Tensões e disputas na sociologia paulista (1940-1970)
Este artigo interpreta as décadas de formação da sociologia paulista (1940-
1970) a partir das principais disputas entre instituições, grupos e atores,
ocorridas nesse contexto unificado pela tentativa de explicar a recalcitrante
modernização brasileira. Nessa direção, as sociologias específicas
progressivamente constituídas eram antes perspectivas de análise do que
especialidades propriamente ditas. A exposição toma como referência pares de
alternativas, em torno dos quais havia divergência: ensaio e ciência,
pensamento radical e conservador, teoria e pesquisa empírica, interpretações
totalizadoras e dualistas, sociologia do desenvolvimento e da cultura. A partir
dessas oposições, que não devem ser compreendidas rigidamente, as tensões
constitutivas do período são demarcadas.
Do ensaio à ciência
Em conjunto, pode-se dizer que as modificações introduzidas
enriquecem a obra, tanto do ponto de vista literário, quanto do ponto
de vista da documentação coligida e de sua elaboração.
Mas isso significa também que as principais virtudes do ensaio foram
mantidas juntamente com alguns de seus defeitos. O ensaísta revelou-
se de uma maestria e de uma penetração inigualáveis na sugestão de
problemas. Poucos especialistas poderão atravessar as páginas do
ensaio sem encontrar alguma indicação de pistas para pesquisa ou
investigação, sejam historiadores, psicólogos sociais, antropólogos,
sociólogos ou economistas. Na reconstrução de um processo histórico-
social tão complexo, como é o desenvolvimento do Brasil, contudo, nem
sempre consegue superar, com a mesma felicidade e equilíbrio, as
limitações impostas pelos insuficientes conhecimentos que ainda hoje
dispomos de nosso passado. Toda tentativa de síntese é empolgante e
fecunda; mas os riscos são tanto maiores quanto mais inconsistente se
revela a base empírica e analítica sobre a qual se constrói [....].
Observa-se, igualmente, uma ênfase excessiva nos aspectos da cultura.
Isso traduz, provavelmente, a influência da abundante literatura
etnológica conhecida pelo autor. Mas, tem vários inconvenientes, já
que leva a subestimar os efeitos e determinações da organização
social. Muitos dos problemas encarados apenas da perspectiva da
cultura, como os que dizem respeito à situação de contato no Brasil
colonial (século XVI, especialmente) ou os resultados da
secularização da cultura e da urbanização, poderiam ser discutidos de
um ponto de vista sociológico, único capaz de pôr em evidência a
atuação dos processos sociais subjacentes aos ajustamentos e às
mudanças culturais. A própria natureza e amplitude da obra compensam
e neutralizam, no entanto, as pequenas insuficiências desta ordem, e
a tornam tão indispensável ao sociólogo quanto ao historiador
cultural (Fernandes, 1949, pp. 223-224).
A passagem, que finaliza a resenha de Florestan Fernandes sobre a segunda
edição de Raízes do Brasil (1948) é muito significativa para avaliarmos a
ruptura realizada no país pelos cientistas sociais paulistas ' especialmente na
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-
USP) ' em relação aos intelectuais não acadêmicos dos anos de 1930 e 1940, que
se expressavam, sobretudo, através do ensaio histórico sociológico1 ' gênero
indefinido entre literatura, sociologia, história ', interpretando de forma
abrangente o processo de formação da sociedade e da nação, em meio à
radicalização política que seguiu a Revolução de 1930.2
A investida de Florestan incide já no elogio algo irônico à qualidade literária
de Raízes, mas é na desproporção entre a generalidade da interpretação e a
precariedade de dados empíricos e recursos analíticos que reside o fulcro da
crítica do sociólogo. Este, diga-se, ainda não totalmente consagrado em 1949,
mas já bastante respeitado pelos trabalhos sobre o folclore paulista e,
sobretudo, por Organização social dos Tupinambá, mestrado orientado por Herbert
Baldus na Escola livre de Sociologia e Política (ELSP). O antropólogo alemão,
aliás, havia sido recentemente convidado para chefiar a Seção de Etnologia do
Museu Paulista e a editar a sua revista (em 1947) pelo então diretor do museu,
Sérgio Buarque de Holanda. Impressiona, assim, a ousadia do jovem sociólogo ao
atacar, embora reconhecendo a indiscutível importância do livro, a forma e os
fundamentos da argumentação de Raízes do Brasil, que, ao mesmo tempo, seria
inspiração e contraponto para o projeto acadêmico concretizado em A revolução
burguesa no Brasil.3 O exemplo indica, portanto, a relação complexa que vincula
as gerações de intelectuais e obras separadas pela institucionalização das
ciências sociais iniciada com a criação da ELSP (1933) e da FFCL-USP (1934).
Nesse sentido, a trajetória e a obra de Florestan não podem ser interpretadas
rigidamente em oposição ao ensaísmo, do qual se aproxima em vários escritos,
mesmo defendendo a busca de cientificidade como etapa indispensável ao
desenvolvimento da sociologia no Brasil.
Em trabalho anterior (Jackson, 2002), procurei demonstrar a afinidade de Os
parceiros do Rio Bonito tese de doutorado de Antonio Candido em sociologia
(1954), publicada por José Olympio (1964) com as interpretações do Brasil
destacadas pelo autor no prefácio à edição de 1967 do ensaio de Sérgio Buarque,
ao qual se juntariam Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. e
Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre. Sob a aparência de um "estudo de
comunidade" ou duma "monografia antropológica", seria Os parceiros também uma
interpretação global da formação social brasileira que privilegiaria nesse
processo a participação das populações rústicas constituídas à margem dos
latifúndios escravocratas, desde o século XVI.
Não tanto nesse caso, mas principalmente nas teses e livros produzidos pelo
grupo de sociólogos liderado por Florestan Fernandes a partir de 1954, que
formariam a "escola paulista de sociologia", a ruptura efetivamente realizada
pelos estudos sobre a sociedade brasileira em São Paulo seria em geral
superestimada,4 não por acaso, pois ela constituía antes um programa,
constantemente reiterado, do que uma clivagem propriamente dita. Em outros
termos, a continuidade verificada na recorrência de temas e linhas de
interpretação de uma geração para outra representa o "outro lado da moeda",
mais conhecida pela renovação de métodos, teorias e fundamentos empíricos. Em
depoimento de Maria Sylvia de Carvalho e Franco, do início dos anos de 1970, a
orientação desse programaé claramente definida:
[...] o projeto [que predominava na USP nos anos de 1950 e 1960] de
estabelecer as ciências sociais como disciplinas científicas
autônomas, desdenhando-se tudo o que as aproximasse de
"impressionismo". Havia o esforço decidido de transformá-las em saber
positivo, desprezando-se seus aspectos humanísticos. Esta orientação
definiu-se como crítica à "cultura de bacharel", encarada com
desconfiança, vista como retórica superficial, estranha à reflexão
gerada nas condições estruturais de nossa realidade.5
A oposição entre ensaio e ciência deve ser pensada, sugiro, como relação
complexa, em torno da qual diferenciavam-se personagens6 e grupos, mais ou
menos envolvidos no projeto de opor a sociologia como ciência ao ensaio. Isso
porque ninguém (na universidade) poderia fugir a essa orientação geral,
decorrente do processo abrangente de legitimação das ciências sociais no
período.
Em tal contexto, em que era essencial a construção duma identidade profissional
específica, incorporam-se teorias e técnicas de pesquisa aqui aportadas pelos
professores estrangeiros sobretudo os franceses na USP e os norte-americanos na
ELSP além de novas formas de organização e avaliação do trabalho intelectual,7
tornando-se quase inevitável o fortalecimento de nova forma expressiva,8 em
oposição à precedente, legitimada progressivamente.
Em meio a essa condição geral, como vimos, personagens e grupos se
diferenciavam. Sabe-se, por exemplo, que Roger Bastide, que assume a segunda
cadeira de sociologia9 em 1938 (no começo da década de 1940 passaria para a
Sociologia I), substituindo Lévi-Strauss, interessou-se imediatamente pela
leitura de autores brasileiros, indignando-se com a ignorância de muitos alunos
a esse respeito e insistindo para que os estudassem. A obra de Bastide, e seu
interesse pela realidade brasileira, não pode ser bem compreendida, como
demonstrou Fernanda Peixoto (2000), se não conhecermos seu diálogo com autores
brasileiros, como o modernista Mário de Andrade e o ensaísta (ou sociólogo)
Gilberto Freyre.
Entre os alunos de Bastide, estavam Florestan Fernandes e Antonio Candido. Os
dois encarnam pontos de vista quase opostos, expressos em textos decisivos das
décadas de 1940, 1950 e 1960. Estamos diante de trajetórias concorrentes,10
fundadas em experiências sociais distantes. Colegas de graduação em 1941,
primeiro ano do curso para Florestan, último para Antonio Candido, depois
assistentes de Fernando de Azevedo na cadeira de Sociologia II, até 1954, os
dois trilharam caminhos distintos: o primeiro, exclusivamente dedicado à
sociologia; o segundo, dividido entre sociologia e literatura, pelo menos até o
final dos anos de 1950. Não é de se estranhar, assim, a diferença de pontos de
vista; Antonio Candido estando mais próximo duma perspectiva humanística, como
verificamos em textos como "A Sociologia no Brasil" e "Literatura e cultura de
1900 a 1945", nos quais o autor destaca, como forma típica de expressão do
nosso pensamento, o "sincretismo" entre literatura e sociologia.
A forma ensaio não seria, nesse sentido, obstáculo para a radicalização do
pensamento brasileiro, processo considerado decisivo para a transformação da
sociedade. Ao contrário, a maior liberdade de expressão favoreceria a produção
científica e a comunicação com o público, estimulando a intuição e a
criatividade do pesquisador. Em "A sociologia no Brasil", Antonio Candido
defende o "sincretismo", em contrapartida à valorização exclusiva da abordagem
científica: "sincretismo que pode parecer indevido e talvez o seja em certa
medida, mas corresponde a características da nossa evolução mental e
necessidades ainda sentidas de compreensão da nossa realidade" (Candido, 1957,
p. 2118). Certa indiferenciação intelectual permitiria ao "espírito e aos
métodos sociológicos estenderem-se por vários setores que lhe estariam vedados
em países de especialização acadêmica mais estrita, enriquecendo o conhecimento
da realidade e facultando maior plenitude à personalidade dos estudiosos"
(Idem, ibidem).
Se Antonio Candido aproxima-se de uma cultura humanística, Florestan, ao
contrário, defende a sociologia como ciência, mesmo reconhecendo a importância
heurística do ensaio para a explicação de nossa formação histórica e social.11
Para melhor avaliar essa oposição de perspectivas ' em meio à orientação geral
dada, como vimos, pela necessidade de construir uma identidade profissional
coletiva que a todos incluísse ', vejamos ainda algumas evidências recolhidas
das seções de resenhas dos periódicos,12 fonte preciosa para o mapeamento das
disputas, sobretudo em meio acadêmico rarefeito como era o das ciências sociais
paulistas nos anos de 1940 e 1950. É indicativo desse fato que o próprio
Antonio Candido escrevesse (em 1949) uma crítica sobre Organização social dos
Tupinambá, na Revista do Museu Paulista(editada por Herbert Baldus), da qual
reproduzimos duas passagens relevantes para a questão que nos ocupa:
Sendo o de menor interesse sociológico [o capítulo 1 do livro],
talvez seja, não obstante, o que melhor ilustra as qualidades e as
lacunas do autor: de um lado, a capacidade de percorrer
incansavelmente os dados disponíveis, virando-os e revirando-os até a
exaustão das suas possibilidades informativas; de outro, a
insistência em aspectos porventura demasiados, que não contribuindo
para uma conclusão segura, parecem utilizados mais como demonstração
de força.
Numa resenha, não cabe censura nem louvor, mas simples exposição
crítica. Se nos permitirem, porém, violar as normas, diríamos que o
defeito capital do trabalho é a acentuada prolixidade de algumas
partes e, aqui e ali, certo abuso de casuística. Nota-se ainda
relativo descuido de expressão, que desejaríamos mais apurada num
livro, que, como este, está destinado a carreira longa e brilhante
(Candido, 1949, pp. 474-476).
Se há na resenha um tom elogioso, a crítica incide justamente na busca quase
obsessiva de cientificidade, fator responsável paradoxalmente pelas qualidades
e defeitos do trabalho, estes derivados também de "descuidos de expressão". Mas
é preciso notar que a objeção apontada por Antonio Candido não é superficial, à
medida que a forma expressiva para ele é parte essencial à argumentação
científica. Curiosamente, Organização social dos Tupinambáé um dos textos menos
truncados do ponto de vista da escrita, em comparação à maioria dos textos
posteriores do autor.13
Igualmente significativa é a resenha de Florestan publicada na revista Anhembi
sobre a tese de Gilda de Mello e Souza, orientada por Bastide, A moda no século
XIX: ensaio de sociologia estética,14 que tinha sido publicada na Revista do
Museu Paulista, vol. 5, em 1951. Depois do resumo cuidadoso do trabalho,
deparamo-nos com a avaliação do sociólogo:
Tal como se apresenta, o trabalho da dra. Gilda de Mello e Souza
revela duas coisas. Primeiro, o talento e a extraordinária
sensibilidade da autora para a investigação de um fenômeno tão
complexo, por causa das diversas facetas de que pode ser encarado e
explicado. Segundo, um seguro conhecimento do campo de sua
especialização, em um nível que até pouco tempo era raro no Brasil.
Essas qualidades se refletem na composição do trabalho, tornando a
sua leitura muito amena e instrutiva. Poder-se-ia lamentar, porém, a
exploração abusiva da liberdade de expressão (a qual não se coaduna
com a natureza de um ensaio sociológico) e a falta de fundamentação
empírica de algumas das explanações mais sugestivas e importantes.
Doutro lado, não concordamos com a afirmação da autora, segundo a
qual "a moda, como toda manifestação do gosto, é traiçoeira e, quando
analisada de perto, esconde suas feições mais características,
induzindo o observador a erro" (p.10). A esse respeito, pensamos que
uma das vantagens da abordagem sociológica do fenômeno consiste
exatamente na possibilidade de compreendê-lo e interpretá-lo, através
de técnicas de investigação adequadas, em suas manifestações no mundo
em que vivemos, ou seja, como dimensões atuais do acontecer
(Fernandes, 1952, p. 140, grifos meus).
O tom ambíguo de Florestan na crítica ao trabalho explica-se não apenas por sua
qualidade intrínseca, mas também por afirmar, ao mesmo tempo, o padrão da
instituição acadêmica, a FFCL-USP, na qual ocupavam posições equivalentes ' a
autora era assistente de Roger Bastide na Sociologia I. É o lamento do autor,
entretanto, que mais nos interessa, sobretudo por inverter os parâmetros que
guiaram a análise de Antonio Candido ao seu livro. Se o sociólogo falhara, na
visão de seu colega, por falta de estilo, aqui o problema apontado era
exatamente o contrário: excesso.15 Finalizando a crítica, a aposta nas
possibilidades objetivas da explicação científica, um pouco matizadas na
perspectiva sociológica da autora.
Mais um registro nos parece exemplar da tensão que envolvia a sociologia na
Universidade de São Paulo, nos anos de 1950. Trata-se de outra resenha, agora
de Octávio Ianni, sobre Sociologia, introdução ao estudo de seus princípios, de
Gilberto Freyre, na qual o resenhista discute a concepção sociológica do autor
de Casa-grande & senzala, criticado por confundir linguagens distintas,
arte e ciência:
Mas, examinemos outro aspecto dessa obra. Em diversas passagens
verifica-se certa confusão entre o tipo de abstração que realiza o
artista e aquela efetuada pelo cientista. Não é outro o significado
das afirmações entusiásticas do autor a propósito de Proust. Veja-se
o que ele afirma sobre esse autor às páginas 70 e 71. Proust
"consegue nos dar melhor que todos os discípulos de Durkheim juntos,
o retrato psico-sociológico da aristocracia francesa no fim do século
XIX e no começo do XX" [...]. "O que há em Proust é história
sociológica, história psicológica". Para Gilberto Freyre, o
ficcionista francês é "historiador, sociólogo e psicólogo a um só
tempo". E a sua superioridade sobre os discípulos de Durkheim não
provém da "fantasia literária" nem da "graça de estilo" ' tão fracas
em Proust ' mas da sua superioridade como "sociólogo psicológico".
Deixando-se de lado outros comentários que poderiam suscitar essas
afirmações, poderemos distinguir nelas duas ordens de confusões. Em
primeiro lugar, aquela relativa ao significado de descrição e
interpretação numa ciência como a sociologia, e em que medida esses
procedimentos poderiam ser encontrados numa obra de ficção. Em
segundo lugar, a abstração realizada pelo ficcionista distingue-se
essencialmente, e não apenas em grau, daquela operada pelo cientista.
Os elementos selecionados no processo de criação literária não são os
mesmos, nem comparáveis às instâncias empíricas manipuladas pelo
sociólogo. Portanto, aquelas considerações a propósito de Proust
confundem modos de apreensão da realidade. A nosso ver, o que disse
Florestan Fernandes a respeito da Filosofia, do mito e outras formas
pré-científicas de consciência e explicação, pode ser aplicado ao
romance. "Tais modalidades de representação da vida social nada tem
em comum com a sociologia. Elas surpreendem, às vezes com espírito
sistemático e profundidade crítica, facetas complexas da vida social.
Também desempenharam ou desempenham, em seus contextos culturais,
funções intelectuais similares às que cabem à sociologia da
civilização industrial moderna: pois todas servem aos mesmos
propósitos e às mesmas necessidades de explicação da posição do homem
no cosmos". Na verdade, "elas envolvem tipos de raciocínio
fundamentalmente distintos e opostos ao raciocínio científico"
(Ianni, 1958, p. 356).
A passagem explicita a perspectiva de Florestan Fernandes, ampliada por seus
discípulos a partir de 1954, ano em que Roger Bastide retorna definitivamente à
França e Florestan assume a cadeira (embora oficiosamente até 1964) de
Sociologia I. O alvo não poderia ser melhor, já que o prestígio de Gilberto
Freyre como autor de Casa-grande & senzalatornava-se vulnerável numa obra
de pretensão teórica, marcada por "distorções" tão graves. Em contrapartida,
afirmava-se mais uma vez o projeto do grupo, de constituir em bases sólidas a
sociologia como ciência. A separação radical entre os domínios da ciência e da
arte, proposta defendida por Ianni, apóia-se no pressuposto de que somente a
ciência dispõe de meios para afastar-se do mundo dos valores, nisso consistindo
a diferença de abstração que a separa da literatura.16 Por isso, o elogio do
sociólogo pernambucano a Proust seria descabido, mas compreensível por estar,
na visão do grupo, atrelado a uma visão conservadora do país. A sociologia
seria a forma crítica e compatível do pensamento com o processo possível de
modernização do país.
O texto de Ianni e a citação de Gilberto Freyre são notáveis para apreendermos
a disputa em jogo, que reforça entre nós o argumento de Wolf Lepenies em
relação ao desenvolvimento da sociologia na Europa. O autor analisa a
competição travada entre literatos e sociólogos pela legitimidade de explicar e
orientar o desenvolvimento da sociedade ocidental industrial, intensificada na
transição do século XIX para o XX, para concluir que os rumos da sociologia nos
três países teriam sido definidos por essa contenda, responsável pelo dilema
constitutivo da disciplina: aproximar-se da literatura, (numa atitude
hermenêutica) ou das ciências naturais (numa atitude cientificista). A
argumentação demonstra caso a caso a complexidade do processo, mostrando como o
dilema ocorre também no interior de grupos, aparentemente identificados com um
dos lados da disputa, e mesmo na trajetória de agentes individuais. Por isso, é
necessário muito cuidado para evitar-se a simplificação do problema. Nesse
passo, seguimos no item seguinte a interpretação de Sylvia Garcia, em Destino
impar(2002), que sublinha a convergência entre as perspectivas de Antonio
Candido e Florestan Fernandes.
Radicais e conservadores
A consideração da trajetória intelectual de Candido e Florestan
efetivamente permite tomá-los como representantes exemplares da
contraposição entre a atividade cultural e a atividade científica.
Contudo, essa configuração não pode fazer esquecer que estamos diante
de duas vertentes que se desenvolvem a partir de uma mesma concepção
sobre a atuação do intelectual nas sociedades modernas. Um mesmo
projeto, duas formas de realização. Aderindo a uma posição
cientificista, Florestan projeta a possibilidade de uma realização
radical do radicalismo proposto por Candido (Garcia, 2002, p. 99).
A interpretação da autora indica a necessidade de levar-se em conta, na
reconstrução desse contexto acadêmico, uma clivagem de natureza política,
profundamente imbricada na anterior, que opõe ao pensamento conservador,
predominante no Brasil até a primeira metade do século XX, o pensamento
radical, comprometido com a compreensão efetiva da realidade brasileira e
orientado pelas possibilidades de sua transformação. Tais objetivos
circunscrevem genericamente a inflexão realizada no pensamento social
brasileiro, pela institucionalização das ciências sociais em São Paulo, a
partir da criação da ELSP e da FFCL-USP, na década de 1930, de acordo com o
testemunho recente de Antonio Candido:
A importância da Sociologia e Política e da Faculdade foi deslocar a
sociologia brasileira das classes dominantes para as classes
dominadas. Os grandes nomes da sociologia brasileira eram Gilberto
Freyre e Oliveira Vianna, que estudavam as classes dominantes, na
perspectiva da história. A realidade imediata do Brasil contemporâneo
foi estudada pela Escola de Sociologia e pela Faculdade em suas
camadas humildes. Samuel Lowrie fez a pesquisa sobre o lixeiro;
Gioconda Mussolini estudou os caiçaras; eu estudei o parceiro rural;
Egon Schaden, o índio destribalizado; Florestan, o negro. Por assim
dizer, nós radicalizamos a sociologia brasileira.17
Do ponto de vista das disputas políticas, deparamo-nos em primeiro plano com a
oposição entre as duas instituições, ELSP e FFCL-USP, que centralizavam o
ensino e a pesquisa em ciências sociais no período.18 O processo de criação das
instituições já foi estudado (Limongi, 1989; Cardoso, 1982), sendo possível
afirmar que ambas atendiam às expectativas da elite paulista de recuperar a
hegemonia política perdida nos anos trinta após as Revoluções de 1930 e 1932,
mas devemos reter uma diferença importante. A primeira, criada pelo industrial
Roberto Simonsen, aproximava-se de setores da elite paulistana ligados ao
Partido Republicano Paulista. Sua finalidade principal seria a formação de
"técnicos com competência administrativa" (Limongi, 1989, p. 219), daí o ensino
baseado em pesquisas de campo, voltadas para o conhecimento "objetivo" da
realidade. O projeto da USP, amadurecido desde os anos de 1920 pelo círculo de
intelectuais reunido no jornal O Estado de São Paulo (conhecido como grupo do
Estado), estava mais próximo do Partido Democrático, pretendendo capacitar
intelectualmente uma elite a "decidir os destinos da nacionalidade" (Cardoso,
1982, p. 92), justificando a orientação mais ampla e teórica das ciências
sociais da USP. De tal modo, embora as instituições viessem a se autonomizar
progressivamente dos objetivos políticos envolvidos na criação de ambas,
assumindo orientação cada vez mais acadêmica, é provável que a ELSP
significasse para a USP, desde os primórdios, a promessa de um projeto
politicamente conservador e intelectualmente limitado.
Nesse sentido, os "estudos de comunidade", principal projeto acadêmico da ELSP,
foram recusados pelos sociólogos da USP, especialmente por Octávio Ianni e
Maria Sylvia de Carvalho Franco nos anos de 1960, com termos muito próximos aos
de Caio Prado Jr em resenha ao livroCunha, de Emílio Willems, publicada em
Fundamentos (1948), revista de cultura vinculada ao PCB.19 O fato é muito
significativo, não para reduzir a crítica realizada pelos assistentes de
Florestan Fernandes aos seus componentes políticos, mas para constatar a
imbricação profunda entre ciência e política (aprofundada com o golpe de 1964)
que caracterizou os decênios de institucionalização das ciências sociais em São
Paulo, apesar da separação crescente entre os domínios, inerente a este
processo.
Emílio Willems realizava, como professor das duas instituições, uma espécie de
"missão ecumênica", para reuni-las na construção das ciências sociais em São
Paulo. Tal objetivo é perseguido também na direção de Sociologia,20 primeiro
periódico especializado em ciências sociais editado no Brasil, que publica
textos de professores e alunos das duas escolas, até o afastamento de Willems.
Em 1948 (vol. 10, n. 2), Willems publica o "Symposium sobre classes sociais".21
Pierson escreve "Como descobrir o que é classe?"; Willems, "Velhos e novos
rumos do estudo de classes sociais", e Florestan, "A análise sociológica das
classes sociais" em oposição clara aos primeiros. O confronto explicitaria a
disputa entre ELSP e USP e as dificuldades inerentes ao "projeto ecumênico" de
Willems. Se o tom acadêmico do debate disfarçava a tomada de posição de
Florestan Fernandes, em favor da crítica politizada de Caio Prado Jr. a Cunha,
marcava, por outro lado, claramente a divergência entre as diferentes
concepções de ensino e pesquisa que caracterizavam as instituições. Na
primeira, prevalecia a ênfase na pesquisa empírica etapa indispensável à
generalização teórica na visão de Pierson (compartilhada por Willems), assim
como no ensino "verdadeiramente científico", isto é, centrado na análise dos
processos sociais efetivos e não na história das idéias sociológicas, esta
considerada característica dos períodos pré-científicos da disciplina. Na USP,
comparativamente, a pesquisa dependeria, nos termos de Willems, ao caracterizar
sua própria formação européia, mais da "iniciativa do estudante" do que de uma
orientação sistemática fornecida pelos professores. Seria, portanto, resultante
da teoria, esta o cerne do ensino, baseado na discussão dos clássicos.
Caricaturando, tenderiam (aos olhos dos rivais) à "pura descrição" e à
"especulação".
Da teoria aos fatos, dos fatos à teoria
Willems criticava (acompanhando o argumento do texto de Pierson) o "caráter
conjectural e global" de certos estudos sobre classes. O autor insiste no
estudo das divisões concretas de cada sociedade, para verificar "como os homens
se classificam a si próprios". Descarta, em seguida, a possibilidade do estudo
da estratificação social de uma nação (pensando evidentemente no caso
brasileiro), sem o conhecimento prévio de suas partes componentes, afirmando ao
mesmo tempo o pressuposto e a proposta centrais dos "estudos de comunidades":
É inteiramente absurda a pretensão de estudar a estratificação de uma
nação sem anteriormente investigar a estratificação das unidades
ecológicas e culturais em que essa nação se divide (Corrêa, 1995, p.
80).
O texto de Florestan, "A análise sociológica das classes sociais", lembrando
que o autor trabalhou na pesquisa que deu origem a Cunha, defende rigorosamente
a teoria sociológica das classes sociais, mostrando, em primeiro lugar, que o
desenvolvimento da sociologia ocorreu atrelado à sociedade de classes, que se
constituiu num dos objetos por excelência da disciplina. A sociedade de classes
seria a estrutura social típica do Ocidente, marcada pela complexidade e
diferenciação.
A aparência genérica da polêmica tem como referência o caso brasileiro. Isso é
importante se lembrarmos o aspecto fundamental do esquema de Caio Prado Jr.,
que supõe a formação do Brasil, desde a colônia, como resultante da expansão do
capitalismo comercial. Tal fato implicaria ao mesmo tempo simultaneidade e
atraso (em função da escravidão) no desenvolvimento do capitalismo brasileiro
em relação ao europeu, justificando o estudo sobre o desenvolvimento específico
da sociedade de classes entre nós.
Pierson e Willems afirmam, contudo, que diferenças históricas profundas
inviabilizariam o estudo das classes sociais no Brasil. Florestan defende-se ao
afirmar o caráter típico-ideal do conceito, desde Marx e, sobretudo, em Weber.
Por isso, embora a dimensão histórica fosse decisiva, a análise sociológica
permaneceria legítima.
Criticando os "estudos de comunidade", Florestan Fernandes recusava o empirismo
e a ênfase nas diferenças culturais que desviariam o observador do processo
decisivo ao desenvolvimento brasileiro a formação da sociedade de classes e
defendia com toda força a abordagem macrosociológica, fundamentada na tradição
européia da disciplina, fazendo no final uma provocação à sociologia norte-
americana, ao associar a interpretação culturalista da estratificação social às
"condições de existência social nos Estados Unidos, onde as distinções de
classes eram menos pronunciadas e cristalizadas do que nas sociedades
européias" (Idem, p. 112), repondo com certa ironia a dimensão política da
crítica de Caio Prado Jr., que apontara o caráter reacionário de tais análises.
A polêmica mostra como se imiscuem política e ciência no período, sendo a
primeira princípio classificatório dos grupos e personagens no campo específico
da segunda. É sugestivo, nessa direção, que a crítica dos sociólogos da USP aos
"estudos de comunidade" tivesse como pano de fundo a associação entre a ênfase
na pesquisa empírica e a orientação conservadora que caracterizaria tal
perspectiva. A tentativa fracassada de conciliação entre as duas escolas,
ensaiada por Emílio Willems, deve ser compreendida, assim, a partir desse
contexto, que, provavelmente, influenciou a decisão do antropólogo alemão de
deixar o Brasil e aceitar o convite para trabalhar nos Estados Unidos, na
Universidade de Vanderbilt, em 1949. O fato teria como conseqüência o
obscurecimento do papel central desempenhado pelo autor de Cunha no contexto
que examinamos.
Do ponto de vista de Florestan, o grande equívoco de seus adversários seria
tomar a pesquisa empírica como etapa primeira, desconsiderando-se o fato de que
a história da sociedade brasileira seria tributária da européia, o que
implicaria tomar como ponto de partida para a explicação sociológica da
sociedade brasileira as teorias clássicas sobre o desenvolvimento da
modernidade, formuladas pela sociologia européia, desde o século XIX. O caso
brasileiro seria uma vertente particular, somente compreensível a partir de
perspectiva totalizadora, que faria o engate das experiências historicamente
articuladas. Tal tese, já esboçada, como vimos, em 1948, constituiria o eixo
programático da chamada "Escola sociológica paulista", constituída pelo
sociólogo paulista e por seus assistentes e discípulos, reunidos na Cadeira de
Sociologia I, a partir de 1954.
A defesa da teoria por Florestan não significa, portanto, o desprezo à pesquisa
empírica sistemática, incorporada em sua sociologia, mas a precedência da
primeira: "como se sabe, a pedra de toque deste [o trabalho científico] tem
sido a seguinte fórmula: nem teoria sem fatos, nem fatos sem teoria"
(Fernandes, 1958, p. 222). Mas outro aspecto deve ser notado (cf. Arruda,
2002), a necessidade de se trabalhar em equipe, para lograr a concretização de
um novo padrão de criação intelectual, em molde científico e profissional.
Neste caso, a iniciativa inspiradora de Donald Pierson na ELSP foi decisiva,
influenciando certamente a atitude de Florestan Fernandes de recrutar nos anos
de 1950 e 1960 um grupo de jovens e competentes sociólogos, com o intuito de
renovar as ciências sociais com um estilo inusitado de trabalho marcado por
alta produtividade e coesão de princípios.22
Totalidade ou dualidade
O debate sobre as classes sociais revela ainda a oposição entre modelos de
interpretação associados às abordagens "empírica", dos "estudos de comunidade",
ou "teórica", dos "estudos societários", como poderíamos definir,
contrastivamente, os trabalhos da "escola sociológica paulista". Os primeiros
estariam mais próximos das análises de tipo "dualista", que encontram no
pensamento social brasileiro Os sertões, como precursor, e em Os dois Brasis,
de Jacques Lambert, a expressão mais típica, realizada pelas ciências sociais
dos anos de 1950. A característica fundamental de tal modelo propõe a
interpretação da formação social brasileira a partir da constatação de
diferença profunda entre um Brasil "arcaico" e outro "moderno", movidos por
sentidos e temporalidades distintas, freqüentemente confrontados. Os "estudos
societários" tomariam como referência, ao contrário, análises "totalizadoras",
como a de Caio Prado Jr. na Formação do Brasil contemporâneo, mas
principalmente as da sociologia clássica ' sobretudo Marx, Weber e Durkheim '
assimiladas e adaptadas ao estudo da realidade brasileira. O desafio, desta
perspectiva, seria compreender o "sentido" e a "forma" (possíveis) da
claudicante modernização brasileira, subordinada à européia.
Ainda uma vez tomaremos como parâmetros dessa contenda, que atravessa a
formação da sociologia paulista, formulações de Emílio Willems e Florestan
Fernandes.23
Willems, partindo da tese da heterogeneidade cultural brasileira, avalia em O
problema rural brasileiro do ponto de vista antropológico24 as possibilidades e
as dificuldades inerentes à superação do atraso no mundo rural brasileiro,
contrariando visões etnocêntricas dos reformadores, que teriam compreendido mal
o problema:
Para os médicos, o caboclo é um doente e um sub-alimentado; para o
educador todo "mal" reside no analfabetismo; o agrônomo verifica a
inexistência de conhecimentos "racionais" de agricultura; os
economistas dão pela falta de crédito, de mercados e meios de
comunicação, os moralistas desejam erradicar certos "vícios", e assim
por diante (Willems, 1943, p. 21).
A questão fundamental, entretanto, passaria desapercebida, dado o desencontro
cultural verificado entre os grupos sociais em contato. Definindo "cultura"
como um "sistema de entendimentos comuns", o autor afirmava sua inexistência
como "base comum à civilização urbana e à multiplicidade de culturas
sertanejas" (Willems, 1944, p. 9). Qualquer tentativa de reforma deveria,
portanto, partir do conhecimento aprofundado das formas de sociabilidade e
culturais características das populações sertanejas:
[...] essa sociedade possui um tipo (ou tipos) de família e
associação vicinal, regimes de trabalho e técnicas destinadas a
produzir os artefatos necessários, sistemas de trocas, meios de
transporte, práticas tradicionais para lidar com forças
sobrenaturais, conhecimentos para tratar doentes e parturientes,
jogos e festas para compensar as obrigações que o sistema social
impõe a seus membros e uma educação para transmitir o patrimônio
cultural (sem que a arte de ler e escrever possa ter uma função na
transmissão tradicional). Ao lado de um corpo de conhecimentos,
práticas e crenças, destinado a controlar o natural e o sobrenatural,
existe um sistema de controle social com sanções específicas. Há mais
de quatro séculos que esta sociedade vive, crê, trabalha, se diverte
e educa. Não há motivos para se acreditar que seus modos de pensar,
agir e sentir tenham sofrido grandes modificações nos quatro séculos
de existência. As experiências que seus membros acumularam nesse
respeitável lapso de tempo provaram mil vezes ser adequadas, pois não
somente garantiram a subsistência dos vivos mas permitiram um aumento
incessante da população sertaneja. Durante quatro séculos, o caboclo
não deixou de conquistar os sertões e de enchê-los, pouco a pouco, de
povoadores (Idem, pp. 9-10).
O reconhecimento da existência autônoma das sociedades sertanejas pelo
"civilizado" seria, nesse sentido, o passo imediatamente necessário a qualquer
tentativa de intervenção. Deveria levar-se em conta igualmente a dificuldade de
alterar aspectos limitados sem que outras esferas da cultura fossem afetadas,
com conseqüências de difícil previsão e possivelmente drásticas para os
grupos.25 O texto indicava, ainda, um programa de pesquisas a ser realizado,
visando à constituição de um amplo painel da sociedade brasileira, que teria em
Cunhaseu ponto de partida. O dualismo seria, portanto, pressuposto dos
trabalhos do autor e da maioria dos estudos de comunidades realizados em São
Paulo na década de 1950.
A perspectiva totalizadora de Florestan Fernandes e grupo, já esboçada no
simpósio de 1948, pode ser bem apreendida em Sociedade de classes e
subdesenvolvimento, de 1967, que sintetizava as teses do grupo até o momento,
ao mesmo tempo em que prenunciava o desenvolvimento autoral da temática,
concretizada em A revolução burguesa no Brasil. A divergência fundamental em
relação a Willems baseia-se na constatação da inadequação de sua proposta em
face de problemas sociológicos mais amplos e complexos, como o da explicação do
subdesenvolvimento. O texto em questão é de extremo interesse, em primeiro
lugar por expressar a "tensão intelectual e moral" (Fernandes, 1981, p. 7)26
decorrente do golpe de 1964.27 O autor sublinha a importância do estudo
sociológico do subdesenvolvimento, que direcionava o trabalho do grupo, desde o
início da década de 1960:
Até hoje, os investigadores dos centros mais avançados lidaram com os
problemas de interpretação das sociedades capitalistas dependentes
como se o subdesenvolvimento fosse uma contingência ou uma condição
transitória. Os investigadores oriundos dessas sociedades perfilharam
tal ponto de vista ou negligenciaram a necessidade, puramente
teórica, de associar o regime de classes e o capitalismo dependente à
explicação sociológica do subdesenvolvimento. (p.13, grifos meus)
Sociedade de classes e subdesenvolvimento parte de algumas "considerações
preliminares", esclarecidas após a definição prévia do capitalismo como
"complexa realidade sócio-cultural", não redutível apenas aos seus componentes
econômicos. A primeira consideração refere-se ao processo de formação da
sociedade brasileira como "parte da expansão do mundo ocidental e do papel que
nele tomaram os portugueses" (p. 21), que retém, não obstante a orientação
econômica dada pelo capitalismo comercial, a estrutura social típica da Europa
medieval, de regime estamental, fato prolongado apesar da Independência do
Brasil, que não altera imediatamente os níveis econômico e social. A
transformação econômica ocorreria apenas na forma assumida pelos "laços
coloniais", que deixam de ser "jurídico-políticos" para se tornarem econômicos
apenas, o que implicaria progressivamente a constituição de um "setor econômico
novo e moderno" (p. 23), embora subordinado a interesses externos. A
complexidade (e refinamento) do argumento do autor reside no jogo de avanços e
recuos que confere inteligibilidade ao processo em questão, aparentemente
ambíguo. Na verdade, trata-se de diferenciar efeitos imediatos e mediatos, o
que permite a apreensão conjunta e dinâmica de permanências e rupturas.
A conclusão parcial a que chega o autor indica a complexidade do processo
histórico brasileiro, marcado por similaridades e diferenças, encontros e
desencontros, em relação ao pólo dominante do capitalismo. Nessa direção,
movida também pela conjuntura histórica imediatamente posterior ao golpe de
1964, a análise deixa entrever seu objetivo (e sua urgência) político,
explicitamente enunciado no prefácio do livro, ao revelar no presente as
contradições herdadas do passado:
No plano de nossa análise, essa contradição transparece na
consciência falsa do agente econômico, que se representa como um
"construtor de impérios econômicos", segundo as regras (na realidade,
solapadas ou destruídas pelo capitalismo monopolista e pelo
intervencionismo estatal) de um capitalismo avançado, auto-suficiente
e autônomo. Na verdade, não passa de um laborioso artífice (e sob
vários aspectos de uma vítima) do antípoda desse capitalismo: o
capitalismo diferenciado porém subdesenvolvido e dependente, que
exprime a espécie de êxito, conquistado na esfera econômica, pelos
antigos povos coloniais que nasceram, biológica, cultural e
historicamente, da "expansão do mundo ocidental (p. 26).
A dificuldade de superação da dependência residiria no fato de o
desenvolvimento servir ao mesmo tempo à integração da economia nacional e à
"multiplicação do excedente econômico das economias capitalistas hegemônicas"
(p. 36), processo que favoreceria a reprodução da heteronomia. Esta consistiria
numa inserção específica no mercado mundial, como "entidade tributária", que
implicaria, sob a aparência de "distorções', carências' ou deficiências'"
(p. 37) em relação ao desejável, a modernização possível das sociedades
subdesenvolvidas. Não obstante, no "plano organizatório, a ordem vigente é
análoga à existente nas sociedades desenvolvidas, respondendo aos mesmos
requisitos formais e ideais de incentivação, coordenação e integração das
atividades econômicas, sociais e políticas" (p. 37).
Desse ponto de vista, as análises de cunho dualista seriam incapazes de captar
os processos constitutivos da realidade em questão, dessa forma apenas
"descrita", mas não compreendida em profundidade. A tese do autor insiste,
assim, na lógica própria ao capitalismo dependente, no qual a "persistência de
formas econômicas arcaicas" seria essencial à sua reprodução, devemos lembrar,
subordinada e precária. O fundamental no quadro exposto, já vimos acima, seria
a tendência econômica de reprodução da situação de dependência (mesmo com a
industrialização) e não de sua superação. Nesse sentido, justificar-se-ia
também a sobrevivência do "setor arcaico", numa espécie de ciclo vicioso
(determinado pela transferência do excedente apenas para o setor moderno e,
sobretudo, para fora do país). Assim, o parâmetro geral de análise da
estratificação social recai sobre Weber, por enfatizar a oposição no mercado
entre "possuidores" e "não possuidores" de bens.28 Entre estes, estariam os
assalariados e os diversos "condenados do sistema", contrastados por contarem
apenas os primeiros com a possibilidade de valorização no mercado, embora
limitada pela "situação de classe" desfavorável. Esta, nas condições descritas,
implicaria, como vimos, na identificação do trabalhador com a ordem capitalista
e na percepção de sua condição como privilegiada. Entre os "possuidores",
estariam as "classes altas", segundo representação própria. Florestan
diferenciava, então, as frações (classes altas rurais e urbanas) mais próximas
duma "burguesia" nacional, "únicas classes que contaram, contam e continuarão a
contar com condições para tomar consciência clara de seus interesses de classe
e de sua situação de classe" (p. 73). A argumentação justifica o interesse
analítico pela "burguesia", da qual dependeriam as possibilidades (políticas)
de orientar o desenvolvimento em outro sentido, contrário à reprodução da
dependência; alternativa dificultada tanto pela ilusão da autonomia política,
como pela defesa dos interesses econômicos imediatos. As expectativas de
Florestan em relação às classes "não possuidoras", do ponto de vista de sua
atuação política, eram pessimistas (embora o autor lembrasse o "risco de
violência potencial" representado pelos "condenados do sistema"), sobretudo
para o "campesinato".
Em suma, o regime de classes cumpriria na sociedade subdesenvolvida apenas
subsidiariamente as funções históricas típicas às sociedades capitalistas
independentes. Sem garantir um "mínimo de homogeneidade" social, não permitiria
tampouco a percepção autônoma de interesses pelas classes em disputa, de modo
que a dinâmica resultante desse processo estaria também comprometida com a
persistência dos mecanismos de dependência. Internamente, tal configuração se
expressaria na desigualdade social crescente, em "contradições irredutíveis".
Em outros termos, a violência seria convertida em forma legítima de ajustamento
social, em "estilo de vida", apesar dos esforços em escamoteá-la.
A conclusão do texto discute, sobretudo, as possibilidades da revolução
burguesa no Brasil. O autor diferencia dois sentidos para "revolução burguesa":
o primeiro associado ao processo de configuração do capitalismo autônomo; o
segundo, relativo à "diferenciação e reintegração" da economia capitalista, na
passagem do capitalismo comercial ao industrial. Nesse sentido, Florestan
avança detalhando o processo brasileiro.
O ponto decisivo da argumentação reside na percepção sociológica do processo
como resultado contingente, conseqüência do modo por meio do qual a "burguesia"
enfrenta as "tensões econômicas, políticas e sociais" (p. 95) inerentes ao
desenvolvimento capitalista (em condição de dependência). Deste ângulo, as
coisas poderiam ter sido diferentes, diante das mesmas condições estruturais
herdadas da colonização. Ou seja, as possibilidades eram restritas justamente
em função da condição de heteronomia, mas existiam e dependiam do alcance da
ação histórica da burguesia. A experiência brasileira, entretanto, teria sido
marcada por uma "revolução" tímida e egoísta, da qual resultaria o quadro
esboçado (que tem como referência as transformações da sociedade brasileira, a
partir do processo de Independência) pelo autor ao longo do texto: haveria
diferenciação e crescimento econômico, relacionados à formação da "ordem social
competitiva", mas não "revolução integral". Tal diagnóstico se sustentaria com
a verificação da conjugação das estruturas arcaicas e modernas, reveladora da
incapacidade "de romper totalmente com o passado e de eliminar os vínculos de
subordinação no plano internacional" (p. 97). A "burguesia" brasileira (e
latino-americana) teria, portanto, segundo o autor, falhado diante das
condições enfrentadas.
O texto comentado resume a orientação teórica e temática assumida por Florestan
Fernandes e por seu grupo nos anos de 1960, centrada na análise sociológica do
subdesenvolvimento. Tal programa privilegiava as abordagens caras às
sociologias econômica e política; estas eram as dimensões consideradas cruciais
à compreensão (e possível transformação) da realidade brasileira. Neste ponto,
devemos recuar no tempo para considerar outro programa de pesquisa, sugerido
pela atuação acadêmica de Roger Bastide, que apostava na análise sociológica da
cultura como o melhor caminho para compreender a formação da sociedade
brasileira, subordinada à dominação européia.
Os objetos privilegiados da sociologia: cultura ou desenvolvimento
Desde já devemos matizar tal oposição lembrando a relação de "mestre e
discípulo" que vinculava Roger Bastide e Florestan Fernandes, transformada, ao
longo dos anos de 1950, na pesquisa sobre o negro em São Paulo29 (patrocinada
pela Unesco), em uma das parcerias mais alentadas da história da sociologia
brasileira. Em Brancos e negros em São Paulo(Bastide e Fernandes, 1959), já se
percebe, entretanto, como demonstrou Fernanda Peixoto, a diferença de
perspectivas que opõe a primeira parte do trabalho, escrita por Florestan, à
segunda, redigida pelo sociólogo francês. Na composição do texto citado, as
metades complementam-se, mas indicam ao mesmo tempo estilos de reflexão
divergentes: a primeira orientada para as dimensões econômica e política (sendo
o racismo expressão, na mentalidade, da transição da sociedade escravista à
sociedade de classes), a segunda para as formas de ajuste psicossociais do
negro diante da discriminação (diferenciadas em função das possibilidades de
ascensão social, progressivamente ampliadas).30
Neste caso, portanto, cabe a Florestan a visada geral, o panorama histórico-
sociológico que localiza a análise micro, realizada por Bastide. Mas a
diferença não se detém aí, apenas revela, sigo novamente os passos de Fernanda
Peixoto, modos de apreensão quase opostos dos impasses da modernização
ocidental, e do Brasil em particular.
A análise sociológica da cultura englobando religião, arte, literatura,
folclore permitiria, para Roger Bastide, plasmar formas de resistência ao
processo de modernização. Nesse sentido, as diversas formas sociais e culturais
tradicionais não se constituiriam em entraves à modernização, ao contrário,
seriam necessárias à revisão crítica de seus pressupostos, marcados por uma
visão etnocêntrica e dogmática. Dessa posição, o autor investiga os processos
de "interpenetração de civilizações", sobretudo em seus estudos sobre as
religiões afro-brasileiras, mas também nas pesquisas sobre folclore, arte etc.
Tal perspectiva não é compartilhada por Florestan, que a acompanha apenas do
ponto de vista metodológico, na defesa da sociologia como instrumento de
análise dos processos culturais e de forma muito tímida em sua dimensão
substantiva, no que se refere às potencialidades transformadoras do folclore.
Os trabalhos de Antonio Candido e Maria Isaura Pereira de Queiroz, entretanto,
devem muito a essa orientação, que abordaremos brevemente a seguir, a partir de
Sociologia do folclore brasileiro (Bastide, 1959), comparando suas teses e
pressupostos aos de Florestan Fernandes em Folclore e mudança social na cidade
de São Paulo, ambos publicados em 1959.
No prefácio de Bastide para "As Trocinhas do Bom Retiro" (Fernandes, 2004), o
autor defendia a abordagem sociológica de Florestan Fernandes, baseada no
estudo das formas de sociabilidade dos grupos infantis, as "trocinhas", às
quais relacionava as manifestações folclóricas existentes, discernindo fatores
de permanência e de desintegração diante das transformações aceleradas da
cidade de São Paulo nos anos de 1940. O prefácio de Bastide revela a
concordância de ambos sobre o método, constituindo um programa a ser
desenvolvido:
O folclore é uma cultura, ora, não se pode compreender a cultura,
separando-a do grupo social que ela exprime. Estamos entre os que
acham que a descrição pura e simples do material, a pesquisa das
fontes e das origens não são suficientes, porque o folclore tem uma
função e uma vida, ele representa um papel. Por conseguinte, querendo
penetrá-lo, em lugar de permanecer na crosta exterior das
sobrevivências do passado, é preciso recolocá-lo num meio social. O
folclore não é uma simples curiosidade ou um trabalho de erudição, é
uma ciência do homem ' não deve portanto esquecer o homem, ou melhor,
neste caso, a criança que brinca. Temos necessidade de que se
multipliquem as pesquisas deste gênero. Que não se tema esclarecer
uma ciência pela outra. Os amantes da pureza lastimar-se-ão, talvez,
mas os amantes da realidade objetiva só terão a ganhar com isso
(Idem, pp. 196).
No entanto, para cada autor, o programa serviria a objetivos distintos. Embora
não se deva menosprezar, no conjunto da obra de Florestan Fernandes, seus
estudos sobre folclore, nem exagerar a descontinuidade destes em relação aos
trabalhos posteriores, é possível sublinhar, como faz Sylvia Garcia (2001), sua
importância "estratégica" nas disputas disciplinares que marcaram o período.
Nesse sentido, o autor assumiria, na polêmica travada com os folcloristas, a
linha de frente do combate, por meio do qual afirmaria os pressupostos que
informavam a defesa da sociologia como ciência, negando ao folclore o mesmo
estatuto. Embora Roger Bastide defendesse, conforme a citação acima, a
abordagem sociológica do folclore, sua participação na polêmica é menos
incisiva, por legitimar o esforço de afirmação do folclore como disciplina
científica, definida pela especificidade de seu objeto. Em tal direção,
constituir-se-ia em ramo da antropologia cultural, voltado ao estudo da cultura
popular. O fundamental seria não separar na análise formas culturais de formas
sociais.
A diferença entre as estratégias dos autores, em defesa da sociologia do
folclore é, no entanto, menos importante do que a distância que separa as
interpretações substantivas, apreendida por Fernanda Peixoto, perceptível a
partir das "molduras" que enquadram as análises dos autores. Em Florestan, a
cidade de São Paulo; em Bastide, o Brasil. Embora o interesse inicial por São
Paulo do primeiro fosse motivado pelo cruzamento de sua história individual com
os problemas suscitados pelo curso de graduação ministrado pelo segundo, tomar
a cidade como objeto significava focalizar o processo de mudança social em
curso acelerado, em função do qual o folclore se desintegrava. Não obstante,
Florestan procurava demonstrar a vitalidade do folclore, sobretudo como fator
de ajustamento psicossocial, que minimizaria efeitos disruptivos, caros à
urbanização:
Não podemos ignorar, porém, que, por reduzida que seja, a influência
positiva do folclore facilita o ajustamento de certos tipos de
personalidade ao mundo urbano em transformação e fortalece
disposições psicossociais favoráveis à renovação cultural com base na
conservação de elementos essenciais à integridade da "civilização
brasileira" (Fernandes, 2004, p. 28).
Tal conclusão aproxima-se do ponto de vista de Bastide, para quem o folclore
(como a religião, a arte, a literatura) seria mais do que fator de ajustamento,
seria fator de resistência e recriação social. O autor investiga na formação do
folclore brasileiro, desde a colonização, a interação entre as tradições
culturais portuguesa, africana e ameríndia. A primeira seria certamente
predominante (embora adaptada às condições diversas da colonização, que teriam
favorecido a interferência da Igreja católica no processo), mas circunstâncias
históricas teriam favorecido, também, a assimilação de tradições negras e
indígenas, freqüentemente mobilizadas em resistência à dominação branca. A
diferença fundamental entre as interpretações dos autores reside, assim, na
aposta feita pelo sociólogo francês na tradição, apreendida a partir da
cultura, como objeto privilegiado da sociologia.
O retorno definitivo de Bastide à França em 1954 implicou a desvalorização
progressiva da sociologia da cultura em relação à sociologia do
desenvolvimento.31 Na década de 1960 tal oposição assumiria outra forma,
marcada pela concorrência entre disciplinas vizinhas: crítica literária e
sociologia. Tal contexto, que ultrapassa os propósitos deste artigo, seria
marcado também pela radicalização política provocada pelo golpe de 1964, que
impediu a realização completa do projeto de Florestan Fernandes e de seu grupo,
ao mesmo tempo em que o legitimou, porque o grupo assumiu a linha de frente da
oposição à ditadura militar na Universidade de São Paulo.
Notas
1 Ultrapassa os limites deste trabalho uma discussão teórica aprofundada sobre
a forma ensaio. Não se objetiva tampouco tomar partido nessa questão. Importa,
sobretudo, verificar como tal tensão organiza o debate intelectual no período.
2 "As ciências sociais desenvolvidas nos quadros universitários redirecionam,
então, os critérios de confecção das normas de elaboração das linguagens. No
interior do sistema intelectual, as oposições estarão pontuadas pelas
diferenças entre reflexões consideradas rigorosas e científicas e aquelas
vistas como impressionistas e arbitrárias" (Arruda, 2002, p. 206). Sobre a
importância do ensaio na formação do pensamento brasileiro, ver Candido (1976).
O mesmo autor avalia a relação entre o ensaio e a sociologia (Candido, 1957).
3 É o que sugere Maria Arminda do Nascimento Arruda: "Independentemente dos
procedimentos adotados, o resultado é denso e profícuo. Florestan Fernandes
consegue, nesse texto, provavelmente mais do que em outros, elucidar as
relações contraditórias subjacentes a uma totalidade composta de elementos em
si mesmo diversos. E, aí, aproxima-se de sugestões presentes em obras como
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, pois, no prefácio da obra,
Antonio Candido chama a atenção para essa capacidade do autor em romper uma
visão dicotômica e trabalhar dialeticamente com as oposições" (Arruda, 2002, p.
294).
4 Este aspecto constitui o mote principal da crítica à sociologia paulista
realizada no Rio de Janeiro, a partir de textos de Wanderley Guilherme dos
Santos.
5 Passagem retirada do memorial de Maria Sylvia de Carvalho Franco, apresentado
em 1988 na USP.
6 Na verdade, os personagens também se afastam ou se aproximam dos dois pólos
ao longo da carreira. Assim, as considerações aqui sugeridas devem ser
matizadas, para que se evite o extremo da caricatura.
7 Cabe citar: "Em São Paulo, a hierarquia acadêmica que vai se constituindo nas
duas primeiras décadas de funcionamento foi sendo modelada por docentes
estrangeiros treinados nas regras e costumes da competição acadêmica européia
(e francesa em particular), todos eles empenhados em instaurar um elenco de
procedimentos, exigências e critérios acadêmicos de avaliação, titulação e
promoção. O acesso às posições de comando e liderança esteve invariavelmente
condicionado à produção e defesa do doutoramento, ao concurso para livre-
docência e à conquista de cátedra, preenchendo-se esses lugares de preferência
com licenciados nativos que firmaram sua reputação pela excelência de sua
produção intelectual, pela herança presuntiva das posições em aberto com o
retorno dos estrangeiros, ou, então, por uma combinação variável de ambos os
fatores" (Miceli, 1989, p. 81).
8 No que diz respeito às obras dos cientistas sociais, é necessário realçar as
novas modalidades temáticas e, concomitantemente, uma transformação
significativa do estilo de exposição. No que se refere aos temas, emergem
objetos mais circunscritos, exprimindo o abandono dos grandes panoramas
históricos e das análises centradas no render conta dos largos processos de
constituição da sociedade brasileira, típicos do ensaio. Isso não significa, no
entanto, que se desprezou a busca da compreensão da história brasileira a
partir de uma visão de conjunto. O que pretendo salientar é que, apesar do
remetimento à totalidade, o foco da análise passa a incidir sobre um problema
determinado. Diferentemente dos chamados intérpretes do Brasil, dirigidos para
a questão dos fundamentos da sociedade, os sociólogos paulistas buscam
compreender as relações entre certos fenômenos e o contexto abrangente. Por
isso, os trabalhos monográficos entram na ordem do dia (Arruda, 2002, p. 211).
9 Na vigência do sistema de cátedras (1934-1969), na FFCL-USP, havia duas
cadeiras de sociologia. Tal divisão institucional esteve associada, desde o
começo da faculdade, a disputas entre concepções distintas de ensino e pesquisa
(freqüentemente misturadas a questões de ordem política). Os primeiros
catedráticos foram Paul Arbousse-Bastide (primeira cadeira) e Lévi-Strauss
(segunda). Entre os dois, houve um confronto, que pode ser apreendido nos
textos de cada um, publicados no primeiro anuário da Faculdade (1935); os
programas de curso, publicados no anuário seguinte são também reveladores dessa
contenda. A "queda de braço" teve como desfecho o afastamento de Lévi-Strauss,
no final de 1937. Para seu lugar, foi contratado Roger Bastide, cujo breve
texto, publicado no anuário de 1938, indica a intenção de "estabelecer uma
ligação muito estreita entre nosso curso e o de nossos colegas" (p. 14).
Bastide seguiu a orientação do programa, lecionando "sociologias especiais". O
sociólogo francês teve papel decisivo na FFCL-USP (e no cenário cultural
paulista) até seu retorno à França, em 1954. No início da década de 1940, é
transferido para a Cadeira de Sociologia I, assumindo a segunda cadeira
Fernando de Azevedo (Arbousse-Bastide assume a cadeira de Política). A Cadeira
de Antropologia é criada em 1941, regida por Emílio Willems até 1949, em
seguida por Egon Schaden e João Batista Borges Pereira. Disputas mais acirradas
entre as cadeiras ocorrem a partir da substituição de Bastide por Florestan
Fernandes em 1954. Em seguida, as assistentes Gilda de Mello e Souza e Maria
Isaura Pereira de Queiroz migram, respectivamente, para a Filosofia e para a
Sociologia II. Esta (na qual trabalharam Florestan e Antonio Candido, como
assistentes, até 1954 e 1958, respectivamente) caracterizar-se-ia, a partir da
segunda metade da década de 1950, por reunir, sob a cátedra de Fernando de
Azevedo (substituído em 1964 por Rui Coelho), sociólogos com orientações
teóricas diversas; além de Maria Isaura e Rui Coelho, Azis Simão, por exemplo.
Na Sociologia I, prevalece a orientação "científica", imposta por Florestan
Fernandes a seus discípulos, entre os quais Fernando Henrique Cardoso, Octávio
Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Marialice Forachi. O desenvolvimento
da sociologia na USP foi marcado fortemente por essa divisão, pelas disputas
entre as cadeiras e internas a elas, sobretudo na Sociologia I, acirradas
depois de 1964. Sobre esse contexto, ver Pulici (2004).
10 Seguimos aqui a tese de Heloísa Pontes (1998), remetendo o leitor para o
capítulo quatro "Intelectuais acadêmicos".
11 Conforme a passagem seguinte: "Para um sociólogo como Florestan Fernandes, o
ensaísmo e a forma literária de escrita estão comprometidos com uma visão
estamental da cultura. O nosso padrão de vida literária foi moldado numa
sociedade senhorial e o escritor passou a ver-se, como e enquanto escritor, à
luz de uma concepção estamental do mundo'. Por essa via, o professor constrói
uma forma de exposição cujo traço marcante refere-se à apresentação de um
discurso, não apenas permeado por conceitos, mas no qual a precisão da
linguagem científica é o principal elemento ordenador" (Arruda, 2002, p. 212).
O trecho citado pela autora está em Fernandes (1963, p. 230).
12 Sobre as revistas e sua importância na legitimação dos grupos no período,
ver Jackson (2004).
13 Florestan Fernandes defendeu o desenvolvimento da sociologia como ciência, o
que não significa que fosse imune às preocupações estilísticas, caras ao
ensaio. Em sua obra, há variação em relação às formas de exposição, mais ou
menos "científicas", de acordo com os temas e as circunstâncias que marcaram
sua trajetória acadêmica e política.
14 Para uma análise circunstanciada dessa obra, ver Pontes (2004).
15 Faltaria, portanto, melhor fundamentação empírica no trabalho da autora,
ausência não compensável pelo estilo de escrita.
16 Se abraça certo cientificismo nessa época, Octávio Ianni posteriormente
valoriza arte e literatura como interpretações do mundo real. A leitura aqui
sugerida não visa à desqualificação de nenhuma das duas perspectivas.
17 Depoimento concedido ao pesquisador em 30/9/1996, transcrito em Jackson
(2002).
18 A tensão política que divide o espaço acadêmico, nas décadas de
institucionalização das ciências sociais paulistas, será exemplificada aqui, a
partir da disputa entre FFCL-USP e ELSP; devemos reter, no entanto, que,
internamente à USP, aos grupos e às trajetórias dos personagens, a política
atua igualmente como princípio classificatório.
19 Caio Prado afirma na resenha uma relação direta entre o método, baseado em
pesquisa empírica rigorosa, e o caráter possivelmente reacionário escondido na
proposta aparentemente neutra do trabalho.
20 Sobre Sociologia, ver Limongi (1987). Sobre a trajetória de Willems, ver
Villas-Bôas (2000).
21 O debate metodológico sobre estratificação social, constituiu, como notou
Mariza Corrêa (1995), um marco decisivo no desenvolvimento das ciências sociais
em São Paulo.
22 A partir de então, o trabalho em grupo constitui-se em requisito fundamental
para o trabalho científico. Devemos notar, nesse sentido, que ao assumir a
Cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada, na FFCL-USP, em dezembro de
1960, Antonio Candido trata imediatamente de compor uma equipe de professores e
pesquisadores, cujos integrantes mais célebres seriam Roberto Schwarz, Walnice
Nogueira Galvão, João Alexandre Barbosa e Davi Arrigucci Junior. Chamamos
atenção para o fato de que em literatura, ao contrário do que ocorrera na
sociologia, Antonio Candido representaria (em relação aos concretistas
sobretudo) uma vertente marcada pela cientificidade, esta perseguida através de
procedimentos próprios à crítica literária ' "estabelecimento de fontes, de
textos, de influências, pesquisa de obras auxiliares, análise interna e
externa, estudo da repercussão, análise das constantes formais, das analogias,
do ritmo de criação" (Candido, 1963) ', definidos na tese de concurso,
defendida em 1945, sobre Silvio Romero, autor que lhe servia de contraponto.
23 Nísia Trindade Lima (1998) aproxima os autores notando, acertadamente, a
preocupação de ambos com as possibilidades da sociologia de se constituir como
ciência aplicada. Sobre o projeto de Florestan nessa direção, ver Romão (2003).
24 O fato de o texto ter sido publicado na imprensa aponta para o caráter antes
político do que científico, o que permitiu ao autor formular teorias sem
confirmação anterior em fatos concretos, sobre os quais operaria a construção
indutiva.
25 O exemplo dado pelo autor refere-se à possibilidade quase certa de
desagregação social diante do impacto da economia capitalista.
26 As citações desta obra (Sociedade de classes e subdesenvolvimento) virão,
doravante, no corpo do texto com o número de página entre parênteses.
27 A ditadura militar inviabilizaria a realização completa do projeto "Economia
e Sociedade no Brasil ' Análise Sociológica do Subdesenvolvimento", direcionado
pela possibilidade, defendida por Florestan Fernandes, de a Sociologia
constituir-se como ciência aplicada; no contexto, voltada ao estudo dos
obstáculos ao desenvolvimento brasileiro, para o qual pretendia contribuir. O
golpe levaria o autor a assumir posição política mais evidente por exemplo, ao
antecipar teses ainda não suficientemente embasadas, como no texto em questão,
atitude típica de sua concepção, diante das circunstâncias, da sociologia como
ciência "crítica e militante" (cf. Fernandes, 1976 [1963]).
28 Os termos entre aspas remetem a categorias mobilizadas por Florestan.
29 A relação entre os autores foi estudada em profundidade por Fernanda Peixoto
(2000), cuja análise nos orienta neste momento. Tomamos também como referência
o texto de Maria Isaura Pereira de Queiroz, "Nostalgia do outro e do alhures"
(1983). Sobre o projeto Unesco, remetemos o leitor ao texto de Marcos Chor Maio
(2000).
30 A correspondência entre os autores constitui documento histórico precioso,
sobretudo no que se refere ao andamento da pesquisa da Unesco, quando Bastide
dividia-se entre o Brasil e a França. Tivemos acesso às cartas de Bastide (pelo
que agradecemos novamente a equipe eficiente e prestativa da Biblioteca
comunitária da UFSCAR), das quais reproduzimos duas passagens significativas. A
primeira, de carta redigida em 26/1/1952, na qual Bastide relatava os
compromissos que, em Paris, o afastavam do trabalho na pesquisa, destaca a
importância que depositavam no trabalho, tanto para a tomada de consciência do
problema racial, como para o desenvolvimento da sociologia brasileira: "Mas
tudo isso me toma muito tempo, e eu só tenho a noite para me ocupar do nosso
trabalho coletivo. Espero que, para você, o trabalho ande bem e estou certo de
que vamos fazer algo interessante para nós dois e que honrará a sociologia
paulista!". A segunda (4/3/1952) propõe uma revisão conjunta do trabalho: "Com
efeito, as diversas partes do trabalho são tão ligadas entre si que nós podemos
nos repetir em vários pontos. É necessário, então, revermos juntos o relatório,
para que possamos lhe dar uma unidade harmoniosa, sem repetições, nem possíveis
contradições".
31 A transferência de Antonio Candido para a faculdade de Letras, no final dos
anos de 1950, pode ser interpretada como resposta a tais circunstâncias. e o
catolicismo rústico brasileiro.