Existe violência sem agressão moral?
A Roberto Cardoso de Oliveira, in memoriam, com admiração, carinho e saudade.
Inicio este texto com uma provocação a respeito da noção de violência: pode-se
falar em violência quando não há agressão moral? Embora a violência física, ou
aquilo que aparece sob este rótulo, tenha uma materialidade incontestável e a
dimensão moral das agressões (ou dos atos de desconsideração à pessoa) tenha um
caráter essencialmente simbólico e imaterial, creio que a objetividade do
segundo aspecto ou o tipo de violência encontra melhores possibilidades de
fundamentação do que a do primeiro. Aliás, arriscaria dizer que na ausência da
"violência moral", a existência da "violência física" seria uma mera abstração.
Sempre que se discute a violência como um problema social tem-se como
referência a idéia do uso ilegítimo da força, ainda que freqüentemente este
aspecto seja tomado como dado, fazendo com que a dimensão moral da violência
seja pouco elaborada e mal compreendida, mesmo quando constitui o cerne da
agressão do ponto de vista das vítimas. Pois é exatamente a esta dimensão do
problema que me detenho no contexto do debate sobre a relação entre direitos,
insulto e cidadania.
Nos últimos anos venho tentando compreender os atos ou eventos de desrespeito à
cidadania que não são captados adequadamente pelo Judiciário ou pela linguagem
dos direitos, no sentido estrito do termo. Assim, procuro apresentar o conteúdo
desses atos por meio da noção de insulto moral, como um conceito que realça as
duas características principais do fenômeno: (1) trata-se de uma agressão
objetiva a direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências
materiais; e, (2) sempre implica uma desvalorização ou negação da identidade do
outro.
Para formular a noção de insulto vali-me principalmente da idéia-valor vigente
no Brasil expressa a partir da dicotomia consideração/desconsideração. Tal
categoria remete a um tipo de atitude importante na definição das interações
sociais e articula-se com pelo menos três tradições de reflexão sobre o tema,
as quais têm marcado o desenvolvimento do meu trabalho: (a) discussão em torno
da noção hegeliana de Anerkennung (reconhecimento) e da sua ausência expressa
na idéia de Mißachtung (desrespeito, desatenção), retomada contemporaneamente
nos trabalhos de Taylor (1994) e Honneth (1996); (b) debate francês sobre
considération (e seu oposto, déconsidération), que remonta a Rousseau e que
alguns desdobramentos recentes diretamente relacionados com meu foco de
interesse foram reunidos numa publicação de Haroche e Vatin (1998), em que o
tratamento relativo à consideração é definido como um direito humano; e, (c)
discussões associadas à noção maussiana de dádiva ou reciprocidade, assim como
têm sido articuladas pelo grupo da Revue du M.A.U.S.S., especialmente nos
trabalhos de Caillé (1998) e Godbout (1992, 1998).1
Desse modo, analiso a relação entre as idéias de respeito a direitos plenamente
universalizáveis, tendo como referência o indivíduo genérico, e de consideração
ao cidadão, portador de uma identidade singular. Tenho examinado essa relação
em três contextos etnográficos distintos - no Brasil, no Canadá (Quebec) e nos
Estados Unidos - por meio da análise de conflitos e de eventos políticos que
envolvem afirmação de direitos ou demandas por reconhecimento. A articulação
entre as dimensões legal e moral dos direitos ou da cidadania encontra-se então
no primeiro plano da pesquisa nesses três países. Tanto nos processos de
resolução de disputas no âmbito dos Juizados de Pequenas Causas em
Massachusetts, como no debate público sobre a soberania do Quebec, ou nas
discussões sobre direitos quando da elaboração da Constituição de 1988 e nas
reformas que se seguiram no processo de redemocratização do Brasil, as idéias
de respeito e consideração mostraram-se fecundas para a compreensão dos
fenômenos. O insulto moral revelou-se um aspecto importante dos conflitos nos
três contextos etnográficos e, em vista de sua aparente "imaterialidade",
tendia a ser invisibilizado como uma agressão que merecesse reparação.
Apesar de o insulto moral aparecer com características próprias e implicações
diversas em cada contexto etnográfico, está freqüentemente associado à dimensão
dos sentimentos, cuja expressão desempenha um papel importante em sua
visibilidade. Nesse sentido, o material etnográfico estimulou indagações sobre
a expressão ou a evocação dos sentimentos e a mobilização das emoções dos
atores na apreensão do significado social dos direitos, cujo exercício demanda
uma articulação entre as identidades dos concernidos. Trata-se de direitos
acionados em interações que não podem chegar a bom termo por meio de
procedimentos estritamente formais e que requerem esforços de elaboração
simbólica da parte dos interlocutores para viabilizar o estabelecimento de uma
conexão substantiva entre eles, permitindo o exercício dos respectivos direitos
(Cardoso de Oliveira, 2004a, pp. 81-93). A atitude de distanciamento ou a
ausência de deferência ostensiva situadas no pólo oposto desta conexão, quando
percebidas como constituindo um ato de desconsideração, provocam o
ressentimento ou a indignação do interlocutor, característicos da percepção do
insulto.
Neste empreendimento, a fenomenologia do fato moral assim como proposta por
Strawson, acionando a experiência do ressentimento, parece-me particularmente
apropriada para caracterizar o lugar dos sentimentos na percepção do insulto,
dando visibilidade a este tipo de agressão, e sugerindo uma distinção
importante entre ato e atitude ou intenção para a apreensão do fenômeno:
Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar,
a dor não deve ser menos aguda do que se pisasse num ato de
desconsideração ostensiva à minha existência, ou com um desejo
malévolo de me agredir. Mas deverei normalmente sentir, no segundo
caso, um tipo e um grau de ressentimento que não sentiria no primeiro
[...] (Strawson, 1974, p. 5).
Ainda segundo Strawson, o ressentimento da vítima nesse tipo de situação
provocaria um sentimento de indignação moral em terceiros que tivessem
presenciado o ato e capitado a intenção do agressor, dando assim substância ao
caráter objetivo da agressão. Evidentemente, quando falamos em sentimentos no
plano moral, dirigimo-nos àqueles sentimentos social ou intersubjetivamente
compartilhados.
O insulto aparece então como uma agressão à dignidade da vítima, ou como a
negação de uma obrigação moral que, ao menos em certos casos, significa um
desrespeito a direitos que requerem respaldo institucional. Tomada como o
resultado da transformação da noção de honra na passagem do antigo regime para
a sociedade moderna (Berger, 1983; Taylor, 1994), a dignidade é caracterizada
como uma condição dependente de expressões de reconhecimento, ou de
manifestações de consideração, cuja negação pode ser vivida como um insulto
pela vítima, percebido como tal por terceiros. Esta formulação tem sido
aprimorada pelo diálogo com abordagens que enfocam a dádiva ou as relações de
reciprocidade (ver La Revue du M.A.U.S.S.), o qual me permitiu caracterizar
direitos que dão precedência ao elo social e que colocam em segundo plano a
dimensão dos interesses individuais ou a idéia de direitos intrínsecos ao
indivíduo. Assim, sugiro que o reconhecimento poderia ser concebido como a
outra face do hau do doador na elaboração de Marcel Mauss sobre as trocas
recíprocas; e argumento que a sua expressão constituiria uma das três dimensões
temáticas presentes em quase todos os conflitos que desembocam no Judiciário:
(1) a dimensão dos direitos vigentes na sociedade ou comunidade em
questão, por meio da qual é feita uma avaliação da correção normativa
do comportamento das partes no processo em tela; (2) a dimensão dos
interesses, por meio da qual o judiciário faz uma avaliação dos danos
materiais provocados pelo desrespeito a direitos e atribui um valor
monetário como indenização à parte prejudicada, ou estabelece uma
pena como forma de reparação; e, (3) a dimensão do reconhecimento,
por meio da qual os litigantes querem ver seus direitos de serem
tratados com respeito e consideração sancionados pelo Estado,
garantindo assim o resgate da integração moral de suas identidades
(Cardoso de Oliveira, 2004b, p. 127).
A caracterização do insulto como uma agressão moral, de difícil tradução em
evidências materiais, trouxe à tona uma dimensão dos conflitos freqüentemente
mal equacionada pelos atores em sociedades complexas, modernas
(contemporâneas), onde vigora o direito positivo. Seja devido à grande dose de
impermeabilidade do Judiciário a demandas de reparação por insulto, como
demonstra a análise de pequenas causas nos Estados Unidos (Cardoso de Oliveira,
1989, 1996a, 1996b, 2002); seja devido à dificuldade de formular um discurso
adequado para fundamentar direitos não universalizáveis, como sugere a
resistência do Canadá anglófono às demandas por reconhecimento do Quebec como
uma sociedade distinta (Idem, 2002); ou ainda seja devido aos constrangimentos
para a universalização do respeito a direitos básicos de cidadania no Brasil,
em vista da dificuldade experimentada pelos atores em internalizar o valor da
igualdade como um princípio para a orientação da ação na vida cotidiana (Idem,
ibidem).
A propósito, essa dificuldade brasileira induziu-me a propor uma distinção
entre esfera e espaço públicos, como duas dimensões da vida social, vigentes
nas sociedades modernas de uma maneira geral, mas que no Brasil teriam a
peculiaridade de apresentarem-se de forma desarticulada. Enquanto a esfera
pública englobaria "o universo discursivo onde normas, projetos e concepções de
mundo são publicizadas e estão sujeitas ao exame ou debate público" (Idem,
2002. p. 12), seguindo Habermas, o espaço público é caracterizado "como o campo
de relações situadas fora do contexto doméstico ou da intimidade onde as
interações sociais efetivamente têm lugar" (Idem, ibidem). Tal noção de espaço
público tem um campo semântico em alguma medida similar ao definido por DaMatta
em relação ao mundo da rua, mas procura realçar um padrão de orientação para a
ação que combinaria a perspectiva da impessoalidade com uma atitude hierárquica
em face do mundo, trazendo para o cotidiano dos atores o que Kant de Lima
define como "paradoxo legal brasileiro" (1995, pp. 56-63). O que salta aos
olhos no caso brasileiro é a contradição entre a hegemonia das idéias liberais
em prol dos direitos iguais na esfera pública e a dificuldade encontrada pelos
atores em atuar de acordo com essas idéias no espaço público, onde a visão
hierárquica freqüentemente teria precedência.
Uma dificuldade a mais nos três casos etnográficos estudados deve-se ao fato de
o reconhecimento e a consideração não poderem ser convertidos em direitos
protegidos pelo Judiciário, pois não há como fundamentar legalmente a
atribuição de um valor singular a uma identidade específica, e exigir o seu
reconhecimento social. As demandas por reconhecimento também não podem ser
satisfeitas pela simples obediência a uma norma legal, na medida em que aquele
que reconhece deve ser capaz de transmitir um sinal de apreço ao interlocutor -
isto é, à sua identidade ou ao que ela representa. Nos casos em que o
reconhecimento torna-se uma questão, a ausência deste sinal é vivida como uma
negação da identidade do interlocutor, que se sente agredido. É, nesse sentido,
que o aspecto dialógico do reconhecimento se faz presente com todas as suas
implicações. Isto também significa que o reconhecimento é uma atitude ou um
direito que precisa ser permanentemente cultivado, e que as demandas a ele
associadas não podem jamais ser contempladas de forma definitiva. Mesmo quando
elas são plenamente satisfeitas em um determinado momento, não há garantia de
que o problema não possa reaparecer no futuro.
O estudo de Juizados Especiais no Distrito Federal focaliza tanto as causas
criminais como as cíveis e, neste último caso, as causas por dano moral
suscitam interesse especial. A literatura sobre os Juizados tem chamado a
atenção para certas características particularmente interessantes que dizem
respeito à relação entre dádiva, insulto, direitos e sentimentos. Assim como em
minha pesquisa sobre Juizados de Pequenas Causas nos Estados Unidos, os
Juizados no Brasil também parecem impor às causas que lhe são encaminhadas um
forte processo de filtragem, o qual tende a excluir aspectos significativos do
conflito vivido pelas partes, reduzindo substancialmente a perspectiva de um
equacionamento adequado para suas demandas e preocupações. Desse modo, apesar
de os litigantes terem a oportunidade de resolver suas disputas por meio da
conciliação ou de uma transação penal antes de terem suas causas avaliadas pelo
juiz numa audiência de instrução e julgamento, as duas primeiras não constituem
etapas ou possibilidades verdadeiramente alternativas à audiência judicial,
pois parecem orientar-se pela mesma lógica de equacionamento exclusivamente
jurídico das disputas. Enquanto nos Estados Unidos os serviços de mediação
costumam viabilizar a discussão de problemas que não têm espaço nas audiências
judiciais, ainda que freqüentemente não consigam contemplar as demandas dos
atores em relação à reparação por insulto, no Brasil a conciliação e/ou a
transação penal procuram produzir acordos que representam uma obediência
estrita à lógica judicial, com o agravante de não manter a mesma preocupação
com os direitos das partes ao devido processo legal, sendo sistematicamente
descritos como procedimentos de caráter impositivo.
Assim, a filtragem das causas começa no balcão do juizado, quando o autor tem
sua causa "reduzida a termo" pelos funcionários que enquadram a demanda em
categorias jurídicas e encaminham administrativamente as causas. Em vez de
atentar para a perspectiva dos litigantes na disputa, os procedimentos de
conciliação parecem procurar convencer as partes sobre a precedência da lógica
judicial e dos constrangimentos que impediriam qualquer equacionamento de outra
ordem (Kant de Lima et al., 2003, pp. 19-52). Na mesma direção, Alves fala de
"acordos forçados" em sua pesquisa sobre os Juizados Cíveis no Paranoá (2004,
pp. 104-108), confirmando relatos que me foram feitos por alunos de direito
estagiando em Juizados Especiais, segundo os quais esta atitude impositiva
seria muito freqüente entre os conciliadores dos Juizados. Ao vestirem uma
pelerine, os conciliadores assumem plenamente o papel de autoridades e acentuam
ainda mais a distância em relação às partes.2
Nesse sentido, é necessário investigar melhor, com mais detalhe, a visão dos
litigantes sobre o modo pelo qual suas causas são processadas no Juizado, e em
que medida eles vêem seus direitos, interesses e preocupações contemplados ao
longo da tramitação da causa ou no desfecho no âmbito da instituição. Há sinais
de que as diferenças entre conciliação, transação penal e audiência de
instrução e julgamento nem sempre são inteiramente claras para as partes (Gomes
de Oliveira, 2005), e seria interessante indagar sobre os significados
atribuídos à negociação nas duas primeiras modalidades de encaminhamento e ao
julgamento do juiz na última delas. Confirmando-se o aparente descompasso entre
a perspectiva dos litigantes e a dos operadores do direito, como estes
justificariam o padrão de tratamento dado às causas no Juizado, e como
perceberiam o significado dos aspectos das disputas excluídos do processo por
meio da prática de reduzir a termo?
Aliás, o que o Judiciário costuma deixar de fora são todos aqueles aspectos das
disputas associados à dimensão temática do reconhecimento, conforme definido
acima. Como procurar-se-á demonstrar em seguida, além de inviabilizar a
compreensão das causas onde o reconhecimento tem um lugar significativo, o
Judiciário acabaria colaborando para o eventual agravamento destes conflitos.
Na mesma direção, o material etnográfico não apenas chama a atenção para a
importância da dimensão moral dos direitos, mas sugere também que talvez não
seja adequado falar em violência quando não houver agressão de ordem moral,
dando sentido ao aparente paradoxo de que a "violência física", sem um
componente simbólico/moral, seria apenas uma abstração, invertendo, de fato, a
equação entre os pares material/simbólico, de um lado, e objetivo/subjetivo, de
outro. A discussão de Simião (2005) sobre "violência doméstica" no Timor Leste
é particularmente contundente em relação à precedência da dimensão simbólico-
moral na constituição da violência. Entretanto, vale à pena abordar outros
exemplos para caracterizar melhor a problemática do insulto antes de concluir
com o exemplo do Timor Leste.
São conhecidas as críticas à atuação dos Juizados Especiais Criminais (Jecrims)
brasileiros nos casos que envolvem agressões à mulher e a negociação de penas
alternativas. Além da alta incidência e reincidência de casos de mulheres que
são repetidamente agredidas por seus companheiros e não encontram nos tribunais
uma proteção adequada, o modo pelo qual suas causas são equacionadas nos
Juizados dirige-se exclusivamente à dimensão física da agressão, deixando
inteiramente de lado o aspecto moral que, de certo modo, machuca mais e tem
conseqüências mais graves.3 Refiro-me ao processo de desvalorização da
identidade da vítima, levada a assumir a condição de total subordinação às
idiossincrasias (agressivas) do companheiro. O discurso da perda da identidade
é recorrente, e os direitos agredidos neste plano não encontram respaldo no
processo de resolução de disputa no âmbito do Judiciário. Embora os processos
de conciliação e de transação penal critiquem, às vezes com veemência, as
agressões do companheiro, há forte pressão para o acordo ou para a aceitação da
pena alternativa negociada, sem que seja elaborado de forma adequada o
significado moral da agressão sofrida. Isto é, esta dimensão não é nem
abordada, o que inviabiliza sua reparação, dado que a sua percepção ou sanção
não pode ser automaticamente embutida no acordo, transação penal ou decisão
focada apenas no aspecto físico da agressão.
Pois, se a ocorrência do insulto demanda esforços de elaboração simbólica para
ganhar inteligibilidade, a sua reparação freqüentemente demandaria ainda
processos de elucidação terapêutica do ponto de vista da vítima. Não me refiro
a processos terapêuticos em sentido estrito, como um padrão, mas à necessidade
de repor os déficits de significado provocados por agressões arbitrárias,
vividas como uma negação do eu ou da persona da vítima, e cujo caráter
normativamente incorreto e merecedor de sanção social negativa tem que ser
internalizado pela vítima para que sua identidade de pessoa moral, digna de
estima e consideração, seja resgatada. Como tem sido assinalado na literatura
sobre o problema do pagamento de cestas básicas como pena alternativa, que pode
até mesmo punir as vítimas de baixa renda, uma vez que retira recursos
significativos de sua unidade doméstica, a sanção não guarda nenhuma relação
com o aspecto moral da agressão. Além disso, há relatos de que o próprio
cumprimento da pena poderia ser entendido como um agravante da agressão moral à
vítima, como nos "vários casos de autores chegarem no cartório com o
comprovante de pagamento da cesta e dizendo que se ele soubesse que seria tão
barato bater na mulher, ele bateria mais vezes" (Beraldo de Oliveira, apud G.
Debert, 2002). Tal afirmação, que provavelmente é repetida na frente da vítima,
imputa a ela a condição de um mero objeto, sujeito às idiossincrasias do
agressor.
Entretanto, os casos de agressão à mulher são apenas os mais conhecidos e os
mais numerosos atendidos pelos Jecrims. Problemas similares ocorrem em causas
envolvendo demandas do consumidor, ou em conflitos entre vizinhos e parentes,
cujo potencial para desembocar em crimes graves é muito maior do que geralmente
se imagina. Isto é, se levarmos em conta dados recentemente publicados pelo
Núcleo de Estudos da Violência da USP, indicando que 38% das agressões com arma
de fogo em Salvador e no Distrito Federal, por exemplo, são protagonizadas por
conhecidos, companheiros ou familiares (Peres, 2004, p. 29).4 No que concerne
aos conflitos do consumidor, Ciméa Bevilaqua relata vários casos nos quais o
sentimento de terem sido desrespeitados por fornecedores é um aspecto central
das causas encaminhadas por consumidores. Em uma delas, após ter seu pleito
comercial plenamente contemplado pelo fornecedor, o consumidor só concorda com
o acordo negociado na frente do delegado quando o fornecedor se dispõe a pedir
desculpas formais a ele (Bevilaqua, 2001, p. 319). O componente moral das
disputas, aqui expresso pela percepção do insulto, pode ganhar amplitude
surpreendente, como no conflito entre Anselmo, Denílson e Natalício, descrito
por Gomes de Oliveira (2005, pp. 90-93) em sua etnografia sobre Jecrims na
cidade do Gama, em Brasília.
A rigor, trata-se de conflitos sistematicamente repetidos entre estes três
vizinhos, que vêm se agravando ao longo do tempo com a colaboração do
Judiciário, não encontrando um caminho adequado para equacionar as respectivas
disputas.5 Apesar de esses conflitos compartilharem muitos dos problemas
identificados por Gomes de Oliveira em outras causas que chegam aos Juizados,
não deixa de ser curioso o fato de o Judiciário neste caso se mostrar incapaz
de lidar com a seqüência de problemas entre as partes - um promotor (MP), por
exemplo, sugeriu que um dos envolvidos mudasse de endereço como forma de
solucionar o problema! (Idem, p. 90), conselho aparentemente seguido por
Denílson que não mora mais lá. Os três personagens são pessoas de classe média
baixa e residem em casas vizinhas que compartilham a área verde em frente aos
seus terrenos. Tal área não pode ser cercada e, embora seja considerada área de
transito livre, não deixa de representar projeções associadas a cada terreno,
conforme padrão generalizado em Brasília, emprestando certa ambigüidade a seu
status no que concerne aos direitos das partes e ocupando lugar de destaque nos
conflitos entre elas. Anselmo é pintor autônomo de carros, tem 38 anos, reside
com a companheira e não tem filhos; Natalício tem 25 anos, está desempregado e
reside com a mãe e os irmãos; Denílson tem 30 anos, morava com a mãe na época
dos conflitos e, atualmente, está residindo com a esposa em outra localidade.
O primeiro incidente relatado por Gomes de Oliveira envolve Anselmo e Denílson,
e teria sido detonado pela iniciativa de Anselmo de plantar árvores na área
verde sem respeitar os limites de sua projeção. A mãe de Denílson não gosta da
idéia e pede ao filho que solicite a retirada das árvores. Ao falar com
Anselmo, Denílson avisa que ele mesmo retiraria as árvores caso o outro não o
fizesse. Anselmo toma a ameaça como uma ofensa, deixa tudo como está, e
Denílson tira as árvores plantadas na área verde associada ao seu terreno.
Anselmo fica irado com essa atitude, prepara um coquetel molotov e o arremessa
contra o carro de Denílson após pular o muro de sua residência. É então
processado pelos danos ao carro e condenado a indenizar Denílson, além de ter
que prestar serviços à comunidade como pena alternativa. Embora reconheça a
responsabilidade pelos estragos no carro, fica inconformado por não ter podido
apresentar sua demanda em relação às árvores arrancadas, já que o juiz teria se
recusado a ouvi-lo, e não consegue entender a lógica do Juizado:
[...] um cara que rancou casca de uma árvore foi preso [referindo-se
à notícia de um camponês preso por ter arrancado casca de árvore
protegida para fazer chá (LRCO)], eu vejo o cara quebrando uma árvore
aqui não é crime, eu fui lá, fiz minha justiça, porque achei que se
eu fosse lá e fizesse minha justiça o cara não ia mais mexer comigo,
o juiz vai me obrigar a pagar o carro, me obriga a prestar serviços à
comunidade, mas não obriga o cara a replantar as árvores (Idem, p.
92).
Além de reclamar da recusa do juiz, que lhe havia sugerido dar entrada em outro
processo, Anselmo interpreta a pressa do Juizado como sinal de indiferença e
arbitrariedade de uma decisão sem sentido, afirmando: "Eu me senti um Zé
ninguém, uma pessoa pequena, diminuída [...]" (Idem, p. 92). Anselmo alega que
deveria ter direito à reparação por danos morais e sugere, em sua fala, que a
motivação para fazer a sua justiça estava associada à tentativa de fazer com
que Denílson não mexesse mais com ele. Isto é, não o desrespeitasse ou não o
desconsiderasse mais. Como nenhuma de suas alegações recebera atenção do
Juizado, Anselmo não apenas fica insatisfeito com o resultado, mas também
concebe seu conflito com Denílson como uma questão em aberto, sujeita a ser
retomada a qualquer momento.
No segundo episódio envolvendo Anselmo, a disputa é com Natalício, mas a lógica
do Juizado continua igualmente distante da perspectiva das partes. Agora os
dois litigantes alegam terem sofrido ameaças de parte a parte, e o juiz condena
ambos a pagarem cestas básicas como pena alternativa. Os dois saem
insatisfeitos do Juizado e Natalício faz críticas similares às que Anselmo
havia feito anteriormente, indicando contrariedade com a falta de espaço para
discutir o caso. Como alega não ter condições de pagar as cestas básicas por
estar desempregado, fica sujeito a uma eventual ordem de prisão do juiz. Assim
como no primeiro episódio, o encaminhamento dado ao conflito no Juizado mantém
a questão em aberto entre as partes, o que sugere a possibilidade de que as
ameaças se transformem em agressões mais graves no futuro. O foco do Juizado na
"redução a termo" das disputas, filtrando apenas a dimensão estritamente legal
dos conflitos, talvez permita pensarmos numa certa fetichização do contrato -
como categoria englobadora das prescrições jurídicas de todo tipo -,
característica do direito positivo, em que o espaço para articular demandas é
limitado ao que está estipulado no contrato e no código penal (ou civil), como
prescrições autocontidas, auto-suficientes e abrangentes o bastante para
equacionar os conflitos que chegam ao Judiciário. Assim, a dimensão moral dos
direitos é totalmente descartada de qualquer avaliação, e relações entre
pessoas, portadoras de identidade, são pensadas como relações entre coisas ou
autômatos com interesses e direitos prescritos, mas sem sentimentos, autonomia
ou criatividade.
Problemas desta ordem não são vividos com dramaticidade apenas nos Jecrims ou
por litigantes como Anselmo, Denílson e Natalício, mas parecem representar um
padrão de dificuldade para lidar com direitos associados à dimensão moral das
disputas, característico de tribunais onde vigora o direito positivo, ou de
instituições orientadas pela mesma lógica, em diversas partes do mundo. Relatos
sobre a Comissão de Verdade e Conciliação estabelecida na África do Sul para
lidar com as atrocidades do apartheid ou o debate em torno da paranóia do
querelante na Austrália são bons exemplos da abrangência do problema e da
pluralidade de situações onde a invisibilidade dos respectivos direitos aos
olhos do Judiciário e a importância do seu equacionamento do ponto de vista das
partes emergem de maneira muito forte.
Em uma análise interessante e criativa sobre justiça transicional em três
países africanos que passaram por regimes opressivos ou situações de guerra
civil, Simone Rodrigues (2004) apresenta um material particularmente
estimulante sobre a Comissão de Verdade e Reconciliação instalada na África do
Sul no período pós-apartheid. Sob a liderança do Reverendo Desmond Tutu, a
Comissão foi instalada como alternativa aos tribunais judiciais que vinham
julgando os crimes ocorridos durante o apartheid, inclusive aqueles que teriam
sido cometidos pelo Congresso Nacional Africano. A Comissão realizava sessões
públicas televisivas em canal aberto e mobilizou a sociedade. Uma de suas
características centrais, e que gerou muitas críticas no início dos trabalhos,
era o fato de que todos aqueles que se dispusessem voluntariamente a contar
toda a verdade sobre os crimes políticos (em sentido amplo) que teriam cometido
durante o apartheid seriam anistiados pela Comissão. Os depoimentos eram
realizados na presença das vítimas (quando vivas) ou de seus parentes e
advogados, que poderiam fazer perguntas ao criminoso confesso. Com a
possibilidade de anistia, a ênfase do procedimento não estava na punição dos
culpados ou responsáveis, mas na restauração da harmonia social, expressa por
meio da categoria nativa Ubuntu. Além do caráter catártico dos depoimentos para
vítimas e agressores, o desvendamento de eventos carregados de simbolismo e
emoção para as partes, em um contexto institucional muito significativo e
amplamente compartilhado pela sociedade como um todo, acabou tendo um forte
componente terapêutico, viabilizando a reparação de ofensas e sofrimentos que,
segundo os atores, uma condenação judicial jamais teria realizado.
Há muitos relatos de parentes das vítimas nos quais a oportunidade de tomar
conhecimento sobre o que teria de fato ocorrido quando do desaparecimento, ou
assassinato, de seus entes queridos é descrita como uma experiência de alivio e
de reestruturação da identidade da maior relevância. Além da superação da
angústia viabilizada pelo acesso à informação, as condições em que o processo
se dá permitem uma reelaboração da perda ou da agressão num novo patamar de
inteligibilidade, renovando o significado da experiência e da inserção social
das partes. Desse modo, ao permitir que a experiência de agressão seja revivida
com maiores esclarecimentos e possibilidades de mobilizar as emoções para
restabelecer uma conexão plena com os eventos vividos no passado, e contando
com o apoio institucional adequado, a Comissão seria um bom exemplo dos
processos de elucidação terapêutica mencionados acima. Em poucas palavras, o
processo de (re)discussão dos crimes do apartheid no âmbito da Comissão,
dramatizado nos depoimentos e na busca por esclarecimento dos atores, cuja
indignação e eventual arrependimento (dos agressores) são "ritualmente"
sancionados pelo Estado, produz uma ressimbolização da experiência das partes e
a renovação de suas identidades como pessoas morais, dignas do respeito e da
consideração que haviam perdido.
Mas, se o exemplo da África do Sul revela possibilidades efetivas de reparação
para o insulto de ordem moral, a discussão sobre a paranóia do querelante na
Austrália indica a dificuldade que as instituições modernas têm para lidar com
este tipo de agressão. Os dados australianos foram retirados da edição de abril
de 2004 do British Journal of Psychiatry, que traz os resultados de pesquisa
realizada sobre o tema por um grupo de psiquiatras australianos. Segundo eles,
a paranóia do querelante já teria ocupado um lugar de destaque na literatura,
mas teria caído em descrédito na primeira metade do século XX, "atacada por
críticas de que não fazia mais do que patologizar aqueles com energia e
disposição para defender seus direitos" (Lester et al. 2004, pp. 352-356). A
pesquisa foi feita em seis escritórios de Ouvidores, com o auxílio de
profissionais experientes no encaminhamento de reclamações apresentadas por
cidadãos, cuja primeira tentativa de resolver seus problemas nas mais diversas
instituições e tipos de atividade (governo, negócios, serviços) havia
fracassado. Esses profissionais da ouvidoria foram solicitados a preencher
questionários sobre reclamantes especialmente persistentes, cujos casos já
haviam sido arquivados. Cada vez que um caso fosse identificado, os
profissionais selecionavam, como controle, o próximo caso nos arquivos
apresentado por pessoa do mesmo gênero e faixa etária, cuja reclamação era
similar em linhas gerais. Entre os 110 casos selecionados 96 tiveram seus
questionários respondidos, sendo que 52 correspondiam a reclamantes
persistentes e 44 aos casos de controle. Setenta e dois por cento dos
persistentes eram homens que, num universo equilibrado de acordo com o gênero,
indicava uma super-representação de homens no grupo persistente. O material foi
classificado segundo muitas variáveis comportamentais e constitui uma rica
fonte de análise a ser desenvolvida em várias direções. Em um manuscrito ainda
inédito, comparo de forma mais detalhada este material com dados etnográficos
do Brasil e dos Estados Unidos e sugiro que, ao não conseguir entender
adequadamente demandas de reparação por insulto, o Judiciário tende a
interpretá-las como produto de alguma deficiência mental dos reclamantes.6 No
momento, gostaria apenas de salientar alguns dados que ajudam a caracterizar
substancialmente a percepção do insulto do ponto de vista dos atores e a
amplitude de causas onde ele se faz presente, sem deixar de identificar
características excepcionais que sugerem a existência de problemas psicológicos
mais agudos entre os reclamantes.
Como mostra o quadro, todas as variáveis selecionadas indicam aspectos que
demonstram o envolvimento pessoal dos reclamantes com suas causas e trazem à
tona dimensões da reclamação que não se resumem a demandas por reparação de
interesses ou de direitos impessoais, totalmente dissociados da identidade do
reclamante. Ainda que haja diferenças significativas entre as duas colunas, é
interessante notar que, com exceção da última variável - "fazer ameaças ao
telefone ou em pessoa" -, todas as demais também aparecem com alguma
intensidade na coluna dos Controles. Neste aspecto, enquanto as três primeiras
variáveis fazem uma forte associação entre direito e identidade - e sua
relevância também seria facilmente demonstrada nos casos discutidos
anteriormente -, as três últimas refletem com maior ênfase a necessidade das
partes em confrontar as agressões alegadas para superar o problema e resgatar
suas identidades ou o sentido que atribuem à cidadania. A propósito, se a
quarta e a sexta variáveis expressam uma atitude agressiva diante do problema,
a demanda de "ter seu dia no tribunal" (to have their day in court) constitui
uma expressão de duplo sentido no mundo anglo-saxão: de um lado caracteriza o
direito de todo cidadão, como pessoa moral, ter seus direitos respeitados e
suas reclamações ouvidas pelo Estado; de outro, é utilizada para assinalar uma
certa condescendência institucional para com aqueles litigantes cujo
comportamento ou argumentos não fazem muito sentido do ponto de vista do
tribunal, mas fazem questão de exercer o direito de serem ouvidos pelo juiz.
Em qualquer hipótese, embora seja inegável o caráter excessivo de alguns
comportamentos de litigantes classificados como persistentes, há uma
continuidade com os casos-controle nos quais os atores demonstram sensibilidade
ao insulto. Mais do que uma dimensão paranóica, os reclamantes persistentes
chamam a atenção para as dificuldades das instituições judiciárias ou
congêneres em lidar com o insulto, assim como para o significado social desse
tipo de agressão. Aliás, como discuto no manuscrito supracitado (ver nota 7), o
fenômeno descrito como querulous paranoia no British Journal of Psychiatry é
muito mais abrangente do que parece à primeira vista, e poderia ser mais bem
compreendido a partir da problemática do insulto.
Para concluir, gostaria de fazer menção ao trabalho de Simião (2005) sobre o
Timor Leste, que mostra como o descrédito em relação à dimensão moral da
violência teria marcado o processo de "invenção da violência doméstica" como um
problema social contemporâneo. Tradicionalmente, os timorenses concebiam várias
situações em que bater na mulher e nos filhos, ou eventualmente apanhar da
mulher nas mesmas circunstâncias, tinha um aspecto pedagógico. Bater para
corrigir problemas de comportamento seria uma atitude legítima entre marido e
mulher ou entre pais e filhos, desde que fosse feito com moderação. Ainda hoje,
discursos legitimando o bater pedagógico encontram respaldo de homens e
mulheres em vários lugares no Timor. Entretanto, a forte atuação de ONGs e
organismos internacionais no combate a essas práticas, sem qualquer esforço
para compreender o seu sentido local, tem mudado este quadro. Os programas de
combate à "violência doméstica" instituídos pelo Estado sob forte influência do
discurso universalista (e por vezes sociocêntrico) em defesa dos direitos
humanos e da igualdade de gênero, sem as mediações necessárias para ajustar o
discurso ao contexto local, têm tido algum êxito na proteção das mulheres
contra este novo tipo de agressão, mas têm também criado novos impasses,
confusões e ambigüidades. Com a criminalização das agressões (físicas) à mulher
em sentido amplo, foram inviabilizados, em grande medida, os procedimentos
tradicionalmente acionados para o equacionamento desse tipo de conflito, que em
muitas circunstâncias respondem melhor às demandas das partes.7 Trata-se de um
processo complexo e rico em implicações bem abordadas no trabalho de Simião, o
que me leva a fazer três observações no sentido de enfatizar a importância da
precedência simbólico-moral da violência para uma melhor compreensão do
fenômeno.
Em primeiro lugar, se atentarmos para o ponto de vista dos atores e para o
contexto de referência de suas representações, verificaremos que a agressão
física do passado, legitimada socialmente por meio de seu sentido pedagógico,
passa a ser caracterizada como um ato de violência, recriminado socialmente, no
momento em que seu conteúdo pedagógico perde vigência e o ato passa a ser
interpretado como uma agressão à identidade da vítima. Enquanto o bater tinha
uma justificativa moral e o sofrimento da vítima era essencialmente físico, a
prática era não só aceita, mas também defendida por homens e mulheres, que se
limitavam a criticar os excessos. Não obstante, quando o bater se constitui
numa nova forma de agressão, dirigida à pessoa da vítima e representada como um
desrespeito ou negação de sua identidade como pessoa moral, a agressão ganha
ares de "violência doméstica" e passa a ser intolerável. Essa mudança aparece
claramente na descrição que Simião faz do caso da timorense que durante onze
anos apanhara do marido sem que isto fosse um problema na relação, até o
momento em que ela passou a conviver com estrangeiros no escritório local da
Cruz Vermelha, onde trabalhava; para surpresa do marido, decidiu pedir
divórcio. Segundo Simião, "à dor física que ela sentiu durante anos agora se
somava a uma dor moral. O sentido do ato de agressão mudara, mudando, com isso,
as suas conseqüências" (2005, p. 94). Indagando sobre o caso, o autor descobre
que "a mulher agora envergonhava-se por apanhar do marido" (Idem, p. 95). Se a
dor física havia sido plenamente suportável durante anos, a vergonha e a
humilhação eram intoleráveis.8
Um segundo aspecto da precedência simbólico-moral na compreensão da violência
também presente no caso do Timor refere-se a situações nas quais, ante a
ausência de agressão física, não se percebe o sofrimento provocado pelo
insulto, por mais que o problema seja verbalizado. Assim, se bater é um ato
sujeito a conotações múltiplas na cultura local, ser obrigada pelo marido a
obedecê-lo contra a sua vontade é considerado um insulto grave: "uma ofensa ao
direito que a mulher tem de ter a sua opinião e sua vontade respeitadas dentro
de casa - desde que, evidentemente, sua vontade não implique o abandono de seus
deveres" (Idem, p. 236). Tomar uma segunda esposa sem consultar ou obter o
apoio da primeira seria um bom exemplo do tipo de violência percebida como
grave pela população e ocultada no discurso da igualdade de gênero (Idem, p.
237). De certo modo, como sugerido na introdução deste trabalho, esse segundo
tipo de violência, simbólico-moral, teria sua objetividade mais bem
fundamentada do que a primeira, estritamente associada à agressão física.
Finalmente, para evitar qualquer tipo de sociocentrismo em relação ao Timor
Leste, vale lembrar que em 2004 a Suprema Corte do Canadá avaliou uma ação de
inconstitucionalidade que contestava o direito de pais e mestres baterem
pedagogicamente nas crianças, e pronunciou-se positivamente, reafirmando este
direito desde que houvesse moderação nesse sentido. Seria adequado falar em
violência neste caso? Ou, em qualquer outro que tivesse como referência
agressões consideradas legítimas?
Notas
1 Uma quarta vertente desse debate tem como referência o trabalho de Carol
Guilligan In a different voice (1982/1993) , que contrapõe o foco na
obediência a regras e na idéia de separação, característica das teorias de
desenvolvimento moral, e predominante entre homens, a precedência atribuída à
relação no equacionamento dos mesmos problemas, e que seria mais comum entre as
mulheres. Esta perspectiva tem sido retomada na análise de disputas jurídicas
nos Estados Unidos (Conley e O'Barr, 1990, 1998).
2 Uma pesquisa realizada por Júlia Brussi em três Juizados Especiais Criminais
no DF sugere que esta distância é característica dos Juizados freqüentados por
atores de baixa renda, não tendo sido registrada no Juizado situado na área
mais rica da cidade (Brussi, 2005).
3 Dois documentários na televisão (Globo Repórter) sobre o tema da "violência"
contra a mulher impressionaram-me com os relatos de mulheres que após anos de
sofrimento com surras, facadas e até tiros de seus companheiros haviam
finalmente conseguido uma separação efetiva e tentavam reconstruir suas vidas.
Mesmo nos casos em que as agressões físicas atingiam níveis absolutamente
inacreditáveis, provocando longos períodos de convalescença, às vezes
superiores a um ano, os relatos sobre as dificuldades de superação dos
"traumas" psicológicos e de recuperação ou reabilitação da identidade agredida
davam a nítida impressão de que os problemas eram mais graves. O drama da
reabilitação de uma identidade distorcida após anos de sofrimento dava sinais
claros sobre a importância da dimensão moral do problema.
4 Os dados em relação a outras unidades da federação são compatíveis com os
especificados para Salvador e Distrito Federal, e podem ser consultados em
Violência por armas de fogo no Brasil, Relatório Nacional - NEV/USP, 2004,
coordenado por Maria Fernanda T. Peres.
5 Segundo Gomes de Oliveira (2005, p. 90), Anselmo e Natalício já teriam se
confrontado em várias causas inter-relacionadas no Juizado: perdas e danos,
lesão corporal, ameaça, execução de sentença, penhora etc.
6 O manuscrito, intitulado "A invisibilidade do insulto: ou como perder o juízo
em Juízo", foi a base de palestras proferidas na Escola Superior do Ministério
Público da União em 12 de maio de 2004, e no Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas Nufep, da UFF, em 4 de agosto do mesmo ano.
7 Roberto Kant de Lima chamou minha atenção para a importância deste processo
de criminalização, ao limitar ou mesmo eliminar as possibilidades de uma
solução satisfatória para as partes, o qual também caracterizaria a atuação dos
Jecrims no Brasil.
8 Não se trata de justificar a agressão física sob qualquer ângulo, mas de
distinguir analiticamente as dimensões física e moral da agressão, sem deixar
de atribuir a esta última uma precedência conceitual na definição dos atos de
violência. Não só devido à dramaticidade das conseqüências objetivas a ela
associadas, mas também por encontrar respaldo na experiência dos atores que,
convincentemente, identificam na agressão moral uma contundência singular,
totalmente ausente dos atos de agressão física em sentido estrito.