A "RECENSÃO A AENESIDEMUS" E A GÉNESE DA DOUTRINA DA CIÊNCIA DE FICHTE
Introdução
De entre as diferentes versões a que, durante mais de quinze anos, Fichte viria
a submeter a sua Doutrina da Ciência, quase todas ostentam esse nome e focam a
questão de um princípio absoluto de toda a filosofia. "Über den Begriff", o
"Grundriβ", a Nova Methodo,1 etc. são, dir-se-ia, reescrições anacronicamente
dispostas de um mesmo sistema e de um mesmo problema, motivadas não só pela
constante reelaboração do sistema no espírito do seu autor, mas também pela
incompreensão a que o modo de expor de tal sistema, e o princípio que lhe
presidia sempre se veriam expostos pelos seus leitores;2 e portanto, dir-se-ia,
todas estas versões posteriores a 1793, imediatamente subsequentes à descoberta
do princípio da identidade absoluta, são também a face mais visível e real da
doutrina da ciência de Fichte, e constituem por certo o cerne teórico do pensar
fichteano sobre este aspecto.
Mas outras versões há, as mais primordiais de todas - anteriores ou simultâneas
a um princípio e de um sistema por esse nome -, que, embora focando este
problema, não dão ainda por esse nome, e por isso tendem a passar mais
despercebidas ao olhar do leitor e até de alguma crítica do autor. Não me
refiro à "Zurückforderung der Denkfreiheit" (1793),3 nem ao "Beitrag zur
Berichtigung" (1793).4 Refiro-me, isso sim, aos escritos que directamente
testemunham a ocorrência primeira desse princípio absoluto em Fichte, e que por
certo muito ajudam a elucidar os escritos a partir de 1794; eles que, aliás,
podem e devem ser vistos como o germe do mesmo problema que, vindo de Reinhold
e Kant, viria a ocupar a filosofia da época e a jovem geração idealista.
Assim, são dois os momentos da teoria de Fichte que destaco, e que de um modo
singular nos podem ajudar a entender o processo de formação de um seu princípio
da identidade absoluta, e a sua subsequente Doutrina da Ciência; e se digo
singular, é porque, nestes, Fichte ora pugna ainda por um germe da sua Doutrina
da Ciência, ora acabava de o obter, e dava-lhe voz pela primeira vez.5 São eles
as esquecidas "Eigne Meditationen",6 um extenso conjunto de reflexões composto
por Fichte entre Outubro de 1793 e Fevereiro de 1794; e a "Aenesidemus-
Rezension",7 também composta durante o Inverno de 1793/94, esta produzida em
resposta à Filosofia Elementar de Reinhold, e também à obra "Aenesidemus", de
G. E. Schulze, de 1792: momentos precursores das referidas re-confecções da
Doutrina da Ciência,8 e testemunhos daquela que terá de ser considerada como a
mais decisiva época do curso teórico de Fichte.9
Porque a ocasião não o permite, tratarei apenas um destes dois momentos: o
decisivo cruzamento teórico entre Fichte, Reinhold e Schulze, na "Aenesidemus-
Rezension".
Com a análise deste escrito, espera-se perceber o porquê da necessidade de uma
doutrina da ciência; e uma vez alcançado este propósito, espera-se que ele nos
possa ajudar a discernir alguns dos contornos iniciais daquela que sempre seria
a questão principal para o Professor de Jena, e que viria a centrar os esforços
de toda uma geração de filósofos à sua volta: a questão da possibilidade de um
princípio absoluto da filosofia em geral, isto é, de uma filosofia por
princípios, e uma total sistematização da filosofia.
Isto, traduzo-o sob a forma dos três objectivos concretos deste ensaio:
1) Perceber o papel de Fichte entre Reinhold e Schulze, isto é, a singular
dinâmica de aceitação e refutação que na recensão se estabelece com as teorias
daqueles, a qual, perante a necessidade de um novo princípio absoluto da
filosofia, é levada a suplantar o primeiro devido à influência do segundo, e
refutar o segundo por necessidade de suplantar o primeiro;
2) Salientar a importância deste diálogo a três vozes, e sobretudo a voz
central de Fichte para a definitiva consolidação da questão da possibilidade de
uma filosofia de princípios tal como, para estes, ela fora inaugurada mas
também deixada por resolver por Kant;
3) Por fim, não tanto discernir como Fichte chega ao seu princípio da
identidade - um trabalho de minúcia que em muito excederia a necessária
economia deste pequeno ensaio -, mas antes pensar a possibilidade de este
problema poder ser visto por um outro prisma, não apenas enquanto uma questão
de filosofia, mas como uma mais relevante questão de linguagem dessa mesma
filosofia - assim se estabelecendo uma ponte de sentido entre os problemas
levantados na recensão, e o primeiro escrito após esta, "Über den Begriff"
(1794).
I O enquadramento teórico da "Recensão a Aenesidemus"
A "Aenesidemus-Rezension" não nasce fortuitamente, e tem por detrás de si um
complexo problema de fundo que a suscita, e aí força a junção dos três autores
nela implicados. Aliás, o próprio Fichte menciona isto logo no início do
escrito, vendo nisso a mola propulsora deste (vd. Fichte, 1794, pp. 3-4). Numa
palavra, diremos que esse problema de fundo se baseia originariamente na
questão atrás exposta, a que a sua "Kritik aller Offenbarung" não é alheia
(nota 8 deste texto), e alcança o seu momento decisivo, já enquanto um problema
declaradamente filosófico, na dúvida sobre se é ou não possível consumar a
empresa crítica de Kant (e, subsequentemente, se é ou não possível um princípio
absoluto de toda a filosofia).
Esse problema fundamental, embora visível também em Reinhold e Schulze, é porém
particularmente sensível em Fichte. A sua razão de ser é simples; pois, por um
lado, Fichte "estava [...] intimamente convicto de que nenhum entendimento
humano poderia perseverar para lá do limite em que Kant se encontrara,
especialmente na sua Crítica da Faculdade de Julgar [...]";10 e portanto,
reconhecia que com respeito à faculdade de conhecimento - a aquisição das
formas das intuições, dos conceitos e das ideias -, a teoria kantiana era
insuperável. Mas por outro lado, diria Fichte, se Kant lograra que a
cognoscibilidade se universalizasse, ele não lograra porém que esta forma de
pensar fosse reconduzida a uma forma superior, mais elementar do conhecimento e
da linguagem, a um outro grau de certeza que a comprovasse apodicticamente no
espírito humano. Isto é, embora Kant tivesse aventado um princípio absoluto da
filosofia, ele não chegara porém a elevá-lo a essa condição (o que, como vimos,
se prenunciava já no diálogo em surdina entre "Die Religion innerhalb der
Grenzen", de Kant, e a "Kritik aller Offenbarung", de Fichte); e portanto,
conclui Fichte, faltara a Kant o corolário da sua empresa: um princípio
absoluto da filosofia que unisse os domínios teorético e prático desta11 -
razão por que um tal sistema não estava ainda consumado. A filosofia não podia
elevar-se ainda a um todo sistemático; e por conseguinte, reitera Fichte no
início da sua recensão, a filosofia não era ainda uma ciência.12
Assim expõe Fichte o problema que subjaz à sua recensão. Mas Fichte, como
disse, não fora nem o único, nem o primeiro a sentir este problema.
Reinhold, aliás, tinha sobre este uma opinião em tudo similar, e já desde 1786
o procurava resolver, opondo-se aos supernaturalistas de Tübingen e à
propagação de seitas filosóficas adversas a Kant, que então acentuavam este
mesmo problema.13 O seu princípio da consciência, exposto, entre outros, nos
seus "Beitrage",14 dir-se-ia, era a resposta avant la lettre à lacuna apontada
por Fichte, visando pois essa mesma instância superior, essa forma mais
elementar do conhecimento. Essa instância, diria Reinhold, era o representar,
que, segundo o próprio Reinhold, Kant desconsiderara em detrimento do conhecer,
assim deixando inacabado o seu edifício crítico.15 Pois o representar é, para
Reinhold, anterior ao conhecer; e portanto, o representar, anterior à
consciência, e a sujeito e objecto, é para Reinhold género ("Gattung"), ao
passo que o conhecer das coisas, posterior à consciência, as espécies
("Arten"); e se a tendência da cognoscibilidade humana tem de ser retroactiva,
em direcção a um princípio absoluto de todo o conhecer, isto é, se ela tem de
tender das espécies para o género supremo, do conhecer para o representar,
então essa progressão tinha de ser ulteriormente determinada por uma forma
final (o princípio da consciência) que não só deveria ser conhecida desde o
início de tal processo, como forçava o processo a obedecer-lhe sem alguma vez o
ultrapassar ou corromper; e da mesma maneira que antes mesmo de se conhecer as
espécies já se tem uma representação do género (nesse princípio absoluto), uma
tal presciência tinha de se estender desde as suas primeiras até às suas
últimas consequências: até à própria essência da filosofia, expressa no próprio
acto de filosofar, fazendo a filosofia, até então mera espécie (conhecer),
transitar para o seu género mais próximo (o representar), a ciência, e fazendo-
a gravitar em torno de um princípio absoluto que unia enfim os domínios
teorético e prático da filosofia.
Já Schulze, resoluto opositor deste sistema, mas também do de Tübingen, e tal
como Reinhold fiel leitor de Kant, defendia que Kant não culminara a sua teoria
com um princípio absoluto simplesmente porque disso não tivera necessidade, na
medida em que esse princípio é impossível. A sua posição neste problema era,
pois, diametralmente oposta à de Reinhold; e quão oposta, vê-lo-emos de
seguida.
Seja como for, uma coisa é certa; Fichte não se quedaria indiferente a estas
duas vozes. Pois, por um lado, a proposta de Reinhold muito influenciaria o
problema de Fichte como acabámos de o expor, e isso é algo facilmente visível
no próprio proceder da filosofia fichteana, e até na própria recensão. Aliás,
Fichte sempre fora um leitor atento de Reinhold; e não raras vezes reconhece o
quanto a inicial formação do seu sistema devera à filosofia de Reinhold, e ao
seu fim de colmatar as lacunas do sistema kantiano.16
Mas ao mesmo tempo, não obstante este reconhecimento, não obstante a influência
da filosofia elementar sobre si, Fichte afirma que fora antes o estudo de
Aenesidemus17que mais decisivamente o influenciara, a ponto de o forçar a uma
total destruição e posterior reconstrução do seu próprio edifício de
pensamento18 - de que, salientamos, a recensão era o primeiro rebento. Pois o
facto de que Schulze tivesse escrito Aenesidemus para refutar a filosofia
elementar de Reinhold, isso, por si só, deveria naturalmente levantar a
oposição de Fichte; tanto mais que Schulze não via nem necessidade nem
possibilidade de superar a teoria de Kant, e para ele um princípio absoluto da
filosofia era um absurdo. Mas, ao invés, a obra - e sobretudo a maneira como
Schulze a dispôs -, lograria criar em Fichte um efeito de distanciação em
relação à proposta reinholdiana; e tendo Aenesidemus sido escrita justamente
por um dos maiores paladinos contra a filosofia de princípios, e justamente
contra um dos maiores paladinos da possibilidade dessa mesma filosofia, isso,
mais do que operar uma simples inversão, antes operaria em Fichte uma total
revolução espiritual, e obrigá-lo-ia a ver até que ponto seria possível
suplantar Reinhold sem porém aderir de tal modo a Schulze que assim negasse a
empresa reinholdiana, ou aderisse por completo àquela; e porém, aderir a
Schulze de tal modo que guardasse em relação a este distância suficiente para
nunca renunciar a Reinhold. Isto é, numa palavra, até que ponto seria possível
encontrar um fino, e muito singular meio-termo entre uma refutação de Reinhold
que é aceitação de Schulze, e uma refutação de Schulze que é aceitação de
Reinhold. Pois, dada a insuficiência de Reinhold e a revolução assim causada em
si por Schulze, só esse meio-termo teórico poderia significar para Fichte a via
correcta para a prossecução daquele que já então era o móbil primordial da sua
doutrina da ciência, a saber, a consumação da faculdade de julgar filosófica,
ou, dir-se-ia, a construção de um sistema da razão que abarcasse toda a
filosofia, enfim consumando o procedimento crítico de que Kant imbuíra a
filosofia em geral.
II A incontornável invalidade do princípio da consciência de Reinhold
Um tal meio-termo, procurá-lo-ia Fichte na "Aenesidemus-Rezension".
Aí, sob a aparência de uma simples recensão, Fichte confere ao seu problema
fundamental uma forma determinada, in nuce. Para tal, subdivide a sua análise
tripartidamente, assim procurando responder às três principais objecções de
Schulze em Aenesidemus.
As objecções de Schulze eram: 1) "O princípio da consciência de Reinhold não é
uma proposição absolutamente primeira, pois, enquanto proposição e juízo, ela
está abaixo da regra suprema de todo o julgar, o princípio da contradição"
(Fichte, 1794, p. 5; Schulze, 1792, p. 46); 2) "A proposição da consciência não
é uma proposição permanentemente determinada por si própria" (Fichte, 1794, p.
6; Schulze, 1792, p. 48); e 3) "A proposição da consciência não é nem uma
proposição universalmente vigente, nem expressa um facto que não esteja
associado a uma determinada experiência ou a um certo raciocínio" (Fichte,
1794, p. 6; Schulze, 1792, p. 53).19
Ao abordar a primeira objecção, Fichte parte de um pressuposto central em
Schulze; a saber, que o princípio da consciência não pode afirmar-se absoluto
e, porém, dispensar a validade - essa sim, absoluta - do princípio da
contradição; e porque duas posições absolutas não podem coexistir, uma delas, a
falsa, teria de ceder, assim revelando a sua não-absolutidade.
O problema, porém, coloca-se em traços mais específicos.
De acordo com Schulze, no seu Aenesidemus, o problema está em que, ao situar-se
exclusivamente no domínio teorético, Reinhold eleva aí o princípio da
consciência sobre "a regra suprema de todo o julgar", o princípio da
contradição. Para o fazer, diz Schulze, Reinhold parte do inegável facto de que
o princípio da contradição pode (ou tem de) ser o fundamento ideal ("Ideal
Grund"), mas não o fundamento real ("Real Grund") da verdade do princípio da
consciência (vd. Schulze, 1792, p. 46); pois este, diz Schulze, "está na
experiência" (id., p. 47); e isto é tanto mais certo, quanto também para
Schulze o princípio da contradição é teoreticamente supremo, mas subordinado
num respeito prático. Mas o que Reinhold faz, diz este, é antes adaptar, fundir
os factos que daqui relevam, de tal modo que, a saber, embora numa relação
teorética, ao nível da forma, o princípio da consciência tenha de obedecer
teoreticamente ao princípio da contradição, que é o seu fundamento ideal (id.,
p. 47), para Reinhold, ao contrário de Schulze, o princípio da consciência não
tem o seu fundamento real na experiência, mas sim em si próprio (mediante a
assumpção invertida de que o género é precedente, e as espécies posteriores); e
porque não o tem, então o real é também ideal, o que significa que esse
princípio não está subordinado a nada, não há nenhum princípio que lhe seja
superior e, por isso, ele não tem de obedecer ao princípio da contradição, e é
teoreticamente absoluto; e por outro lado, porque o princípio da contradição
não pode agir sobre a matéria do princípio da consciência (o que Schulze
reconhecia), então para Reinhold isso mesmo é a prova de que o princípio da
contradição não pode ser o fundamento ideal do da consciência, e que assim
sendo, o princípio da consciência é também absoluto num respeito prático.
Assim, para Schulze, uma tal união não decorria senão de uma confusão
deliberada dos dois domínios, de uma mistura das valências de fundamento ideal
e fundamento real, visando exclusivamente a obediência a um princípio supremo.
Isto é, num esforço de afirmar o seu princípio como absoluto, e a nada o
subordinar, Reinhold acabaria por amalgamar a matéria e a forma do princípio da
consciência, e afirmar por isso que não só num respeito prático, mas nem mesmo
teoreticamente o princípio da consciência tem de obedecer ao da contradição - o
que, para Schulze, era o mesmo que confundir os fundamentos lógico e real do
princípio, e, pior ainda, erigir o princípio da consciência no seio de um
primado teorético da razão, e não no seio de uma saudável coexistência entre
teorético e prático.
Mas, para Schulze, uma segunda consequência, mais grave, era óbvia. Pois, por
certo, a afirmação do absoluto teorético do novo princípio da consciência era
para Schulze um erro; e ao assim erigir o princípio da consciência à condição
de princípio teoreticamente absoluto, o que Reinhold fizera fora desinsuflar o
lógico de toda a sua logicidade, ou, se quisermos, de toda a sua validade
enquanto tal, em detrimento da realidade efectiva do princípio da consciência.
Isto é, Reinhold desprovera o princípio da contradição e a sua existência
lógica de toda a validade real que ele pretendesse ter no domínio teorético,
concedendo-lhe aí uma validade puramente formal e lógica - e porque não podem
existir dois absolutos, atribuíra toda a validade real ao princípio da
consciência, e reservara a vigência do princípio da contradição a uma ilusória,
inexistente logicidade. Mas, aduz Schulze, ao assim distinguir lógico e real,
isto não era sem profundas consequências para o sistema de Reinhold. Pois, ao
assim proceder, Reinhold estava ao invés a desguarnecer o seu próprio sistema,
expondo-o a ataques externos; Reinhold estava, no fundo, a desprover o seu
sistema de qualquer impedimento de contacto com o seu (possível) contrário,
permitindo assim que um sistema tido como apodíctico entrasse em contacto com a
experiência (impedido que estava o princípio da contradição de agir sobre ele),
o que conduzia esse sistema a múltiplas inconsistências e, em última instância,
a um contacto indevido entre logicidade e realidade. E este sim, é, para
Schulze, o porquê de não poder o princípio da contradição ser negado; pois o
princípio absoluto tem uma relação estreita com todos os outros princípios que
compõem o sistema, ligação essa que tem de ser preservada se é que ela não deve
ferir a ordem do todo ao progredir analiticamente das espécies para o género.
Ora, na ausência do princípio da contradição, a mínima oscilação interpretativa
de um termo do sistema resultaria na queda do todo; pois o sistema existe
somente de um determinado modo (o absoluto), não podendo simultaneamente não
existir, ou assumir uma outra forma simultânea. E por isso, diz Schulze, o
princípio da contradição não pode ser desrespeitado ao nível da forma: pois o
fundamento real da verdade de um princípio reside na experiência (Schulze,
1792, pp. 47, 65, etc.), e a sua forma - a sua dimensão lógica - deve obedecer
a tal princípio superior.
Voltando à "Recensão a Aenesidemus", e considerando agora como Fichte veria
esta troca de argumentos, reitero que ela revelar-se-ia fulcral para Fichte, e
isso de um modo duplo, apenas aparentemente contraditório:
primeiro, Fichte concorda com Schulze que, uma vez no domínio teorético, é
logicamente impossível ao pensamento ir mais além do que o princípio da
contradição, e que é este que determina logicamente a relação entre sujeito e
objecto, a forma do princípio da consciência20 Fichte (1794, pp. 7-8);
segundo, Fichte afirma porém que, apesar deste erro, um mérito havia a
encontrar em Reinhold: que, ao contrário do que Schulze afirmava, Reinhold
distinguira de facto entre lógico e real (Fichte, 1794, p. 5); e que a sua
única falha estivera na escolha do plano em que resolvera situar esta
distinção, e por conseguinte na dimensão que utilizara para promover uma tal
distinção: o domínio (exclusivamente) teorético.
Numa palavra, a tese principal de Fichte é que há por certo uma maneira de
pensar o princípio da consciência como um princípio regendo-se por leis
próprias, e até mesmo como supremo num respeito meramente teorético; mas que, à
excepção desta maneira, visto o problema no seu todo, o princípio da
consciência não pode suplantar o princípio da contradição sem consequências
nocivas para um sistema que se queira apodíctico.
Assim, diz Fichte, são vários os méritos da filosofia elementar de Reinhold - e
isso, especialmente num respeito meramente teorético. Pois, para Fichte,
importante é que no pensar da questão até aqui, até este respeito teorético,
Reinhold tenha seguido o incontornável preceito segundo o qual a reflexão, o
único veículo possível desta suplantação no teorético, não é nem meramente
lógica, nem meramente real; pois, no acto de pensar, idealidade e realidade têm
de se ligar de alguma forma, alcançando assim uma união onde um é o outro - e
num respeito teorético, é este mesmo preceito que rege sobre qualquer regra
lógica ou real, e é horizonte destas. Aliás, isto mesmo di-lo o próprio Fichte:
a saber, que se pressupusermos que é lei incontornável do pensamento pensar
segundo o próprio pensamento, isto é, pensar que o pensamento tem de unir em si
a idealidade e a realidade de si próprio, então necessário é também que
pensemos o princípio absoluto num respeito teorético não de acordo com umas
quaisquer regras, mas de acordo com essas mesmas regras;21 e portanto, o que
isto significa é que, tal como acontece no pensar, que lhe dá origem, as regras
lógicas de um qualquer princípio são também, no domínio teorético, as suas
regras materiais,22 e isto aplica-se até ao supremo princípio teorético, para o
qual a idealidade é com efeito realidade, sem prejuízo de nenhuns dos
necessários aspectos apodícticos que Schulze a isto apontara. Isto, reitera
porém Fichte, pelo menos num respeito teorético.
Mas o problema está, para Fichte, justamente fora desse respeito - e é aí que
para este termina o mérito de Reinhold, e começa o de Schulze. Pois ainda que
isto fosse afirmado, um supremo princípio teorético, onde ideal é real, e onde
o pensar se rege de acordo com as suas próprias regras, como o defende
Reinhold, não é ainda porém um princípio absoluto de toda a filosofia - e isso
ainda e sempre devido à influência do princípio da contradição num respeito
teorético; e ainda que, para Fichte, uma vez extremado o pensamento de
Reinhold, o princípio da contradição até possa ser visto como teoreticamente
superior ao da contradição - como se demonstrará já de seguida -, o facto de
que a realidade do pensar seja teoreticamente também a sua idealidade não faz
ainda, por si só, que um princípio seja teoreticamente e praticamente, antes
apenas, quando muito, teoreticamente absoluto. Pois, convenhamos, o que para
Fichte é impossível - e importante provar - não é propriamente que a reflexão
vá mais além do que o princípio da contradição, mas sim - e aqui reside para
ele o erro de Reinhold - que essa suplantação se dê de maneira meramente
lógica, e, sobretudo, apenas num respeito teorético. Sim, pois nem a
ultrapassagem se dá para Fichte logicamente (pois, num respeito lógico, o
princípio da contradição é supremo e ordena sobre o da contradição, e só ao
nível da matéria não pode agir sobre este),23 nem para ele esta consideração da
superioridade da dimensão material do princípio da consciência poderia vir a
realizar-se num domínio teorético, mas sim e apenas no prático24 (não no
"blosse Thatsache", mas sim na "Thathandlung" (Fichte, 1794, p. 8) e sob uma
outra forma. E portanto, urgia isso sim que ideal e real fossem agora
distinguidos - por certo como defendia Schulze -, mas não para que o princípio
da contradição fosse deixado supremo no domínio teorético, ou para que não se
procurasse outro para o prático, como era pretensão deste, antes para que assim
se constatasse a necessidade de um princípio que fosse senhor de ambos os
domínios (fim da futura doutrina da ciência).
Ora, são dois, os importantes ensejos que são extraídos desta posição de Fichte
na sua "Recensão a Aenesidemus".
o primeiro, é que a suplantação do princípio da contradição num respeito
teorético não se dá apenas - ou não se dá de todo - logicamente. Bem pelo
contrário, em vista de que o princípio da contradição não pode agir sobre a
materialidade do princípio da consciência, por estar este além da sua
jurisdição, e de que o princípio da consciência é, a um tempo, o seu próprio
fundamento lógico (por não haver para este pensar uma outra forma que não a da
pura realidade), então, conclui Fichte, estas são provas suficientes de que o
princípio da consciência não pode suplantar teoreticamente o da contradição
senão impondo-lhe a sua materialidade - o que só acontece através da referida
materialização do pensar, isto é, da materialização da idealidade de si próprio
do pensar. E portanto, num respeito meramente lógico, o princípio da
contradição até será teoreticamente inultrapassável; mas se, como o propõe
Fichte, se pensasse que a idealidade é realidade (e a esta se subordina), então
o princípio da consciência deveria ser materialmente (material + idealmente)
considerado, e se assim fosse, o princípio da consciência de Reinhold seria por
certo o princípio supremo de toda a filosofia no domínio teorético; e então,
num respeito teorético, não num prático, seria também logicamente supremo.25
Mas o segundo ensejo, que decorre do primeiro, vai mais além do que este. Pois,
com efeito, o princípio da contradição é para Reinhold inferior ao da
consciência; e para Fichte de certo modo também, mas, como se viu, apenas
considerado teoreticamente, logicamente, não ainda praticamente, sem o que,
para Fichte, nenhum princípio verdadeiramente poderia ligar teorético e
prático, e afirmar-se absoluto. E porquê? Porque, justamente, só num respeito
prático, e apenas num respeito prático, é possível suplantar o princípio da
contradição - e não apenas pela amálgama de real e ideal, num respeito
teorético. Ou antes: só um princípio que fosse praticamente superior ao
princípio da contradição o poderia ser também, de modo inequívoco,
teoreticamente - e nunca um que, assim extremado, o pudesse suplantar
teoreticamente, mas apenas para se quedar sem validade no prático. E portanto,
diria Fichte, não só na proposta de Reinhold, mas nem mesmo na sua própria
anterior proposta se poderia ainda afirmar que idealidade e realidade
estivessem de facto relacionadas, ou que se deixasse ver já um princípio
teoreticamente e praticamente absoluto; e se a referida fusão fichteana entre
lógico e material tem de ser vista já, apesar de tudo, como um superior esforço
de pensar a questão teoreticamente, porém, ela é também a derradeira
comprovação da inépcia prática do princípio da consciência, e a
incontornabilidade do princípio da contradição continuava a ser um aviso à
necessidade de transferir a resolução da questão para uma outra esfera. Fichte
percebia assim, pois, a necessidade de tornar real um pensamento que, na sua
dimensão teorética, é apenas pura reflexão; e para si, urgia agora procurar na
génese do pensar em geral a explicação tanto da impossibilidade de resolução do
problema no teorético, como da necessidade da sua ulterior resolução numa outra
esfera: a esfera do prático. Pois, para Fichte, apenas aí, na transição entre
teorético e prático, se deve estabelecer a distinção entre lógico e real; e se
no teorético lógico e real são um só, então é no prático que deve ocorrer a
dissociação, e posterior reunião de ambos; pois se é função do prático
reconstituir os passos do teorético, a fim de o legitimar,26 então a distinção
entre lógico e real tem de reactivar uma tal ligação entre ambos.
Assim, o que isto por fim significava é que, justamente como Fichte, também
Reinhold cristalizara o processo de reflexão num pensar que dita leis a si
próprio, isto é, num círculo infalível cuja logicidade é também a sua
realidade; e isto era, admite Fichte, a consumação da dimensão teorética da
filosofia, por razões atrás aduzidas. Mas se assim era, diz Fichte, por outro
lado, ao se fechar sobre si própria na sua total inexpugnabilidade, a
absolutização deste princípio tinha de sacrificar uma outra coisa: a sua
possível transição para o domínio do prático, o que nestes moldes logo o
desregularia, conduzindo-o às oscilações interpretativas de que fala Schulze, e
com as quais Fichte se vê forçado a concordar. Isto é, o problema estava em
que, ao se absolutizar no teorético, o princípio da consciência também aí se
fechava permanentemente; ele tornava-se aí cativo de si próprio, daquilo que aí
pretensamente o tornara absoluto (a ligação ideal-real), e sem o que, noutro
domínio, seria apenas relativo, a ponto de o seu trânsito para o domínio
prático ser impossível. Fazê-lo (isto é, transitar com este princípio para o
domínio prático) envolveria, por conseguinte, uma de duas (im-)possibilidades:
ou renunciar à reflexão, ou impô-la à lei de um primado teorético da razão. Mas
a resposta a este pequeno (e falso) dilema é para Fichte tão óbvia que, ao
assumir a supremacia do princípio da consciência no teorético, Fichte retira-
lhe já, a um tempo, o carácter de verdadeira absolutidade no plano prático, e
nisso distancia-se definitivamente de Reinhold, mas também de Schulze. Ao
invés, pressupunha-se por um lado que o novo princípio, embora forjado no
teorético, sempre teria de visar o prático; e, por outro, que um novo princípio
sempre teria de renunciar a um primado exclusivamente teorético da razão (onde
não poderia deixar de confinar com o empírico),27 mas que não poderia deixar de
partir dele em direcção ao prático. O mesmo é dizer, pois, que havia que pensar
algo que transcendesse as meras leis da reflexão, que ultrapassasse a pura
especulação: algo que reconsiderasse o domínio do teorético, o superasse e
transitasse para o prático: algo para lá do princípio da consciência.
III O problema final de Reinhold enquanto um problema de linguagem. A
necessária possibilidade de um princípio da identidade
A decisiva acentuação deste problema e impulso para o que viria a ser a
Doutrina da Ciência, a saber, a invalidez do princípio da consciência e
subsequente necessidade de um outro princípio supremo da filosofia, surgem na
abordagem de Fichte à segunda objecção de Schulze (com a qual Fichte
concordaria, mas cuja resolução o afastaria também deste e para sempre marcaria
a sua futura filosofia).
No encadeamento da "Aenesidemus-Rezension", esta segunda dúvida surge na
esteira da primeira, e reza: "o princípio da consciência não é uma proposição
permanentemente determinada por si própria" (Fichte, 1794, p. 6), isto é, uma
proposição absolutamente autónoma e necessária.
Pois, diz Schulze, a eficácia de um princípio repousa sobre a reflexão dedicada
ao significado dos conceitos que o compõem, a saber, daquilo que, para
Reinhold, são as acções fundamentais do princípio da consciência: o diferenciar
e o referir.28 E assim era, com efeito; pois, para Reinhold, diferenciar e
referir são o veículo relacional dos próprios conceitos no seio do todo
sistemático da filosofia: são eles, pois, o próprio meio de comunicação, os
termos que ligam género e espécies, o princípio supremo e as subsequentes
partes do todo; e portanto, de diferenciar e referir não se exige senão que
sejam maximamente apodícticos, a bem de uma perfeita comunicação no seio do
sistema. Até porque, reitero, no seio de uma filosofia crítica, a eficácia de
tais relações, por actuar directamente sobre o espírito, tem de depositar toda
a sua eficácia sobre a própria comunicabilidade dessas relações: dir-se-ia,
pois, numa linguagem apodíctica, científica entre os componentes do todo
(Reinhold,_1790, pp. 241-2); de outro modo, "diferenciar" e "referir" seriam
meras palavras, não o desejado meio-termo entre palavra e acção, entre
logicidade e realidade e, como tal, a prova de leis que não se regem senão de
acordo consigo próprias.
Mas se, para Reinhold, o seu princípio era teoreticamente superior ao princípio
da contradição, então, conclui Schulze, ele prescindia dessa mesma vigência, e
assim perdia-se o rasto do que deveria ser um princípio materialmente
apodíctico, justamente devido à possível incorrecta determinação dos conceitos
que comporão esse mesmo princípio; e portanto, para Schulze, não só o princípio
da consciência não poderia ser superior ao da contradição, como, justamente por
isso, a reflexão gerada pelo significado dos conceitos que compõem o conceito
de consciência (se livre do da contradição) tão-pouco poderia ser apodíctica.
Ora, segundo vejo a questão - e assim a veria também Fichte na sua "Recensão"
-, o problema de Schulze com Reinhold passava a ter contornos mais profundos.
Pois o que estava aqui em questão não mais era apenas a absolutidade ou não do
princípio da consciência, antes a causa primeira disso mesmo, a saber, a muito
mais grave noção de que era impossível que o princípio da consciência de
Reinhold se coadunasse, isto é, se fizesse comunicar correctamente às suas
partes. Pois se o princípio da contradição é teoreticamente inferior ao da
consciência, então também os conceitos de diferenciar e referir de Reinhold não
podem ser apodícticos, na medida em que, ao não serem regulados pelo princípio
da contradição, então eles não têm para todos os homens o mesmo significado,
antes podem conter insuficientes ou excessivas características (Schulze,_1792,
pp. 53-55). Para Schulze e Fichte, aqui unos, diferenciar e referir não são
pois senão termos ocos e, como tal, uma invenção da subjectividade humana
visando trasvestir o fundamento real da coisa mediante o seu fundamento lógico;
e por conseguinte, também a relação comunicacional entre sujeito e objecto, até
aqui dependente de tais conceitos, vê-se deturpada no seio da consciência, pois
todos os conceitos anteriores e posteriores aos de diferenciar e referir - a
representação pura e empírica, o sujeito puro e empírico, o objecto puro e
empírico - oscilavam agora face à perspectiva de que o sistema pudesse ter
várias interpretações, de que o princípio em questão não fosse absoluto -isto
é, de que a filosofia não era ainda ciência. E se assim é, então - e este é o
ponto central da crítica fichteana a Reinhold - poder-se-á dizer que a objecção
de Schulze, e a subsequente crítica de Fichte a Reinhold fixavam-se no âmago da
teoria deste último, isto é, no justo ponto em que esta fazia assentar a sua
força e o seu destino enquanto tal: na determinação retroactiva dos conceitos
de género e de espécies e, por conseguinte, na impossibilidade de a correcta
ordenação desses conceitos culminar na ascensão do pensamento a um princípio
supremo de toda a faculdade de julgar filosófica, reinando, ele próprio, sobre
todas as relações entre as partes no todo; numa palavra, na impossibilidade de
uma linguagem puramente crítica, que reunisse todas as outras em si e não
deixasse lugar à dúvida e ao erro29
Isto é - e para resumir tudo a uma palavra -, Schulze (e Fichte) aludiam à
forte possibilidade de Reinhold cometer aqui o derradeiro pecado filosófico: a
saber, de o conteúdo do conceito crítico não ser consentâneo com a forma do seu
conceito, ou de a linguagem da filosofia de Reinhold contactar com a
experiência, e por conseguinte de não estar a filosofia deste à altura da vida,
cuja forma ela pretendia assumir (não logrando, pois, transitar do teorético
para o prático). E se, por certo, a crítica de Schulze terminava por aqui;
pois, para Schulze, isto era a prova de que o princípio de Reinhold não era
absoluto, e não podia existir um tal princípio, já para Fichte, que justamente
almejava esse propósito, esta incongruência, enquanto problema de linguagem,
significava algo ainda mais decisivo e que definitivamente o aparta daquele;
pois, para Fichte, isto, mais do que uma tal prova, era antes uma insuficiência
a suprir pela reflexão no seu caminho em direcção ao princípio que Schulze
negava.
Pois, por certo, os conceitos de sujeito, objecto e representação (no seu
diferenciar e referir-se recíprocos) residem efectivamente na consciência, "e a
proposição que a estabelece [é], enquanto proposição reflexiva, de acordo com a
sua validade lógica, uma proposição analítica" (Fichte, 1794, p. 7);30 e nisto,
Fichte concorda com Reinhold. Mas se este mesmo grau de analiticidade estava
ancorado numa linguagem inconstante, arbitrária, então esta, em vez de ser
prova de apodicticidade, revelava-se agora justamente o último obstáculo à
obtenção de um suplemento não-reflexivo indispensável a um princípio absoluto,
e a uma elevação da filosofia a ciência. E por conseguinte, diz Fichte, este
suplemento só seria possível na medida em que "a acção do próprio representar,
o acto da consciência [fosse] manifestamente uma síntese" (id.);31 o que, por
sua vez, apenas poderia significar que, para Fichte, Reinhold por certo levara
a filosofia ao máximo da sua analiticidade, mas não ainda da sua reflexividade,
e que, enquanto tal, enquanto proposição primeira do domínio teorético que era,
o princípio da consciência corresponde, nas suas relações com o todo do
sistema, ao máximo de comunicabilidade teorética: mas para uma sua transição
para o prático, era necessário ainda um outro grau, uma outra forma de
comunicabilidade (sintética), uma outra linguagem filosófica, só possível na
sua total originariedade de reflexão primeira. E por fim, se já Reinhold visara
com a sua analiticidade absoluta uma linguagem absoluta, também Fichte, ao
visar corrigir os contornos e os limites dessa mesma analiticidade, teria de
vir a inscrever esse esforço na procura do mesmo objectivo; o que no fundo
significava que a união entre analítico e teorético proposta por Fichte, bem
como o princípio da identidade absoluta (a doutrina da ciência), implicariam um
derradeiro esforço na aquisição de uma linguagem totalmente sistemática e
apodíctica, sem as incongruências a que a de Reinhold estava exposta.
Um tal esforço, e um tal problema, por si só motivos para um outro ensaio,
viria Fichte a retomá-los na obra imediatamente subsequente a esta, "Über den
Begriff der Wissenschaftslehre" (1794), e no ensaio "Von der Sprachfahigkeit
und dem Ursprung der Sprache" (1795), a conjunção dos quais por fim comprova
que a doutrina da ciência, todo o sistema do pensamento de Fichte tinham como
destinação serem elevados à condição de terminologia sistemática da filosofia,
e esta, por sua vez, à condição de um sistema apodíctico, uma dupla
cristalização que visava a consumação da faculdade de julgar filosófica.
1"Ueber den Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogenannten Philosophie,
als Einladungsschrift zu seinen Vorlesungen über diese Wissenschaft" (1794);
"Grundriβ des Eigenthümlichen der Wissenschaftslehre in Rüksicht auf das
theoretische Vermögen als Handschrift für seine Zuhörer" (1795); "Versuch einer
neuen Darstellung der Wissenschaftslehre" (1797).
2Vd., por exemplo, o prefácio a "Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre"
(1794).
3"Zurückforderung der Denkfreiheit von den Fürsten Europens, die sie bisher
unterdrückten. Eine Rede, Heliopolis, im letzten Jahre der alten Finsterniβ"
(1793).
4"Beitrag zur Berichtigung der Urtheile des Publikums über die französische
Revolution".
5São várias as versões sobre a data exacta em que Fichte alcançou o seu
princípio. As cartas deste a Flatt e Stephani, entre Novembro e Dezembro de
1793, são por si sós esclarecedoras, mas a estas juntamos também palavras de
Baggesen, datadas de 7 de Dezembro de 1793, e que situam essa descoberta nos
primeiros dias de Dezembro, porventura nos últimos de Novembro desse ano (vd.
Fuchs, Lauth, Schieche, 1978, 67-68).
6"Eigne Meditationen über Elementar-Philosophie". In: FICHTE, J. G.
Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Hg. von Reinhard
Lauth u. Hans Jakob, II 3, pp. 21-177, Stuttgart- Bad Cannstatt, 1965.
7"Aenesidemus, oder über die Fundamente der von dem Hrn. Prof. Reinhold in Jena
gelieferten Elementar- Philosophie. Nebst einer Vertheidigung des Skepticismus
gegen die Anmaβungen der Vernunftkritik", in Fichte, 1971, Vol. I, pp.1-25.
8Se menciono estes dois, não é porque eles sejam indelevelmente os mais
importantes, e muito menos porque eles sejam os dois únicos momentos
prenunciadores do subsequente edifício teórico de Fichte; mas apenas porque
eles são aqueles que lhe são imediatamente antecedentes, e portanto aqueles que
mais nitidamente dão a entender a premência do tema. A estes, porém, se poderia
juntar um outro, que não só tão bem mereceria o epíteto de possível versão
primordial de uma doutrina da ciência, como nele se prefigura aliás o problema
de que viria a nascer toda a questão da doutrina da ciência. Refiro-me à obra
"Kritik aller Offenbarung", de 1792, a qual, publicada a par de "Die Religion
innerhalb der Grenzen der bloβen Vernunft", de Kant, e também aliada à crítica
reinholdiana, suscitariam, cada qual à sua maneira, um conflito com a ortodoxia
supernaturalista de Tübingen (Storr, Flatt ou Süβkind): um conflito entre
religião e filosofia, ou a pretensa supremacia exegética de cada uma delas
sobre a outra, que muito influenciaria a subsequente dimensão do problema (na
procura de um princípio absoluto da filosofia, que aqui nos ocupará), e que
decisivamente influenciaria todos os envolvidos, e não menos também Schelling,
Hölderlin ou Hegel. Não que as duas obras citadas não tenham propósitos
diferentes; a saber, Kant visa filtrar os textos do Evangelho que recaem no
raio de análise da razão humana e, com isso, discernir quais as doutrinas do
Cristianismo que têm ou não importância para a determinação da vontade – o que
o leva a aceitar de facto a revelação, ou os milagres, mas a arrumá-los no
compartimento daquelas manifestações que, não podendo ser negadas, não podem
porém evidenciar causalidade, e por isso não seriam racionais. Ao passo que
Fichte, assumindo o questionamento kantiano, vai porém mais além na sua Kritik,
inquirindo sobre os pressupostos racionais em que tais manifestações não-
causais podem sequer ser admitidas, e não apenas imediatamente rejeitadas
enquanto conhecimento supra-sensível (por conseguinte, numa análise de índole
mais reinholdiana, do que kantiana). Mas, sobretudo, interessa salientar que
ambas as obras, já num esforço incessante de clarificação das linhas limítrofes
entre filosofia e restantes domínios do saber, propõem-se saber como é possível
justificar as doutrinas do cristianismo nos limites daquilo que é
filosoficamente comprovável – e por conseguinte, daquilo que são os limites da
razão humana; isto é, procurava medir-se o princípio da razão em relação à
crença, e, se possível, unir Vernunftreligion à dita Offenbarungsreligion. E
portanto, este mesmo questionamento, este gesto teórico da Kritik de Fichte
pode ser, já por si, discernível como uma primeiríssima forma do que viriam a
ser, no decorrer do seu pensamento, os temas propostos também na "Recensão" e
nas "Meditações": um questionamento aos limites do conhecimento filosófico, um
questionamento à verdadeira forma da filosofia enquanto ciência e, por
conseguinte, uma indagação à possibilidade de um princípio absoluto de toda a
filosofia.
9Sobre o tema em questão, não havendo muita, há porém muito importante e
interessante bibliografia. Desta destaco: BREAZEALE, D. "Fichte's «Aenesidemus»
Review and the Transformation of German Idealism". The Review of Metaphysics,
Vol. 34, Nr. 3, pp. 545-568, 1981; BAUM, G. "Aenesidemus oder vom Satz vom
Grunde. Eine Studie zur Vorgeschichte der Wissenschaftstheorie". In:
Zeitschrift für philosophische Forschung, Bd. 33, H. 3, 1979, pp. 352-370;
WOOD, A. W. "Fichte's philosophical revolution". Philosophical Topics, Vol. 19,
Nr. 2, Nineteenth-Century Philosophy, pp. 1-28, 1991; DRUET, P.-Ph. "La
recension de l‘«Énésidème» par Fichte". Revue de Métaphysique et de Morale, 78e
Année, Nr. 3, pp. 363-384, 1973; LAUTH, Reinhard. "Genèse du «Fondement de
toute la Doctrine de la Science» de Fichte a partir de ses «Méditations
personnelles sur l'elementarphilosophie". Archives de Philosophie, Vol. 34, Nr.
1, pp. 51- 79, 1971; FINCHAM, R. "The Impact of Aenesidemus upon Fichte and
Schopenhauer". Pli. The Warwick Journal of Philosophy, 10, pp. 96-126, 2000,
entre outras que ou abordam esse mesmo tema, ou o afloram superficialmente.
Para um estudo compreensivo do tema, porém, recomendam-se as inevitáveis obras
de Henrich (2004, 1. Band) e Frank (1998).
10Palavras de Fichte em "Über den Begriff": "Der Verfasser ist bis jetzt innig
überzeugt, dass kein menschlicher Verstand weiter als bis zu der Grenze
vordringen könne, an der Kant, besonders in seiner Kritik der Urtheilskraft,
gestanden [...]" (Fichte, 1794, p. 30) As citações de Fichte, Reinhold e
Schulze presentes neste texto são, sem excepção, da minha autoria e
responsabilidade. Mas, porque "Über den Begriff" e a "Aenesidemus-Rezension"
foram publicadas no mesmo ano (1794), cuidei que, sobretudo ao citar a
primeira, menos frequente, esta seja precedida pela designação expressa da obra
citada, a fim de evitar confusões com a sua contemporânea "Recensão".
11Daí que Fichte conclua, em "Über den Begriff", a respeito da frase da
anterior nota: "[...] die er uns aber nie bestimmt, und als die letzte Grenze
des enlichen Wissens angegeben hat" (Fichte, 1794, p. 30). A opinião de Fichte,
aliás, não só coincidia com a de Reinhold, como seria ainda secundada, por
exemplo, por Schelling, em "Über die Möglichkeit einer Form der Philosophie
überhaupt" (1794) e "Vom Ich als Princip der Philosophie" (1795), e no texto
"Das älteste Systemprogramm des deutschen Idealismus", atribuído a Hölderlin,
Schelling ou Hegel.
12Palavras de Fichte na "Recensão": "[...] dass selbst bis jetzt die Vernunft
ihren grossen Zweck, Philosophie als Wissenschaft zu realisiren, noch nicht
erreicht haben müsse [...]" (Fichte, 1794, p. 3).
13Sobre este conflito, que é também a fonte primária do conflito como o expomos
em Fichte, vd. as notáveis obras de Henrich_(2004,_1._Band), Frank_(1998) ou
Bondeli_(1995).
14 Reinhold_(2003,_Vol._I).
15"Daβ die Formen der Vorstellungen, so wie sie in der Kritik d. V. aufgestellt
werden, auf keinen allgemeingeltenden Grundsatz zurückgeführt sind; und daβ in
diesem Werke von keinem ersten Grundsatze der Wissenschaft des
Erkenntnisvermögens, noch weniger von einem ersten Grundsatze der Philosophie
überhaupt, die Rede sei, welcher die Elementarphilosophie unmittelbar und durch
dieselbe die von ihr abgeleitete theoretische und praktische Philosophie
mittelbar begründen soll, weiβ jeder Leser derselben" (Reinhold, 1790, pp. 184-
185).
16Entre muitas outras referências, algumas delas até por testemunhos de vozes
terceiras, destaco esta pela voz do próprio Fichte, em "Über den Begriff": "Er
ist eben so innig überzeugt, dass nach dem genialischen Geiste Kants der
Philosophie kein höheres Geschenk gemacht werden konnte, als durch den
systematischen Geist Reinholds; und er glaubt den ehrenvollen Platz zu kennen,
welchen die Elementar-Philosophie des letzteren bei den weitern Vorschritten,
die die Philosophie, an wessen Hand es auch sey, nothwendig machen muss,
dennoch immer behaupten wird" (Fichte, 1794, p. 31).
17 Schulze_(1911).
18Vd. Carta a Vloemer, de Novembro de 1793: "[...] dazu kam, daβ ich gleich
darauf durch die Lectüre eines entschloβnen Skeptikers zu der hellen
Ueberzeugung geführt wurde, daβ die Philosophie vom Zustand einer Wiβenschaft
noch weit entfernt sey, u. genöthigt wurde mein eignes bisheriges System
aufzugeben, u. auf ein haltbareres zu denken." (in Fichte, Gesamtausgabe, III
2, Nr. 167a, p. 14). Cf. ainda a carta a Flatt, de Novembro ou Dezembro de
1793, in Fichte, Gesamtausgabe, III 2, Nr. 168a, p. 18.
19No original alemão de Fichte: "1) Dieser Satz sey kein absolut erster Satz;
denn er stehe als Satz und Urtheil unter der höchsten Regel alles Urtheilens,
dem Satze des Widerspruchs."; "2) Der Satz des Bewusstseyns sey kein
durchgängig durch sich selbst bestimmter Satz."; "3) [Endlich sey] der Satz des
Bewusstseyns weder ein allgemein geltender Satz, noch drückte er ein Factum
aus, das an keine bestimmte Erfahrung und an kein gewissen Raisonnement
gebunden sey." Destas, e por motivos de concisão, tratarei apenas as duas
primeiras, por me parecer que em certa medida elas esclarecem já a terceira
dúvida.
20Palavras de Fichte na recensão: "Die Reflexion über den Satz des Bewusstseyns
steht ihrer Form nach unter dem logischen Satze des Widerspruchs, so wie jede
mögliche Reflexion" (Fichte, 1794, p. 5).
21"[...] man könne über die Gesetze des Denkens doch nicht anders denken, als
nach diesen Gesetzen" (Fichte, 1794, p. 5).
22"Da aber das dadurch Begründete nur als Gedanke existirt, so solle man der
logische Grund eines Gedankens sey zugleich der Real- oder Existential-Grund
dieses Gedankens" (Fichte, 1794, p. 13).
23"Die Reflexion über den Satz des Bewusstseyns steht ihrer Form nach unter dem
logischen Satze des Widerspruchs, so wie jede mögliche Reflexion; aber die
Materie dieses Satzes wird durch ihn nicht bestimmt" (Fichte, 1794, p. 5).
24Sobre este "Primat der praktischen Vernunft über die theoretische" (Fichte,
1794, p. 22), ele vem já como resultado comum do inicialmente referido diálogo
entre Die Reigion innerhalb der Grenzen der bloβen Vernunft, de Kant, e a
Kritik aller Offenbarung, de Fichte. Sobre este ponto, cf. Henrich_(2004,_pp.
775-805).
25"Reinholds Ich stelle mir vor ist das erste der Theoretischen Philosophie."
Vd. Fuchs,_Lauth_e_Schieche_(1978,_p._68).
26"[...] ferner, wie durch die Vorstellung dieses an sich hyperphysischen
Strebens durch das intelligente Ich, im Absteigen über die Stufen, über welche
man in der theoretischen Philosophie aufsteigen muss, eine praktische
Philosophie entstehe, ist hier der Ort nicht, zu zeigen" (Fichte, 1794, p. 23).
27"Der Satz des Bewusstseins, an die Spitze der gesammten Philosophie gestellt,
gründet sich demnach auf empirische Selbsbeobachtung, und sagt allerdings eine
Abstraction aus" (Fichte, 1794, p. 8).
28"Die Vorstellung wird im Bewuβtsein vom Vorgestellten und Vorstellenden
unterschieden und auf beide bezogen" (Reinhold,_1790, p. 113).
29Uma sentença de morte que Fichte prenuncia logo no início da "Recensão", com
as palavras "Wie nun, wenn eben die Unbestimmtheit und Unbestimmbarkeit dieser
Begriffe auf einen aufzuforchenden höhern Grundsatz, auf eine reale Gültigkeit
des Satzes der Identität und der Gegensetzung hindeutete; und wenn der Begriff
des Unterscheidens und des Beziehens sich nur durch die der Identität und des
Gegentheils bestimmen liesse?" (Fichte, 1794, p. 6), e que conclui do seguinte
modo: "[...] ein Vorstellungs-Vermögen, welches nicht nach den Grundsätzen der
Identität und des Widerspruchs urtheilte, ist für uns gar nicht denkbar [...]"
(Fichte, 1794, p. 16).
30"[...] und der Satz, der sie aufstellt, ist als Reflexions-Satz, seiner
logischen Gültigkeit nach, allerdings ein analytischer Satz" (Fichte, 1794, p.
7).
31"[...] Aber die Handlung des Vorstellens selbst, der Act des Bewusstseyns,
ist doch offenbar eine Synthesis, da dabei unterschieden und bezogen wird; und
zwar die höchste Synthesis, und der Grund aller möglichen übrigen" (Fichte,
1794, p. 7).