidade aparece como um estado social
insuportável, perigoso, onde o que é ameaçada é a própria estrutura dessa
sociedade (Douglas, 1991). Os profissionais, vivendo nesse contexto,
compartilham a exigência cognitiva de pensar as pessoas como homens ou mulheres
e são chamados a responder a ela, como aparece na seguinte fala:
[...] Então, a primeira coisa que eu acho, assim, "É menina ou é
menino?". Isso toda a família quer saber. Os pais querem saber, os
irmãos querem saber e a gente vai dizer o quê pra família, né? Como é
que a gente vai educar? Então, a primeira coisa, assim, vai se dizer
o quê pra família? É homem? É mulher? Que nome que vai ser dado? Vai
ser registrado como? Então, do ponto de vista social, né, essa
criança vai ser educada como?
Nesse processo de definição de homens e mulheres, os critérios utilizados para
avaliação claramente seguem normas sociais, sendo informados por representações
de masculinidade e feminilidade partilhadas pelos atores sociais. É dessa forma
que, quando se pensa em "fazer" uma menina, os fatores levados mais em
consideração, em ordem de importância, correspondem à capacidade reprodutiva
(ter ou não útero e ovários funcionantes) e à possibilidade de reconstrução
anatômica de uma vagina que possibilite, para a mulher, mais tarde, relações
sexuais prazerosas (o que é associado à preservação das enervações do clitóris)
e que possa ser penetrada por um pênis. Para os meninos, as normas parecem ser
mais complexas de serem correspondidas, aparecendo como fatores a serem levados
em consideração, também em ordem de importância, o tamanho e a capacidade
erétil do pênis, a possibilidade de sentir prazer (o que é associado à
ejaculação) e de penetrar adequadamente uma vagina, a capacidade reprodutiva e,
o que é bem significativo em termos de representação de masculinidade, a
capacidade de "urinar de pé" e não "como uma menina".
Nas decisões, algumas combinações exigem a escolha por uma situação ou outra,
especialmente quando não existe a correspondência com uma possibilidade "ideal"
de normatização, qual seja, indivíduos férteis e adequados para manter relações
sexuais penetrativas com parceiros do sexo oposto. É assim que, dentro do que
parece ser melhor ou pior para um determinado indivíduo, há um certo consenso
de que é mais grave, socialmente, um homem que tenha um pênis pequeno e/ou não
erétil que uma mulher infértil, da mesma forma que a presença da fertilidade
feminina parece se sobrepor a qualquer outro fator.
Esse processo de "fazer" homens e mulheres, entretanto, coloca os profissionais
frente a um impasse, que corresponde, justamente, a essa sobreposição do
artificial sobre o que é considerado natural e vice-versa. Desse impasse,
deduz-se o limite da técnica: é possível fazer verdadeiros homens e verdadeiras
mulheres? E o que constitui a verdade de um sexo que não seja perpassada por
condicionantes sociais?
Entre a boa prática profissional e o bom profissional: algumas reflexões finais
Ao final deste artigo, sinto-me obrigada a realizar algumas considerações sobre
aspectos éticos envolvidos nessas decisões. É preciso dizer que os
profissionais com os quais tenho convivido fazem seu trabalho de uma forma
muito séria e que as decisões, longe de serem encaradas como simples, são
analisadas e estudadas. É possível perceber o envolvimento do médico com as
crianças e com os familiares, a sua preocupação e o grau de confiança que se
estabelece entre eles. No ambulatório e durante as reuniões de equipe, pude
presenciar situações delicadas em que a equipe conseguiu pensar saídas muito
sensíveis e coerentes com todo um sistema de pensamento que, afinal de contas,
diz respeito ao seu campo científico. Há uma preocupação, além disso, em
utilizar todo o conhecimento técnico disponível para promover a satisfação
futura da criança intersexuada.
Cheryl Chase (1999), no entanto, em um belo artigo cujo título traduzo aqui
como "O progresso cirúrgico não é a resposta à intersexualidade", afirma que as
boas intenções dos profissionais não representam, necessariamente, uma boa
prática profissional. A autora aponta algumas questões éticas que devem ser
pensadas quando se trata de decidir por uma cirurgia "reparadora" dos genitais.
Em primeiro lugar, ela declara que, assim como não se sabia das conseqüências
que teriam as técnicas mais antigas, hoje não se tem certeza de qual será o
destino de crianças submetidas às novas intervenções, a despeito das promessas
de maior qualidade das técnicas cirúrgicas. Além disso, ela lança uma questão
provocadora à própria estrutura do saber médico quando levanta o argumento de
que a falta de um consentimento informado dos pacientes tem como conseqüência o
efeito de calar suas vozes e suas necessidades.
O que se pode apreender no trabalho de campo realizado, por outro lado, é que,
ainda que de forma menos enfática, essa também é uma questão para os
profissionais de saúde. Eles relatam seus sentimentos de dúvida e concordam que
deveriam existir estudos longitudinais que acompanhassem os pacientes e que
avaliassem o seu futuro bem-estar psicológico, sexual, entre outros. De fato,
não parece ser essa a questão mais controversa no que diz respeito aos
profissionais. O que os aflige é, em grande parte, o fato de que são demandados
a fornecerem respostas a questões como, por exemplo, qual o sexo e a orientação
sexual de um indivíduo. Assim, o poder de falar e de ditar normas sobre o
corpo, ao mesmo tempo em que lhes concede um sem número de privilégios, do
ponto de vista social, também faz com que sejam pressionados por suas próprias
certezas. Fazer uma boa medicina implica em ter que lidar com as dúvidas que
possam existir e com as incertezas deixadas pela própria medicina. Como relata
o endocrinologista:
Acho que é um dos diagnósticos mais complicados que existe. Acho que
nunca é assim: "é isso". Dificilmente a gente diz "é isso". É um
negócio que envolve tanto tanto estudo e tanto debate, tanta
conversa com profissionais que eu acho que eu nunca tenho certeza de
cara quando... A hiperplasia adrenal é uma coisa mais fácil de todas,
quando a gente vê. Então a gente sabe, é mulher. Mas o resto, sempre
deixa embananado. [Em que sentido, assim, que deixa embananado?]
Embananado. "Mas o que será isso?" Porque assim, ó, quais são as
situações que eu preferiria que o meu paciente tivesse? São aquelas
situações que vão deixá-lo mais certamente no sexo escolhido, vão
deixá-lo fértil. Quer dizer, provar pra ele que eu escolhi o sexo
certo. Então, eu acho que esse é sempre um diagnóstico que deixa a
gente perturbado assim por por querer saber o melhor possível o que
essa criança tem. E é muito, muito, muito difícil.
Em face de todos esses elementos apontados, acredito que o tema das decisões em
casos de crianças com ambigüidade genital não apenas provoca o antropólogo a
uma revisão de conceitos, como também o lança a uma discussão ético-política.
Esse tema apresenta novas questões para a antropologia, como, por exemplo, a
necessidade de repensar as relações entre natureza e cultura no contexto dos
avanços tecnológicos. Isso significa também repensar, nos estudos em
sexualidade, as relações entre sexo e gênero. Do ponto de vista ético-político,
urge desconstruir essencialismos que legitimam uma matriz heteronormativa de
pensamento, a qual provoca mutilações na pele e na vida daqueles que não
correspondem ao seu mandato.
Notas
1 Quimera: 1. Monstro fabuloso, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de
dragão; 2. [...] sonho; 3. [...] absurdo [...] (Dicionário Aurélio). Palavra
também utilizada para se referir à condição genética de possuir no corpo
tecidos geneticamente diferentes. Considerada uma das etiologias de "genitália
ambígua".
2 A sigla 46 XX (ou 46 XY) é uma convenção biomédica, em que 46 diz respeito ao
número total de cromossomos de um indivíduo e XX ou XY referem-se a um dos
pares desse conjunto e são chamados de "cromossomos sexuais".
3 Gônadas com alterações na "função reprodutora".
4 Ver, por exemplo, o conceituado periódico médico, de tiragem semanal, New
England Journal of Medicine (NEJM). No volume 350, número 4, 22 jan. 2004,
foram dedicados ao tema da diferenciação sexual o "editorial" e mais três
sessões da revista ("A Imagem em Medicina Clínica", "Um Artigo de Revisão" e "O
Artigo Original").
5 Ver o site www.isna.org.
6 Explorarei apenas alguns aspectos do processo de tomada de decisão da
perspectiva dos profissionais de saúde. Outros elementos serão analisados em
trabalhos futuros, bem como serão incluídos em minha tese de doutorado sobre o
tema.
7 "Residente" é um médico já formado que está fazendo especialização no
hospital. Todo residente da cirurgia pediátrica já é cirurgião geral e leva
mais três anos (R1, R2 e R3) para concluir a cirurgia pediátrica.
8 Usarei siglas, não nomes, sem especificar o sexo dos profissionais (tratando
todos pelo masculino), para proteger seu anonimato. Ressalto, entretanto, que
apenas um do médicos é mulher e, apesar da diferença de sexo, sua fala converge
com a dos demais. Além disso, creio que possa considerar os pressupostos do
campo médico, de forma abrangente, como marcadamente masculinos (Shiebinger,
1987; Martin, 1996; Miller e McGowen, 2000).
9 Trata-se de um hospital-escola, com grande complexidade tecnológica, do Rio
Grande do Sul. Nele é prestado, diariamente, atendimento a um vasto contingente
populacional. No que se refere aos casos diagnosticados como "estados
intersexuais", pôde-se identificar, via registros de prontuários, mais de cem
pessoas internadas nesse hospital de 1990 até 2003, de várias idades e locais
do estado. Isso significa uma média de dez pessoas ao ano.
10 Mediante um estudo exploratório em prontuários de crianças submetidas à
cirurgia, pude constatar que o termo "cosmético" é freqüentemente utilizado,
recebendo o mesmo sentido de "estético", relativo à aparência.
11 Refere-se aos casos de crianças com hiperplasia adrenal congênita perdedora
de sal. A falta de diagnóstico e de intervenção medicamentosa, nesses casos,
levam, inevitavelmente, as crianças a óbito com pouco tempo de vida.
12 De acordo com Foucault, "o que define o monstro é o fato de que ele
constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das
leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza" (2001, p. 69-70).
13 É interessante notar que a homossexualidade como perversão ou patologia
psíquica foi definitivamente excluída do Diagnostic and Statistical Manual,
Mental Disorders (DSM) em sua terceira versão revisada, de 1987 (Russo, 2005).
Atualmente estamos na quarta versão do manual. Entretanto, a conexão perversão-
homossexualidade permanece no imaginário tanto de alguns psicólogos como do
senso comum.
14 Médico contratado ou médico professor que tem a tarefa de supervisionar
residentes e estudantes de medicina em sua prática.