A construção dos fatos científicos e a existência dos vetores de doenças
Introdução
A importância da racionalidade técnica e científica no desenvolvimento das
atividades humanas e no jogo das decisões políticas tem aumentado
consideravelmente, tanto que se tornou um dos principais elementos das
instituições do mundo moderno. A este respeito, Giddens menciona que um dos
mecanismos do deslocamento (ou desencaixe) envolvido no desenvolvimento das
instituições sociais modernas é o sistema de perito, ou expert systems:
"sistemas de excelência técnica ou profissional que organizam grandes áreas dos
ambientes material e social em que vivemos hoje" (1991, p. 35).
Contudo, pouco tem sido feito no âmbito da sociologia do conhecimento, no
sentido de tornar a produção científica um objeto de investigação. Este é o
argumento utilizado por Latour e Woolgar em Vida de laboratório e em outras
obras, para compreender os vínculos entre a prática dos pesquisadores, seus
relatos e os objetos que eles produzem. Nesta obra, os autores analisaram o
processo de construção de um fato/objeto - o hormônio TRF - em um laboratório
de pesquisa norte-americano, com o intuito de entender como a objetividade
científica é produzida, sem a pretensão de reconstruir o mundo interior, vivido
pelos pesquisadores.
Algumas tentativas de explicitar a construção dos fatos científicos já foram
realizadas, como, por exemplo, os livros de memórias escritos pelos próprios
cientistas, a noção de estilos de pensamento e as reflexões epistemológicas
sobre o diagnóstico da sífilis, desenvolvidas por Fleck (1979), além de obras
cujos temas versam sobre a concorrência entre os pesquisadores, como em
Bourdieu (1983, 2004), ou sobre os laços entre as práticas dos pesquisadores e
os objetos, a partir de uma abordagem da história da ciência e, nos últimos
anos, da história social da ciência.
Outra tentativa de compreender esse processo encontra-se em A construção social
da realidade, de Berger e Luckmann, que destacam dois objetivos importantes de
análise: 1) compreender a realidade de forma ao mesmo tempo objetiva e
subjetiva e 2) analisar as inter-relações entre o social e o biológico.
Apesar destes autores terem explorado exaustivamente o processo da objetivação
das normas sociais nos indivíduos e dos aspectos subjetivos na manutenção da
ordem social, eles não forneceram pistas para se compreender como certas
"verdades" são aceitas, por que um tipo de conhecimento é refutado, enquanto
outro é aceito provisoriamente e, mais especificamente, como o processo de
produção científica poderia tornar-se um objeto de investigação, na medida em
que constrói as interpretações sobre a realidade e, conseqüentemente,
estabelece normas, estatutos, entre outros.
Bloor (1991) questiona se a sociologia do conhecimento pode investigar os
diversos conteúdos e a natureza do conhecimento científico. Ao sugerir a
abordagem do Programa Forte (Strong Programme)1 na sociologia do conhecimento,
Bloor considera que todo conhecimento, seja em ciências empíricas seja em
matemáticas, deve ser tratado como material para investigação. Para o autor, a
filosofia tem-se ocupado da tarefa de definir o conteúdo do conhecimento, e os
sociólogos têm-se limitado à análise da estrutura institucional e dos fatores
externos da produção científica, deixando intocada a natureza do conhecimento
produzido. Vale ressaltar que Bloor resgata o estudo clássico de Durkheim - As
formas elementares da vida religiosa - para mostrar como os sociólogos podem
entrar nas profundezas de uma outra forma de conhecimento, de uma outra
cultura.
Com base no exposto, este artigo tem por objetivo analisar as diferenças entre
a construção e, portanto, a historicidade do discurso científico e os objetos
da ciência, tendo como parâmetro a reflexão epistemológica de dois estudos de
caso sobre a construção dos fatos científicos na área da saúde: a obra já
mencionada de Latour e Woolgar (1997), entre outras, que defende a tese de uma
natureza socialmente construída dos fatos científicos, e a obra de Delaporte
(1999), que analisa as condições que tornaram possível a constituição da doença
de Chagas no Brasil. Posteriormente, são apontados os limites da abordagem
construtivista, a partir de contradições contidas, especialmente, em algumas
obras de Latour.
Cabe lembrar que do amplo escopo que envolve o debate entre realismo e
construtivismo pretende-se enfatizar a análise de alguns autores, porém
acredita-se que tais escolhas permitem um bom rendimento analítico por
ressaltarem os argumentos favoráveis à idéia de construção social dos fatos
científicos, as contradições implícitas nestes argumentos e as novas questões
decorrentes. Além disso, não serão discutidas todas as dimensões e as
conseqüências dos autores escolhidos, mas apenas o que está vinculado ao tema
central deste trabalho.
Considera-se que os estudos de Latour, juntamente com seus contemporâneos
Woolgar e Callon, em vez de proporcionar uma nova visão sobre a relação entre
sociedade, ciência e natureza, retomaram antigas controvérsias encontradas em
algumas contribuições da filosofia e da história da ciência, especialmente com
os trabalhos de Foucault e Canguilhem e, recentemente, Delaporte. No centro dos
debates está a questão: de que maneira lidar com objetos/fenômenos
desconhecidos, ou não classificados ou construídos cientificamente, como certos
tipos de organismos ou de seres "não-humanos" (na expressão usada por Latour),
que nos colocam em situações reais, como, por exemplo, de doenças e, às vezes,
de morte?
A relação entre a construção, pelos cientistas, da etiologia de uma doença e a
existência natural dos vetores causadores de doenças ainda hoje é motivo de
polêmica. Evitando compartilhar da tese materialista, que identifica de forma
dicotômica a relação sociedade/natureza e, ao mesmo tempo, evitando
compartilhar da tese de Latour, segundo a qual não existe uma realidade
independente do observador, propõe-se uma abordagem intermediária que incorpore
as contribuições de Canguilhem sobre a diferença, por ele traçada, entre a
historicidade do discurso científico (história da ciência) e o objeto da
ciência, bem como as contribuições de alguns autores situados no campo da
biologia.
Com essas contribuições, percebem-se os limites da história humana diante da
história da vida. Isso, porém, não significa um reforço à antiga oposição entre
sociedade (ciência) e natureza, mas, ao contrário, significa uma afirmação da
interdependência entre os dois elementos, atenta, contudo, aos diferentes
níveis de complexidade que os envolvem. Ou seja, ainda que mantenham as
especificidades, as duas categorias estão integradas no mesmo sistema, que
torna possível a vida. Para Gould (2001) e Margulis e Sagan (1997), a espécie
humana é reflexo das estratégias da vida para a perpetuação, que começou no
microcosmo há cerca de 3,5 bilhões de anos.
Tentar-se-á demonstrar que, embora concordando com o argumento de Latour e
colegas, segundo o qual os fatos científicos são socialmente construídos, isto
não significa a negação da existência de um mundo exterior, não-humano2 e
objetivo, independente do conhecimento.
A Vida de Laboratório e a construção dos fatos científicos
Latour e Woolgar (1997) procuraram mostrar por meio de quais processos se chega
a eliminar o contexto social e histórico de que depende a construção de um
fato. Para eles, é pouco provável que os cientistas adotem o ponto de vista de
que os fatos sejam socialmente construídos, já que perdura a concepção de que
eles existem, sendo que o ofício dos cientistas consiste em revelar a
existência deles. Para reforçar sua hipótese, os autores analisaram o contexto
de pesquisa em um laboratório nos Estados Unidos, identificando quando e onde
se produziu a metamorfose de um enunciado em um fato, um hormônio chamado TRF.
Além de revelarem que os fatos são socialmente construídos, demonstraram que o
processo de construção põe em jogo a utilização de certos dispositivos, pelos
quais fica muito difícil detectar qualquer traço de sua produção, já que a
estabilização de um enunciado faz com que, além de perder qualquer referência
ao processo de sua construção, ele passe a ser aceito como universal. É desse
modo que se caracterizaria a construção de um fato:
É como se o enunciado de origem tivesse projetado uma imagem virtual
dele mesmo, que existiria fora dele. Antes da estabilização, os
cientistas ocupavam-se de enunciados. No momento em que ela se opera,
aparecem ao mesmo tempo objetos e enunciados sobre estes objetos. Um
pouco depois, atribui-se cada vez mais realidade ao objeto e há cada
vez menos enunciados sobre o objeto. Produz-se, conseqüentemente, uma
inversão: o objeto torna-se a razão pela qual o enunciado foi
formulado na origem [...]. Ao mesmo tempo, o passo se inverte. O TRF
sempre existiu, simplesmente esperava para ser descoberto (Latour e
Woolgar, 1997, p. 193, tradução da autora).
Os autores apontaram a dependência entre os experimentos no laboratório e o
avanço do conhecimento em outros domínios da ciência, bem como demonstraram que
a forma pela qual os equipamentos são utilizados no laboratório, e uma vez que
se dispõe do produto final - os inscritores, no caso estudado por eles -,
rapidamente é esquecido o conjunto das etapas intermediárias que tornam
possível a sua produção. Segundo eles, sem os aparelhos, os fenômenos não
poderiam existir:
Sem o bioteste, por exemplo, não há como dizer que uma substância
existe. O bioteste não é um simples meio de obter uma substância dada
de maneira independente. Ele constitui o processo de construção da
substância. [...]. Construiu-se, com a ajuda dos inscritores, uma
realidade artificial, da qual os atores falam como se fosse uma
entidade objetiva. Essa realidade, que Bachelard (1953) chama de
"fenomenotécnica", toma a aparência do fenômeno no próprio processo
de sua construção pelas técnicas materiais (Idem, p. 61).
Latour e Woolgar ressaltam a tarefa do sociólogo em mostrar que a construção da
realidade não deve ser, ela própria, reificada e que, para isso, é importante
que sejam consideradas todas as etapas do processo de construção: "a coisa e o
enunciado são correspondentes pela simples razão de que têm a mesma origem. Sua
separação é apenas a etapa final do processo de sua construção" (Idem, p. 202).
É importante destacar que a relação entre objetos e enunciados já havia sido
tema de estudos de alguns clássicos da sociologia. Marx (1979), no debate sobre
reificação da mercadoria e Weber (1974) - porém sob uma diferente perspectiva -
nas reflexões sobre a distância entre a realidade e o conceito produzido sobre
a mesma. E mais tarde, Foucault (2000) destacou que a história da formação dos
conceitos não é "pedra sobre pedra", a construção de um edifício, apontando as
rupturas epistemológicas e os perigos do anacronismo inerentes à análise desta
história. Como exemplo, Foucault explica porque a história natural dos séculos
XVII e XVIII não se serve dos mesmos conceitos do século XVI:
[...] alguns que são antigos (gênero, espécie, sinais) mudam de
utilização; outros (como o de estrutura) aparecem; outros ainda (o de
organismo) se formarão mais tarde. Mas o que foi modificado no século
XVII e vai reger o aparecimento e a recorrência dos conceitos, para
toda a história natural, é a disposição geral dos enunciados e sua
seriação em conjuntos determinados; é a maneira de transcrever o que
se observa [...], articular em traços distintivos [...], caracterizar
e classificar; é a posição recíproca das observações particulares e
dos princípios gerais; é o sistema de dependência entre o que se
aprendeu, o que se viu, o que se deduz, o que se admite como
provável, o que se postula (Foucault, 2000, p. 64).
Para Latour e Woolgar, o argumento de "realidade" só pode ser usado para
explicar o processo pelo qual o enunciado se torna fato, ou seja, somente
depois de se tornar um fato que surge o efeito de realidade, e isso se produz
caso este efeito se apresente em termos de "objetividade", de "exterioridade".
Para os autores, averiguar se existe ou não a realidade não é a questão: "Longe
de nós a idéia de que os fatos - ou a realidade - não existem. Neste ponto, não
somos relativistas. Apenas afirmamos que essa 'exterioridade' é a conseqüência
do trabalho científico, e não sua causa" (Latour e Woolgar, 1997, p. 199).
Em A esperança de Pandora, Latour reforça este argumento: "Quando dizemos que
não existe um mundo exterior, não negamos sua existência; ao contrário,
recusamo-nos a conceder-lhe a existência a-histórica, isolada, não-humana, fria
e objetiva que lhe foi atribuída" (2001a, p. 28).
Porém, o aspecto mais polêmico das obras de Latour encontra-se na análise da
relação entre ciência e natureza (ou o mundo não-humano, para falar no termo
por ele utilizado). Para ele, a dicotomia entre ciência e natureza é falsa:
[...] a natureza não fala dela mesma: os fatos científicos são
construídos. Entre a "realidade" e o discurso sobre ela situa-se um
conjunto de operações que traduzem uma equivalência e que permitem
aos cientistas falar em nome da natureza, mostrando os resultados que
eles obtêm em seus laboratórios (Latour e Callon, 1991, p. 8,
tradução da autora).
Ou seja, o universo não-humano é socializado pelo laboratório, no qual
cientistas e engenheiros trocam propriedades. Segundo o autor, por exemplo,
Pasteur fez seus micróbios enquanto os micróbios "faziam seu Pasteur" (Latour,
2001b).
O caso da doença de Chagas no Brasil
Herdeiro da tradição histórico-arqueológica de Michel Foucault, bem como das
análises histórico-epidemiológicas de Georges Canguilhem, atualmente professor
de Filosofia na Universidade
de Picardie-Jules-Verne (França), o pesquisador François Delaporte é autor de
importantes estudos, com destaque para as histórias da fisiologia vegetal no
século XVIII, da epidemia de cólera em Paris (1832) e da febre amarela. No
estudo sobre a doença de Chagas, o autor apresenta novas interpretações sobre
sua constituição no Brasil, discutindo as possibilidades e os entraves para o
"descobrimento" de algo novo na ciência.
Seguindo um padrão de investigação histórico-arqueológica, que problematiza a
noção de continuidade ao evidenciar a multiplicação de rupturas nas idéias (as
séries, os recortes, os limites, as especificidades cronológicas, os erros,
entre outros), Delaporte (1999) analisa a história de uma pesquisa, cujo
projeto surgiu através do desvio de sua primeira linha de atuação, balizada por
acidentes de percurso e marcada pelos jogos do acaso e do erro.
Ao contrário dos historiadores que procuram analisar os períodos históricos de
forma linear, como se os episódios revelassem equilíbrios estáveis e difíceis
de serem rompidos, Delaporte mostra que a necessidade, que comanda a proposição
de um problema científico, os conceitos utilizados e a escolha dos meios
colocados em marcha não decorrem de uma trama causal preestabelecida. Ele
questiona um mito epistemológico, revelando que o método científico, muitas
vezes, se encaixa dentro de um sistema de relações que não tem,
necessariamente, um vínculo com a realização de um projeto.
No curso do estudo sobre a doença de Chagas, Delaporte analisou em profundidade
o sistema lógico da descrição do ciclo do parasito, da clínica da doença e de
sua epidemiologia, a partir de documentos históricos originais. Para o autor,
esta pesquisa, que encontra seu objeto (um tripanossomo patogênico) e forma seu
projeto (a pesquisa que ele determina), é feita a partir do acaso e do erro: em
1910, a identificação das formas flageladas no intestino do barbeiro leva à
descoberta de um tripanossomo patogênico e da suposta doença que ele
provocaria, a tireoidite parasitária. Mas precisou-se esperar até 1935 para se
conhecer a entidade correspondente, em definitivo, à tripanossomíase americana3
atual.
Para os historiadores, segundo Delaporte, Chagas teria elucidado o ciclo
evolutivo do parasito, descrito as diferentes formas clínicas da doença e
anunciado a existência de um vasto flagelo. Porém, para Delaporte, essa
reconstituição histórica é falsa porque oculta os erros e os acidentes
ocorridos no processo de constituição4 da doença que recebeu o seu nome.
A formação do conceito de tireoidite parasitária supõe a articulação de três
processos: a identificação do parasito, um estudo anatomoclínico e uma
investigação epidemiológica.
Em relação à identificação do parasito, Delaporte considera que o primeiro
caminho seguido por Chagas é alheio ao campo médico. A descoberta das formas
critidiais no intestino do barbeiro é inicialmente associada àquela de um
tripanossomo não patogênico, encontrado em um sagüi da região de Minas Gerais -
Tripanosoma minasense (Chagas, 1909). Para testar sua hipótese, Chagas enviou
barbeiros infectados a seu mestre Oswaldo Cruz, no Instituto de Manguinhos
(RJ), para testá-los em macacos não contaminados. Assim, querendo verificar a
hipótese, segundo a qual os flagelados achados no barbeiro poderiam ser formas
evolutivas de Trypanosoma minasense, Chagas teria criado as possibilidades para
a descoberta de um novo parasito patogênico - Trypanosoma cruzi. Surgiu, assim,
de uma observação ocasional, o ponto de partida que conduziu à descoberta da
doença que leva seu nome. Para Delaporte, a observação do tripanossomo
patogênico deve ser atribuída a Cruz, mas as condições que tornaram possível
essa observação devem ser creditadas a Chagas, que descreveu formalmente o
parasito: "Na experiência é preciso distinguir dois elementos: o processo e as
significações que se ligam a seu resultado" (Delaporte, 1999, p. 45, tradução
da autora).
Delaporte descreve o dilema de Chagas para admitir o erro e o acontecimento
imprevisto: se Chagas insistisse sobre a razão que estabelecia sua
responsabilidade, ele endossaria o erro. Ou seja, admitiria a hipótese,
errônea, segundo a qual as critídias seriam formas evolutivas de Trypanosoma
minasense: "É o temor de se ver privado do mérito da descoberta que conduz
Chagas a tentar o impossível. Substituir a sua primeira orientação de pesquisa,
fictícia, segundo a qual ele tinha achado o parasita patogênico que procurava"
(Idem, p. 47).
Ao dizer que os espécimes em questão haviam sido examinados antes da descrição
de Trypanosoma cruzi, Chagas inverte a ordem das descobertas. A observação do
Trypanosoma cruzi surge, segundo Delaporte, como a primeira etapa e parece que
tudo começa com a infecção experimental do sagüi pelos barbeiros infectados:
"Dizendo que sua investigação sobre Trypanosoma minasense dos macacos em Minas
Gerais se dera depois da descoberta do Trypanosoma cruzi, Chagas deixa entender
que ela foi feita com a única intenção de localizar um eventual tripanossoma
patogênico" (Idem, p. 49).
A análise dos documentos históricos, realizada por Delaporte, evidenciou que
nos relatos anteriores a 1915, Chagas ocupara-se do estudo do parasito no
vetor, antes do estudo da doença. Somente após 1915 o pesquisador incorpora a
seus estudos aqueles que tratam da nova patologia. A versão de Cruz, segundo a
qual Chagas teria descoberto uma nova patologia e procurado o agente causal (da
doença ao parasito), difere da versão de Chagas (do parasito à doença). De
acordo com Delaporte, os dois não se encaixam nos acontecimentos da mesma
maneira: "Se como afirma Cruz, seu aluno vai da patologia insólita em direção
aos insetos infectados, a lógica impõe procurar o tripanossoma no sangue de
indivíduos suspeitos" (Idem, p. 60). E sugere que Chagas deveria ter examinado
o sangue dos indivíduos suspeitos imediatamente após a descoberta das formas
critidiais no inseto. Pois, se assim fosse, ele provavelmente não teria
formulado sua hipótese de as critídias serem formas evolutivas de Trypanosoma
minasense.
As versões históricas, para Delaporte, ocultam a idéia segundo a qual Chagas
tinha, finalmente, achado uma doença que ele, de início, não procurara. Ele
analisa os aspectos políticos e culturais que impulsionaram a ocultação dos
fatos. Apesar da falta de uma tradição científica e de expoentes médicos no
Brasil, era preciso mostrar que o Instituto de Manguinhos, no Rio de Janeiro,
propiciava as condições necessárias para a descoberta, por apresentar uma
situação favorável para o desenvolvimento da produção de conhecimento
científico no Brasil:
Cruz percebeu imediatamente as vantagens que tal descoberta podia
proporcionar ao Instituto. Ela asseguraria uma tripla função: a
profissionalização da medicina brasileira, o desenvolvimento de uma
pesquisa voltada para a elucidação de patologias nacionais e a
implementação de uma política de saúde pública. Ora, anunciar que a
tripanossomíase americana tinha sido intuída sobre a base de um
achado ocasional privaria a jovem medicina brasileira, o Instituto
Oswaldo Cruz e a nova ordem higienista de um trunfo de primeira
classe (Idem, p. 64).
No momento em que o jovem médico se colocava como o sucessor de Cruz,
era necessário descartar a versão tão comprometedora da colaboração.
Daí essas histórias transfiguradas que ocultariam o erro do qual ele
precisava se libertar e o acaso do qual ele precisava tirar partido.
O mestre e o discípulo esforçam-se para fazer prevalecer os direitos
da lógica sobre a lógica da história (Idem, p.55).
Em relação ao estudo anatomoclínico, Delaporte considera que Chagas produziu
uma quimera ao associar o bócio a um parasito, o que resultou na descrição da
tireoidite parasitária.
Uma das explicações desse erro está vinculada ao fato de Chagas ter tomado como
modelo explicativo o ciclo do hematozoário da malária e, conseqüentemente, está
ligado à estrutura da percepção médica do período. Delaporte afirma, portanto,
que a tireoidite parasitária, tal como Chagas a descreveu, não é nem
tripanossomíase americana nem uma afecção endócrina e, ainda menos, as duas
juntas. E lembra a ressalva de Villela, um dos críticos de Chagas, para quem os
trabalhos desse pesquisador contribuíram para negligenciar o tratamento do
bócio no Brasil e criaram obstáculos para a elucidação da natureza da
tripanossomíase americana.
Diante desse impasse, Delaporte evidencia o tempo de latência que separa a
constituição do sistema médico de Chagas da revisão epistemológica, que tornou
possível a formação do conceito de tripanossomíase americana. Nesta direção,
novas leituras começaram com a revisão da teoria do ciclo evolutivo do
parasito, feita por Brumpt (1922 apud Delaporte, 1999), com a revisão do quadro
clínico da tireoidite parasitária, feita por Krauss (1925 apud Delaporte, 1999)
e com as novas enquetes epidemiológicas refeitas por pesquisadores na
Argentina.
Constituiu-se um pensamento médico que se opunha à percepção de Chagas, já que
este tinha formulado um estudo anatomoclínico do bócio e do cretinismo para as
formas crônicas da tireoidite parasitária. Ou seja, Chagas tinha descrito duas
entidades mórbidas superpostas, uma parasitose e as manifestações clássicas do
hipotiroidismo.
Somente em 1930 aparecem novas contribuições fundamentais: Dias revisa o ciclo
evolutivo de Trypanosoma cruzi, Pena de Azevedo revisa o material
histopatológico e Lobo Leite realiza novas enquetes epidemiológicas.
Em 1935, época em que a identificação do parasito era o único indicador da
doença de Chagas, Romaña, na Argentina, descreveu a síndrome óculo-palpebral e
encontrou o sinal patogênico que leva seu nome. Para Delaporte, este ano não é,
portanto, a data de uma redescoberta, mas o momento onde se diagnostica e se
descobre a tripanossomíase americana. Com Romaña, a medicina havia mudado de
terreno. Houve um deslocamento: do laboratório em Lassance, Minas Gerais, para
a clínica do hospital de Santa Fé, na Argentina, onde havia casos espontâneos
da doença. Há, então, uma substituição da medicina experimental pela clínica: o
contato com a conjuntivite e a descoberta de que o parasita provoca a síndrome
óculo-palpebral.
Os historiadores não vêem que o corte do saber, conhecido desde 1935,
não pode valer para um período anterior. É somente a partir do
momento em que se identificou clinicamente a tripanossomíase
americana, graças ao sinal de Romana, que é possível localizar, no
discurso médico de Chagas, uma descoberta, um erro e uma confusão
(Delaporte, 1999, p.69, tradução da autora).
Por fim, é preciso acrescentar que Delaporte não pretende negar o trabalho de
Carlos Chagas (o qual, embora tenha construído uma doença falsa, foi o criador
das condições que possibilitaram a sua descoberta e, especialmente, a
descoberta do parasito), mas questionar um mito epistemológico, mostrando como
a ciência pode avançar a partir do registro de erros e acasos. Além disso,
coloca em evidência as razões extracientíficas para a ocultação dos erros, dos
acasos e das transfigurações históricas no processo de constituição da doença
de Chagas no Brasil.
Limites da abordagem construtivista
Apesar da diferença entre o estudo de Delaporte sobre a pesquisa da doença de
Chagas no Brasil e o estudo de Latour e Woolgar em Vida de laboratório, no qual
as políticas científicas e os investimentos financeiros para as pesquisas são
bastante altos, e apesar dos períodos históricos, e, portanto, das realidades
socioculturais, científicas e tecnológicas de ambos os estudos serem
diferentes, encontram-se similaridades entre eles, como, por exemplo:
1. O investimento em capital simbólico. Enquanto para viabilizar o
objeto de estudo de Latour (o grupo de investigadores do hormônio
TRF) era importante manter o circuito de credibilidade-
reconhecimento, para obter mais financiamentos para a pesquisa, o
Instituto de pesquisa de Manguinhos, no Rio de Janeiro, no início da
década de 1890, necessitava tornar-se reconhecido, no Brasil e no
exterior, e esse foi um dos motivos, segundo Delaporte, da ocultação
de muitos erros no processo de constituição da doença de Chagas.
2. O interesse de ambos os autores era a reconstrução de
acontecimentos históricos, mas de um modo diferente daquele que seria
do interesse dos historiadores. Eles não tentam produzir uma
cronologia precisa dos acontecimentos na área, ou saber "o que
realmente se passou". Interessa-lhes mostrar como um fato bruto pode
ser social e historicamente desconstruído a partir da análise de
microprocessos.
3. Fica muito clara, nos dois estudos, a influência dos contextos
socioculturais no processo de "construção", conforme o termo
utilizado por Latour, de um hormônio e de "constituição", conforme o
termo utilizado por Delaporte, de uma doença.
4. Apesar de Latour, mais explicitamente, e Delaporte,
implicitamente, negarem a existência de uma natureza a-histórica e
independente do observador, ambos emitem afirmações que contradizem
este ponto de vista.
Nas considerações finais de sua obra, Delaporte afirma: "Se não se via [a
doença] não era em razão de uma observação defeituosa, mas porque ela estava
invisível" (Idem, p. 182, grifo nosso).
Em uma entrevista, sob o título "Le microbe: un acteur social?", Latour
enfatiza que o que Pasteur fez no laboratório foi criar novos atores, capazes
de suscitar grande número de condutas humanas: férias ao livre, dormir com a
janela aberta, escovar os dentes, não emprestar seu cachimbo, isolar os
doentes. Porém, ao final dessa afirmação, o autor deixa transparecer o caráter
limitado da produção do conhecimento, diante da complexidade da vida: "Esses
atores são os micróbios que, antes de Pasteur, não tinham muita existência para
os homens" (Latour, 2000, p. 302, grifo nosso, tradução da autora).
Com esta afirmação, Latour tende a contradizer o que tem constantemente
enfatizado e, ao mesmo tempo, reforça o que pretenderemos defender neste
artigo: antes de Pasteur a doença efetivamente não existia, porque nunca fora
pensada. Ou, como ele próprio sugere: não existia para os homens! Pode-se
acrescentar "nem para a ciência", o que não impede de dizer que eles existiam
na natureza. E aqui voltamos ao antigo debate sobre a relação ciência e
natureza.
Para melhor entendermos essa contradição é necessário resgatar a contribuição
de Canguilhem (1994) sobre a diferença entre o objeto da história da ciência e
o objeto da ciência, bem como a contribuição de Gould (2001) sobre a infinita
diversidade e complexidade dos organismos vivos.
Para Canguilhem, o objeto da história da ciência não tem nada em comum com o
objeto da ciência:
O objeto científico, constituído pelo discurso metódico, é secundário
em relação ao objeto natural, inicial, e que poderia ser chamado, em
um jogo de palavras, pré-texto. A história das ciências aplica-se
sobre esses objetos secundários, não naturais, culturais, mas não
deriva deles mais do que eles derivam dos objetos naturais. O objeto
do discurso histórico é, de fato, a historicidade do discurso
científico. E esta historicidade representa a efetuação de um projeto
interiormente normatizado, atravessado por acidentes, retardado ou
desviado por obstáculos, interrompido por crises, isto é, por
momentos de julgamento e verdade (1994, p. 17, tradução da autora).
Para justificar esta afirmação, Canguilhem utiliza o exemplo da cristalografia
e do cristal. Segundo ele, como o cristal é de certa forma independente do
discurso científico (o qual procura obter conhecimento sobre ele), poder-se-ia
chamá-lo de objeto "natural"5:
A ciência dos cristais é um discurso sobre a natureza dos cristais, a
natureza não sendo nada além que sua identidade: um mineral diferente
dos vegetais e dos animais, e independente de todo o uso de que o
homem faz, sem que eles sejam naturalmente destinados. Quando a
cristalografia, a ótica cristalina, a química mineral são
constituídas como ciências, a natureza dos cristais é o conteúdo da
ciência dos cristais, isto é, uma exposição de proposições objetivas
obtidas por um trabalho de hipóteses e de verificações esquecidas em
proveito de seus resultados. [...] Assim, o objeto cristal tem, em
relação à ciência que o toma como objeto, uma independência em
relação aos discursos, o que permite chamá-lo de objeto natural. Este
objeto natural não é, ele mesmo, recortado e repartido em objetos e
fenômenos científicos. É a ciência que constitui seu objeto a partir
do momento em que inventa um método para formar, por meio de
proposições capazes de serem compostas integralmente, uma teoria
controlada pela preocupação em torná-la refutável (Canguilhem, 1994,
p. 16, tradução da autora.)
Com base nessa diferença exposta por Canguilhem, pode-se compreender, também, a
polêmica lançada por Latour (1998) sobre a morte do faraó Ramsés II, devido à
tuberculose. Para esse autor, se Ramsés morreu de tuberculose há 3.000 anos
atrás, como pôde morrer por causa de um bacilo somente descoberto por Koch em
1882? A resposta a esta pergunta, fornecida pelos historiadores, sugere que os
objetos (bacilos) estavam lá (na época em que Ramsés estava vivo) e que os
cientistas apenas os descobriram tardiamente. Para Latour, tal resposta sugere
que há uma existência natural das doenças, independentemente do observador e do
contexto de análise. Sugere, ainda, que se precisou esperar até 1976 para dar
uma causa à morte do faraó e até 1882 para que o bacilo de Koch pudesse servir
de base a essa atribuição. Latour considera que dizer que o faraó morreu de
tuberculose é um anacronismo: "não se pode fazer retroagir sobre o passado uma
invenção do presente. A história irreversível ignora a causalidade
retrospectiva" (Latour, 1998, p. 25, tradução da autora). Para ele, portanto,
há uma história da descoberta do mundo pelos cientistas, mas não há uma
história do mundo por ele mesmo.
Ávila-Pires (2001) considera que quando se afirma, abreviadamente, que Ramsés
II morreu tuberculoso, isso quer dizer que os restos encontrados por
arqueólogos e atribuídos, com base em evidências independentes, a Ramsés II,
exibiam evidências físicas que paleopatologistas puderam identificar,
recentemente, como sendo compatíveis às lesões provocadas por uma infecção
bacteriana, no sentido pastoriano de um bacilo que Koch descreveu em 1882. Para
Ávila-Pires, a definição científica da doença e a vivência subjetiva do doente
são resultantes de uma construção intelectual e socialmente condicionada. A
doença é uma abstração, porém as lesões e os parasitos (e outros
microorganismos) são concretos. No caso da múmia de Ramsés, e recuperando o
argumento de Ávila-Pires, a doença que atualmente se descreve sob o nome de
tuberculose não era conhecida no tempo dos faraós, mas as bactérias que a
causam e as lesões resultantes da infecção existiam, como se pôde constatar.
O que muda, portanto, é a história social das doenças. Esta investigará
relatórios, documentos e testemunhos registrados dentro da percepção de uma
certa época, lugar e visão pessoal. Estas descrições são influenciadas pela
subjetividade e resultam em um constructo:
Assim, a tuberculose de hoje não é um sinônimo de phytsis do século
XIX. O conceito das doenças é influenciado pela cultura e pelos
hábitos e valores sociais e tradicionais. Mesmo em um mesmo lugar e
época, diferentes médicos adotam critérios distintos para
diagnóstico. Hipertensão, para alguns cardiologistas, é uma variação
de 120 por 90, enquanto que outros são mais estritos ou mais
tolerantes (Ávila-Pires, 2001).
Segundo Ávila-Pires, se a conceituação da doença, tanto no nível individual
como no nível epidemiológico, varia no tempo e no espaço, a lesão do doente é
constante e objetiva, muitas vezes indelével, sobrevivendo à sua morte.
Portanto, se de um lado reconhece-se o caráter construído dos fatos
científicos, e especificamente neste estudo, que as doenças são construções
sociais, de outro, e é aqui que se distancia de Latour (2000), reconhece-se que
os parasitos e os vetores envolvidos são reais, e existem independentemente do
conhecimento e da taxonomia científica ou popular. Essas diferenças aparecem
quando são analisados os diferentes níveis de complexidade que envolvem a
definição da doença (individual, social e ambiental).
A polêmica lançada por Latour precisa, portanto, ser posta em seu devido lugar.
Ela serve para reconhecer uma tendência para a falta de percepção da distância
entre o estoque de construções científicas de que se dispõe na época atual e a
imensa necessidade de novas explicações sobre a diversidade e a complexidade da
vida. Entende-se, nesse sentido, o conceito de vida como abrangendo todos os
organismos vivos, não só a espécie humana; ou, como menciona Gould, "por mais
que o amemos, o Homo sapiens não é representativo, ou simbólico, da vida como
um todo" (2001, p. 31).
Gould demonstrou, amparado por outros autores, que não apenas as bactérias
construíram a maior parte da história da vida, mas também que essas fundações
bacterianas permanecem fortes, sadias, vigorosas e sustentando totalmente a
vida multicelular.6 Segundo ele, o registro fóssil da vida começa com as
bactérias, há cerca de 3,5 bilhões de anos:
As bactérias existem em número assustador e em variedade sem
paralelo; vivem numa tal diversidade de ambientes e funcionam com
maneiras inigualáveis de metabolismo. Nossas loucuras, nucleares ou
de outros tipos, podem facilmente levar à nossa própria destruição
num futuro previsível. Poderíamos levar a maior parte dos grandes
vertebrados terrestres conosco - uns poucos milhares de espécies, no
máximo. Certamente não conseguiríamos extirpar 500.000 espécies de
escaravelhos, embora pudéssemos causar um prejuízo significativo.
Duvido que pudéssemos prejudicar substancialmente a diversidade
bacteriana. Os organismos modais não podem ser eclipsados pela bomba
nuclear, ou mesmo afetados de modo sensível por qualquer das nossas
muitas concebíveis maldades (Idem, pp. 243-244).
As bactérias, portanto, estão em todo o lugar que possa sustentar uma forma de
vida. E seu número total tem sido subestimado porque nunca se pensa na
amplitude de lugares que poderiam ser investigados. Gould (2001) menciona que
os métodos convencionais de análise deixam escapar até 99% desses organismos.
Ou seja, a complexidade delas excede a capacidade humana de compreensão
científica.
Os grandes desafios, humanos e científicos, decorrentes desta constatação, são
saber lidar com as incertezas e as complexidades dos organismos vivos, na
medida em que se reconhece o caráter limitado e abstrato das construções
científicas diante da imensa complexidade, diversidade e variação do meio
ambiente, na qual todos estão imersos e a qual se procura compreender. Além de
propiciar uma percepção da complexidade da vida, que outro benefício teria a
afirmação de que os fatos são cientificamente (socialmente) produzidos se,
parafraseando Gould (2001), as formigas continuam a estragar nosso piquenique e
as bactérias nos tomam a vida?
NOTAS
1 Esta abordagem deve incorporar quatro valores que, de acordo com Bloor, são
considerados também em outras disciplinas científicas: 1. Causalidade -
interesse pelas condições que produzem as crenças e o conhecimento científico;
2. Imparcialidade - com respeito à verdade e à falsidade, à racionalidade e à
irracionalidade, ao sucesso ou à falha (ambos os lados dessas dicotomias
requerem explicação); 3. Simetria - os mesmos tipos de causas explicariam as
crenças tanto verdadeiras quanto as falsas. Esse princípio implica a
compreensão do conteúdo do conhecimento, mostrando a historicidade de sua
construção e não simplesmente apresentando a ciência feita; 4. Reflexividade -
os padrões e os recursos de explicação teriam que ser aplicáveis à avaliação
crítica da própria sociologia da ciência.
2 Para Latour, o conceito não-humano somente significa alguma coisa na
diferença entre o par humano-não-humano que, segundo ele, constitui uma forma
de ultrapassar completamente a distinção sujeito-objeto.
3 Conhecida como doença de Chagas. Trata-se de uma paritose endêmica em amplas
regiões da América, cujo agente etiológico é Tripanosoma cruzi e afeta 20
milhões de pessoas na América Latina. Para maiores detalhes ver Coura (2006).
4 Para evitar ambigüidades, o autor propõe falar de constituição de uma doença
(que supõe um conjunto de condições de possibilidades históricas e concretas),
no lugar do termo construção.
5 É interessante notar que embora Canguilhem tenha proposto a diferenciação
entre a historicidade do discurso científico e os objetos da ciência, a leitura
atenta de uma nota de rodapé deste mesmo livro tenderia a reacender a questão
colocada atualmente pelos construtivistas: "Sem dúvida, um objeto natural não é
naturalmente natural, ele é objeto da experiência habitual e da percepção de
uma cultura" (Canguilhem, 1994, p. 16).
6 Gould cita vários exemplos sobre a quantidade e os lugares tolerados pelas
bactérias. Durante o decurso de uma vida, o número de E. coli nos intestinos de
cada ser humano excede em muito o número total de pessoas que vivem atualmente
ou que já habitaram a terra (e E. coli é apenas uma das espécies na "flora"
intestinal normal de todos os seres humanos). Com base nos trabalhos de
Margulis e Sagan (1997), este autor relembra que as bactérias vivem aos
"bilhões" em um grama de solo fértil e em milhões em uma gota de saliva que a
pele humana abriga cerca de 100.000 micróbios por centímetro quadrado e que uma
colher de solo de boa qualidade contém cerca de 10 trilhões de bactérias (Gold,
2001).