Homossexualidade, gênero e cura em perspectivas pastorais evangélicas
[...] eu vi lágrimas naquele rosto. Vi, sim, rosto de mulher. Ou quem sabe era
homem? Não dava pra dizer o certo. Mas chorava. Certeza, eu só tive uma: era
entendido. Entendido em sofrimento, em dor, em ser magoado, saber direitinho o
que é humilhação, vexame, até pancada. Entendido em perder... Alguns perderam a
dignidade; outros até a própria vontade de viver. Entendido em preconceito no
trabalho, nas ruas, na família, na igreja. Entendido em AIDS. Entendido em
ouvir deboches na rua e caminhar de cabeça baixa, tentando não ser notado. Ou
arrogantemente, com a cabeça erguida, olhando desafiadoramente para as pessoas,
disposto a agredir antes de ser agredido... Entendido em disfarces, mentiras. E
muitas vezes quando olha no espelho, não se vê homem nem tão pouco mulher. E
descobre que não é nada. Não é homem nem mulher.
JULIO SEVERO, ESCRITOR EVANGÉLICO
Em agosto de 2004, um projeto em tramitação na Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro chamou a atenção da opinião pública e desdobrou-se em
delicada controvérsia sobre a possibilidade de mudança da orientação sexual dos
homossexuais.1 À época, desenvolvia uma pesquisa sobre as concepções da
homossexualidade entre evangélicos na cidade do Rio de Janeiro. Ao acompanhar a
atuação de grupos religiosos como o Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses), o
Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e a Associação Brasileira de
Apoio a Pessoas que Voluntariamente Desejam Deixar a Homossexualidade
(Abraceh),2 entrevistava homens pertencentes a comunidades pentecostais que já
haviam mantido relacionamentos homossexuais ao longo de suas vidas, buscando
investigar os nexos entre a experiência religiosa e os processos de construção
de si.3
Na primeira etapa da pesquisa, o discurso religioso que contemplava a noção de
cura da homossexualidade apareceu como perspectiva hegemônica,4 defendida por
diferentes denominações, apesar das variadas ênfases cosmológicas e
doutrinárias destas igrejas.5 Assegurando a possibilidade da "transformação"
dos indivíduos em ex-homossexuais ' enunciada na esfera pastoral como uma
"esperança àqueles que sofrem" ', a fala dos religiosos adentrava a arena
política em um projeto que previa a alocação de recursos estatais para
iniciativas religiosas voltadas à recuperação de homossexuais. Um deputado
religioso chegou a conceder parecer favorável ao projeto nos seguintes termos:
Homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se
complementarem e se procriarem. O homossexualismo apesar de aceito
pela sociedade é uma distorção da natureza do ser humano normal.
Assim, a oportunidade de se apostar novamente na condição normal de
procriação é louvável e por isso meu parecer é favorável (Deputado S.
Malafaia-Relator).
O tema repercutiu na grande imprensa e contou com a reação de diversos setores
da sociedade civil: movimentos sociais, intelectuais, personalidades públicas e
ONGs manifestaram seu repúdio ao fundamentalismo e à homofobia dos evangélicos.
O debate demonstrou a necessidade premente de investigação das perspectivas
religiosas no que se refere à sexualidade no Brasil contemporâneo.
A produção antropológica voltada às esferas do entrelaçamento entre religião e
sexualidade ressalta os impactos da adesão religiosa sobre a construção do
gênero e da sexualidade feminina (Machado, 1996; Machado e Mariz, 1996). Embora
alguns estudos tematizem determinados aspectos da regulação da sexualidade
pelas doutrinas evangélicas, pouco tem sido escrito especificamente sobre a
homossexualidade. Este artigo pretende contribuir para esse debate, enfocando
discursos sobre práticas homossexuais em perspectivas pastorais e doutrinárias
evangélicas.
Pesquisas recentes apontam para transformações no panorama religioso brasileiro
em relação a temáticas pertinentes à esfera da sexualidade ' como, por exemplo,
a exigência de fidelidade para homens e mulheres, indicando uma minimização da
assimetria entre os gêneros (Machado, 1996; Fernandes et al, 1998). No contexto
evangélico, em questões como aborto, homossexualidade e escolha sexual parece
haver certa impermeabilidade à mudança (Mafra, 1998). A despeito de uma ênfase
no discurso deacolhida, permanece a idéia de que tais práticas são pecaminosas.
Assim, ainda que a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) se destaque em um
conjunto mais amplo de comunidades religiosas pela maior aceitação de
homossexuais em seu quadro de fiéis (76% dos entrevistados dessa igreja afirmou
que jamais excluiria um homossexual do espaço congregacional), a defesa desta
atitude deve ser vista menos como aceitação da prática homossexual e mais como
"motivo primeiro para um cuidado pastoral" (Fernandes et al., 1998, p. 117).
Essa postura pastoral propicia uma proliferação das falas que opera como uma
verdadeira explosão discursiva (Foucault, 1997). O foco de interesse deste
artigo é direcionado às perspectivas de gerenciamento das práticas sexuais a
partir de um determinado discurso sobre a homossexualidade. Trata-se de
discutir, sobretudo, os nexos entre as concepções de corpo, gênero e
sexualidade presentes no discurso religioso.
A proposta insere-se em uma abordagem antropológica que privilegia a construção
social e cultural da sexualidade. Tem-se como pressuposto básico o fato de a
conduta sexual ser um domínio que depende da socialização e da atribuição de
significados, regulada por parâmetros sociais (Heilborn, 1999; Weeks, 1999).
Considero a religião como uma dessas instâncias de controle, visto que
constitui sistemas simbólicos capazes de fornecer sentido à ação social,
introduzindo disposiçõesemotivações, um certo modo de ver, apreender e
entendero mundo (Geertz, 1989). Nesse sentido, compreender que valores são
difundidos pelo discurso religioso contribui para o desvelar das lógicas
culturais que informam a experiência e orientam a ação social (Fry, 1982).
Na primeira parte, trato das formas de problematização da homossexualidade em
discursos religiosos brasileiros. Na segunda, o foco é dirigido às técnicas que
compõem o discurso sobre curae libertação da homossexualidade, com vistas a
compreender quais as perspectivas de regulação da sexualidade neste contexto.
Antes de proceder à análise do discurso evangélico cabe uma contextualização do
material etnográfico. Os textos que focalizo na primeira parte contemplam a
produção discursiva evangélica brasileira sobre o tema. Recolhidos a partir de
um mapeamento do universo editorial evangélico,6 consistem em livros e textos
brasileiros que abordam diretamente a homossexualidade: cerca de dez títulos da
autoria de pastores e líderes religiosos, em sua maior parte atuantes em
trabalhos pastorais com homossexuais. Artigos recolhidos no âmbito da atuação
do Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses) completa o corpus do material
examinado na primeira parte. A opção por priorizar esses textos deve-se ao
lugar dessa iniciativa religiosa no campo evangélico: o Moses possui atuação
"interdenominacional" e é atualmente um importante articulador de trabalhos
pastorais direcionados a homossexuais. Criado em 1997, no Rio de Janeiro,
promove aconselhamento, palestras e "capacitação" para a evangelização de
homossexuais, além de divulgar em seu site (www.moses.org.br) endereços e
contatos de diversas instituições e iniciativas religiosas com objetivos
similares.
Na segunda parte utilizo um material distinto, apesar de fazer referências à
literatura antes discutida. Examino a produção discursiva sobre cura da
homossexualidade (quatro títulos estrangeiros) e sobre libertação (dois títulos
estrangeiros e quatro nacionais), incluindo falas de líderes religiosos
proferidas em cultos pentecostais. A incorporação de publicações de autores
estrangeiros justifica-se por figurar como "leitura indispensável" para quem
deseja obtercura da homossexualidade em certos contextos religiosos. Deixando o
homossexualismo, por exemplo, de Bob Davies e Lori Rentzel, é indicado no site
do Moses como o livro mais importante sobre homossexualidade. Autores como a
médica cristã Rebecca Brown e a pastora brasileira Neuza Itioka, foram-me
apresentadas por diversos informantes como "especialistas" em batalha
espiritual, referências importantes no meio evangélico no que se refere a
técnicas de libertação. De um total de dez livros, seis são de autoria de
pastores ou líderes religiosos queministram7 libertaçãoe quatro de autores que
atuam em pastoral com homossexuais.8 Assim, a presente literatura é tomada como
documento, com conteúdo programático utilizado em contextos rituais que
envolvem práticas de libertação e cura. A relevância desta análise justifica-se
também pela grande procura desses livros.9 A participação como visitante no
âmbito do Congresso Profético Apostólico 2005, permitiu acesso a palestras
sobre restauração sexuale também observação etnográfica em ritos dedicados ao
tema.10
Do construtivismo moral ao naturalismo do gênero
Os artigos divulgados pelo site do Moses contemplam temas diferenciados como
movimento homossexual, parceria civil entre homossexuais, abuso sexual,
pornografia, pedofilia, prostituição, gênero, aborto, teologia gay e movimento
feminista. O teor de sua abordagem confere uma forte ênfase à problematização
do "estilo de vida homossexual". Assim, apesar de o Moses sinalizar para um
objetivo mais amplo de "ajudar os que sofrem de desvios sexuais de quaisquer
espécies", fica evidente a preocupação específica com a homossexualidade. Na
abordagem de cada um dos temas, apresenta-se um julgamento moral sobre as
práticas homossexuais. As referências ao estilo de vida gay são inúmeras e
constantes mesmo em textos que tratam de temas mais gerais, como, por exemplo,
igualdade sexual. O entrecruzamento entre natureza e gênero indica o
entranhamento da sexualidade em uma ordem moral abrangente, cuja determinação é
divina A epígrafe deste artigo é ilustrativa desse aspecto: "nem homem, nem
mulher", o pecado homossexual é desafiar uma ordem do mundo instaurada por
Deus. Nessa percepção, práticas sexuais entre homens ou entre mulheres
contrariam uma determinação divina com relação aos gêneros e a sexualidade. A
mensagem religiosa completa-se na afirmação de que o desejo homossexual é
passível de mudança.
A proposta pastoral apresentada no contexto da literatura evangélica11 possui
conteúdo similar: há uma forte preocupação em apontar a verdade bíblica sobre
os fatos relacionados à homossexualidade. O livro O dia em que nasci de novo
(1993), do pastor João Carlos Xavier, apresenta o testemunho do próprio autor '
ex-homossexuale ex-travesti ' com o objetivo de "comprovar o que Cristo faz na
vida de alguém aparentemente irrecuperável".
O conjunto dos artigos e livros conta com certa homogeneidade tanto em sua
estrutura como em seus conteúdos: apresentam discussões sobre a origem da
homossexualidade, seguidas pela explanação da verdade da Bíblia, para comprovar
a possibilidade de cura. Também apresentam uma caracterização negativa da
homossexualidade, acentuando os aspectos de uma "vida pregressa" associada a um
comportamento desordenado, imoral e que conduz ao sofrimento. Recorrentes
"exemplos" de cura contrastam o momento anterior e posterior à conversão do
"ex-homossexual", sinalizando para a necessidade de adequação ao modelo
normativo para os gêneros. Nestas narrativas, o passado está associado a uma
espécie de inversão do gênero, oposto ao presente "restaurado", quando o
homossexual masculino, por exemplo, pode transformar o "pecado do
homossexualismo" na "bênção da heterossexualidade" por meio do casamento e da
constituição de uma "família de Deus".12
No material examinado, algumas afirmações sobre a homossexualidade são
recorrentes: 1) trata-se de um comportamento aprendido; 2) de um problema
espiritual; 3) é uma antinatureza. Tais conceitos sustentam um posicionamento
mais geral dos evangélicos de que o homossexualismo não representa um atributo
"natural" do sujeito. Subjacente à concepção de que estas práticas podem
serabandonadas pela restauração e cura, há a idéia de uma natureza
heterossexual. Vejamos como essa retórica se constrói pelo exame de cada
enunciado.
Homossexualidade: comportamento aprendido?
Um dos temas centrais desses textos refere-se à gênese da homossexualidade. Uma
discussão acalorada acerca da origem do comportamento homossexual apresenta-se
a partir do confronto de teorias advindas dos saberes da biomedicina ' que
sustentam uma visão genética determinista ' com aqueles que afirmam a
"construção" da homossexualidade. Grande parte dos autores examina e refuta
teorias que consideram a existência de uma pré-disposição ou tendência inata à
homossexualidade, para em seguida afirmar o primado das influências ambientais,
sociais e psicológicas na conformação das identidades homossexuais.
Lísias Castilho,médico cristão, autor do livro Homossexualidade, discute o tema
no capítulo intitulado "Perspectiva biológica" e sustenta o posicionamento de
que os saberes científicos "são transitórios". Apesar de homens e mulheres
serem diferentes "anatomicamente, hormonal e funcionalmente desde a concepção",
as "diferenças entre homossexuais e heterossexuais do mesmo sexo nunca foram
claramente demonstradas, nem na esfera mental, nem na física". Para o autor,
diversos estudos de base científica teriam falhado em seu esforço de demonstrar
"a transmissão genética de tendências homossexuais" (Castilho, 1990). Assim,
apresenta uma apropriação seletiva de algumas teorias psicologizantes e define
"como" uma pessoa se torna homossexual: "abuso sexual na infância",
"dificuldade na relação das crianças com seus pais" e "relacionamento
deficiente com o genitor do mesmo sexo" são alguns dos fatores que propiciariam
o aparecimento dessa deficiência ou doença. Seu texto é ilustrativo: "Ousamos
afirmar, tal como tantas autoridades no campo da Psicologia, que o homossexual
é, antes de tudo, um doente e, como tal, passível de tratamento e cura" (Idem,
p. 65).
O exame da retórica construída por este autor sinaliza uma visão recorrente
acerca da "origem" da homossexualidade. Nessa literatura, o comportamento
homossexual é aprendido por meio de experiências negativas. As idéias que
Castilho defende caracterizam uma espécie de tônica geral dos textos, com
pequenas variações, em torno dos "fatores" que influem na "conformação" de uma
identidade homossexual. Com efeito, os argumentos são contrários a uma visão
essencialista da homossexualidade. O homossexual é portador de sintomas de uma
psique enferma. Homossexuais são dados à depressão e ao suicídio, são
instáveis, insegurose imaturos.Enfatiza-se uma representação patologizadadas
práticas homossexuais, articulada em torno das concepções de vício, compulsãoe
transtornos mentais. Em outro plano discursivo, acentua-se que tais práticas
são "hábitos profundamente arraigados" que, contudo, constituem um estado
passível de alteração: "as pessoas não são homossexuais mas estão homossexuais"
(Santolin, 2001, p. 28); "o problema, portanto, não é ser ou não homossexual,
mas estar ou não estar homossexualizado" (Souza, 2004). A homossexualidade é
vista, fundamentalmente, como resultante da socialização em famílias
desestruturadas, nas quais a ausência de firmes modelos de masculino e feminino
produziria uma espécie de identificação com o gênero errado. É recorrente nesse
contexto o uso da expressão transtorno ou crisede identidade de gênero. Pais
ausentes e mães dominadoras são personagens obrigatórios nos casos evocados
como exemplos de homossexualidade masculina.
Homossexualidade: problema espiritual?
A noção de problema espiritual suscita uma caracterização da homossexualidade
que se aproxima da idéia anterior, em defesa da possibilidade de "reversão", já
que ambas imputam à homossexualidade certa externalidade ao indivíduo, isto é,
não a consideram algo inato.
J. Cabral, no livro O amor às avessas: homossexualismo, trata dos aspectos
espirituais que podem conduzir à homossexualidade. Sobretudo, a adesão a
rituais e crenças não evangélicos "podem ser inspiradoras do comportamento
homossexual", levando à promiscuidade e perversão: "os casos de possessão
demoníaca podem estar associados diretamente à atividade homossexual. Acredita-
se, inclusive, que existem demônios cuja atividade específica é provocar esse
tipo de distorção nos seres humanos, afastando-os dos ensinamentos de Deus"
(Cabral, 1995, p. 22). João Carlos Xavier, com seu testemunho como ex-
homossexual, atualmente pastor da Assembléia de Deus ' casado com uma serva de
Deus e pai de um filho ' apresenta visão semelhante no livro O dia em que nasci
de novo. Seu homossexualismo teria se desenvolvido na umbanda, quando legiões
de demônios"atuaram em sua vida" e "tomando seu corpo", o despertaram para os
desejos homossexuais. A narrativa de Xavier é pontuada por considerações sobre
o caráter maligno dos impulsos homossexuais. Considera-se que este pecado
sexual é perpetrado por indivíduos que têm diabo no corpo ou que estão sob
influência de pombas-gira e outros exus. Esses argumentos, de teor cosmológico,
configuram uma percepção físico-moral da homossexualidade, na qual o pecado
abre brechasna corporalidade. O demônio instila sensações, movimentos,
contrações involuntárias. Voltaremos a este ponto adiante, no momento cabe
enfatizar que a luta contra a homossexualidade enseja a participação ritual e
processos de purificação na resolução de um problema espiritual.
Esses dois livros ilustram a tônica das idéias apresentadas no conjunto do
material examinado. Práticas homossexuais são apreendidas em experiências
negativas de abuso, trauma, violência e rejeição(versão psicológica); ou dizem
respeito a uma complexa cadeia de significados cosmológicos que recorre à
teologia da batalha espiritual13 ao considerar a atuação de demôniossobre a
esfera da sexualidade dos indivíduos. Tive acesso a esse tipo discurso não
apenas na literatura, mas vários informantes afirmaram que esta é uma concepção
difundida em suas igrejas.14 No ambiente religioso considera-se que "os
demônios são sexualmente transmissíveis". Nesse sentido, o pecado do
homossexualismo deve ser evitado porque permite a infestação por seres malignos
(Natividade, 2005, 2003a e b). Sob a ótica dessa perspectiva, os transtornos
sociais e psicológicos que colaboram para o desenvolvimento do homossexualismo
podem ser causados por influência espiritual. De qualquer modo, em ambos os
casos, a homossexualidade é externa ao indivíduo: sentimentos ou desejos
homossexuais não constituem atributos inatos ao sujeito mas se conformam a
partir de uma constelação de fatores "sociais" ou "espirituais".
Ampliando o foco de visão para o universo religioso, este discurso contrasta,
sobretudo, com o da Igreja Católica, que não nega a prática homossexual como
sendo uma tendência. Os católicos consideram a possibilidade de a
homossexualidade constituir uma expressão da natureza de alguns indivíduos,
apesar da afirmação ' em um plano ideal ' da necessidade de contenção pelo
celibato e cultivo do amor de Deus (Natividade e Oliveira, 2004). Com efeito, o
estar homossexual evangélico adquire contornos mais precisos quando contrastado
com a posição relativamente mais tolerante dos católicos.15
A adoção de um posicionamento construtivistapor parte dos evangélicos deixa
margem à possibilidade de gerenciamento dos corpos na produção de uma
sexualidade dentro dos limites determinados pela doutrina. Afirmar que o
impulso homossexual tem origem em fatores ambientais ou espirituais é
justamente o que permite o controle das condutas sexuais pela promessa de
reversão da homossexualidade. A concepção evangélica, assim, conforma-se como
um construtivismo moral, que em outro plano discursivo recorre a argumentos
naturalistas em sua definição do gênero.
Homossexualidade: antinatureza?
O material examinado confere maior ênfase ao discurso que considera a
homossexualidade uma prática que se opõe à natureza, o que aponta duas maneiras
distintas de formulação. A primeira discute o uso natural dos corpos; a segunda
enfoca especialmente a esfera do gênero. Argumentos "naturalistas" são
utilizados tanto na caracterização de um uso sadio e apropriado do corpo, como
na proposta de manutenção dos papéis de gênero tradicionais e complementares.
Pode-se afirmar que certo essencialismo é re-introduzido no discurso evangélico
ao caracterizar os modelos de homem e mulher conferidos por Deus. Proponho uma
discussão a esse respeito partindo de uma passagem do livro supracitado,
Homossexualidade, do médico cristão Lisias Castilho, e de um fragmento da
matéria intitulada "Aberração", veiculada no site do Moses. Respectivamente:
O homossexualismo humano carece de sentido biológico, contraria a
destinação anatômica dos órgãos genitais e impede a procriação
(Castilho, 1990, p. 64).
Por onde se introduz a comida para dentro do corpo: é pelo nariz ou
pela boca? Por onde se introduzem as imagens para dentro do corpo: é
pela boca ou pelos olhos? Por onde se introduz o perfume para dentro
do corpo: é pelo ouvido ou pelo nariz? Por onde se introduz o esperma
para que se realize o ato de amor e se perpetue a espécie humana: é
pela boca (sexo oral)? É pelo ânus (sexo anal)? É pela vagina (sexo
natural)? [...] O homossexualismo é o abandono do modo natural por
outro contrário à natureza (Revista Ultimato, 1986).
Essas passagens indicam a preocupação com um destino "natural" que restringiria
os modos de uso do corpo. O tema central é voltado à definição dos limites para
o prazer humano. Define-se o lícito e o ilícito para o sexo a partir de uma
equação em que um comportamento normal e sadio é aquele que se orienta pelas
determinações de Deus, que estariam expressas no texto bíblico. As sexualidades
não-heterossexuais são, portanto, contrárias à Palavra e, nesse sentido, uma
"anormalidade", "aberração" e comportamento que "irrita a Deus". Um princípio
estrutural hierárquico apresenta-se, ressaltando que há "um lugar para cada
coisa": o pênis, que produz esperma, não foi criado por Deus para o prazer
individual (fora do casamento cristão), mas para a reprodução da espécie
humana, para ser depositado em um vaso natural (a vagina), também criado por
Deus. Transgredir essa ordem é abandonar um modo natural de vida. As práticas
homossexuais, como afirma Castilho, "carecem de sentido biológico" e
"contrariam a destinação anatômica" dos órgãos genitais. A família é
considerada a expressão máxima de Deus na Terra, e a reprodução com a
finalidade de constituir a família de Deus é o princípio defendido. Subjacente
a idéia de que a sexualidade deve se pautar nas regras bíblicas está o suposto,
mais ou menos velado, de que o bom' sexo é somente aquele que ocorre no
interior do casamento cristão.
Desse modo, a associação entre reprodução e práticas sexuais é um recurso
recorrente na definição do que é um modo natural e sadio de exercício da
sexualidade. Afinal, "a união civil de um homem e uma mulher leva normalmente
aos bebês, ao passo que a união sexual entre dois indivíduos do mesmo sexo leva
normalmente a doenças" (Severo, 2003, p. 3). Está esboçada aí a construção da
imagem da homossexualidade como uma prática que oferece perigo e ameaça à
sociedade pela transmissão de doenças.
A carga moral presente nos argumentos desenvolvidos em torno do enunciado da
antinatureza postula que a homossexualidade é "impureza", comportamento que
contamina e contagia, de forma que tratar o homossexualismo ' levar conversão a
esta população ' é produzir saúde social. É com este olhar que Júlio Severo,
autor do livroO movimento homossexual, examina os contatos homossexuais:
As típicas práticas sexuais dos homossexuais são histórias de terror:
eles trocam saliva, fezes, sêmen e sangue com dezenas de homens por
ano. Eles bebem urina, ingerem fezes e experimentam trauma retal
regularmente. Muitas vezes, nesses encontros, os participantes se
encontram bêbados, drogados ou em ambientes de orgia (1998, pp. 67-
68).
O uso do corpo nos contatos sexuais homoeróticos é tratado como um desejo
equivocado do homem de fazer um uso imoral (e antinatural) de si, que apresenta
"graves conseqüências sociais". Para Severo, as "práticas sexuais dos homens
homossexuais, envolvendo copulação oral após a sodomia retal assim como a
contaminação dos dedos e das mãos durante os atos homossexuais, estão fazendo
espalhar uma variedade de parasitas, bactérias e vírus pela sociedade" (Idem,
p. 69). A imagem mais recorrente da articulação entre homossexualidade-
impureza-contágio diz respeito à propagação da Aids, embora esta não seja a
única doença sexualmente transmissível que os homossexuais "vivem a espalhar".
Assim, práticas homossexuais culminam no castigo de Deus.
A dicotomia natureza versus antinatureza é, portanto, fortemente marcada ' a
partir dela se estruturam outras oposições: salvação-inferno, pureza-impureza,
vida-morte, casamento-solidão, proteção-vulnerabilidade, felicidade-destruição,
santificação-pecado. A homossexualidade, como prática antinatural, está sempre
posicionada no pólo negativo, o que corrobora para a formação de uma imagem
negativa em torno dela.
Seguindo essa lógica, Júlio Severo analisa a homossexualidade em diversos
textos. Em As ilusões do movimento gay e O movimento homossexual, o autor
aponta as "graves conseqüências sociais do homossexualismo". Para ele, os
homossexuais são pedófilos, abusadores, tendem ao crime, ao excesso sexual, são
dados à promiscuidade e, sobretudo, espalham doenças. Vale lembrar de que se
trata da homossexualidade masculina, promíscua, irresponsável, que ameaça a
família e propaga doenças. Em suma, expressão de uma sexualidade desordenada e
excessiva, que tem como fim a morte. A homossexualidade feminina é citada com
menor freqüência. Claudionor Corrêa de Andrade, ministro do evangelho da
Assembléia de Deus, recorre a argumentos semelhantes no livro Há esperança para
os homossexuais!. Ainda que este autor considere a homossexualidade feminina
também um pecado, sua problematização focaliza sobretudo as relações
masculinas. Com base em casos exemplares de dois homossexuais famosos (o ator
norte-americano Rock Hudson e o escritor inglês Oscar Wilde), Andrade reflete
sobre o trágico fimreservado a todo homossexual: Aids, solidão, morte e
suicídio. Rock Hudson, morto vítima da Aids em 1986, "homossexual assumido e
habituado às mais desenfreadas orgias, tornou-se vítima de sua própria
depravação". Já Oscar Wilde, para o autor, é um exemplo da forma como o pecado
"acelera a degeneração do ser humano"; "sua patética história é a inexorável
redução de um homem a um zero humano", é a prova de que "tudo aquilo que o
homem semear, isto ceifará" (Andrade, 1987).
Vale ressaltar que, ainda que os textos se refiram à homossexualidade de homens
e mulheres em um plano ideal, há um descompasso na ênfase concedida a essas
práticas.16 Severo afirma que "é muito mais fácil os homens se tornarem
homossexuais, e isso em grande número, antes de as mulheres se tornarem
lésbicas" (2004, p. 29). A conversão é, sobretudo, voltada à recuperação de
homossexuais masculinos de uma vida pregressa de excessos, reconduzindo o
indivíduo aos valores da família, do casamento e da religião.
Ao enunciado da antinatureza deverá ser apresentado a sua contrapartida. Se os
homossexuais praticam sexo de modo não natural, então é verdadeiro que homens e
mulheres (homossexuais) nascem heterossexuais, por determinação de seu sexo
biológico:
Quando você foi gerado o seu sexo também foi determinado. [...] Você
nasceu com seu sexo definido: possui órgãos sexuais definidos,
normais e sadios. Os pêlos que cobrem seu corpo e o tom de sua voz.
Também a estrutura física, o pélvis, os testículos, os ombros largos
e a musculatura. Isso é uma confirmação que se impõe à sua situação
[homossexual] (Feitosa, 1979, pp. 10-11).
A mensagem religiosa (naturalista) indica a heterossexualidade como "norma
natural" desafiada pelos homossexuais. A psicóloga cristã Rozangela Alves
Justino revela sua perspectiva naturalista no texto Da homossexualidade à
heterossexualidade.17 Para a autora, haveria uma inclinação natural para a
heterossexualidade passível de ser redescoberta pelo recurso a terapias:
Os clientes do GA [Grupo de Amigos]18 vêm com uma "máscara" de
homossexual, procuram o GA para que sejam ajudados a tirá-la e pedem
para confirmá-los como heterossexuais. No fundo sabem que a sua
inclinação é para a heterossexualidade, mas por alguns motivos
desempenharam o papel homossexual (1997, p. 30).
A homossexualidade é, assim, uma máscara, sob a qual jaz uma natureza
heterossexual que pode e deve ser revelada, uma inclinação condizente com o
sexo biológico. Se, em certo plano "Deus criou os homens com potencial para a
homo ou para a heterossexualidade", em outro, Deus "determinou a
heterossexualidade". Os argumentos naturalistas aqui expressos só fazem
reforçar a hierarquia dos gêneros, posto que vincula fortemente o sexo
biológico ao masculino e feminino. Trata-se de um naturalismo que adquire
feições próprias, ou seja, um essencialismo moldado culturalmente pela
religião, subsumido às concepções cosmológicas e doutrinárias. A natureza de
que se fala é "natureza divina".
A cura da homossexualidade em discurso
Até o momento procurei caracterizar alguns princípios gerais que norteiam as
práticas pastorais com relação à homossexualidade. Da postura "construtivista"
ao naturalismo englobante das definições de gênero, são apresentadas concepções
sobre a homossexualidade que permitem afirmar a possibilidade de mudança de
orientação sexual. Meu intento nessa segunda parte do artigo é refletir sobre a
noção de cura da homossexualidade Analiso o fenômeno, à luz de referencial
teórico, dialogando com autores contemporâneos no campo das ciências sociais.
Em seguida, focalizo as técnicas pastorais que propõem a cura pela via da
experiência religiosa e examino noções empregadas como restauração sexual, cura
das memórias e libertação.
O trabalho de Delma Pessanha Neves (1984), sobre comunidades da Assembléia de
Deus, aponta uma perspectiva analítica relevante. De acordo com a autora,
fenômenos de cura milagrosa, em um sentido genérico, reportam à necessidade de
ordenar, submeter o indivíduo divergente ou sem fé às regras vigentes entre os
crentes. O ideal de cura enfatiza a necessidade de adequação do indivíduo às
normas e às prescrições religiosas, visto que o adoecimento e os infortúnios,
de uma forma geral, remetem ao apartamento de Deus e à submissão aos prazeres
carnais. Fenômenos de cura espiritual podem ser mais bem entendidos se
inseridos no contexto de "atos ritualizados, que expressam a relação dos homens
com o mundo por eles sobrenaturalizado ou com os poderes que atribuem às
divindades" (Neves, 1984, p. 5). Com efeito, a noção de cura milagrosa
pressupõe classificações relativas à doença e à saúde (felicidade e
infortúnio), inseridas em um quadro referencial cosmológico e doutrinário.
Partindo dessa visão, o que seria passível de cura estaria situado em um
conjunto muito amplo de fenômenos, que abarcam desde problemas orgânicos até
desavenças familiares, desemprego, vícios de qualquer ordem, assim como os
possíveis desvios na esfera da sexualidade (adultério, homossexualismo etc.).
Nesse sentido, a cura de uma doença, a obtenção de um trabalho e a organização
da vida familiar ' tudo o que diz respeito à ordem idealizada na perspectiva
doutrinária ' são signos da condição de escolhido de Deus e protegido pelo
Espírito Santo (Neves, 1984). O pecado é associado ao castigo, à degeneração
humana, em oposição à onipotência de Deus, à graça, ao merecimento e ao poder
mediador do Espírito Santo, que "naturalmente" os convertidos conseguem obter.
Configuram-se, assim, percepções de doença e saúde que articulam o físico e o
moral.
A análise da socióloga Cecília Mariz (1994) sobre a recuperação do alcoolismo
entre os pentecostais de camadas populares no Rio de Janeiro traz novos
elementos para reflexão. Para ela, o processo de conversão religiosa inclui
certos modos de interiorização, ou seja, é a partir da adesão religiosa que o
indivíduo se torna reflexivo e pode obter a libertação de "problemas" como o
alcoolismo. Mariz ressalta que é na tensão entre liberdade e determinação que
se produz a pessoa liberta no contexto de crenças evangélicas
pentecostalizadas:19 "o conceito de liberdade pentecostal assim se reporta a
uma submissão a Deus, ou seja, a sua regra e a seu plano" (1994, p. 207). No
sentido pentecostal, ser livre não significa seguir os impulsos e desejos
individuais, mas, ao contrário, viver a Palavra, segundo a ética e as
determinações de Deus. Trata-se de uma visão de mundo que articula magia '
posto que é encantada ' e ética, caracterizando uma forma de construção da
pessoa que é, ao mesmo tempo, paradoxalmente individualista e holista: valoriza
a transformação individual e incentiva a dependência de Deus e da comunidade
religiosa. Nesse sentido, cura, libertação e regeneração pessoal aparecem como
categorias intimamente vinculadas.
Clara Mafra (2002) também analisa a libertação evangélica, especialmente ao se
deter sobre o sistema ritual da Igreja Universal do Reino de Deus, ressaltando
o sentido performativo dessa forma religiosa que incentiva mudança do sentido
ontológico. A constante referência ao demônio e a redescoberta de um mal
personalizado reforçam o dualismo entre o bem e o mal e enfocam as performances
que se realizam no culto religioso: a manifestação do demônio ' e sua confissão
acerca do mal que causa aos fiéis ' fornece aos participantes um roteiro e um
sentido para o sofrimento. Contudo, é também no contexto ritual que o crente
aprende a derrotar o maligno. As orações poderosas, a corrente humana e a
atuação do pastor, que exerce sua autoridade na expulsão dos demônios, tornam o
culto uma espécie de aula de enfrentamento do mal. Desemprego, angústias e
aflições são obra daquele que vive a atazanar os homens e a disputar com Deus a
habitação do corpo do crente. Em contraste, viver em Cristo e tornar-se um
templo do Espírito Santo resguarda das investidas do enganador, capacitando o
crente a enfrentar as provações e as tentações no cotidiano. Para Mafra, cura e
libertação são obtidas pela busca agonística de purificação ritual que envolve
"queima ou amarração" do maligno, mas nunca sua derrota total. Assim, na
"libertação ritual neopentecostal, o demônio nunca é vencido de uma vez por
todas, mas sofre derrotas provisórias, uma após outra, no caso de batalhas bem
sucedidas" (Idem, p. 219). Trata-se de um sistema religioso que objetiva, por
meio de processos rituais de purificação, a transformação do indivíduo em um
campo, uma superfície apta a ser habitada pela divindade (o Espírito Santo).
Mafra, como outros autores, aponta a existência de determinadas formas de
construção da subjetividade e da pessoa nesse contexto religioso, no qual as
noções de cura, libertação e regeneração pessoal estão necessariamente
presentes no aprendizado da teoria da pessoa dessa cosmologia.
A partir dessa discussão teórica, é possível distinguir três categorias no
discurso evangélico que analisamos: cura, libertaçãoe restauração sexual. A
primeira é alcançada em um processo, referido como cura das memórias, o que
indica a influência de um discurso psicologizante na prática religiosa. Já a
libertação toma como ponto de partida a noção de possessão e enseja uma prática
ritual na qual fiel e pastor encenam performances de expulsão do mal. A
categoria restauração sexual circunscreve um ideal a ser atingido: a adequação
a um modelo de gênero condizente com o ideal de homem e mulher de Deus. Parto
dessa classificação mais geral para a análise dos discursos sobre a cura da
homossexualidade.
Restauração sexual: o retorno ao gênero natural
Em primeiro lugar, cabe contextualizar o ideal em que se funda a concepção de
restauração da sexualidade. Os discursos pastorais que privilegiam o uso dessa
noção apresentam uma forte perspectiva normativa, ao conceber um único modelo
para o exercício da sexualidade: somente são permitidas as práticas sexuais
inseridas no casamento cristão. O que foge ao padrão é pecado e, portanto,
desordem na sexualidade, comportamento que precisa de restauração, do "reparo"
divino. Um impulso sexual natural (heterossexual), que foi pervertido em sua
origem por experiências traumáticas e pela prática de certos pecados, é
passível de ser restaurado pela comunhão com o Espírito Santo, em um processo
que envolve cura das memórias, busca de santificação, disciplina e libertações.
A extinção (ou mesmo a atenuação) dos desejos homossexuais, assim como a
emergência de um impulso heterossexual natural, é almejada como possibilidade
de conformidade ao destino concebido por Deus.
A retórica evangélica recorre a um naturalismo com certas especificidades:
privilegia uma concepção de natureza divinamente concebida e ordenada. Todo
esforço pela cura (em seu sentido ideal) envolverá necessariamente um retorno
às determinações de Deus, no que tange à sexualidade humana. A noção de
restauração sexual pressupõe também um ideal de gênero a ser perseguido pela
via da experiência religiosa.
Alguns dos livros examinados conferem um lugar privilegiado ao gênero em suas
definições sobre a cura da homossexualidade. Leanne Payne, autora de A cura do
homossexual e Imagens partidas, apresenta casos de cura que envolvem a
descoberta de uma masculinidade reprimida. Curar-se é liberar uma energia
masculina represada, desviadade seu curso e destino natural. Restaurar a
sexualidade é receber cura na masculinidade e fazer emergir a energia natural
do varão de Deus. Para outros autores, o impulso homossexual atenua-se com o
tempo (ou mesmo se extingue), dando lugar ao impulso heterossexual (Davies e
Rentzel, 1997).
A homossexualidade tratada por Payne como crise de identidade pela
identificação com ogênero oposto implica um desenvolvimento sexual imaturo, que
pode ser curado por orações. Sugere a "oração pela liberação do impulso
heterossexual normal", com a invocação da presença do Espírito Santo, para o
despertar da energia sexual dormente. O uso da metáfora compulsão canibalista
define a origem de uma identidade homossexual, por um viés psicológico: desejos
homossexuais indicam a necessidade de "buscar no outro" o que não é reconhecido
em si. Nessa perspectiva, na restauração da sexualidade ocorre a recuperação
dos atributos naturais de masculinidade pela eleição de certos modelos como
ideais a serem alcançados. O discurso pastoral busca a adequação do corpo e da
sexualidade a um modelo de gênero hierárquico:
[...] ungi sua testa com óleo, pedi que nosso Senhor entrasse,
curasse e colocasse no curso normal os desejos e impulsos sexuais
normais do José de dezessete anos. [...] Após esta oração, eu o
conduzi para, consciente e deliberadamente, mudar seus trejeitos,
sugerindo que ele selecionasse o homem mais masculino que pudesse
imaginar como seu modelo ' alguém a quem ele admirava como cristão,
como líder, marido e pai ' e isso ele prometeu fazer (Payne, 2001, p.
80).
O ideal de gênero considera atributos naturalmente masculinos a iniciativa, a
confiança, a agressividade e a virilidade, reforçando uma concepção assimétrica
dos papéis de gênero, o que pode ser ilustrado pela narrativa de João Carlos
Xavier (1993). Mudar trejeitos, consertar a voz, alterar a maneira de vestir-
se, modificar o linguajar,20 abandonar tudo aquilo que fazia parte de sua vida
homossexual, foram atitudes que tomou para restaurar sua sexualidade:
Procurava me adaptar à maneira de vestir dos irmãos espirituais
consagrados. Orei muito a Deus pedindo que tirasse de mim todos os
trejeitos que fazia com as mãos e expressões corporais efeminados.
Pedi também ao Senhor que modificasse minha voz, pois falava
esquisito devido ao convívio com os homossexuais. [...] Em casa
desfiz-me de tudo o que me fazia lembrar o passado: fotografias
vestido de mulher, e objetos pessoais; quadros e discos de Rock foram
queimados; as bebidas alcoólicas não poucas, despejei todas no vaso
sanitário cantando hinos com muita alegria (Xavier, 1993, pp. 132-
133).
Sua mudança para uma identidade de ex-homossexual foi precedida pelas orações,
pelo Batismo do Espírito Santo, pela experiência de adequação de sua vontade à
de Deus e pelas libertações. Do ponto de vista das perspectivas pastorais aqui
apresentadas, esses são os passos fundamentais à "transformação", que apresento
a seguir.
Cura das memórias
A literatura religiosa concebe a cura das memórias como etapa fundamental na
restauração da sexualidade, partindo do pressuposto de que a homossexualidade,
assim como outros desvios sexuais, se encontra firmemente "arraigada" na mente
do indivíduo, sob a forma de emoções doentes, traumase vícios. Para atingir a
cura das memórias, é preciso buscar a raiz do problema, localizando as
lembranças para situar quando e onde se deu o desvio de um curso normal da
sexualidade. Do ponto de vista cosmológico, afirma-se que a prática de
determinados pecados21 abrebrechasno corpo do indivíduo, pelas quais os
demônios atuam escravizando a mente e induzindo a novos pecados, como a
homossexualidade. Em contrapartida, o discurso pastoral oferece a pacificação
do indivíduo pelo Espírito Santo, como "saída" ao domínio de Satanás. O
Espírito Santo é divindade que consola, trata, cura e apaga as lembranças. Os
conselhos pastorais são: "livrar-se de padrões mentais negativos", "reprogramar
a mente", "buscar renovação mental" e "substituir as informações erradas"
(Emerich, 2004). A mensagem religiosa completa-se na seguinte proposição: deve-
se "saturar o pensamento das coisas de Deus", com orações constantes,
biblioterapia (decoração de versículos bíblicos), participação em atividades
religiosas e cultivo do amor ao próximo. O discurso da cura das memórias
enfatiza a necessidade de esvaziar o pensamento das imagensque não provêm de
Deus, uma vez que a mente é o lugar privilegiado para as investidas de Satanás.
O pastor Alcione Emerich defende "que o principal alvo do diabo é dominar a
mente do homem, pois, assim fazendo-o, o terá por completo debaixo de seu
controle, comandando sua mente, tem-se o controle do corpo, da língua, das
vontades, das formas de relacionar-se socialmente, em suma, de tudo" (Emerich,
2004, p. 139). O controle do pensamento é um instrumento na verdadeira guerra
espiritual.
Esse discurso apresenta um ideal de sujeito, dotado de autonomia, autocontrole
e vontade. O indivíduo é convidado a arrepender-se, confessar seus pecados e
renunciar ao erro. É no contexto de libertações ou de ministrações de cura que
o fiel é conduzido ao auto-exame:
Uma confissão bem feita, com auxílio do ministrador, pode
possibilitar a saída de todo o lixo emocional guardado durante anos.
É esse lixo emocional que adoece a alma e o corpo, conforme eu já
disse. Ele precisa ser expurgado. Mas, além disso, a ferida exposta
precisa ser sarada (Idem, p. 170).
A confissão é o principal método para a cura, posto que sem ela não é possível
se libertar. Trata-se de uma técnica de direção espiritual, que tem por
objetivo a revelação do pecado (Foucault, 2002), na qual o indivíduo é
incentivado a reviver o passado, buscando exaustivamente seus erros. Ritos de
confissão são produtores de "verdade", procedimentos que buscam a conformação
do indivíduo às normas da instituição (Lima, 1986).22 É importante ressaltar,
contudo, o caráter criativo da confissão pentecostal: o ato de proferir os
pecados quebra maldições, interrompe a atuação maligna, expulsa demônios e
permite a intervenção do Espírito Santo na pacificação da mente e na cura das
emoções. A pacificação aparece estruturada sob a forma do perdão recebido (por
Deus) e do perdão concedido a "outros". Leanne Payne, que ministra cura da
homossexualidade, afirma:
A necessidade principal, claro, é de cura da própria lembrança
traumática. Nessa oração, a vítima perdoa àquele que pecou
monstruosamente contra ela. Os efeitos deste pecado são lançados para
longe, para que a pessoa não esteja mais presa, marcada ou ferida por
eles. Então, conforme o Espírito Santo conduziu, convidamos o Senhor
a entrar na memória, purificando e curando (2001,
p. 83).
Para a autora, a libertação da mente e a cura do homossexualismosão obtidas com
a identificação da raiz do problema (o trauma original, que instituiu o
comportamento). A partir de então, o perdão é concedido e dá-se a cura das
mágoaspelo Espírito Santo. O indivíduo, purificado de emoções que o
contaminavam, poderá desenvolver novos comportamentos em relação à sexualidade.
A pastora Neuza Itioka (2005), ao ministrar a cura dos pecados sexuais (que
inclui a prática da homossexualidade, assim como todo o sexo fora do casamento
cristão: "pornografia", "masturbação", "adultério") também ressalta a
relevância da confissão dos pecados para a restauração sexual. Sua técnica
conjuga auto-exame, confissão e renúncia do pecado. A obrigação da
exaustividade é expressa na ressalva de que o esquecimento de pecados na
confissão impede a cura. Assim, toda a biografia do sujeito deve passar pelo
crivo da memória: o passado deve ser pesquisado, analisado, examinado,
perscrutado, confessado e renunciado. Os fatos e os eventos que compõem a vida
anterior da pessoa são constantemente ressignificados como pecado e erro. Mas
não apenas o passado individual deve ser objeto de confissão, também as
relações familiares e os pecados de pessoas da família (da mesma geração ou de
outras) precisam ser revelados e submetidos ao perdão de Deus. Temos aqui certa
concepção de pecados compartilhados, que enfatiza a necessidade de libertação
não apenas do indivíduo, mas também da família, a fim de que esta venha a se
constituir como família de Deus. A biografia do sujeito aparece inserida dentro
de um circuito do mal que, pela libertação, pode ser interrompido. Essa
interrupção exige o "quebrantamento" do indivíduo: é a submissão a Deus que
liberta. Itioka enfatiza a importância de quebrantar-se, de humilhar-se diante
do Senhor para obter cura e libertação.23
O discurso sobre a cura das memórias indica procedimentos e métodos de produção
do sujeito, com a finalidade de desenvolvimento de uma ética sexual, do cultivo
de si pelo auto-exame e pelo exercício da disciplina. O que está em foco é a
busca do exercício da vontade:
Por muito tempo o indivíduo desenvolveu um padrão de submissão em que
foi reduzida e nulificada sua mente e sua vontade. [...] A imagem de
Deus que consiste em desenvolver a vontade e a liberdade humana tem
que ser redescoberta, como um dom de Deus, e a pessoa deve perceber a
importância e a sublimidade da vontade humana aos olhos de Deus e aos
olhos dos outros seres humanos (Itioka, 1993, p. 225).
Esse conjunto de valores assemelha-se àquele investigado por Tânia Salém (1992)
na literatura de auto-ajuda. Individualidade, vontade e posse de si constituem
o núcleo de preocupações a partir do qual são propostas determinadas técnicas e
conselhos. Vale lembrar que no universo pesquisado o termo libertação tem um
sentido bastante particular: libertar-se é recuperar o controle de si, é ver-se
livre dos constrangimentos infringidos pelas potências do mal. Com efeito, há
semelhanças entre o discurso religioso e a literatura de auto-ajuda nesse
sentido ' "Livre de quaisquer constrangimentos e de determinações externas, o
indivíduo natural' encontra-se imerso no reino do livre-arbítrio, da escolha,
da vontade e da consciência" (Salém, 1992, p. 11) ' mas a proposta pastoral
difere pela especificidade de suas técnicas, englobadas pela perspectiva
religiosa. Não se trata, portanto, da produção do indivíduo autônomo moderno,
mas de uma autonomia conquistada pela submissão a Deus, que é quem protege,
separa, aparta do mal (Mariz, 1994). Contudo, o controle de si também pode ser
obtido pela transformação do sujeito em templo do Espírito Santo ' ser cheio,
pleno da divindade.
Do corpo carne ao corpotemplo
A análise empreendida até aqui aponta para a dimensão da corporalidade ao fazer
uso das noções de corpo carne e corpo templo, idéias presentes com maior ênfase
na literatura sobre batalha espiritual, mas também em livros (e contextos
rituais) que focalizam a cura da homossexualidade. A imagem do corpo carne
indica a necessidade de renascimento, que compõe todo processo de conversão. O
discurso pastoral, fundado em princípios cosmológicos, enfatiza a necessidade
da morte do "eu" (antigo), para o posterior despontar de uma nova criatura. As
metáforas estar pleno, cheio do Espírito Santo, encher-se de Deus expressam um
discurso cosmológico que concebe um "eu" sagrado, de corpo, mente e espírito
curados e libertos. O sujeito de vontade fraca, que cedia aos ditames da carne
pela prática do pecado, pode se tornar o indivíduo que renuncia, resiste e é
senhor de seus impulsos, portador de uma ética construída pela busca da
restauração sexual. Em concordância com Foucault (2004), estamos diante de
tecnologias de si que visam a instaurar o autocontrole, de forma similar ao
ideal celibatário dos primórdios do cristianismo. A discussão em torno do
desejo e do impulso homossexual apresenta o exercício da vontade como problema
axial: buscar a cura da homossexualidade; libertação ou restauração sexual
significam exercer uma ética sexual baseada nos princípios da renúncia e da
contenção, na reflexividade diante dos desejos.
De acordo com Carrara (2000), há duas vertentes no pensamento cristão que
constroem formulações acerca do desejo sexual a partir de distintas concepções
da pessoa. A primeira é caracterizada pela ênfase na abstinência sexual e no
ideal do celibato, buscando a santificação pela conversão, pelo batismo e pelo
fervor da fé. Trata-se de um ideal "autonomista", que valoriza o autocontrole e
o domínio de si em relação aos impulsos da carne. Esta concepção caracterizou o
cristianismo em seus primórdios (Foucault, 2004; Duarte e Giumbelli, 1995;
Brown, 1990), tendo sido apropriada e reinventada em sua versão puritana com a
emergência do protestantismo e seu ideal ascético (Weber, 2001). Uma outra
formulação encontra-se em Santo Agostinho, quando retoma o tema do pecado
original. O pensamento agostiniano apresenta uma teologia que tematiza
negativamente a sexualidade, realçando a carnalidade humana, fruto da queda e
da prática do pecado original. Assim, cada fiel carrega a marca indelével do
pecado, posto que os desejos da carne possuem uma base incontrolável e
demoníaca.
No universo evangélico, pentecostalizado, ambas as concepções coexistem: a
idéia da passagem do corpo carne (anterior à conversão, à cura e à libertação)
ao corpo templo (cultivado pelo exercício da ética doutrinária) indica a
existência de um ideal de transmutação da essência da pessoa. É por meio desse
pendor ao pecado que são exercidas práticas antinaturais, abrindo brechas ao
maligno (Rebecca Brown, 2000; Itioka, 1993). Trata-se de um corpo transpassado
pelos poderes malignos, infestado por legiões de demônios, contaminado, um
corpo habitat, receptáculo dos diabos, portador de desejos equivocados em
relação à verdade e à natureza divina
A cura das memórias e a libertação fazem parte do processo de limpeza ritual e
busca de santificação. Adequar a vontade do fiel à vontade de Deus é o
princípio que garante o preenchimento, a habitação pelo Espírito de Deus. Estar
pleno é fundir-se à divindade ou tornar-se Ela. Deste modo, do discurso sobre
cura e libertação desponta um "eu" concebido na dualidade: quando cheio,
indivíduo autônomo; quando vazio, indivíduo sem vontade. Inicialmente, tem-se a
concepção do corpo como carnecorrompida pelo pecado, possuída por demônios,
que, posteriormente, é transfigurada pelo preenchimento, tornando-se templo do
Espírito Santo. O discurso sobre libertação e cura enfatiza a transmutação da
carne em natureza divina, que devolve a autonomia e vontade ao sujeito. É nesse
sentido que ceder aos pendores da carne e do pecado é permanecer cativo sob o
domínio de Satanás. Em contrapartida, processos de limpeza ritual que incidem
sobre o corpo ' transformando-o em templo da divindade - devolvem a vontade e
autonomia ao sujeito.
Considerações finais
A análise mostrou como evangélicos proferem um discurso que afirma a
exterioridade da homossexualidade, rejeitando concepções deterministas e
afirmando a possibilidade de reversão por meio da conversão. As acusações
morais subjacentes ao discurso sobre a curarevelam um pânico moral insuflado
pelo cultivo de uma imagem negativa. Homossexuais são vistos como "promíscuos",
"pedófilos" e sujeitos que "espalham doenças", portanto indivíduos perigosos à
coletividade. Também foi possível perceber uma apropriação de noções oriundas
de outros saberes institucionalizados, a partir da veiculação de imagens da
homossexualidade como "doença", "vício", "perversão" ou "degeneração". Carrara
e Vianna (2004) chamam a atenção no sentido de que essas imagens se tratam de
representações da homossexualidade constituintes dos saberes biomédicos do
início do século passado. A problematização acerca da "gênese" da
homossexualidade ' atrelada a práticas visando a uma reestruturação das
condutas sexuais ' revelou uma preocupação exaustiva com as sexualidades
periféricas. Seja como for, a homossexualidade não se localiza fundamentalmente
no orgânico, mas nas memóriase nas experiências vividas, o que sugere a
interpenetração entre psicologia e religião (Semán, 2000). A noção de cura e o
ideal de restauração sexual buscam construir um sujeito reflexivo e implantar
uma ética sexual. O impulso homossexual pode emergir sob a forma de tentações e
provações, mas é preciso uma verdadeira guerra espiritual pelo controle e posse
de si. O ideal da transformação do sujeito em um templo do Espírito Santo busca
reforçar essa dimensão ética. Afinal, um templo é sagrado e deve ser
resguardado.
As considerações aqui empreendidas não procuram oferecer uma visão homogênea
desse campo religioso. O material examinado aponta para a perspectiva de
atuação de determinados grupos religiosos, principalmente daqueles ligados a
trabalhos pastorais que buscam o gerenciamento da sexualidade.
Na pesquisa mais ampla que venho realizando, ao coletar entrevistas com
homossexuais evangélicos, descobri que alguns indivíduos procuram ajuda na
igreja para questões da sexualidade, o que indica o recurso a iniciativas
religiosas que oferecerem cura. Sob a forma de libertações individuais (da qual
podem participar pastor, psicólogo cristão e fiel) ou de aconselhamentos
pastorais, apresenta-se uma perspectiva religiosa que dialoga com conceitos e
práticas psicológicas. Tal articulação entre religião e psicologia deverá ser
objeto de reflexão em outros trabalhos. Limito-me no momento a sugerir que, do
discurso sobre a cura da homossexualidade ' que enfatiza a importância da cura
das memórias, procedimentos de procura interior e valorização do "eu" ' emerge
uma prática pastoral que articula elementos da tradição religiosa e certos
modos de subjetivação modernos. Alimenta-se, assim, o diálogo entre visões
religiosas do mundo e visões individualizadas (Semán, 2000, p. 219). Cabe
enfatizar a entrada, neste campo, de certos atores sociais, como psicólogos,
psicanalistas ou mesmo médicos cristãos, que conjugam identidade religiosa e
profissional e que causam impacto no âmbito religioso.
Do ponto de vista da experiência dos sujeitos, a abordagem da questão é muito
delicada e envolve a análise das passagens e das mediações sociais nas
trajetórias biográficas, uma vez que a experiência religiosa é constituída por
três dimensões distintas: identidade ou pertencimento; adesão, experiência ou
crença; e, em um terceiro plano, o ethos religioso, como disposição ética ou
comportamental (Duarte, 2005). Ressalto que as concepções examinadas sinalizam
para a tensão entre modernidade e tradição em contextos religiosos, em que
princípios de mudança e permanência se relacionam com cosmologia e doutrina. O
paradoxo é profícuo para pensar como essas tensões são atualizadas em contextos
religiosos por meio da oposição entre exercício da sexualidade e vida
religiosa. No discurso sobre cura e libertação, tecnologias que visam ao
cultivo de si e à racionalização dos controles corporais convivem com a
manutenção da assimetria entre os gêneros.