O fetiche totêmico da sexualidade masculina: oito erros comuns
A filósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu em O segundo sexo que "fatos
biológicos [oferecem] uma das chaves para se entender a mulher". Ela se
apressou, porém, a acrescentar: "Nego que eles estabeleçam para ela um destino
pré-determinado e inevitável" (Beauvoir [1949] 1960, p. 29).1
Essa tese revolucionária que separava o corpo feminino do destino feminino foi
um princípio básico do feminismo e dos estudos sobre a mulher por várias
décadas, e às vezes era contida no aforismo "Biologia Não é Destino". Desde que
Simone de Beauvoir escreveu O segundo sexo, nossa compreensão dos fatos
biológicos em si mesmos se tornou ainda mais complexa.2 Algumas verdades
consagradas sobre os corpos, entretanto, foram mais difíceis de desalojar do
que outras. Neste trabalho examino a noção do destino sexual dos homens, um
tópico que tem sido amplamente tomado como óbvio na imaginação popular, mas
que, infelizmente e por mais estranho que pareça, em raras ocasiões tem sido
objeto de estudo.
Podem-se encontrar convicções em torno do voraz apetite sexual dos homens em
qualquer lugar do mundo. Nos círculos acadêmicos de hoje, os psicólogos
evolucionários alegam ter descoberto o motivo primordial da licenciosidade
masculina: uma compulsão inerente ao macho da espécie no sentido de espalhar
sua semente. Em sua obra introdutória a essa nova ciência da psicologia
evolucionária, Robert Wright, por exemplo, pergunta em tom de provocação: "Há
alguém aí que conheça uma única cultura em que as mulheres com um apetite
sexual desenfreado não sejam consideradas mais anormais do que os homens com um
apetite comparável?" (1994, p. 45). Mesmo que descartemos displicentemente
essas afirmações biologicamente deterministas e universalistas (ou suas
amplamente populares contrapartidas), temos ainda de lidar com a escassez de
bons conhecimentos - feministas ou não - sobre a (hetero)sexualidade e
reprodução masculina. Por ter deixado de estudar a sexualidade e a reprodução
masculina, deixamos também de desafiar a conclusão, comum aos psicólogos
evolucionários, de que, no que diz respeito à sexualidade, "a licenciosidade
masculina e a (relativa) reserva feminina são, até certo ponto, inatas" (Idem,
p. 46). E caso surja algum mal-entendido com respeito à escassez de estudos
sobre a heterossexualidade e a reprodução masculina, essa situação resulta não
de alguma tendência feminista de oposição aos homens, e sim do caráter
fetichista geral que cerca a sexualidade masculina.
Nesta era da psicologia evolucionária e da medicalização de todas as formas de
(supostos) processos corporais, a crença na hipersexualidade dos homens tornou-
se, em diversos contextos culturais, algo como uma ilusão totêmica que enxerga
a sexualidade masculina como uma característica naturalizada, fixa e
completamente diferente da feminina. À guisa de crítica ao caráter fetichista
atribuído às sexualidades masculinas, as teorias feministas da desigualdade
entre os gêneros podem fornecer a estrutura em que desenvolvemos o estudo dos
homens, da sexualidade, da procriação e da masculinidade como parte de um
projeto mais geral de exploração da história e da diversidade dos sistemas de
gênero e sexualidade no mundo. Em particular, o presente trabalho baseia-se na
pergunta retórica de Wendy Brown: "O que acontece quando as convicções que
unificam uma ordem política se tornam fetiches?" (2001, p. 4). Como uma
maldição que vai passando de geração em geração, as supostamente inatas
características comportamentais dos homens - que se acreditam devidas à
testosterona e ao DNA - são erigidas em forma de um fetiche pós-moderno,
modelado sobre convicções políticas que unem uma ordem de gênero que vem de
muito tempo atrás.
O que os investigadores das questões relacionadas com saúde, por exemplo, dizem
sobre a sexualidade masculina, mesmo que simplesmente por dedução, pode causar
- e efetivamente causa - uma série de conseqüências àqueles a quem procuramos
representar. O fato de um tópico tão importante e cotidiano como a
heterossexualidade e a reprodução masculina ter passado tão despercebido na
antropologia e nas outras ciências sociais demonstra tanto a importância como a
urgência da tarefa que se apresenta; isso porque, se não for adequadamente
examinado e analisado, esse tópico pode facilmente descambar para biologismos
superficiais que reduzem os homens e suas sexualidades ao homem e sua
sexualidade - no singular.
Em resumo, se estabelecemos (ou começamos a desestabelecer) a questão do
destino corporal das mulheres mais de cinqüenta anos atrás, por que será que o
mito do destino sexual dos homens continua tão impregnado na cultura popular, e
por que continua a ser tacitamente aceito nos círculos eruditos?
Uma pista para a resposta a essa pergunta pode estar naquilo a que Carole Vance
(1999 [1991]) chamou de "o modelo de influência cultural", em que as diferenças
culturais recobrem os corpos masculinos e femininos primordiais com uma pátina
de diversidade sexual. Isso remete ao principal dilema da pesquisa da
sexualidade ocidental nos últimos cem anos: a interação entre corpos materiais
e significados culturais no decorrer dos periódicos lamber, chupar, introduzir,
conter nas mãos, ficar por cima e ficar por baixo um do outro. Na fórmula de
Vance, o modelo de influência cultural é utilizado para descrever a sexualidade
tanto dos homens como das mulheres, de forma que "a sexualidade é encarada como
o material básico - uma espécie de massa de modelar - sobre o qual a cultura
trabalha, uma categoria naturalizada que permanece fechada à investigação e
análise" ([1991] 1999, p. 44). Com o modelo de influência cultural se pode
detectar, de uma cultura para outra, toda uma gama de práticas sexuais
mutuamente exóticas e/ou repugnantes, mas cada uma delas não passa de uma
manifestação da essência corporal básica e subjacente aos seres humanos. À
guisa de correção delicada da crítica de Vance ao conceito de que a cultura
exerce uma mera influência epifenomenal na sexualidade, eu acrescentaria que na
investigação feminista - embora, evidentemente, não na imaginação popular - há
ainda quem acredite que o corpo masculino, mais ainda que o feminino, já "sai
da fábrica" com um previsível disco rígido de massa de modelar.
A noção de apetites, ímpetos e impulsos sexuais, por exemplo, tem sido
constantemente desafiada e explorada em uma sofisticada literatura feminina
sobre as sexualidades das mulheres. Para um semelhante corpus de trabalho no
que diz respeito aos homens, somente a Teoria Queer e os estudos do sexo com
parceiros do mesmo sexo podem se gabar de tratar das sexualidades em todas as
suas modalidades, complexidades e nuanças. Já passou da hora de acabar com
nossa obtusa visão das heterossexualidades masculinas, ou seja, de levar em
consideração a lamentavelmente negligenciada categoria do heterossexual
masculino, que, a despeito de sua dominância oculta nos modelos de sexualidade
- ou talvez justamente em razão dessa dominância -, há muito tem sido
superdeterminada e insuficientemente estudada. E, ao fazê-lo, não devemos
também nos esquecer da advertência de R.W. Connell com relação aos
construtivistas sociais:
Como grupo, eles enfrentam dificuldades no que diz respeito à
dimensão corporal da sexualidade: os processos e produtos corporais -
excitação sexual, orgasmo, gravidez e parto, menarca e menopausa,
tumescência e detumescência, sêmen, leite e suor. Enfatizar a
historicidade da sexualidade, como fazem Foucault e seus seguidores,
costuma marginalizar essas questões (1997, pp. 63-64).
Não podemos continuar a ignorar a confluência dos parâmetros biológico e
cultural sobre a sexualidade, e a forma como esses fatores alimentam e
transformam um ao outro.
O estratagema antropológico de primeiro obter uma clareza conceitual nas
margens sociais nos tem sido útil, mas agora é necessário aplicar as lições
aprendidas a um estudo a ser executado do lado de dentro dessas margens. Em
sucessivas ondas conceituais, de início ligando intimamente os sistemas de
sexo/sexualidade e gênero (Rubin, 1975), em seguida separando-os de forma não
somente analítica (Rubin, [1984] 1999), com uma ligação mais recente de
sexualidade e gênero novamente em uma síntese feminista pós-freudiana (Segal
1994), aprendemos alguma coisa sobre a forma limitada como temos tratado a
sexualidade sob a ótica da biologia e o gênero sob a ótica da cultura. Isso é
importante, pois se a sexualidade masculina for o dado biológico básico e o
restante do que fazemos com ela depender de nossa visão cultural de gênero,
então a ampla gama de reações ou sensações sexuais masculinas - desejo, temor,
prazer, preocupação, obsessão, fantasia, experiência e prática - está apenas à
espera de ser formalmente descoberta e documentada, e não muito mais do que
isso.
Relativamente pouco se tem escrito, por exemplo, sobre homens heterossexuais
que não gostam de sexo, que não gostam de sexo freqüente e que não sentem falta
de sexo quando não o têm. Esses tópicos são excepcionalmente raros na
literatura pertinente. Entre os escassos relatos a esse respeito, na tentativa
de contestar o "conceito freudiano de que cada pessoa possui certa quantidade
inata de energia sexual que precisa se expressar de alguma forma", Karl Heider
(1976, p. 195) escreveu que entre o povo Dani do Grand Valley na Indonésia,
pelo menos na década de 1960 em que ele conduzira sua pesquisa de campo, havia
um período-padrão de quatro a seis anos de abstinência sexual pós-parto e, o
que é ainda mais notável, que ninguém demonstrava qualquer sinal de desgosto ou
estresse como resultado desse celibato. Entre os hijras na Índia, Nanda escreve
que "sua castração é a 'prova' culturalmente definida que eles oferecem de que
não sentem desejo sexual nem precisam de alívio sexual como homens" (1990, p.
29).3 E, em uma pesquisa sobre a mudança nas identidades e nas práticas de
gênero na Cidade do México, um amigo me confessou: "Vou lhe dizer com
sinceridade; para mim o sexo nunca foi tão importante quanto parece ser para
muitos outros sujeitos" (Gutmann, 2000, p. 211). Apesar disso, a própria
escassez de relatos como esse nas diferentes culturas pode nos levar a presumir
displicentemente que (a) a maioria dos homens não é assim, e que (b) sabemos
como é a maioria dos homens no que diz respeito à sexualidade e à procriação.
Embora com pouca freqüência, os antropólogos parecem ter um prazer perverso em
registrar a promiscuidade polimórfica de homens e mulheres de todas as idades,
formatos e tipos.4 São sagazes observadores da variedade e da amplitude sexual,
e têm uma alergia fóbica aos tipos ideais e aos modelos de normatividade. Eles
podem também, não obstante, acreditar que a maioria dos homens heterossexuais
se sente e se comporta de uma determinada maneira (com um apetite inato pelo
sexo, digamos). Na antropologia cultural contemporânea, costuma-se contornar
essa situação difícil enfatizando o local e evitando qualquer suposição de
experiências pan-humanas, ou seja, recorrendo à lógica localista da
antropologia - "As convicções e práticas são sui generis em todos os locais e
em todos os momentos da história". Esse direcionamento foi particularmente
importante e necessário como resposta à medicalização dos corpos humanos e às
afirmações biomédicas com respeito à normalidade e à patologia corporal (ver
Scheper-Hughes, 1994). Tendo passado boa parte dos últimos vinte anos nas
regiões central e sul do México, tenho total consciência dos perigos da
generalização para regiões, quanto mais para populações de Estados-nação
inteiros e quanto mais ainda para grupos ainda maiores de pessoas quando se
trata de sexualidade, procriação, homens e masculinidade, e muito mais. Não
obstante, meu objetivo neste trabalho é o de levantar uma série de questões
que, espero, venham a ser relevantes em diversos contextos históricos e
culturais.
Como forma de explorar idéias pertinentes e ridicularizar essas concepções
errôneas, passo a enumerar os "enganos e mentiras comuns" a respeito dos homens
e da procriação. Será uma incursão conceitual geral pelas sexualidades dos
homens.5
Premissa 1
A procriação e a saúde reprodutiva são questões exclusivas das mulheres. É
evidente que muita gente não é ingênua a ponto de achar que a procriação é um
assunto que diz respeito somente às mulheres. Vale destacar, porém, que essa
realidade não é tão óbvia quanto deveria ser, como demonstra o fato de que, em
algumas das recentes e importantes coletâneas de trabalhos sobre procriação e
gênero e saúde, os editores não puderam incluir artigos que tratassem
substancialmente de homens e procriação (ver, por exemplo, Ginsburg e Rapp,
1995; Sargent e Brettell, 1996). Para realçar a ausência dos homens nas
discussões sobre procriação, Greene e Biddlecom deram a um estudo crítico de
2000 o título de "Absent and problematic men: demographic accounts of male
reproductive roles" ("Homens ausentes e problemáticos: descrições demográficas
dos papéis dos homens na procriação") (ver também Dudgeon e Inhorn, 2003). O
fato de os homens terem estado ausentes dos estudos sobre procriação é um
problema em si mesmo; o truque agora é incorporá-los a esse campo sem perder de
vista a política da procriação.
Felizmente, ao descobrir esse elo perdido (gameta?) na história da procriação e
da sexualidade, tornamo-nos capazes de construir sobre a base das literaturas
substanciais já existentes que tratam de tópicos como mulheres e procriação,6
paternidade e "envolvimento prévio" dos homens, e homens que fazem sexo com
outros homens. Sem dúvida, a inclusão dos homens em qualquer campo é mais do
que simplesmente "adicionar os ingredientes e mexer a mistura", embora isso não
deixe de já ser um começo. Entre os assuntos que merecem atenção imediata nesse
empreendimento, alguns são mencionados a seguir.
Com engenhosidade e um bocado de talento, os adeptos da Teoria Queer e as da
segunda onda do feminismo tomaram a si a tarefa de classificar a
heterossexualidade masculina como normativa e nada mais. No ensaio clássico de
Rich ([1982] 1993) sobre a "heterossexualidade compulsória", lemos que a
categoria da (hetero)sexualidade masculina, que não recebia atenção por ser
julgada óbvia, vinha há muito sendo empregada como forma substituta - a forma
não-identificada - para todas as formas de sexualidade. Analiticamente, porém,
retirar os homens heterossexuais de seus armários não identificados - em outras
palavras, demonstrar que eles possuem tipos particulares e não universais de
sexualidades - foi praticamente tudo o que se fez com respeito a eles. E assim,
até recentemente no âmbito do conhecimento feminista, eles analiticamente
permaneceram à sombra do armário, embora um tanto despidos em sua
heteronormatividade.7
Não se trata de como melhor representar as opiniões e as experiências da
população de homens envolvidos na procriação de uma forma ou de outra, e as
mulheres e os homens nas vidas deles; nem simplesmente de como discutir a
diversidade de heterossexualidades masculinas no que diz respeito a direitos,
comportamentos e tecnologias de procriação. O desafio é o de desenvolver esse
campo sem perder as percepções fundamentais do feminismo e da Teoria Queer no
que concerne à desigualdade e ao privilégio, em particular as verdadeiras
restrições corporais e sociais que os homens e as mulheres enfrentam. No caso
dos homens, então, deveríamos perguntar qual seria o outro lado da moeda na
seguinte caracterização feita por Segal: "Ignora-se a complexidade do aspecto
social, reduzindo-o a generalizações sobre relações fixas de poder - como se o
fato de se ter menos poder na sociedade, como costuma acontecer com as mães,
significasse ser, e ser consideradas como sendo, simplesmente submissas e
incapazes" (1994, pp. 148-49). E o que dizer de os homens serem considerados
fortes e poderosos: será que eles são automaticamente assim em todos os
contextos, inclusive nos contextos sexualmente mais íntimos?
A esse respeito, finalmente, há nas ciências sociais um número
surpreendentemente reduzido de estudos sobre gênero que tratem tanto dos homens
como das mulheres. Embora a abordagem do tipo "ou uma coisa, ou outra" seja
vantajosa em alguns contextos para alguns tópicos de investigação (para a
América Latina, ver Gutmann, 2003), ela funciona também como um sério obstáculo
quando se trata de examinar um assunto como a procriação. Na florescente
literatura sobre partos e parteiras, por exemplo, os homens raramente recebem
mais do que uma rápida referência, a despeito do papel fundamental que eles
podem desempenhar antes e depois e durante o próprio parto. No que diz respeito
à infertilidade, os homens vêm há muito sendo tratados como irrelevantes, ou,
quando incorporados aos estudos, apresentados como aqueles que se recusam a
admitir a possibilidade de que o problema é com eles. Faz pouco que se iniciou
um trabalho significativo nessa área (ver Inhorn, 2003; Kahn, 2000).8 Após as
conferências internacionais do Cairo em 1994 e de Pequim em 1995, a intersecção
da política e da procriação e a incorporação dos homens às questões de saúde
reprodutiva receberam sanção estatal na maioria dos países. Por mais
necessárias que sejam essas mudanças, e por mais conveniente que seja envolver
os homens no conhecimento acerca da procriação, como ocorre no campo de
desenvolvimento e na mudança de direção de Mulheres em Desenvolvimento para
Gênero e Desenvolvimento, há riscos envolvidos (ver Chant e Gutmann, 2000). No
âmbito da antropologia, os homens, a sexualidade e a saúde reprodutiva foram
amplamente estudados e discutidos somente nas pesquisas sobre o HIV.
Premissa 2
A saúde reprodutiva diz respeito apenas às mulheres em geral e aos homens e às
mulheres portadores de AIDS. A epidemia de AIDS fez com que os homens se
tornassem relevantes para a procriação e a sexualidade, pelo menos no que dizia
respeito à saúde deles e de seus(suas) parceiros(as). Inicialmente considerada
um problema de saúde para homens gays e homens que faziam sexo com homens mas
que não se identificavam como gays - na linguagem arrogante da saúde pública,
esses homens foram classificados coletivamente como um significativo "grupo de
risco" -, sobretudo quando os estudos epidemiológicos mostravam uma progressão
geométrica do contágio em partes da região sul da África e do subcontinente da
Índia, não demorou para que os homens heterossexuais e a higiene de seus
prepúcios, as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e as peculiaridades do
sexo seco começassem a receber uma atenção cada vez maior. Como aconteceu no
mundo inteiro, a saúde reprodutiva e a sexualidade na América Latina foram
ambas resultado das campanhas da AIDS por medicamentos e práticas sexuais mais
seguras e, em grande medida, permaneceram ligadas a esses temas.9
A relação entre heterossexualidade masculina, bissexualidade e homossexualidade
tem uma importância fundamental no estudo dos homens, da sexualidade e da
procriação por uma série de motivos, dos quais as deficiências teóricas nos
modelos de heterossexualidade existentes não são os menos significativos. De
que forma os estudos da (homo) sexualidade masculina se harmonizam com a
(hetero)sexualidade masculina e com a sexualidade humana em geral? Nancy
Chodorow examinou a literatura psicanalítica e chegou à conclusão de que - veja
só!:
[...] a psicanálise não tem um registro da heterossexualidade
"normal" em termos de desenvolvimento (sendo que, evidentemente, a
heterossexualidade se expressa em uma ampla variedade de
heterossexualidades) que se compare em riqueza e especificidade aos
registros que temos do desenvolvimento das várias homossexualidades e
daquilo a que chamamos perversões. A maior parte do que se pode
trazer à tona sobre a teoria psicanalítica da heterossexualidade
"normal" resulta de se ler nas entrelinhas de textos a respeito das
perversões e da homossexualidade (1994, p. 34).
Continuam abundantes, porém, as suposições baseadas em lugares comuns e clichês
sobre a heterossexualidade.
Em alguns países do mundo, a recente atenção da saúde pública a problemas como
câncer de testículos e de próstata (que afetam em especial homens mais jovens e
mais velhos, respectivamente), disfunção erétil (um problema que vai aumentando
com o tempo e com as soluções farmacêuticas) e ejaculação precoce trata das
preocupações dos homens em relação à saúde reprodutiva, independentemente da
orientação sexual. A ênfase nos análogos masculinos aos problemas ginecológicos
femininos, porém, não nos fará avançar no desenvolvimento de nossas ferramentas
conceituais no que concerne às sexualidades masculinas. Para imprimir textura e
vigor ao estudo dos homens, da sexualidade e da procriação, precisamos
descobrir maneiras de ampliar e desenvolver as literaturas do feminismo e da
Teoria Queer no que diz respeito à sexualidade, incluindo a bissexualidade.
Assim, se as heterossexualidades masculinas já não são vistas como
compulsórias, não deverão também ser necessária e geralmente compreendidas como
compulsivas.
Premissa 3
Nos homens, a capacidade de procriação corresponde à sexualidade (e vice-
versa?), ou uma solução biológica para a reprodução da espécie. Pode ser
coincidência o fato de o pênis e os testículos serem pontos de excitação e
prazer sexual e, ao mesmo tempo, estarem estreitamente envolvidos na
fertilização masculina. A verdade, porém, é que, na vasta maioria dos momentos
da vida dos homens, o pênis e os testículos não se encontram em estado de
intensa excitação. O pênis ereto não é o pênis-padrão.10
É claramente perceptível que um dos principais problemas com essa equação entre
procriação masculina e sexualidade masculina é que ela deixa de fora todas as
formas de sexo com o mesmo sexo entre homens, mais uma vez confirmando o
conceito de que masculinidade é igual à homofobia (ver Kimmel, 1994).
Compreender os homens que fazem sexo com outros homens como, ainda uma vez, uma
categoria omitida envolve mais do que o reconhecimento franco e objetivo de que
homens fazem sexo uns com os outros sem absolutamente pensar em procriação. Na
história dos estudos sobre a sexualidade, a noção de ativo e passivo entre os
homens que fazem sexo uns com os outros também se tornou predominante como
estrutura analítica substituta para a sexualidade reprodutiva heterossexual;
esses termos, assim, ligam homens e mulheres heterossexuais com preferências de
"ficar por cima ou ficar por baixo" a homens que fazem sexo com outros homens.
Nesse aspecto, também, podemos aprender com a etnografia recente (ver, por
exemplo, Parker, 2002) de homossexualidades emergentes, que esclarece como a
dicotomia ativo/passivo pode originar mais problemas conceituais do que aqueles
que soluciona. Essa lição é valiosa, pois até agora a (hetero)sexualidade
masculina vinha sendo relacionada, de forma excessivamente freqüente e
desdenhosa, com uma atitude ativa (e com agressão) em contraste com a
(hetero)sexualidade passiva e ressentida das mulheres.
Não obstante, o sexo masculino com o mesmo sexo não é a única modalidade de
sexo improdutivo que existe; não apenas o sexo entre homens e mulheres
geralmente não resulta em gravidez, como também a maior parte do sexo entre
homens e mulheres é intencionalmente "não reprodutiva". Esse fato reforça a
importância de não se reduzirem todas as discussões sobre a sexualidade
masculina à procriação masculina, da mesma forma como é importante não se
reduzir a procriação masculina aos problemas da saúde reprodutiva masculina
como disfunção erétil, baixa mobilidade dos espermatozóides e impotência.
Questões de prazer e desejo (e da falta deles), de bem-estar (e mal-estar)
emocional, de fantasia (e medo) - todos esses fatores fazem parte da vida
sexual e reprodutiva dos homens.
Um estudo recente sobre homens que freqüentam clubes de strip-tease na Carolina
do Norte, Estados Unidos, oferece uma evidência ainda maior de por que a
sexualidade masculina precisa ser separada da procriação masculina e mesmo das
próprias ações sexuais masculinas básicas. Nesse livro, Katherine Frank (2003)
descreve por que certos homens chegam a gastar centenas de dólares por semana
para não fazer sexo com mulheres e, nesse processo, revela como, em vez de
procurar um alívio sexual direto, esses homens pagam apenas para contemplar as
strippers e tê-las como companhia. A autora observa que os clubes de strip-
tease oferecem a muitos homens um espaço em que seus sentimentos de impotência
psicológica encontram um refúgio seguro, a salvo do mundo social em que os
homens são detentores de uma reconhecida autoridade.
Em resumo, como demonstra a extensa e amplamente citada literatura sobre as
políticas relativas ao sexo com o mesmo sexo, aos travestis e aos transexuais,
a separação entre procriação masculina e sexualidade masculina como categorias
analíticas é indispensável. A charada mais difícil de decifrar é a de como e
quando se devem recombinar essas categorias, e não apenas para fins analíticos,
para, por exemplo, investigar as vidas de bilhões de homens para quem a
procriação e a sexualidade estão vinculadas no dia-a-dia e de uma forma
concreta. Pelo que tudo indica, atividades como as relações sexuais e outras
atividades sexuais que ocorrem entre homens e mulheres têm sido
surpreendentemente evitadas e/ou ignoradas no mundo acadêmico dos dias de hoje.
Poder-se-ia esperar que os antropólogos se interessassem por essas atividades
simplesmente pelas características de hábito e ritual que elas apresentam.
Há quem afirme que, nos homens, a procriação depende da sexualidade - e mais
especificamente das ereções que eles conseguem - de modos que não valem para as
mulheres.11 Não obstante, para levar esse argumento à sua conclusão lógica, a
não ser que se pretenda afirmar que todas as ereções são iguais - e que todas
as ereções acontecem pelo mesmo motivo -, exagerar esses aspectos da
sexualidade masculina é uma insensatez tão grande quanto considerá-las
totalmente diferentes das formas como a procriação feminina pode depender da
sexualidade das mulheres. Tanto para os homens como para as mulheres, pareceria
que o aspecto que mais salta à vista não são as supostamente universais
maneiras fisiológicas de se reagir ao estímulo sexual, e sim o que causa quais
tipos de reações em quais contextos culturais, e quando, como e por quê.
Premissa 4
Os homens não assumem responsabilidade pelo controle da natalidade. Essa
afirmação pode não ser um verdadeiro equívoco e muito menos uma mentira por
atacado. Muitos homens não assumem responsabilidade pela contracepção, jamais
assumiram e jamais assumirão. Além disso, há quem tenha conhecimento de algum
homem que exija controle da natalidade em nome dos homens? Em todo o mundo, os
únicos movimentos sociais coerentes entre homens que se identificam com o
conceito de "energia masculina" são as multifilamentadas lutas pelos direitos e
liberdades dos gays. Em diferentes países, naturalmente, existem organizações
que declaram promover os direitos dos homens, como os Christian Promise Keepers
de direita nos Estados Unidos. Em nenhum desses movimentos, porém, existem
homens tentando obter um maior controle sobre a própria fertilidade por meio de
implantes hormonais masculinos, injeções de silicone em seus canais deferentes
ou outros métodos contraceptivos. E os homens também não se apresentam como uma
força social coesa exigindo mais preservativos e mais vasectomias para as
massas.
Outro item que anda em falta na maioria dos países é um histórico da
participação dos homens na prevenção da gravidez. Até que ponto se podem
comparar as experiências masculinas àquelas descritas por Schneider e Schneider
(1996) na Sicília dos séculos XIX e XX, onde o coitus interruptus era
amplamente praticado e visto como sinal de respeitabilidade? Já que, antes da
introdução dos métodos químicos, a "marcha a ré" (como era chamada na Itália)
constituía uma técnica anticoncepcional de capital importância também em outras
partes do mundo, seria conveniente descobrirmos em que medida o coitus
interruptus "tinha menos a ver com uma ascética renúncia ao prazer do que com
uma demonstração de poder", sendo uma forma de controle sobre a vida e o amor
(Idem, p. 162).
Nesse meio-tempo, como costumam as mulheres mexicanas descrever a situação
contraceptiva, "Las mujeres ya saben de eso." No México, as mulheres se cuidan
quando empregam um ou mais métodos para evitar a gravidez. Ainda está muito
pouco claro até que ponto essa situação existe porque são as mulheres e não os
homens que ficam grávidas, ou porque os homens, por natureza, não querem
dividir a responsabilidade pelo planejamento familiar, ou porque as opções
contraceptivas disponíveis no mercado mundial, em sua esmagadora maioria, são
destinadas a serem ingeridas, introduzidas ou injetadas pelas mulheres. A
verdade é que existem menos opções de contracepção para os homens. Por quê? Até
que ponto estariam a cultura e a fisiologia, por exemplo, implicadas na falta
de contraceptivos masculinos? As experiências que foram conduzidas com métodos
hormonais para a contracepção masculina e tampões temporários de silicone para
os canais deferentes não chegaram a ser desenvolvidas e comercializadas para a
enorme população de homens que, presumivelmente, estão se aproveitando das
opções de contracepção para as mulheres.
A ignorância, a falta de informação e os temores infundados amplamente
disseminados são, no mínimo, tão significativos quanto o machismo desenfreado e
peculiarmente mexicano para que se entenda por que tão poucos homens fazem
vasectomia nesse país. Segundo muitos homens que conheci e entrevistei em
clínicas de vasectomia nos últimos anos, a falta de conhecimento é um dos
motivos pelos quais o número de homens que procuram a vasectomia é tão baixo
(ver Gutmann, 2007). Alguns homens e mulheres obtêm informações sobre a
vasectomia em anúncios de serviços públicos pela televisão, pelo rádio ou pelos
jornais; outros as obtêm em panfletos distribuídos em clínicas de planejamento
familiar; outros ainda de enfermeiras e médicos que trabalham nessas clínicas.
A informação boca a boca, principalmente de um homem para outro, é com
freqüência o método mais convincente de dar publicidade a esse procedimento.
Além disso, em todo o México, nas paredes externas das clínicas médicas de
muitas cidades, é comum ver cartazes pintados para divulgar a disponibilidade
de se obterem vasectomias lá dentro, promovendo, assim, a participação
masculina dessa modalidade de contracepção permanente.
Na maioria das situações clínicas que encontrei em iniciativas de planejamento
familiar controladas pelo governo, porém, a vasectomia é apresentada como uma
questão de escolha individual e não se insere no contexto das relações gerais
entre homens e mulheres em que os homens raramente assumem uma responsabilidade
primordial pela contracepção. Os panfletos oficiais, por exemplo, não comparam
a vasectomia à ligadura de trompas para as mulheres, sendo esta última um
procedimento muito mais invasivo e temporariamente debilitante. A vasectomia é
divulgada como um método de controle da natalidade que está disponível para
qualquer homem que decida beneficiar-se desse serviço, mas não é de surpreender
que, para os homens que realmente decidem se submeter a uma vasectomia,
conseguir esse procedimento pode ser difícil.
Descartar completamente a participação ativa e a empatia dos homens na
contracepção é um grande equívoco. Uma das conclusões a que cheguei com base em
minha pesquisa sobre a vasectomia no México é de que os homens expressam um
grande alívio quando deixam de ter motivos para se preocupar em engravidar as
mulheres com as quais fazem sexo. Não menos importante é o fato de que, no
mesmo estudo, diversas mulheres relataram o mesmo alívio com relação à
preocupação em engravidar que, antes, partilhavam com os homens ao longo de
suas vidas sexualmente ativas. Não obstante, quando se comparam as estatísticas
da participação dos homens no que se costuma considerar "modalidades mais
masculinas de controle da natalidade", como os preservativos e a vasectomia, os
números variam imensamente de um país para outro (e às vezes de uma região para
outra dentro do mesmo país). Será que esses números representam algo de
fundamental com respeito às atitudes e às práticas culturais relacionadas com a
sexualidade masculina? Será que podemos, de forma significativa, correlacionar
a falta de prevalência da contracepção entre os homens às "culturas machistas"
nacionais particulares?12
O envolvimento dos homens na contracepção não é, no final das contas, somente
uma questão de escolha individual, de culturas "machistas e não machistas", nem
uma questão de homens versus mulheres, de aqueles que inseminam com espasmos
que duram alguns poucos segundos versus aquelas que, potencialmente, vão
carregar um feto no ventre por nove meses. Na realidade, para explicar o que
eruditos latino-americanos como Barbosa e Viera Villela (1997) chamam de
"introdução de uma cultura contraceptiva" e o que a antropóloga colombiana Mara
Viveros (2002) denomina "cultura contraceptiva feminina", segundo a qual as
mulheres do mundo inteiro são predominantemente responsáveis pelo controle da
natalidade, temos de observar não apenas os homens negligentes e velhacos que
procuram se eximir da responsabilidade de evitar a gravidez de suas parceiras
(ver também Barbosa e Di Giacomo do Lago, 1997). Devemos perguntar também sobre
o papel dos governos no controle populacional, no planejamento familiar e, mais
recentemente, nas campanhas pela saúde reprodutiva e sexualidade, sobre a
Igreja Católica em várias partes do mundo, o Fundo de População das Nações
Unidas (UNFPA - United Nations Fund for Population Activities), a Federação
Internacional para uma Paternidade Planejada (IPPF - International Planned
Parenthood Federation) e suas afiliadas locais, o Conselho da População e as
Fundações Ford, MacArthur e Rockefeller e os papéis que desempenham na criação
de uma cultura contraceptiva feminina. Da mesma forma decisiva, temos de
examinar o papel desempenhado pela indústria farmacêutica em demarcar os
limites do que é considerado por seus pesquisadores biologicamente possível e
viável para assegurar estratégias de marketing. Algumas dessas instituições têm
claramente desempenhado um papel muito melhor do que outras para encontrar a
maneira de avançar além da assim chamada regulamentação da fertilidade, para
oferecer resistência ao avanço da maré da cultura contraceptiva feminina, para
envolver os homens e para desenvolver uma abordagem abrangente para a saúde das
mulheres.
Como um último aspecto no que diz respeito aos homens e à contracepção, não
podemos esquecer de que, mesmo antes do advento da pílula, muitos homens
desempenharam um papel maior na prevenção da procriação e que os preservativos
e o coitus interruptus foram recursos significativos em mais encontros sexuais
heterossexuais do que na maioria das circunstâncias da época atual. É evidente
que a situação é muito diferente hoje, quando, em nível mundial, 61% de todas
as "mulheres em idade reprodutiva" que são casadas ou em união consensual
estão, elas próprias, utilizando a contracepção (United Nations, 2003).
Premissa 5
O impulso sexual dos homens é uma aptidão (natural). Esse enorme tópico vem tão
carregado de crendice popular que é difícil saber por onde começar a esclarecer
os equívocos e as mentiras. Uma boa forma de começar seria, talvez, fazer a
seguinte pergunta: Onde foi parar o tal gene gay? Uma das respostas,
naturalmente, é a de que ele jamais existiu e, portanto, não foi parar em lugar
nenhum. De forma mais substancial, a pesquisa que proclamou ter descoberto o
gene gay estava totalmente equivocada, pois se apoiou em um constructo social
(o conhecimento e consenso sobre, antes de qualquer coisa, quem é gay e quem
não é) e depois tentou traçar o caminho de trás para diante para encontrar
alguma semelhança genética entre essas pessoas. É impossível dissociar os
aspectos atributivo e delimitativo da "qualidade de ser gay", seja isso o que
for. Outro problema é o que Roger Lancaster chama de "'genomania' e fetichismo
heterossexual". Como explica Lancaster, "Não acredito que a homossexualidade
seja realmente suscetível nem mesmo a uma 'boa' investigação biológica. Como
atividade humana complexa, significativa e motivada, o desejo pelo mesmo sexo
simplesmente não é comparável a aspectos [geneticamente relacionados] como cor
dos olhos, tipo e cor dos cabelos, cor da pele ou estatura" (2003, p. 256).
A fútil busca pelo gene gay é relevante para a questão dos impulsos sexuais
masculinos na medida em que eles são naturalizados de maneira semelhante. No
que diz respeito aos homens heterossexuais, parece que não temos avançado muito
em compreender de que forma eles são considerados - embora hoje com a sanção da
psicologia evolucionária e dos testes de níveis hormonais - detentores de seu
próprio tipo de condição sexual homogênea. É verdadeiramente extraordinário,
por exemplo, que tenhamos tão poucos estudos feministas sobre homens e estupro
- motivos, contextos e históricos do estupro - e a relação de poder e
sexualidade para entender o estupro.13 Um dos principais problemas com as
versões naturalizadas, até mesmo medicalizadas da sexualidade masculina, é que
elas servem para legitimar o militarismo, a violência e o estupro - em qualquer
teoria "biologística" do comportamento masculino se esperaria encontrar uma
explicação para o fato de que a maioria dos homens não mata nem estupra, mas,
na verdade, nenhuma delas trata adequadamente dessa evidente contradição da
fetichização da violência e da sexualidade masculinas. Os significados e as
conseqüências do fato de os homens serem "sexualmente incontroláveis" seriam
completamente diferentes se compreendêssemos que os homens são "culturalmente
descontrolados" ou portadores de hormônios fora de controle.14 Além disso, os
primeiros estágios da segunda onda feminista contribuíram inadvertidamente para
o problema do raciocínio biologístico. Trata-se especificamente, como aponta
Lynne Segal, da "impropriedade teórica do cientificamente respeitável, mas
mesmo assim redutivo modelo de sexualidade que foi usado nesses primeiros
textos feministas, com base na idéia de apetites e de sua repressão ou
liberação" (1994, p. 41).
No México, no decurso da exploração da influência penetrante de noções
relativas a uma sexualidade intrínseca e totêmica entre os homens desse país,
descobri também que o estereótipo de que "os homens de verdade precisam
procriar para provar que são homens" está historicamente vinculado ao pró-
natalismo, patrocinado pelo Estado, que se desenvolveu após a Revolução
Mexicana no início do século XX e, em seguida, se acelerou ao longo de um
período - os primeiros anos da década de 1970 - em que a nação mexicana se
confundia, em termos gerais, com os homens e a masculinidade (ver Gutmann,
2000). Além da fetichização das sexualidades masculinas, que não diminuiu no
século XXI, essa história natural nacional desempenhou um importante papel nos
dogmas e nos truísmos contemporâneos no que concerne ao que os homens mexicanos
desejam, fazem, buscam e precisam em termos sexuais.
Uma das implicações da fetichização da sexualidade masculina para a questão dos
homens e a procriação é a promoção da compreensão mecanística de que "a
participação dos homens no processo reprodutivo está, na verdade, limitada ao
esperma com o qual eles contribuem" (Marsiglio, 1998, p. 50). O modelo de
influência cultural que se encontra em jogo aqui permite a Marsiglio (Idem, p.
51) especular que, já que os homens não carregam um feto no ventre por nove
meses como as mulheres, isso gera uma "indiferença" por parte deles em relação
à gravidez e até mesmo uma "alienação geral que os afasta do processo
reprodutivo" e que somente é ligeiramente abrandada pelas novas tecnologias,
como o ultra-som, que permite aos homens (de algumas classes sociais e em
alguns países) visualizar o crescimento do feto e o iminente nascimento de seus
filhos.
Tal abordagem do estudo dos homens, da sexualidade e da procriação é
demasiadamente limitada em termos culturais e, no final das contas, suporta a
noção de que conceitos de biologia estreitamente concebidos acabam por
prevalecer sobre todo o restante. Não há dúvida, porém, de que essa abordagem
tem um aspecto reabilitado de verdade nos dias de hoje, em que o papel dos
testes genéticos para a determinação da paternidade vem obrigando alguns pais
negligentes a assumirem suas responsabilidades paternas. Não obstante, até
mesmo a paternidade, inclusive em sociedades partidárias das famílias nucleares
normativas, tem provado que não é assim tão redutível à consangüinidade. E,
menos ainda, deve a sexualidade ser jamais reduzida a simples descargas neurais
e fluxos sangüíneos.
Premissa 6
O amor nada tem a ver com os homens, a sexualidade e a procriação. Essa
afirmação pode ser manifestamente ridícula, mas, depois de analisar a maior
parte do conhecimento acerca dessas questões, pode-se muito bem ficar com essa
impressão. Parte desse equívoco talvez se deva a Foucault ([1980] 2005), para
quem o amor estava perceptivelmente ausente. A falta de atenção ao amor e a
sentimentos semelhantes, principalmente no que diz respeito aos homens e suas
histórias de vida sexual e reprodutiva, é uma evidente omissão. É óbvio que
vocábulos como "amor" precisam ser totalmente contextualizados cultural e
historicamente, mas a dificuldade de tal empreendimento, em si, não explica
nossa anterior relutância em assumir essa tarefa. Em vez disso, e como
resultado de suposições naturalizadas sobre a sexualidade masculina, podemos
ter involuntariamente presumido que o amor, para os homens, não é tão relevante
para o estudo do sexo e da procriação. Por mais absurdo que isso possa parecer,
é muito difícil encontrar outra explicação para nosso lapso erudito.
Uma das indicações de quão distorcida pode ser, às vezes, a nossa perspectiva
com respeito ao amor e à sexualidade é a linguagem que usamos para discutir a
saúde reprodutiva em geral, seja ela relacionada com as mulheres, os homens ou
ambos. Em panfletos e textos médicos, a contracepção é geralmente apresentada
em termos um tanto negativos, como quando falamos de população e controle da
natalidade, regulamentação da fertilidade, planejamento familiar e prevenção da
gravidez. Se existe na sexualidade, ao menos para alguns em certas ocasiões,
uma alegria que não resulte em procriação ou mesmo, que Deus não o permita, em
reprodução, deve valer a pena prestar atenção aos complexos significados que
esse prazer pode transmitir.
Premissa 7
Em termos de sexualidade e procriação, os homens fazem o que bem entendem,
independentemente da intervenção das mulheres. A inclusão dos homens nos
estudos da procriação reflete, em parte, a erudição tratando de não ficar para
trás em relação à realidade. Os obstáculos conceituais e empíricos a essa
inclusão são muitos, e eu gostaria de chamar a atenção para um ponto fraco em
particular nos estudos dos homens e das masculinidades, que causou problemas de
forma mais geral e não apenas com respeito às questões reprodutivas: a ausência
de uma pesquisa substancial que documente e teorize a influência que as
mulheres adultas exercem sobre os homens adultos. Há muitos estudos que mostram
a influência das mulheres sobre os meninos. Há também estudos acerca da
influência dos homens adultos sobre as mulheres adultas. Existe, porém, um
número extremamente pequeno de investigações que examinem o que mães, irmãs,
esposas e outras mulheres dizem e fazem nas vidas dos homens com quem convivem.
Essa omissão, no mínimo, alimenta a noção de que, em suas vidas cotidianas, os
homens não dão muita atenção a negociações, súplicas, ameaças e seduções que
vêm das mulheres.
O pessoal da publicidade e do marketing não é tolo a ponto de aceitar essa
conclusão; e, em seguida às campanhas iniciais de propaganda em 1998, dirigidas
especificamente aos homens, que anunciavam o advento do Viagra no mercado
mundial, medicamentos mais novos como o Cialis e o Levitra fizeram questão de
utilizar mulheres para promover a idéia de que "Se você deseja fazer sexo e seu
parceiro sofre de disfunção erétil, faça-o experimentar este comprimido". Em
uma pesquisa sobre a tomada de decisões com respeito à contracepção no México,
descobri a influência que as mulheres exercem nos homens: dos poucos que
optavam pela vasectomia, muitos se referiam às experiências que suas esposas
haviam tido com a contracepção, a gravidez e o parto; e, à guisa de motivo
primordial pelo qual haviam decidido ser esterilizados, diziam "Agora é minha
vez de sofrer". Até mesmo os tópicos de interesse de longo prazo nos estudos da
saúde reprodutiva das mulheres deveriam ser reestudados para se examinar o
relacionamento das mulheres com os homens no que concerne, por exemplo, aos
tabus sexuais pós-parto; não se dedica uma séria atenção aos significados e às
experiências dessas restrições para os homens - significados e experiências que
costumam ser recebidos com um mero olhar de soslaio, dissimulado e desdenhoso
com relação ao ressentimento e à frustração sexual dos homens. Ainda há muito a
ser explorado no que concerne a esses tópicos e a outros com eles relacionados.
Não há dúvida de que as águas cambiantes da conceitualização feminista com
respeito às semelhanças e às diferenças nas sexualidades dos homens e das
mulheres fazem parte do quadro que temos aqui. Na medida em que as diferenças
fundamentais são esperadas e enfatizadas, parece haver uma tendência a supor
que, quando deixados à vontade com seus estratagemas sexuais, os homens podem
até se submeter às restrições femininas, mas não são realmente receptivos a
mudanças, nem mesmo a pedido ou sob o comando das mulheres. Se a influência das
mulheres adultas sobre os homens heterossexuais adultos for matéria de estudo
em pesquisas etnográficas, encontraremos evidências de homens relatando temor e
acanhamento, e não apenas confiança e desrespeito em suas relações sexuais e
reprodutivas com as mulheres.
É muito fácil ridicularizar a disfunção erétil, por exemplo, como apenas mais
uma historinha triste por parte de homens insatisfeitos com suas vidas sexuais
com as mulheres; é mais difícil, porém, desenvolver exames etnográficos
esmerados e sutilmente variados de tópicos como impotência e prostituição, que
são objetos de piadas mais freqüentemente que de estudos sérios. A menção de
Cornwall a respeito do impacto que as acusações de impotência podem ter sobre
os homens na região sudoeste da Nigéria é demasiadamente curta e escassa:
"Ridicularizado pelos amigos e acusado de ser impotente por não se sentir
propenso a correr atrás das mulheres, ele lutava para se tornar um homem nos
termos deles, aprendendo a disfarçar a timidez por trás do álcool e acabando
por obliterar a própria inquietação" (2003, p. 238). Com muita freqüência,
ignoram-se as implicações do estigma da impotência ou se evita deliberadamente
falar sobre elas. Por mais estranho que isso possa parecer, estudos sobre
homens que procuram prostitutas são ainda mais raros, como se as únicas
questões a merecer uma cuidadosa atenção em relações como essas fossem as
experiências das mulheres, e se o único ponto de controvérsia fosse se essas
mulheres se apresentam mais como vítimas do que como agentes dessas relações
sexuais com os homens.
Premissa 8
Às vezes um charuto não passa de um simples charuto. Infelizmente já não é mais
esse o caso, e não apenas graças às indiscrições de Bill Clinton e Mônica
Lewinsky. Ao escrever sobre as mulheres e as realidades corporais femininas,
Simone de Beauvoir inadvertidamente também nos ensinou alguma coisa, por
implicação, sobre os corpos masculinos e os destinos predeterminados. As
suposições sobre os corpos dos homens e a sexualidade, a procriação e a
masculinidade permaneceram surpreendentemente superdeterminadas nas décadas
subseqüentes à literatura feminista sobre gênero e sexualidade. Dessa forma,
talvez tenhamos de voltar um pouco não somente a Simone de Beauvoir, mas até o
bom e velho Sigmund Freud, que ainda deve ter algumas coisinhas a nos ensinar
com respeito a não seguir modelos biomedicalizados das sexualidades masculinas,
da procriação e das masculinidades. (Além disso, não, não se pode deixar de
levar em conta o fato de que Freud, à sua maneira caracteristicamente
autocontraditória, também ajudou a promover os homens ativos e as mulheres
passivas, e os charutos que não poderiam jamais ser fumados.) Precisamos
lembrar de que a física e a química do sexo não nos dizem muita coisa a
respeito do desejo e do prazer, ou mesmo da dominação e da submissão,
precisamente os itens que têm tudo a ver com a compreensão das sexualidades e
das vidas reprodutivas dos homens - ou que pelo menos deveriam ter.
Notas
1 E, é claro, ela passou a defender que tais fatos biológicos "são
insuficientes para a criação de uma hierarquia dos sexos; eles não conseguem
explicar por que a mulher é o Outro; eles não a condenam a permanecer
eternamente nesse papel subalterno" (Beauvoir, [1949] 1960, p. 29).
2 Ver, por exemplo, Sexing the body, de Anne Fausto-Sterling (2000).
3 Não há dúvida de que, na atual discussão sobre a sexualidade dos homens e a
procriação, o caso dos hijras pode ser inerentemente problemático, porque eles
não apenas não definem a si próprios como heterossexuais, mas não vêem a si
próprios nem como homens nem como mulheres.
4 Freud ([1905] 1997), evidentemente, criou a expressão "disposição
polimorficamente perversa" para revelar, entre outras coisas, que a sexualidade
humana não se inicia com a puberdade, mas pode ser detectada também ao longo
das experiências infantis.
5 Um pedido de desculpas e um agradecimento a Eduardo Galeano (1982), de cujo
ensaio tomei emprestado o subtítulo "Literatu ra y cultura popular en América
Latina: diez errores o mentiras frecuentes".
6 Além de Ginsburg e Rapp (1995), ver especialmente Browner (2000); Browner e
Sargent (1996); e Clarke (1998).
7 E se não conseguimos tratar a heterossexualidade como uma entidade única, o
que dizer da heteronormatividade? Podemos falar de heteronormatividades?
8 Para a melhor coletânea de demografia antropológica elaborada até hoje sobre
os homens e a fertilidade, ver Bledsoe, Lerner e Guyer (2000).
9 Para súmulas de estudos sobre masculinidade na América Latina, ver Valdés e
Olavarría (1997, 1998) e Gutmann e Viveros (2005). Na rica literatura sobre os
homossexuais e os homens que fazem sexo com outros homens (MSMs) na América
Latina, ver Carrillo (2005); Green (1999); Lancaster (1992); Núñez Noriega
(1994); Parker (2002, 2003); e Parker e Cáceres (1999). Os estudiosos que se
concentraram mais nos homens heterossexuais e na procriação nessa região são
quase todos, eles próprios, da América Latina; ver especialmente Amuchástegui
(2001); Arilha, Unbehaum Ridenti, e Medrado (1998); Figueroa (1998); Fuller
(2001); García e Oliveira (2004); Leal (1995, 1998); Lerner (1998); Minello
(2002); Olavarría (2002); Oliven (2006); Szasz (1998); Szasz e Lerner (1998); e
Viveros (2002).
10 E, quando é, expressa uma enfermidade chamada priapismo, motivo para
imediatos cuidados médicos.
11 Embora, segundo a famosa descoberta de Laqueur (2001), por muito tempo na
Europa se acreditou que, para conceber, a mulher tinha também de ter um
orgasmo.
12 Sobre a "erosão" do machismo no México, ver Barbieri (1990).
13 Para uma coletânea recente com críticas aos modelos de estupro da psicologia
evolucionária, ver Travis (2003) e, especialmente, os artigos de Kimmel (2003)
e Martin (2003). Para uma discussão sobre as origens darwinianas do pensamento
moderno a respeito da natureza sexual dos homens, ver Lancaster (2003, pp. 86-
90).
14 Sapolsky (1997) afirma que os níveis de testosterona dentro da faixa de
normalidade pouco podem predizer no que concerne à agressividade masculina, e
que, com muita freqüência, são as diferenças comportamentais em violência, por
exemplo, que causam as alterações hormonais, e não o contrário. Para um estudo
refinado da violência entre homens e mulheres no Brasil, ver Fonseca (2000).