Goffman em África e entre os músicos: reflexões sobre a influência de sua obra
Este artigo trata, de um lado, do potencial das análises de Erving Goffman para
habilitar um novo campo de estudos e dissolver (ou afirmar) algumas tensões
duradouras na teoria social e, de outro, busca traçar minha própria trajetória
como antropólogo sob a influência de sua obra. Primeiramente, passarei em
revista o que creio serem as contribuições de Goffman para a teoria social e
sua recepção entre os cientistas sociais. A seguir, destacarei alguns temas de
sua obra que têm me servido de fonte de inspiração.
A novidade de Goffman: ordem da interação
Passados 25 anos de sua morte, parece não mais ser objeto de disputa a grande
contribuição teórica de Goffman para as ciências sociais. Segundo vários
comentadores de sua obra (Giddens, 1984, 1988; Collins, 1988; Strong, 1988,
entre outros), seus trabalhos trouxeram um aporte significativo para a teoria
social. Para alguns, ele foi um dos grandes sociólogos do pós-Guerra (Giddens,
1988, p. 250); para os mais entusiastas, o maior sociólogo da segunda metade do
século XX (Collins, 1988, p. 41). Certamente, para a linha de frente da disputa
teórica dos anos de 1980 e 1990, que se dava em torno da constituição de uma
teoria da prática, seus estudos foram fundamentais. As noções de consciência
prática e de agência na teoria da estruturação de Giddens (1984) muito devem às
análises de Goffman sobre as ocasiões situadas e a co-presença em que parte
substancial das informações veiculadas depende da atividade corporal dos
agentes (embodied information, no dizer de Goffman, 1963, p. 14). Creio também
poder enxergar um pouco deste mesmo Goffman nas disposições incorporadas do
habitus, tão central na obra de Bourdieu (1990).
Além de escritor sofisticado, Goffman foi um observador refinado e penetrante
da vida dos círculos médios da sociedade norte-americana do pós-Guerra, e sua
obra foi marcada por uma grande inventividade conceitual. Com conceitos
oriundos da linguagem ordinária, ele raramente recorria a neologismos
conceituais mistificadores, como geralmente ocorre na teoria social. Além
disso, ele não desenvolveu qualquer predileção para os embates teóricos
explícitos com seus pares. Sua obra é repleta de notas de referência, mas estas
raramente se dirigem à discussão de teorias. Pelo contrário, Goffman tinha uma
predileção especial com os dados, que eram utilizados de forma criativa, quase
selvagem, oriundos tanto da observação sistemática da pesquisa sociológica,
como da literatura de ficção, de suas próprias observações casuais e das
colunas de fait-diversou dos consultórios sentimentais tão populares aos
leitores dos jornais diários.1
Uma escrita de ricas texturas e liberada da impessoalidade aborrecida e fria
das obras sociológicas convencionais, um aparato conceitual próximo da
linguagem ordinária, um apreço especial por uma abordagem naturalista2 e pelos
dados em detrimento às discussões mais ou menos estéreis de teorias, um talento
especial para encontrar o inaudito nas regiões mais familiares da vida social,
uma abertura para reformulação conceitual sempre que os dados manuseados por
isto clamem, um estilo reflexivo que parece retirar prazer das experiências
simultâneas mas diferentes de fazer análise e refletir sobre este fazer, tudo
isso marchava um tanto contra a corrente da prática sociológica de seus
contemporâneos, tudo isso contribuiu para que sua imagem fosse a de um ensaísta
sensível e não um teórico sistemático. Porém, o que melhor explica a posição
ímpar de Goffman na sociologia norte-americana foi o tema substantivo de seus
interesses de pesquisa: a ordem da interação.
Desde o início de sua carreira, transparece com clareza a sua preocupação com o
que acontece quando duas pessoas estão em situação de co-presença. Em sua tese
de doutorado, ele já se mostrava preocupado em descobrir a ordem social que
orienta uma simples conversa entre duas pessoas em situação de co-presença
(Goffman, 1999, p. 100) e procurava estabelecer uma eventual homologia entre as
características da ordem social no nível macrossociológico (nas instituições,
na organização e estrutura dos grupos) e as do nível microssociológico ou da
interação. Concluía então que os modelos disponíveis da ordem social em nível
macro não enfatizavam devidamente uma característica fundamental da interação,
que é a manutenção do compromisso de trabalho (working acceptance): a exigência
de certa indulgência, uma espécie de "trégua provisória" a permitir a
continuidade da interação perante a presença constante das ofensas (Idem, p.
106), raras em outros domínios da ordem social.3 Passados trinta anos, no
discurso presidencial que deveria ter sido proferido por ele no encontro da
Associação Americana de Sociologia de 1982, Goffman fez um balanço de seu
percurso intelectual afirmando:
A minha preocupação durante anos foi promover a aceitação deste
domínio do face a face como um domínio analiticamente viável - um
domínio que poderia ser denominado, à falta de um nome mais feliz,
por ordem da interação - um domínio cujo método de análise preferido
é a micro-análise (1999a, p. 195).
Sua carreira pode então ser entendida como um perseverante esforço para
convencer seus pares e legitimar a idéia de que a ordem da interação é um
domínio autônomo de pleno direito, cujos elementos constitutivos estão mais
relacionados entre si do que com elementos constitutivos de outros domínios de
ordem social, como as ordens legal, política e a econômica (Idem, p. 195; ver
também 1963, p. 8). Nesse sentido, Goffman habilitou, nas palavras de Schegloff
(1988, p. 90), um novo domínio de investigação sociológica, não tanto pela via
do desenvolvimento de ferramentas conceituais e analíticas, mas, sobretudo, por
fazer seus pares perceberem gradativamente que há algo de importante a ser
investigado nos eventos banais da vida cotidiana e por saber como descrevê-los
corretamente.4
Vale notar, contudo, que habilitar não é o mesmo que criar. O estudo das
interações sociais era, antes de Goffman, uma tradição reconhecida na
sociologia norte-americana. Influenciados por Simmel, Mead e William James, os
sociólogos da "Escola de Chicago", por onde Goffman se doutorou, tratavam a
interação social como o elemento constitutivo básico das situações sociais
objetivas e únicas, estas sim objetos de descrições detalhadas. Segundo essa
perspectiva, conhecida como "interacionismo simbólico",5 os indivíduos em seus
encontros sociais seguem as leis universais da interação humana, que não são
dependentes de contextos e domínios de atividade, mas simplesmente dizem
respeito ao fato de que as pessoas criam atribuições para si e para os outros,
tornando-as acessíveis a eles, os quais, por sua vez, combinam essas projeções
para criar um self capaz de manter uma linha de ação recíproca e significativa
(Gonos 1977, p. 857). Vista desse ângulo, a interação não é objeto de
tematização sociológica, mas uma porta de entrada para tratar de outros
assuntos, em geral, de natureza macrossociológica como, por exemplo, as formas
de mensurar as relações humanas ou compreender as dinâmicas da liderança em
pequenos grupos (cf. Kendon 1988, pp. 18-19). As ciências sociais tiveram,
então, de esperar por Goffman para poder formular e encaminhar uma resposta à
questão "como a interação é possível?" e, com isso, habilitá-la como um tema
legítimo de estudo em si mesma.
Em toda sua obra, Goffman usará diversas vezes as expressões "ordem social",
"ordem pública", "ordem da interação" e "ordem ritual". A ordem (não importa de
qual domínio específico) é um modelo criado pelo cientista social para analisar
os comportamentos reais das pessoas em termos de conformidade ou afastamentos
ao que nele está estabelecido (Goffman, 1999). Cerca de dez anos depois a mesma
idéia será tomada como um conjunto de normas morais que regula os modos pelos
quais as pessoas buscam alcançar seus objetivos, não especificando os objetivos
em si nem os padrões formados por sua coordenação e integração (Goffman, 1963,
p. 8). A ordem ainda tem a natureza de modelo, mas ao excluir os tipos de
objetivos buscados, que nas ordens legal, política e econômica são quase sempre
prescritos, o autor acaba por desvelar uma nova faceta da ordem pública que
prevalece na interação face-a-face: trata-se do reconhecimento pelas pessoas da
obrigação de adotar uma conduta socialmente aceitável em qualquer tipo de
encontro social (cf. Burns, 1992, pp. 27-28).
Mas o que é exatamente a interação e como ela se relaciona com outras ordens? À
primeira pergunta, Goffman respondeu, afirmando que é "a influência recíproca
dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física
imediata" (1975, p. 23). Mais tarde ele procurará ser mais preciso,
argumentando:
A interação social pode ser definida, num sentido estrito, como
aquilo que surge unicamente em situações sociais, isto é, em
ambientes nos quais dois indivíduos, ou mais, estão fisicamente em
presença da resposta de um e do outro (1999a, p. 195).
Nas duas definições a co-presença física é o atributo distintivo, e dela
tratarei mais adiante. Na última, porém, ele agrega a idéia de que as
interações não acontecem no vácuo, mas em situações sociais, isto é, num
ambiente espacial e temporalmente circunscrito, no interior do qual a pessoa se
torna parte de um ajuntamento (gathering). Daí a importância das regiões de
interação e sua distinção entre fachadas e bastidores, dos papéis discrepantes
segundo as regiões (Goffman, 1975), das convenções a marcar os episódios
interativos, dos colapsos e da quebra dos quadros, e dos marcadores temporais e
conectivos que ligam as seqüências interativas numa serialidade temporal
(Goffman, 1986). Uma situação tem início quando o monitoramento mútuo da
conduta começa a ocorrer (Goffman, 1963, p. 18).6 Mas a presença de outros numa
mesma situação pode ter pouca significação, daí ser importante distinguir as
interações situadas, nas quais a presença do outro é um pré-requisito, das
interações meramente situadas, nas quais a presença de outros é irrelevante
para a atividade da pessoa (Idem, pp. 21-22).7 Goffman introduz ainda outro
conceito, o de "ocasião social", que se refere a acontecimentos sociais mais
amplos, também circunscritos no tempo e no espaço, providos com equipamentos
fixos, como mesas, cadeiras e microfones - por exemplo, festas, conferências,
sessões no parlamento, concertos de rock, saraus de música de câmara, jogos de
futebol etc. A ocasião social é a motivação, o contexto social estruturante
para se iniciar e terminar os ajuntamentos e as situações, e propõe, por assim
dizer, padrões de conduta reconhecidos pelos participantes como apropriados.
Trata-se de um conceito problemático, uma vez que gera muita ambigüidade,
podendo se confundir com as noções de ajuntamento e de situação social, ou,
ainda, ser considerado um mero resíduo delas. Mas as ocasiões sociais são
correlatas à regulação ou à especificação das condutas (Idem, pp. 18-20),
possibilitando assim o entendimento dos aspectos rotinizados da vida cotidiana
(cf. Giddens, 1984, p. 71).8
A idéia de ordem como a conseqüência de um conjunto de normas morais deixa
entrever a influência de Durkheim (e, em menor medida de Radcliffe-Brown) no
pensamento goffmmaniano.9 Para Goffman a realidade social é antes de tudo uma
realidade moral legitimada pela referência ao sagrado e ao transcendente. A
conduta das pessoas tem uma dimensão não utilitária de natureza puramente
ritual. Daí as práticas do "presentar-se" e do "projetar faces" (impressões
positivas de si) serem por ele abordadas como parte de uma sociologia dos
rituais. Na análise da figuração (face-work), Goffman argumenta que o
compromisso de trabalho que faz de todos nós, em todos os lugares,
participantes auto-reguladores nos encontros sociais tem uma natureza ritual,
sendo nos ritos da interação que aprendemos a ser perceptivos, ter sentimentos
ligados ao selfe um selfligado a uma imagem positiva de si (a face), ter
orgulho e dignidade no tratamento com os outros e ter consideração,
sensibilidade, tato e uma maneira de se portar digna. Se as pessoas têm uma
natureza humana, estes seriam os seus elementos constitutivos:
A natureza humana universal não é uma coisa muito humana. Ao adquiri-
la a pessoa torna-se uma espécie de construto que não é produzido
pelas propensões psíquicas internas, mas pelas regras morais
impressas nela a partir do exterior. Tais regras, quando seguidas,
determinam a avaliação que a pessoa fará de si e dos seus colegas-
participantes dos encontros, a distribuição de seus sentimentos e os
tipos de prática que empregará para manter um especificado e
obrigatório tipo de equilíbrio ritual. A capacidade geral de estar
ligado pelas regras morais pode até pertencer ao indivíduo, mas o
conjunto particular de regras que o torna um ser humano é oriundo dos
requerimentos estabelecidos pela organização ritual dos encontros
sociais (Goffman, 1967, p. 45).10
Para alguns comentadores (cf. Bergmann, 1998, p. 286), Goffman inicia seu
pensamento com base na idéia de moralidade para só posteriormente se mover rumo
à noção de interação. Para outros, mais críticos (cf. Schegloff, 1988, p. 94),
seu envolvimento foi quase sempre com a ordem moral implícita nos rituais e a
construção e manutenção da face, só muito tardiamente ele teria de fato se
debruçado sobre a organização formal dos encontros (as relações sintáticas
entre os atos das diferentes pessoas em situação de co-presença [Goffman, 1967,
p. 2]).
Essa parafernália de conceitos pode confundir o entendimento do que seria
realmente a unidade básica de análise de sua obra. Seriam as interações face-a-
face, os ajuntamentos, as situações, as ocasiões ou uma síntese disso tudo?
Certamente, não é a interação em si ou as ações dos indivíduos concretos nos
encontros: "não os homens e seus momentos", diz Goffman. Desde muito cedo ele
se afastou das influências da psicologia social tão caras aos interacionistas
simbólicos - "antes, os momentos e seus homens". Sua unidade básica de análise
deve, então, incorporar o contexto, as barreiras espaciais e temporais que o
circunscrevem e as regulações ou especificações da conduta por ela prescrita
(formas ritualizadas da deferência, do saber portar-se e do envolver-se).
Retomo agora a idéia de co-presença, fundamental para entender a ordem da
interação. Giddens (1988, p. 255) ressalva que Goffman é um teórico da co-
presença, e não dos pequenos grupos (Winkin, 1999, p. 60). Este parece ser o
maior dos enganos com relação à sua obra. Sua predileção pelos detalhes, seu
foco na interação face-a-face e seu método de microanálise muitas vezes iludem
o leitor apressado levando-o a concluir que se trata de um sociólogo dos
pequenos grupos ou um etnógrafo das esquinas. Nem uma coisa nem outra. As
situações sociais e os ajuntamentos focalizados em nas suas primeiras obras
podem ser muito grandes em termos de participantes e longos no tempo. Um
megaconcerto de rock, por exemplo, pode envolver milhares de pessoas em
interações focadas e não focadas, uma cerimônia pode se prolongar por dias,
mas, ainda assim, são legítimos objetos de análise à la Goffman porque envolvem
situações de co-presença. Aliás, ele mesmo deixou claro no prefácio de
Encounters(1961) que as interações sociais que ocorrem nos ajuntamentos e nas
situações sociais devem ser distinguidas do comportamento coletivo das gangues
das esquinas, das multidões e dos pequenos grupos.
Os mecanismos que conferem persistência temporal aos grupos não são os mesmos
que organizam a ordem da interação (Giddens, 1988, pp. 255-256). Por isso o
estudo das interações em co-presença inclui temas e problemas que o estudo de
pequenos (ou grandes) grupos não contempla: gerenciamento dos turnos da fala,
alocação de posicionamento espacial dos atores, regiões, sentimento de
embaraço, manutenção da postura, tato, etiqueta, deferência, performance,
práticas protetoras e defensivas, profanações cerimoniais, alienação,
envolvimento dos atores, equipamentos, transformações, marcadores, quebras e
ações fora dos quadros (frames). Esta é apenas uma parte de sua parafernália
conceitual desenvolvida para entender o fato de que, quando as pessoas estão em
co-presença, elas se dão conta de que estão tão perto umas das outras que podem
ser observadas em tudo o que fizerem, incluindo as sensações que têm da
presença dos outros. Além disso, estão próximas o bastante para serem
percebidas em seu próprio sentimento de estarem sendo notadas (Goffman, 1963,
p. 17). Ou, mais explicitamente, "a co-presença torna as pessoas acessíveis,
disponíveis e sujeitas às outras de modo muito peculiar" (Idem, p. 22).
Portanto, muito do que ocorre durante as situações de co-presença se deve à
própria co-presença (Goffman, 1967, p. 1).
Goffman também não foi um etnógrafo das esquinas. Apesar de sua proximidade com
a antropologia, de sua proposta de fazer uma etnografia das ocasiões sociais e
da admissão de ter Radcliffe-Brown como fonte de inspiração, Goffman nunca fez
um trabalho verdadeiramente etnográfico (com a provável exceção de sua tese de
doutorado): ele nunca analisou um ritual (Strong, 1988, p. 234; Giddens, 1988,
p. 254) ou uma instituição em sua totalidade. Embora seja um mestre da
observação, não faz etnografia tal como fazem os antropólogos, pois parece
estar sempre desconfortável pelos constrangimentos das observações concretas de
eventos completos, registradas em detalhes. Sempre que pode e carece, ele
adiciona coisas extras ao que está observando (Schegloff, 1988, pp. 101-106).11
Assim, a idéia de Goffman como o "etnógrafo dos terrenos ainda a descobrir"
(Collins, 1988, p. 42) só pode entendida como uma metáfora: a de uma promessa
que seu legado ainda pode realizar.
A influência de sua obra
Goffman foi reivindicado como par em várias esferas disciplinares durante o
período que ocupou um não-lugar na sociologia. Mas permaneceu obstinadamente
fiel à sua agenda inicial, voltada para o desvelamento dos princípios que
organizam a experiência social da vida cotidiana. Ele ficou conhecido por
propor a metáfora generalizante da vida como um drama (que posteriormente
reformulou), mas é também identificado por ter trabalhado a partir de uma
analogia com o jogo. Segundo Geertz (1983, pp. 24-26), etiqueta, decoro,
mentira, impostura, embuste, zombaria, crime, propaganda e conversa são tomados
como jogos de informação em que os atores (sozinhos ou em grupo) fazem suas
jogadas, apostas e blefes.12 Formado na escola de Chicago, onde reinava o
triunvirato Simmel, James e Mead, Goffman também dialogou produtivamente com
Bateson, Schultz e com os etnossociólogos seguidores dessa linha de pesquisa,
assim como com os sociolingüistas e antropólogos interessados na questão da
linguagem (Gumperz e Hymes), além de afirmar constantemente sua lealdade a
Durkheim (e em menor grau a seus seguidores da escola inglesa de antropologia
social). Uma mistura e tanto, convenhamos. Goffman, de fato, lembra-me o
sedento místico Riobaldo Tatarana, de Guimarães Rosa, que não perdia ocasião de
religião, aproveitava de todas, bebia água de todo rio.13
Quanto à minha trajetória como antropólogo, creio ser preciso relatar de forma
breve meus primeiros contatos com sua obra no sentido de contextualizar minha
própria leitura e influência inspiradora de um autor tão multifacetado, com uma
obra tão repleta de laminações. De partida, posso afirmar convicto que ela teve
para mim o valor de uma descoberta.
Durante meu período formativo, nunca li Goffman sob a orientação de alguém mais
experiente, nos vários seminários de pós-graduação que freqüentei. Meu
interesse anterior, como músico, pela semiologia e por questões relativas à
linguagem em uso, levou-me por acaso a ler dois artigos de Goffman publicados
originalmente em meados dos anos de 1950 - "On face-work" e "Alienation from
interaction" (em Goffman, 1967). De imediato fui capturado pela fineza com que
ele tratava das coisas que não dão certo, que estragam nossos encontros e que
nos leva a enquadrar pessoas e situações como impróprias, aborrecidas, não
educadas, arrogantes ou deselegantes. Fiquei fascinado com as minúcias de sua
descrição, diga-se de passagem muito mais minuciosa do que aquelas que estava
aprendendo a valorizar como estudante de antropologia. Não imaginava até então
que um cientista social pudesse tratar a sério coisas como regras de etiqueta,
formas de deferência, mancadas, erros de performance, maneira de se portar e
toda a miuçalha constitutiva das interações sociais.
A densidade destes e de outros textos de Goffman, em que descrição, análise e
teoria se enlaçam e se confundem numa mistura artesanal, reforçou em mim a
lição já aprendida com os trabalhos clássicos da antropologia: uma duradoura
teoria do social nunca pode se afastar demais do mundo da vida ou, para os mais
realistas, dos dados.
As questões levantadas na análise do gerenciamento das impressões, dos
equipamentos usados nas interações e das regiões interativas são lições
importantes que devemos levar para a pesquisa de campo, pois têm um grande
significado metodológico e epistemológico para os etnógrafos. Berreman (1980)
utiliza os achados goffmanianos sobre o gerenciamento das impressões para
analisar as estratégias de campo do antropólogo em seus contatos com o grupo
estudado, e mostra o quanto esse conhecimento é central para o pesquisador
ultrapassar as dificuldades da pesquisa.14 Mas há algo que vai além da
finalidade utilitária de bem concluir a atividade de pesquisa. Os dados são
sempre produzidos num contexto interativo. Ao excluir tal contexto, como
fazemos freqüentemente, estamos empobrecendo a análise, igualando a massa de
informações e confundido ensaios com performances, brigas com brincadeiras de
brigar, resistência às formas de dominação com o jogo lúdico de participações
vicárias e aprendizagem com mímica.
No início de minha carreira como antropólogo, trabalhei com os processos de
construção da identidade profissional dos músicos e com a constituição do mundo
da música. Este trabalho é, sobretudo, uma análise dos rituais do universo
musical. Ali já se fazia presente a inspiração goffmaniana no meu esforço por
classificar os encontros que tinha com os músicos e como isto diferenciar o
status epistemológico dos diversos "dados" produzidos nessas interações
(Trajano Filho, 1984, pp. 3-20). Graças à minha experiência anterior como
músico profissional, sabia, antes de iniciar a pesquisa, que questões como, por
exemplo, o posicionamento espacial dos músicos no palco, a etiqueta, a
deferência, o porte e a atitude exigidos nesse contexto, os erros de
performance, as dificuldades nos ensaios, tudo isso constituía propriamente a
seqüência ritual que culmina no concerto de música, marcado por maneiras de
agir tão previamente conhecidas, como o ato de curvar-se, os gestos grandiosos,
as horas certas para aplaudir etc. A análise dos bastidores15 do teatro foi
fundamental para compreender como a orquestra é reafirmada nos ensaios (Idem,
pp. 143-180).
Pouco tempo depois de concluir minha dissertação de mestrado tomei contato com
os últimos trabalhos de Goffman, em especial seu opus magnum Frame analysis e a
coletânea de artigos intitulada Forms of talk. Esses trabalhos, considerados
por muitos a virada lingüística em sua sociologia, nada mais faziam do que
sistematizar suas preocupações constantes com a ordem da interação, reafirmando
(e este é o viés de entendimento de Goffman) sua orientação estrutural-
funcionalista (muito reformulada, é verdade) oriunda de Durkheim e Radcliffe-
Brown,16 além de dar uma atenção analítica e descritiva maior a um tipo
especial de interação, qual seja, a forma de interação verbal corriqueira que
chamamos de conversa.
Posteriormente em outros trabalhos mais uma vez deixei-me seduzir pelas idéias
goffmanianas. Minha pesquisa sobre a sociedade crioula da Guiné (Trajano Filho,
1998) e, mais tarde, o estudo sobre o ciclo de cerimônias das tabancas de Cabo
Verde (Trajano Filho, 2005, 2005a, 2006) foram movidos pela mesma premissa de
meu trabalho anterior. O esforço por atribuir sentido às práticas rituais
nesses dois contextos societários implicou sempre uma delimitação precisa dos
tipos de interações em que as ações rituais são deslanchadas. Inspirado por
Goffman, sempre procurei demarcar de modo preciso os sujeitos envolvidos nos
encontros rituais e os tipos de equipamentos interativos utilizados. Sempre
estive atento aos erros de performance, aos mal-entendidos, aos problemas com o
envolvimento dos atores, pois esse tipo de questão é que torna as execuções
rituais mais ou menos felizes. Em especial, na análise dos cortejos das
tabancascabo-veridanas (Trajano Filho, 2005a), faço um exercício livre de
análise de quadros, procurando mostrar como tais cortejos são transformações de
quadros oriundos de outros contextos societários (como, por exemplo, a
peregrinação e a parada militar) e dizem respeito a questões de poder e
dominação, discutindo implicitamente o problema da relação entre o nível micro
dos rituais e cerimônias e o nível macro das relações coloniais.
Concluindo
Não posso dizer que reproduzo as teorias, os métodos e as ferramentas
analíticas propostas por Goffman. Na realidade, é difícil separar em sua obra o
que é teoria do que é ferramenta analítica. Conforme apontou muito bem Gamson
em uma resenha de Frame analysis(1975, p. 605), não se ensina a fazer análise
dos quadros do mesmo modo que se ensina a fazer análise de rede, análise
estruturalista dos mitos, análise componencial ou técnicas para coletar
genealogias e tantas outras disponíveis na antropologia social. Nesse sentido,
Goffman mais inspira do que ensina, mais dá realce a temas e questões do que
propõe teorias sistemáticas. É como uma fonte permanente de inspiração a me
chamar a atenção para os detalhes mais microscópicos da vida social que me
sirvo livre e criativamente de seus trabalhos.
Há, porém, um tema de natureza teórica e geral que perpassa sem ser
explicitamente levantado em toda a sua obra e que ainda representa um desafio
para a teoria social. Trata-se da possibilidade de uma teoria integral da
sociedade e da cultura. Na realidade, é um problema ainda mais amplo,
compartilhado por toda teoria científica.
Reduzido à sua expressão mais simples, o trabalho nas ciências (exatas ou
humanas) é sempre uma tarefa interminável de cortar um fluxo de atividades em
unidades mínimas e significativas, examiná-las minuciosamente e depois remontá-
las, reproduzindo sob nova luz a atividade original dissecada. Esse
procedimento traz sempre consigo o problema das passagens de nível, pois o
olhar de perto apaga a visão da totalidade e o olhar distanciado não permite
ver os detalhes. A dificuldade de realizar a passagem entre os níveis macro e
micro está na raiz dos problemas enfrentados em quase todas as ciências para a
elaboração de teorias parciais que complementem umas às outras, ou de uma
teoria geral que tenha mais poder explicativo do que as teorias parciais
estanques. O primeiro caso pode ser exemplificado pela dificuldade de diálogo
entre micro e macro economistas, cujas teorias parciais acabam por ser campos
estanques, sem que as descobertas em um plano deslanchem invenções no outro,
incapazes de uma interfecundação. O segundo caso é evidente, por exemplo, na
área da física, que busca desesperadamente, e sem sucesso, formular uma teoria
geral que integre os quatro campos de forças da natureza. Na lingüística, a
passagem da língua para a fala, da lingüística dos sistemas para a da
pragmática tem se mostrado um obstáculo difícil de ser vencido. No âmbito das
ciências sociais, o domínio das estruturas e dos sistemas tem se mostrado
relativamente à parte do domínio das práticas e da ordem microscópica das
interações, os tijolos que constroem o edifício social.
O trabalho de Goffman representa um esforço nessa direção, que não deve ser
diminuído pela dificuldade inerente à sua natureza artesanal, inovadora e muito
difícil de ser reproduzida. Desde sua tese de doutorado sobre a conduta
comunicativa na ilha de Wright, defendida em 1953, ele estabeleceu uma agenda à
qual se manteve fiel durante toda sua vida intelectual. Goffman desejava
demonstrar que a interação tem uma natureza sui generis, independente padrões
de personalidade, dos indivíduos e dos grupos. Tal como na vida política ou
religiosa, a vida comunicativa é balizada por normas, que são a garantia da
ordem interativa.
Parece-me não haver dúvida de que ele teve êxito em convencer seus pares da
autonomia da ordem interativa e da legitimidade do seu estudo. Mas foi além
disso, avançando na exploração das interfaces entre a ordem da interação e a
ordem das estruturas. Porém, não elaborou uma teoria social integrada que desse
conta das dimensões micro e macro da sociedade. Este é um desafio que
permanece.
Notas
1 Ver Williams (1988) para uma análise dos métodos e da utilização dos dados em
sua obra.
2 Ver, a guisa de ilustração do naturalismo goffmaniano, a seguinte passagem:
"que espécies de animais encontramos no zôo interacional? Que plantas crescem
neste jardim particular? Deixe-me fazer o inventário do que considero serem
alguns exemplos de base" (Goffman, 1999a, p. 206).
3 Mais tarde, em outros trabalhos, Goffman esmiuçará a importância deste
compromisso. Ver, por exemplo, Goffman (1975, pp. 18-19).
4 Para Williams (1986, p. 366), mais do que habilitador, Goffman foi um
explorador pioneiro de um vasto e novo território de investigação. Ao explorar
a ordem interacional, ele tomou posse daquele terreno onde a sociedade é criada
e recriada.
5 Tudo indica que Goffman não apreciava ser associado a essa corrente de
pensamento, não tanto pelas supostas divergências que teria com outros autores
da mesma corrente, mas pelo fato dela ser um rótulo criado do exterior vazio de
significado (ver a este respeito extratos de sua entrevista com Winkin, 1999,
pp. 240-241). Os excertos das trocas de correspondência entre ele e Dell Hymes
são ilustrativos também de sua aversão aos rótulos classificadores (ver Hymes,
1984). Tudo isso, parece-me, ajuda a entender a sua própria posição peculiar no
campo da sociologia norte-americana como um "inventor conservador", ou, a
depender do apreço que por ele se tem, como um inclassificável ou, ainda, um
gauche muito peculiar.
6 Em outras ocasiões, ele englobou esse mútuo monitoramento no gerenciamento
das impressões (impression management), tratando-o mais detalhadamente (1975,
p. 191), e abordou essa questão também no interior dos processos de figuração
(face-work) [1967].
7 Ver ainda a distinção entre interação focada e não-focada, resultante da
diferenciação feita acima (Goffman, 1963, pp. 24, 33-148).
8 A confusão suscitada entre as noções de situação, ocasião e ajuntamento
talvez esteja ligada a um trânsito impreciso entre categorias emic e etic.
Parece-me que as ocasiões sociais concretas são categorias emic, ao passo que
as situações são etic e os ajuntamentos são, neste sentido, dúbios. Não seria
possível no espaço restrito deste artigo discutir em profundidade esta questão,
mas de qualquer forma a ambigüidade observada, a meu ver, será atenuada mais
tarde, na sua obra de síntese, com a elaboração do conceito de "quadro"
(frame).
9 Durkheim, especialmente o das Formas elementares da vida religiosa, é figura
constante em todos os trabalhos de Goffman. Ele chega por vezes a atribui-lhe
uma aura de sacralidade, não sem certa ironia, quando, por exemplo, se refere
ao pai da sociologia francesa como "Ele" (com inicial maiúscula), para buscar
legitimar sua asserção de que as situações sociais são uma realidade sui
generis(Goffman, 1999b, p. 150).
10 Dificilmente se encontrará uma passagem mais durkheimiana do que esta em
toda sua obra. Ela serve também para afastar qualquer presunção de
individualismo metodológico em sua abordagem, o que o diferencia ainda mais dos
interacionistas simbólicos. Vale lembrar, a este respeito, outro excerto muito
citado em Interaction ritual, que afirma: "Não os homens e seus momentos.
Antes, os momentos e seus homens" (1967, p. 3).
11 Schegloff (1988) é bastante crítico do "empiricismo" de Goffman, em especial
de seu método de acrescentar elementos de sua imaginação analítica na análise
de dados coletados e registrados de modo sistemático, referindo-se a uma
passagem do artigo "Replies and responses", publicado posteirormente em Forms
of talk(1981, p. 55) em que Goffman adiciona linhas a um diálogo registrado por
um sociolingüista.
12 Poderosa conclusão, a de Geertz, mas mais chamativa do que verdadeira.
Conforme apontou Burns (1992, p. 48), Goffman usou todo o repertório de
imagens-analogias que tem caracterizado a reconfiguração do pensamento social
(jogos, drama e texto). E apesar de sua obra ser muito marcada pelas imagens
dos jogos, elas são muito mais freqüentes na acepção lúdica e imaginativa
(play) do que na de estratégia (game), o que constitui conceitos bem distintos.
13 Vale comparar a projeção que este personagem faz de si mesmo com a
trajetória de Goffman: "eu toda minha vida pensei por mim, forro, sou nascido
diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada sei.
Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo eu digo: para pensar longe,
sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira e eu rastreio
essa por fundo de todos os matos, amém!" (Guimarães Rosa, 1974, p. 15).
14 Berreman não deixa claro se ele tinha conhecimento da obra de Goffman antes
de iniciar seu trabalho no campo, o que se deu em 1957, sendo que a primeira
edição de Presentation of selfé de 1956 e teve uma circulação um tanto
restrita. De qualquer maneira, mesmo em se tratando de uma reflexão post facto,
as conclusões do autor são interessantes porque sugerem a improcedência da
crítica de que as observações de Goffman só se aplicam ao ambiente cultural
altamente competitivo e individualista das camadas médias norte-americanas. Se
elas se aplicam aos Paharis do Himalaia, temos então um indicador importante de
que subjacente à variedade cultural das ocasiões ou situações sociais há uma
estrutura interativa comum. Variam os padrões de conduta regulados pelas
ocasiões, mas há uma permanência estrutural básica. Outro ponto de interesse,
no caso do desconhecimento da obra antes de sua ida a campo, é o fato de que,
como atores sociais, nós temos a consciência prática das regras que estruturam
as interações.
15 Por iniciar minha análise dos bastidores do teatro como uma categoria
nativa, que se refere a uma região específica do teatro, e não como categoria
analítica das interações, pude ir além da perspectiva de Goffman e enfrentar um
problema que os estudos de Goffman que eu até então conhecia não resolviam
completamente: o das definições preestabelecidas, das normas que são
transversais às ordens micro e macro. Só mais tarde pude verificar que Goffman
aprofunda essa questão em Frame analysis(1986, publicado originalmente em
1974).
16 Ver sua declaração genealógica na resposta extensa que oferece às críticas
de Denzin e Keller (1981) em Goffman (1981a, p. 62).