O Sistema Único de Saúde como desdobramento das políticas de saúde do século XX
Introdução
Este estudo explora as trajetórias de institucionalização de atores e políticas
setoriais de saúde no Brasil, correlacionando-as com o perfil da oferta de
serviços de saúde e os formatos assumidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Compreende uma revisão das principais premissas do neo-institucionalismo
histórico (Immergut, 1992, 1998; Peters, 1999; Thelen, 1999; Giaimo, 2001; Hall
e Taylor, 2003; Pierson e Skocpol, 2004) e uma retrospectiva histórica das
políticas e composição setoriais da saúde no Brasil no século XX, analisada à
luz de contribuições do marco teórico do neo-institucionalismo histórico.
A revisão histórica não pretende ser exaustiva e baseia-se em pesquisa não
sistemática da bibliografia clássica e recente sobre políticas de saúde no
Brasil, bancos de dados nacionais (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística ' IBGE e Datasus) e internacionais (OMS e Banco Mundial) e
relatórios de pesquisa sobre o sistema de saúde brasileiro. Tomaremos como
referência as segmentações e especializações da oferta de serviços públicos e
privados de saúde e a forma como se estabeleceram relações específicas entre
pagadores, provedores e credores nesse contexto. Acreditamos que os arranjos
institucionais resultantes das relações entre atores políticos são
determinantes para compreender a configuração da oferta de serviços de saúde e
os limites e desafios com que se depara o SUS, definido constitucionalmente
pelos princípios de universalidade, eqüidade e integralidade. A aparente
simplificação das análises apresentadas decorre do esforço de cobrir um longo
período de tempo, na tentativa de resgatar momentos-chave na definição dos
rumos da saúde como política e como mercado no Brasil.
O neo-institucionalismo histórico como marco conceitual e metodológico
O neo-institucionalismo configura-se em um paradigma das ciências sociais que
destaca o papel das instituições como elemento mediador entre estruturas
sociais e comportamentos individuais (Théret, 2003). As instituições agiriam
como matrizes de reprodução social, orientando padrões de comportamento e
constrangendo o âmbito das ações possíveis nos diferentes contextos sociais.
As três correntes predominantes do neo-institucionalismo são: a da escolha
racional, derivada da ciência econômica; a histórica, originada na ciência
política; e a sociológica. As diferentes correntes do neo-institucionalismo
definem as instituições, suas origens e efeitos de formas distintas, afeitas a
conceitos dominantes em suas várias disciplinas de origem (Powell e Di Maggio,
1991).
A primeira diferença entre as correntes, que situa em pólos opostos os
neoinstitucionalismos da escolha racional e sociológico, é o peso atribuído à
racionalidade instrumental calculadora pelo primeiro e ao determinismo de
representações culturais pelo segundo (Hall e Taylor, 2003; Théret, 2003).
A segunda diferença fundamental diz respeito à origem das instituições assumida
por cada escola. A escola da escolha racional considera as instituições como
mecanismos que geram ou sustentam um equilíbrio de mercado, originadas da
necessidade de disciplinar e prever o comportamento dos atores (Thèret, 2003).
Já o neo-institucionalismo histórico enfatiza a emergência das instituições
como processos temporais concretos, enraizados no processo político (Thelen,
1999, p. 369). Thelen reconhece que as abordagens das escolas da escolha
racional e histórica se tangenciam, pois ambas enfocam a dinâmica e os
desfechos do jogo de interesses de atores. Entretanto, Immergut (1998)
diferencia as duas perspectivas com base na forma como incorporam o conceito de
interesse. A escolha racional consideraria os interesses como pontos de partida
para a ação, enquanto, na perspectiva do institucionalismo histórico, os
interesses se remodelam na arena política, devendo ser considerados como
resultados das instituições, isto é, fruto de ações coletivas.
O neo-institucionalismo histórico não parte da premissa do caráter utilitário e
racional da natureza humana, no sentido da maximização dos benefícios pessoais,
ou seja, não supõe que as preferências individuais são pré-dadas. Considera as
arenas políticas espaços em que se modelam preferências que não são totalmente
pré-determinadas, mas fortemente contingenciadas por trajetórias históricas das
instituições. Abre, assim, um espaço que valoriza o papel de "janelas" de
oportunidade e de conjunções críticas (critical junctures). Simultaneamente,
exime-se de um prejulgamento radical sobre a natureza humana, abrindo espaço
para a consideração até mesmo de traços solidários e não interessados, mais
ligados a imperativos éticos e culturais do que econômicos.
O neo-institucionalismo histórico trouxe grandes contribuições à ciência
política (Marques, 1997; Immergut, 1998; Peters, 1999; Hall e Taylor, 2003;
Pierson e Skocpol, 2004). Embora criticado por adotar uma perspectiva de
análise essencialmente indutiva, tem propiciado revisões agudas na compreensão
habitual da origem de certas instituições (Hall e Taylor, 2003) e da trajetória
de políticas.
Em termos metodológicos, a vasta produção acadêmica dessa escola apresenta três
características comuns: recortes de objetos que incluem questões substantivas,
de amplo escopo; utilização de argumentação temporal como método pela
especificação da seqüência histórica de constituição do objeto, com
rastreamento de padrões de transformação e persistência; e hipóteses pautadas
nos efeitos combinados de processos e instituições, com análises baseadas em
macrocontextos (Pierson e Skocpol, 2004).
Vários estudos de política comparada de base institucionalista ilustram como a
incorporação de atores e os procedimentos definidos para ordenar as
representações de interesses atuantes na arena política formatam as opções
políticas das nações para seus sistemas de saúde (Immergut, 1992; Giaimo, 2001;
Geva May, 1999).
Esses procedimentos incluem grupos distintos de atores e excluem outros, e
explicam por que alguns grupos ganham, enquanto outros perdem (Immergut, 1992).
A incorporação de atores ou grupos sociais informados por interesses
específicos é ditada pelo arcabouço institucional. Ao longo de processos de
negociação, atores participantes da arena política tendem a optar por formatos
de políticas que contemplem seus interesses ou, minimamente, criem ou mantenham
abertas janelas de oportunidade para ganhos futuros (Immergut, 1992, 1998).
Para estudar a formação dos sistemas de saúde suíço, francês e sueco, Ellen
Immergut (1992) recorreu à perspectiva do embate entre compradores e vendedores
de serviços. Distingue explicitamente instituições, definidas como o arcabouço
legal do processo político, de interesses.
Entretanto, as políticas públicas muitas vezes são concebidas sem considerar
hierarquias ou protocolos legais, dependendo mais de negociações,
flexibilidades e arranjos ad hoc, que incluem grupos de interesse (Lascoumes e
Le Galès, 2003). Arranjos institucionais, nessa perspectiva, compreenderiam
tanto definições formais de procedimentos de governo quanto negociações
baseadas em dinâmicas menos protocolares.
Optamos, por isso, pelo arcabouço analítico de Susan Giaimo (2001), que destaca
macrocontextos e a dinâmica de interação entre grupos de interesse. Ao examinar
arranjos institucionais associados aos sistemas de saúde de Alemanha,
Inglaterra e Estados Unidos, a autora recorre a duas categorias de atores '
pagadores, que financiam o sistema, e provedores, que fornecem os bens e
serviços necessários. Mediante sua presença organizada na arena decisória, os
pagadores definem em que medida o sistema de saúde proposto atende seus
interesses ao passo que os provedores tentam enxergar e aproveitar as
oportunidades geradas pelo contexto.
Os pagadores incluem empresários, Estado e trabalhadores nos sistemas de corte
bismarckiano ou baseados em seguros privados, como o alemão e o americano, ou a
população institucionalmente representada, em sistemas mais universalistas,
como o inglês. Os provedores incluem os profissionais de saúde (em especial, os
médicos) e empresários da saúde dos ramos de produtos e serviços.
Nos chamados países emergentes, como o Brasil, poderíamos considerar,
atualmente, que as agências multilaterais agregam ao modelo de Giaimo (2001) um
terceiro tipo de ator importante para a definição dos formatos das políticas
sociais: os credores (Santos e Gerschman, 2004). A presença de agências
internacionais a título de apoio à formulação e implementação de políticas de
países em desenvolvimento não é um fato novo, tendo intensificado-se após a
Segunda Guerra Mundial. Em seu formato atual, porém, agências multilaterais,
como o Banco Mundial, integram arranjos institucionais supra-nacionais que,
cada vez mais, vêm assumindo a função de gerenciar o risco político de países
em desenvolvimento.1 As agências multilaterais buscam acompanhar e intervir
sobre o ambiente político, sendo sua estratégia prioritária a oferta e difusão
de idéias (Mattos, 2000; Misocsky, 2003). Idéias que ganham progressiva
legitimidade tendem a se institucionalizar nos cenários políticos e são
consideradas importantes motores de mudanças por alguns institucionalistas
históricos (Peters, 1999; Pierson e Skocpol, 2004).
Outro conceito central ao institucionalismo histórico é o da dependência de
trajetória (path dependence) (Immergut, 1998; Peters, 1999). A história
comporta conjunções críticas, nas quais são feitas as opções políticas e
institucionais iniciais para um setor, com a legitimação dos atores que
participarão das arenas setoriais e a definição de arranjos institucionais. As
opções assumidas nesses momentos tendem à permanência e, a menos que surja
alguma força suficiente para superar essa inércia de origem, limitam opções
posteriores (Pierson e Skocpol, 2004).
As opções políticas assumidas tendem a refletir e a repercutir sobre a
organização do mercado e nas relações entre o setor público e o privado.
Mercados e interesses ligados a esses dois setores, por sua vez, lutam por se
fazer representar nas arenas políticas e influenciam a formulação e a
implementação das políticas.
Bases históricas das políticas e do mercado de serviços de saúde no Brasil
A saúde pública passou a ser uma prioridade política do governo brasileiro na
década de 1920. A criação de um programa federal de profilaxia rural, apoiado
pela Fundação Rockfeller, instalou dezenas de postos sanitários em áreas não
urbanas do país.2 A agenda do saneamento rural inscrevia-se em um projeto
político de construção da nacionalidade e do Estado nacional liderado por
eminentes sanitaristas da época, que rechaçava a ideologia do determinismo
climático e genético como explicação para o subdesenvolvimento brasileiro
(Castro Santos, 2004; Lima e Hochman, 1996).
Essa agenda estabelecia uma clara distinção entre ações relacionadas à saúde
pública e a proteção médico-assistencial individual, e era reforçada por uma
recusa programática arraigada de profissionais ligados à saúde pública de
incorporarem ações curativas ao campo da saúde pública. (Hochman e Fonseca,
1999).
A base de provedores de serviços de atenção médica individual no Brasil era
constituída, à época, essencialmente de estabelecimentos privados e
filantrópicos. Na atenção individual, o Estado especializava-se em segmentos
populacionais marginalizados ou que pudessem ameaçar a saúde pública, como os
portadores de doenças mentais e infecciosas (IBGE, 2003). O setor caritativo,
por meio das Misericórdias, assumia o cuidado dos pobres, e a medicina liberal
ocupava-se daqueles que podiam pagar. Começaram a se consolidar, também nessa
época, arranjos mutualistas de provisão de serviços, iniciados por comunidades
de imigrantes ou sindicatos.
Também a partir dos anos de 1920 assistiu-se à ascensão da agenda de
assistência médica individual (Nunes, 2000). Na era Vargas, o governo federal,
na perspectiva de um projeto desenvolvimentista e de fortalecimento do Estado
nacional, incorporou novas atribuições e alianças. Segundo Malloy (1991), em
países de industrialização recente, como o Brasil, o projeto de formação do
Estado nacional está vinculado, basicamente, ao papel de promotor e ator da
industrialização. Como recurso estratégico para a perseguição desse projeto, no
Estado Novo os trabalhadores organizados foram institucionalizados como atores
políticos (D'Araújo, 2000). O Estado passou a patrocinar o fortalecimento de um
sistema previdenciário, ainda incipiente, baseado em Institutos de
Aposentadorias e Pensões, organizados segundo a categoria profissional, que
ofereciam coberturas variadas de atenção à saúde individual (Braga e Paula,
1981; Lima e Hochman, 1996).
Foram, assim, plantadas as bases para um sistema nacional de saúde corporativo
tutelado pelo Estado, em que os pagadores compreendem empregadores, empregados
e o Estado. Essa opção por um sistema de atenção à saúde individual de base
corporativa estatal (e não societária) corresponderia a uma primeira linha de
dependência de trajetória para as políticas de saúde nesse segmento da atenção,
e ajuda a compreender as oportunidades e dificuldades encontradas para a
posterior implantação de um sistema nacional de base universalista. Embora o
projeto político-ideológico de construção do Executivo Federal no Estado Novo
incorporasse a prestação de serviços públicos de saúde para toda a população
brasileira, foram adotadas medidas de cunho universal apenas para o setor
social que demandava um investimento estratégico dentro daquele modelo
específico de projeto de Estado. Portanto, a noção de direito social e a
universalização são questões distintas (Fonseca, 2005).
Em outras palavras, o corporativismo estatal não nasceu de uma iniciativa
social, mas de uma definição estratégica acoplada a um projeto específico de
Estado, que criou uma categoria diferenciada de cidadão, qual seja, o
trabalhador (D'Araújo, 2000). O Estado Novo também contribuiu para consagrar
uma histórica separação institucional e política entre saúde pública e
assistência médica. Por outro lado, a experiência do Estado Novo e a saga
sanitarista da Primeira República no campo das políticas sociais podem ter nos
legado as bases para a possibilidade de adesão da opinião pública a formas
estatais de proteção (Hochman e Fonseca, 1999), que viabilizaram a própria
construção da proposta do Sistema Único de Saúde.
No lado dos provedores de serviços de atenção à saúde ainda predominavam, até
1950, entidades privadas sem fins de lucro, mutualistas e filantrópicas, que
suplementavam as redes estatais (Cordeiro, 1984). Os atores setoriais
institucionalizados na arena das políticas de saúde compreendiam, então, um
Estado fortemente centralizador, trabalhadores e provedores privados
filantrópicos.
A incorporação de novos provedores privados, com fins de lucro, ao mercado
setorial se fez notar paulatinamente, à medida que a atenção à saúde aumentou
seu grau de sofisticação tecnológica e dependência de capital (Braga e Paula,
1981). Em 1960, 62,1 % dos hospitais eram privados, dos quais já 14,4% com fins
lucrativos (Idem).
Foi também ao longo dos anos de 1950 e 1960 que apareceram as primeiras
empresas de medicina de grupo, inicialmente pequenas e descapitalizadas.
Surgiram a partir da visão empresarial empreendedora de alguns grupos de
médicos que identificaram um novo nicho de mercado em empresas que se
instalavam no país nessa época e que se dispuseram a pagar por esses serviços.
O desenvolvimento inicial das medicinas de grupo não dependeu de qualquer
planejamento governamental, mas, por ocasião da unificação da Previdência,
algumas dessas empresas foram chamadas pelo governo para atuar na prestação
suplementar de serviços médicos a instituições previdenciárias (Salm, 2005).
As corporações e os sindicatos cresceram e ampliaram a proteção social para
novas camadas de trabalhadores até o golpe de 1964, quando os trabalhadores
foram afastados da arena política, com uma concomitante quebra do padrão
corporativo estatal da prestação de serviços de saúde (Braga e Paula, 1981). A
unificação da Previdência, em 1967, configurou uma tentativa de mudança de
trajetória na política de saúde, uma vez que unificou os Institutos de
Aposentadorias e Pensões, acabando com os benefícios diferenciados por
categoria ocupacional e limitando, assim, o poder político dos sindicatos. Os
recursos foram centralizados na Previdência, possibilitando seu direcionamento
para a compra de serviços privados de assistência médica. O afastamento dos
trabalhadores da condução das entidades sindicais, das decisões e dos rumos da
política previdenciária deu lugar ao estabelecimento de relações diretas da
Previdência com prestadores e produtores de insumos3 (Bahia, 2005).
A política de saúde da década de 1970, implementada de forma mais estruturada
no governo Geisel, abrangia dois elementos principais: um processo de expansão
da cobertura, evidenciado pela capitalização da saúde na compra de serviços ao
setor privado e por programas como o Programa Nacional de Imunização; e
projetos alternativos ao modelo hegemônico, como o Programa de Interiorização
de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), capitaneados pelo recém-surgido
"Partido Sanitário",4 que questionava o modelo adotado para a saúde (Temporão,
2003).
Ainda que organizada com base em contestar o "privilégio do produto privado", a
universalização da atenção médica promovida com as Ações Integradas de Saúde e
credenciamentos universais reforçou a dependência mútua entre o provedor
privado e o setor público (Oliveira e Teixeira, 1986; Cordeiro, 1984), na
medida em que foram apenas experiências isoladas em alguns estados e
municípios. Concomitantemente, as sucessivas vitórias em arenas políticas '
parlamento e executivo ' garantiram aos empresários subsídios para aumentar seu
parque tecnológico, via Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (Braga e
Paula, 1981; Cordeiro, 1984).
A Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária (IBGE, 2003) evidencia, entre 1967 e
1979, um espetacular crescimento de 67,9 % na quantidade de leitos disponíveis
no país, o que atinge a marca de quase meio milhão de leitos. O Estado
financiava internações de baixa complexidade em um sistema de faturamento
aberto, e ainda era dono de um considerável parque hospitalar de maior
complexidade. Com isso, além de vender serviços ao setor público, o setor
privado viabilizava a transferência para os hospitais públicos de seus
pacientes de maior custo (Braga e Paula, 1981).
A arena de negociação no âmbito da saúde encerrava, nas décadas de 1970 e 1980,
basicamente dois atores: o provedor empresarial privado com e sem fins de
lucro; e o pagador Estado, representado pela forte burocracia centralizada do
que, nesse período, se transforma no Instituto Nacional de Previdência Social
(Hochman, 1992).
Ao optar pela provisão privada como forma de viabilizar a universalização, sem
regular, desde o início, um escopo de atuação para essa iniciativa privada
empresarial, o Estado estabeleceu uma segunda linha de dependência de
trajetória para as políticas de saúde. A base de provisão privada é consolidada
e passa a influenciar direcionamentos futuros das políticas e do mercado de
saúde.
Em função do desenho institucional e organizacional implantado no regime
militar, os antigos beneficiários dos Institutos de Aposentadorias e Pensões
não só perderam a ingerência sobre seu sistema de seguridade, como passaram a
ter que competir por acesso a serviços de saúde com uma base maior de usuários
(Faveret Filho e Oliveira, 1990). Progressivamente, começaram, então, a migrar
para um subsistema alternativo de provisão de serviços de saúde (Werneck
Vianna, 1998).
A incorporação dessa nova clientela viabilizou o crescimento das empresas de
medicina de grupo e de outras formas de organização empresarial para oferta de
planos e seguros de saúde que lhes sucederam. Por vitórias nas arenas políticas
e atuações junto aos anéis burocráticos (Cordeiro, 1981), facilitada por uma
proximidade já existente de agentes públicos, essas empresas passaram também a
usufruir de um amplo aporte de subsídios estatais diretos e indiretos (Faveret
Filho e Oliveira, 1990; Cordeiro, 1984), com conseqüentes aumento da autonomia
financeira e redução da dependência em relação à venda de serviços para o setor
público.
Configurou-se, assim, uma conjunção crítica, em que a seqüência dos eventos foi
fundamental. A superposição de uma proposta universalizante a um sistema
corporativo sem base societária (D'Áraújo, 2000), aliada à posterior exclusão
da arena política de um grupo específico de atores (trabalhadores), parece ter
gerado uma segmentação ainda mais radical do sistema. A prévia existência de
uma base de provedores, cuja origem estava ligada à prestação de serviços
médicos a empresas, favoreceu ainda mais a migração do trabalhador para os
planos de saúde.
A era SUS: arranjos institucionais
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) ocorreu no bojo do processo de
democratização do país. Destacaram-se nesse processo atores que anteriormente
tinham menos peso no cenário nacional, como políticos das esferas subnacionais
de governo e o "Partido Sanitário", cuja atuação era legitimada pela forte
tradição sanitarista nacional. Na década de 1980, sanitaristas históricos
passaram a ocupar posições-chave na estrutura organizacional dos Ministérios da
Saúde e da Previdência e Assistência Social.(Cordeiro, 1991).
Os partidos políticos ressurgiram após o interregno autoritário. As demandas
que provieram de suas bases políticas definiram perfis específicos e um corpo
institucional diferenciado. Nesse momento, afloraram interesses setoriais que
passaram a ser disputados pelos próprios partidos, seja com o objetivo de
ampliar suas bases eleitorais, seja para construir um arco de alianças no
Congresso que viabilizasse a luta política nessa instância. Foi uma época em
que velhas forças e interesses dominantes na história política do país
ressurgiram com grande força.
O SUS nasceu "na contra-mão" de outras reformas setoriais nas décadas de 1980 e
1990. A proposta de atenção universal baseada na concepção da saúde como
direito da cidadania e dever de Estado vai de encontro à dinâmica das reformas
mundiais (Almeida, 2002). O princípio da descentralização sustenta-se em um
desenho institucional que busca garantir a institucionalização de governos
subnacionais e da população, via conselhos de saúde, como convém a sistemas
universalistas e aos princípios de descentralização e controle social do SUS.
Entretanto, esse arcabouço institucional ainda é débil e o SUS vem sendo
reconhecidamente esculpido a "golpes de portaria" (Goulart, 2001). Promulgadas
as Leis Orgânica 8080/90 e Complementar 8042/90 de Saúde, foram editadas pelo
Ministério da Saúde sucessivas Normas Operacionais Básicas (NOBs), que buscaram
definir os vários aspectos operacionais, de arenas decisórias a fluxos de
financiamento e estruturação do modelo de atenção (Idem).
As NOBs aumentaram pontos de veto a possíveis ataques ao SUS e conferiram
legitimidade democrática ao sistema, incorporando a participação de novos
atores. Entretanto, acabariam por contribuir para o surgimento de uma estrutura
institucional que reserva à burocracia estatal controle sobre as principais
decisões, com um peso elevado ao gestor federal, às comissões intergestores e
às associações de secretários municipais e estaduais de saúde. Esses atores têm
assento privilegiado em estruturas de conselhos e conferências de saúde, em
detrimento do controle social (Labra, 1999).
Os Conselhos de Saúde, que corresponderiam a um espaço de controle social para
formação de consensos entre pagadores e controle dos provedores pelos
pagadores, seriam elementos críticos para garantir os princípios do SUS.
Entretanto, pressupõe longos tempos de maturação política para se tornarem mais
atuantes (Labra, 2003) e é possível que não tenham ainda como se contrapor aos
sistemas de representações de interesses mais maduros, convergentes ou
poderosos que povoam essa arena política. Definiu-se, portanto, uma instância
formalmente regulamentada de controle social no SUS, mas fica-se a imaginar se
a trajetória de nossos sistemas de proteção social (Malloy, 1991) não conspira
contra sua institucionalização.
Aparentemente, na saúde replica-se o déficit democrático da democracia
brasileira, expresso pelo predomínio do Executivo, cujo processo de tomada de
decisão freqüentemente subtrai a formação de opinião tanto dos parlamentares
como da sociedade civil (Werneck Viana, 2002). As regras do processo decisório
do Executivo, talvez pela necessidade de maior agilidade, tendem a se pautar
menos em procedimentos formalizados do que nos demais poderes. Portanto,
decisões que ficam exclusivamente a cargo do Executivo podem ser mais
susceptíveis à intervenção de outros grupos, sejam eles comunidades epistêmicas
(produtores de idéias e conceitos) ou grupos de interesse, que podem vir a
estabelecer anéis burocráticos com o Estado.
Entretanto, há importantes decisões que necessariamente passam pelo
Legislativo, como as questões relacionadas ao financiamento e a
macrodirecionamentos do sistema de saúde. A Frente Parlamentar da Saúde, criada
em 1993 na Câmara dos Deputados, ilustra bem a capacidade da saúde de congregar
posições e interesses totalmente distintos em arenas comuns. Essa Frente reúne
237 deputados e 23 senadores, com representação de todos os partidos e estados,
e já nos legou medidas como a Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira (CPMF), inicialmente concebida como fonte de recurso para a saúde, e
a Emenda Constitucional 29, que vincula constitucionalmente recursos
obrigatórios das três esferas de governo à saúde.
A importância política crescente dos planos de saúde culminou na aprovação da
Lei 9565/98, que regulamenta os planos, e na criação da Agência Nacional de
Saúde Suplementar ' ANS (Pereira et al., 2001). O aumento das garantias para os
beneficiários dessa nova modalidade de subsistema corporativo ocorre em bases
bastante diferentes daquela dos sistemas corporativos estatais. A regulação do
setor de saúde supletivo é delegada a uma agência (ANS), que tem como missão
primordial a correção de falhas de mercado e a garantia do cumprimento de
contratos. Fica, assim, definitivamente sacramentada a perspectiva da
mercantilização da atenção à saúde (Braga e Silva, 2001).
Cresceu também nos últimos anos o papel do Poder Judiciário na implementação
das políticas de saúde. Esta participação é expressa pela garantia do acesso do
cidadão a recursos do Sistema Único de Saúde por caminhos judiciais, na
perspectiva da saúde como direito do cidadão. É bem provável que esse tipo de
demanda aumente, principalmente com a organização de alguns grupos de pacientes
em associações (Viana et al., 2005).
A era SUS: padrões de financiamento e bases de provedores
A implantação do SUS é contemporânea a uma crise de financiamento no país que
se reflete na saúde. O ápice dessa crise advém da retirada do financiamento da
saúde pela Previdência Social, em 1993. Ainda assim, provedores privados, com
presença cada vez mais organizada nas arenas decisórias, buscavam ampliar sua
participação no setor público, de início no segmento de atenção básica. Nesse
mesmo ano, um consórcio de associações de provedores que congregava planos,
estabelecimentos privados e profissionais de saúde propôs ao governo o Plano
Básico de Assistência Médica, que seria, em parte, financiado com recursos
previdenciários (Labra, 1993; Costa, 1998).
Esse é também o momento em que passa a ser mais uma vez fortemente percebida a
presença de técnicos de agências internacionais na formatação de políticas
nacionais de saúde. Partindo da premissa defendida por essas agências, de que
os governos são incapazes de financiar "tudo para todos", o "novo
universalismo" recomendava a implantação de sistemas de saúde nacionais que não
apenas segmentassem serviços básicos e convencionais, oferecendo um pacote
clínico essencial expresso por cobertura universal de atenção básica, como
também focalizassem os gastos públicos nas camadas pobres da população e,
ainda, fortalecessem setores não-governamentais ligados à prestação de
serviços, uma vez que serviços não cobertos pelo pacote essencial ficariam a
cargo do mercado (Misoczky, 2003).
O Programa de Saúde de Família (PSF) foi concebido em dezembro de 1993, em
reunião convocada pelo gabinete do então ministro Henrique Santillo (Vianna e
Dal Poz, 1998), com o apoio de técnicos do Banco Mundial e da Organização
Panamericana da Saúde ' OPAS (Idem). O endosso ao PSF foi favorecido pelo
discurso anti-hospitalocêntrico, pela valorização das práticas de prevenção do
Movimento Sanitário e pela crise financeira. O PSF passou a ser o modelo para a
reorientação das práticas de atenção, sendo sua expansão uma estratégia
prioritária do governo federal para a ampliação da cobertura da atenção à saúde
da população. A adesão municipal a essa orientação era estimulada por
incentivos financeiros a municípios que adotassem o programa, agregados como
incentivos aos repasses regulares do Piso de Atenção Básica.
Com isso, ao longo da década de 1990 e início do século XXI, o expressivo
crescimento da atenção ambulatorial básica e do PSF foi concomitante à
diminuição relativa do financiamento de internações hospitalares e, em menor
proporção, de procedimentos de média e alta complexidade5 (Mattos e Costa,
2003).
Entre abril de 1992 e julho de 2003, houve uma queda de 12% no total de leitos
disponíveis no SUS, com crescimento da fatia proporcional ocupada por hospitais
públicos e universitários, em detrimento dos privados (Matos e Pompeu, 2003).
Nesse período, mais de quatrocentos novos hospitais públicos, a maioria com
menos de 30 leitos, somaram-se à rede do SUS (Datasus, 2003). Essa tendência
contrasta com o padrão histórico de grandes unidades hospitalares públicas e
poderia tanto indicar o surgimento de um novo tipo de organização hospitalar,
com atuação mais articulada com a atenção básica, como uma proliferação de
hospitais de baixa capacidade resolutiva, cujo processo de criação estaria
antes vinculado a interesses políticos do que a critérios técnicos.
É bem possível que o segmento de pequenos hospitais públicos com baixo grau de
incorporação tecnológica tenha passado a competir por financiamento com
provedores privados historicamente dependentes do financiamento do SUS nos
últimos vinte anos, relegando essa rede mais tradicional de prestadores
filantrópicos privados ao papel de "perdedoras" da era SUS (Pereira, 1996).
Alguns segmentos de provedores privados mais qualificados tenderam a migrar
para um nicho de oferta ao SUS significativamente mais bem remunerado, o de
serviços de alta complexidade (Viana et al., 2005), enquanto outros
estabelecimentos filantrópicos começaram a ensaiar a comercialização de
"planos" próprios, não regulamentados pela ANS (Portela et al., 2002).
Entre maio de 2002 e abril de 2003, a rede pública realizou 82% dos
procedimentos ambulatoriais do SUS, contrastando com 14% dos privados e 4% dos
universitários (Datasus, 2003). O setor privado, por sua vez, vem consolidando
uma especialização no sentido oposto, sendo hoje detentor de mais de 80% do
parque de equipamentos biomédicos mais sofisticados do país (IBGE, 2002) e o
responsável pela realização de 84% dos procedimentos de alta complexidade,6
ofertados pelo setor público no país (Datasus, 2003).
Em 1999, o Ministério da Saúde criou o Fundo de Ações Estratégicas e
Compensações (Faec) para financiar os procedimentos de alta complexidade. O
Faec financia uma parcela importante das ações de interesse de provedores
privados e de segmentos favorecidos da população, que fazem uso seletivo de
alguns procedimentos do SUS, como terapia renal substitutiva, medicamentos
excepcionais, testes para Aids e transplantes.
Configura-se, assim, um padrão de financiamento, sob controle do gestor
federal, que induz à especialização do provedor público em atenção básica, via
Piso de Atenção Básica (PAB) e seus incentivos associados, e à especialização
do provedor privado em alta tecnologia, via Faec e remuneração diferenciada de
procedimentos mais complexos pela tabela SUS.
Aliado a isso, setores mais qualificados da oferta hospitalar privada migraram
para um segmento mais bem financiado, o da saúde suplementar, tendência já
prevista por Faveret Filho e Oliveira (1990) há mais de uma década.
A qualidade da carteira de hospitais ' refletida no grau de incorporação
tecnológica, na infra-estrutura hospitalar e na qualidade dos profissionais de
saúde ' é um dos principais determinantes da segmentação de produtos dos planos
de saúde para distintas clientelas (Gerschman et al., 2004). Várias seguradoras
e operadoras oferecem planos "básicos", com um elenco de hospitais menos
valorizados, e credenciam hospitais mais valorizados à medida que o plano se
sofistica.7 Por esse motivo, o setor privado vem incorporando competência
crescente para ofertar maior complexidade, em áreas que tradicionalmente só
eram cobertas pelo setor público. A sofisticação dos serviços ofertados pelos
planos de saúde, contraposta à aparente "simplificação" da oferta pública e às
dificuldades de acesso, pode estar contribuindo para o crescimento dos planos
de saúde.
O setor privado de atenção à saúde consolidou-se como provedor em dois nichos
de mercado: um que capitaliza lacunas de oferta de alguns serviços mais bem
remunerados pelo setor público, ofertando serviços em que o pagador é o Estado;
e, outro, que ocupa nichos como provedor de uma oferta "diferenciada" a
segmentos da população que fazem uso seletivo do sistema público.
A impressão geral de que as classes privilegiadas utilizam o SUS de maneira
seletiva (Draibe, 1992) só recentemente vem sendo confirmada por estudos de
campo (Vianna et al. 2005).8 Esse uso seletivo segue um padrão que lembra os
princípios do "seguro catastrófico", embora este último não esteja formalmente
inscrito no desenho do sistema público de atenção à saúde no Brasil.
Os seguros catastróficos foram propostos nos Estados Unidos na década de 1970,
como alternativa a sistemas universais de saúde. Correspondem a uma forma de
proteger pessoas defrontadas com despesas de saúde que possam substancialmente
comprometer a renda familiar. Por meio deles, o Estado financiaria uma parcela
variável das despesas incorridas por doenças financeiramente onerosas. No caso
brasileiro, pode-se imaginar que o SUS também atue como rede de proteção quando
a circunstância catastrófica não é uma doença que acarreta despesas
insustentáveis, mas a perda de receitas e benefícios vinculados a um emprego
formal (que franqueia o acesso aos serviços de saúde oferecidos por planos e
seguros empresariais). Há indícios de que a instabilidade econômica e o
desemprego da década de 1990 possam ter provocado uma migração reversa para o
SUS da parcela da população que perdeu seus planos de saúde.
Em síntese, pode-se dizer que, se por um lado o SUS de fato gerou avanços na
cobertura sanitária da população, com efeitos de interiorização de prestações
sociais que fazem lembrar os da reforma sanitária do início do século XX, por
outro, existem motivos para concordar com a tese de que o segmento de
provedores que mais se beneficiou no período foi o dos planos de saúde
(Pereira, 1996).9
No plano das especializações tecnológicas, o SUS hoje corre o risco de se
tornar um "plano de cuidados básicos", conforme preconizado pelo Banco Mundial,
aliado a uma fatia de oferta de maior complexidade, cujo tamanho dependeria das
pressões do mercado no sentido da compra desses produtos pelo setor público e
da disponibilidade financeira ou política do setor público para adquiri-los
(Santos e Gerschman, 2004).
Cuidados de maior custo e complexidade na saúde pública podem passar a
apresentar uma vinculação crescente de mecanismos de acesso clientelistas ou
judicializados, o que pode reforçar distribuições iníquas de benefícios (Viana
et al., 2005).
Considerações finais
No Brasil, períodos de transição política parecem marcar as grandes mudanças da
trajetória setorial da saúde no último século. São conjunções críticas, que
põem em cheque as bases institucionais da sociedade, favorecendo mudanças.
A história da construção do sistema de saúde nacional é a história da
institucionalização de sucessivos atores, iniciada com ações sanitárias
promovidas por um Estado centralizado e uma sociedade civil escassamente
desenvolvida.
A incorporação progressiva à seguridade social de trabalhadores e corporações
profissionais sinaliza uma trilha semelhante à bismarckiana nas origens da
seguridade social no Brasil. Mas, de fato, não houve avanços significativos das
organizações do trabalho, enquanto instrumento da luta política da classe
operária, que permitissem aprofundar o modelo de seguridade social brasileiro.
No contexto da transição à democracia, o "Partido Sanitário" subscreveu a
proposta política de restabelecimento da democracia, atrelada a um projeto para
o sistema de seguridade social moldado nos princípios do Estado de bem-estar
europeu. Propôs um novo modelo de sistema de saúde, fundamentado no direito
público e universal no que diz respeito ao cuidado de saúde e ao controle
exercido pela sociedade (Gerschman, 2004).
Entretanto, a constituency do sistema de saúde já não correspondia ao caráter
público proposto para o mesmo e, sim, à trajetória histórica das instituições
da saúde. Refletia também o papel que efetivamente tiveram o setor privado,
seus interesses e atores políticos desde o começo do século XX e, mais
modernamente, a influência de agências internacionais no desenho das políticas
sociais de países em desenvolvimento.
Os constrangimentos macroeconômicos transformaram o Brasil, segundo a
Organização Mundial de Saúde, em um dos países com menores índices de
investimento público no setor saúde no continente americano, uma flagrante
contradição para um sistema público de caráter universal.
Nesse contexto, determinantes importantes do formato das políticas de saúde,
como resultados eleitorais (Giaimo, 2001) e disputas entre partidos políticos
(Geva May e Maslove, 1999), embora ainda importantes no âmbito subnacional
(Arretche e Marques, 2002) ou em momentos de conjunções críticas (Pierson e
Skocpol, 2004), podem perder espaço para idéias difundidas como imperativos do
ajuste macroeconômico.
Os eixos políticos apontados pelo "novo universalismo" atendem, de forma
fragmentada, a muitos grupos de interesse que gravitam em torno da saúde no
país. O "novo universalismo" propõe prioridade para a Atenção Básica e o
fortalecimento da iniciativa privada no mesmo pacote. Essas propostas
simultaneamente contemplam discursos históricos do Movimento Sanitário, vão ao
encontro de interesses do empresariado nacional e internacional da saúde, ao
propiciar a expansão do mercado privado, e atendem as elites políticas
subnacionais, que vislumbraram na universalização do atendimento e no SUS
formas de garantir o financiamento setorial na saúde para seus colégios
eleitorais. Adicionalmente, o SUS, por atuar como uma espécie de "seguro
catastrófico", não fere interesses de segmentos sociais com maior poder de
vocalização, os quais, diante desse retorno, se acomodam ao papel de pagadores.
O mesmo ajuste convergente de posicionamentos de atores políticos movidos por
motivações diversas apontado nos estudos de Immergut (1992) é observado nas
discussões em torno do financiamento do SUS. Provedores e sanitaristas em
uníssono pleiteiam a garantia de fontes de custeio alternativas desde a perda
do financiamento oriundo da Previdência Social (Pereira, 1996).
O SUS assume, assim, formatos condicionados por arranjos institucionais que o
precederam e hoje o sustentam, e, com todas as contradições e embates, parece
haver um significativo consenso em torno de sua preservação. Mas as principais
decisões sobre o sistema de saúde do país são tomadas com base em acordos que
não necessariamente refletem uma convergência de motivações e interesses. São
modeladas por atores postados em pontos distintos da arena política e que podem
ter maior ou menor poder de veto, segundo o arranjo institucional vigente
(Immergut, 1992, 1998).
Dependendo dos arranjos institucionais assumidos ao longo do processo
histórico, o SUS poderá evoluir em diferentes sentidos, eventualmente bem
distantes dos princípios que originalmente lhe serviram de base. Entretanto,
talvez também já estejam plantadas na sociedade brasileira as bases para
desenvolvimentos mais solidários na área de políticas de saúde (Hochman e
Fonseca, 1999). A própria criação do SUS, na contramão de movimentos de reforma
latino-americanos, pode ser invocada como argumento de apoio a essa hipótese.