Baterias de Filme Fino de Papel
1. Introdução
Tanto numa perspectiva ambiental como económica, é inevitável o crescimento das
energias renováveis no futuro próximo. Intrinsecamente aliado a esse
desenvolvimento está também o dos métodos de armazenamento da energia. Estes
tenderão a ser mais eficientes, fiáveis, económicos e benignos ambientalmente.
As baterias fazem parte da imensa lista de dispositivos de armazenamento de
energia. A aptidão para armazenar directamente electricidade (por exemplo
através de bobinas supercondutoras) está actualmente bastante limitada, pelo
que geralmente se recorre à conversão de outra forma de energia em
electricidade. Os processos mais usuais geram energia eléctrica a partir de
energia potencial, cinética, térmica ou química. Destes, os sistemas
electroquímicos apresentam uma vantagem fundamental: a conversão entre energia
química e eléctrica ocorre numa só etapa, maximizando a eficiência do processo.
As baterias são dispositivos que convertem a energia química armazenada nos
seus materiais activos em energia eléctrica, por meio de reacções químicas [1].
Existem diversos tipos de células electroquímicas de armazenamento de energia,
sendo classificados de acordo com as reacções químicas que tomam lugar e pelas
suas características estruturais e geométricas. A elevada variedade de sistemas
existentes reflecte-se no elevado número de aplicações possíveis para os
sistemas electroquímicos [2].
De acordo com o seu princípio de funcionamento, as baterias são caracterizadas
em primárias (não recarregáveis, nas quais as reacções electroquímicas
associadas são irreversíveis) e secundárias (podem ser recarregadas diversas
vezes, fenómeno associado com a reversibilidade das reacções químicas). Nas
baterias recarregáveis, após a sua utilização, a aplicação de um campo
eléctrico externo força a ocorrência das reacções inversas às que ocorrem
espontaneamente durante a descarga. Os reagentes necessários às reacções
electroquímicas retornam à sua forma inicial, o que significa que a bateria
está apta a fornecer electricidade novamente.
Existe ainda uma terceira subclasse de baterias, as células de combustível
(fuel cells). Estes dispositivos, contrariamente aos dois casos anteriores,
operam durante a alimentação de um combustível. Enquanto o seu fluxo não
cessar, as células de combustível produzem electricidade continuamente. Na
configuração mais simples, os reagentes gasosos utilizados são o oxigénio e o
hidrogénio, produzindo-se água e calor. Num futuro próximo, espera-se que este
fenómeno seja um dos grandes impulsionadores da reforma energética de que a
actual sociedade carece [3].
As baterias sofreram, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, avanços
tecnológicos progressivos que possibilitaram um aumento da sua densidade
energética, segurança e tempo de vida.
Na electrónica portátil, também a massa do dispositivo é crucial. Esta
indústria tem evoluído para uma crescente miniaturização dos dispositivos ao
que está associado um decréscimo das suas exigências energéticas. Tal viabiliza
que possam ser alimentados por fontes de alimentação (nomeadamente por baterias
de filme fino) que até agora se mostravam incapazes de suprir energeticamente
aparelhos de maior consumo.
Também na vertente biomédica, as baterias de pequenas dimensões representam
cada vez mais uma alternativa cativante para suprir as necessidades energéticas
de inúmeros dispositivos wireless autónomos, tais como pequenos implantes
médicos ou aparelhos de audição [4]. Nestas aplicações, cerca de metade do
volume dos dispositivos diz respeito ao armazenamento de energia, tornando-se
portanto um dos aspectos que urge optimizar.
Independentemente da aplicação, é evidente a necessidade de integrar
eficientemente as baterias com os restantes componentes electrónicos. Neste
aspecto, as tecnologias das baterias recarregáveis convencionais não são
suficientemente atractivas. Adicionalmente, as baterias tradicionais contêm
electrólitos líquidos que, normalmente, apresentam na sua constituição
solventes orgânicos inflamáveis e bastante voláteis. A descoberta de
electrólitos sólidos para aplicações em baterias melhora a segurança do
dispositivo e previne o risco de derrame do electrólito líquido [4-7]. Caso a
tecnologia necessária ao fabrico das baterias seja compatível com a de
microelectrónica (ex: deposição de filmes finos através de técnicas como a
pulverização catódica ou a evaporação térmica), estas são passíveis de
integração nos próprios circuitos electrónicos. Consequentemente, as fontes de
alimentação podem ser produzidas durante a concepção do circuito. Tal permite a
auto-alimentação dos dispositivos, que adquirem um tempo de vida longo. Assim,
prevê-se no futuro próximo um papel marcante das baterias recarregáveis de
estado sólido (rechargeable all-solid-state batteries) em dispositivos
portáteis autónomos [2].
A principal inovação dos dispositivos concebidos neste trabalho é a utilização
de papel como suporte físico e também como elemento activo do dispositivo,
actuando como o electrólito sólido da bateria.
O uso de celulose (e/ou seus derivados) como separador em baterias é referido
em algumas publicações. Porém, esses dispositivos requerem geralmente a
introdução de soluções electrolíticas para a sua activação ou uma prévia
impregnação com soluções salinas [8-12]. Estes procedimentos visam a
incorporação dos iões necessários para a ocorrência de reacções electroquímicas
durante a utilização da bateria. Os dispositivos desenvolvidos funcionam
totalmente no estado sólido e sem necessidade de incorporação de outros
compostos após o processo de fabrico do papel.
Os electrólitos sólidos, tal como os líquidos, devem apresentar características
de bons condutores iónicos e maus condutores electrónicos, de modo a permitirem
a mobilidade iónica mas não a electrónica, entre o ânodo e o cátodo. Desta
forma, os iões atravessam o electrólito enquanto os electrões são forçados a
percorrer um circuito externo, tornando possível o aproveitamento do fluxo de
electrões (corrente) por parte de uma carga externa à bateria.
1.1 - Baterias de papel
O papel é um recurso pouco dispendioso e abundante, o que aliado à baixa
quantidade de material necessária no fabrico dos eléctrodos torna as baterias
de papel atraentes do ponto de vista económico, tecnológico e ambiental.
As baterias de filme fino tradicionais apresentam uma elevada percentagem,
tanto em massa como em volume, de materiais passivos do ponto de vista
electroquímico (nomeadamente o suporte físico e o encapsulamento) relativamente
aos elementos activos (electrólito, cátodo e ânodo). Consequentemente, a
densidade energética (Wh/Kg ou Wh/m3) dos dispositivos é bastante baixa, pois a
percentagem de elementos não activos pode atingir o valor de 70% em peso e
ainda superior em volume [13]. Nas baterias em papel, uma vez que a matriz não
é somente o electrólito sólido do dispositivo mas também o seu suporte físico,
o teor de materiais inertes é drasticamente reduzido.
Nos dispositivos desenvolvidos, as fibras das faces laterais da matriz são
revestidas com materiais apropriados para a formação do cátodo e do ânodo
(fig.1). O campo eléctrico gerado pelos eléctrodos é o impulsionador da
migração iónica no interior da matriz.
Fig. 1 'a) Esquema das baterias de papel e b) fotografia de baterias
produzidas.
Os eléctrodos, que podem ser formados por uma ou várias camadas de materiais
sobrepostas, são depositados por técnicas de filmes finos, com especial relevo
para a pulverização catódica, evaporação térmica resistiva e assistida por
canhão de electrões. Os dispositivos estão especialmente vocacionados para
aplicação directa em circuitos electrónicos flexíveis em papel e podem mesmo
ser construídos durante as etapas de concepção do circuito electrónico.
Os materiais constituintes dos eléctrodos têm de ser cuidadosamente
equacionados, considerando-se diversos factores como a série electroquímica
[14], a facilidade de deposição, a abundância e o valor monetário, o interesse
tecnológico, e ainda os regulamentos governamentais, os custos ambientais e as
implicações para a saúde humana dos materiais em questão.
É de destacar a simplicidade de processamento da estrutura com os eléctrodos de
Cobre (cátodo) e Alumínio (ânodo), uma vez que ambas as camadas podem ser
efectuadas por evaporação térmica. Esta foi a estrutura de referência neste
trabalho, originando dispositivos com apenas dois filmes finos que atingem
tensões consideráveis (0,5 a 0,6V).
Neste trabalho, foram construídas baterias em papel normal de impressão
(branco), em papel vegetal de arquitecto (bastante menos espesso) e também em
papel reciclado. Pretendeu-se inferir acerca do material mais viável como
electrólito.
A flexibilidade do dispositivo final permite-lhe suportar constrangimentos
geométricos muito acentuados e como tal adaptar-se a diversas aplicações, sem
perda de propriedades eléctricas. Também o facto de o papel actuar como
electrólito sem quaisquer tratamentos é, obviamente, essencial. Adicionalmente,
este tipo de matrizes apresenta na sua constituição razoáveis teores de
espécies iónicas que tornam possível o fluxo de iões no electrólito. As
espécies iónicas são introduzidas durante o processo de fabrico da indústria
papeleira, na forma de aditivos e outro tipo de pastas.
De referir que, dependendo do papel em questão, a sua composição química é
variável e a própria estrutura pode ser mais ou menos compacta e permeável ao
movimento das cargas, alterando por completo o comportamento electroquímico da
bateria.
A versatilidade dos dispositivos fabricados torna o seu campo de aplicação
bastante vasto, nomeadamente na electrónica flexível e descartável, permitindo
com a sua integração uma alimentação energética auto-sustentável de diferentes
sistemas electrónicos integrados. Esta potencialidade torna-se actualmente
ainda mais relevante do ponto de vista tecnológico após o desenvolvimento
recente, no CENIMAT, dos displays electrocrómicos em papel e também dos
transístores de papel [15, 16]. Os circuitos/dispositivos electrónicos
constituídos por estes elementos carecem de uma fonte de alimentação auto-
sustentável que possa fazer parte integrante do dispositivo, tornando-os mais
facilmente adaptáveis a aplicações reais, como por exemplo etiquetas
inteligentes.
2. Procedimento experimental
Como electrólito sólido foram estudados diferentes tipos de papel. Os estudos
recaíram maioritariamente sobre papel normal de impressão (Navigator Universal,
80g/m2), papel vegetal (Renova VA/A, 38g/m2) e papel reciclado (100% Reciclado
Cópia 2000, 80g/m2).
2.1 Deposições de filmes finos
Os filmes finos foram depositados através de sistemas de Evaporação Térmica
Resistiva, Evaporação Térmica assistida por Canhão de Electrões e de
Pulverização Catódica por Radiofrequência assistida por Magnetrão. Estas três
técnicas físicas de deposição de vapores permitem a deposição de filmes de
elevada pureza à temperatura ambiente, pelo que não ocorre a degradação do
substrato.
A Evaporação Térmica Resistiva permitiu a evaporação de materiais de elevada
pureza (>99,99%), inicialmente na forma de pó ou de fio (fig. 2 e 3).
Fig. 2 ' Esquema da câmara de deposição. O material a depositar encontra-se
inicialmente num cadinho através do qual circula uma corrente eléctrica. As
elevadas temperaturas atingidas causam a vaporização do material e a sua
subsequente deposição no interior da câmara. 1) Cadinho com pó do material, 2)
porta-substratos, 3) amostras, 4) medidor de espessuras, 5) campânula de vidro,
6) partículas vaporizadas.
Fig. 3- Cadinho de tungsténio com fluoreto de lítio e alumínio.
As deposições obedeceram às condições apresentadas na tabela 1, tendo sido
obtidos filmes finos metálicos (como cobre e alumínio) e suas ligas, óxidos
metálicos (como o de tungsténio ou vanádio), ligas ternárias (como fluoreto de
lítio e alumínio), entre outros compostos.
Tabela 1 - Condições da Evaporação Térmica Resistiva.
Tal como a evaporação térmica resistiva, a Evaporação Térmica assistida por
Canhão de Electrões é efectuada em condições de alto vácuo. Este sistema
permite a obtenção de películas de elevada pureza, tendo sido utilizado na
deposição de filmes finos metálicos de ouro, prata e alumínio. As condições de
deposição dos filmes finos são apresentadas na tabela 2.
Tabela 2 'Condições de Deposição.
Recorrendo à Pulverização Catódica de Radiofrequência assistida por Magnetrão
depositaram-se óxidos condutores e transparentes (TCOs ' Transparent Conductive
Oxides), tendo sido depositados Óxido de Zinco dopado com Gálio (GZO) e Óxido
de Índio dopado com Zinco (IZO).
Para a deposição de IZO, utilizou-se um alvo de elevada pureza (99,9%) de óxido
de índio e óxido de zinco numa proporção de 87:13 (p/p). Na deposição de GZO,
utilizou-se um alvo de elevada pureza (99,995%) de óxido de zinco e óxido de
gálio (Ga2O3) numa proporção de 95:5 (p/p). Na tabela 3 apresentam-se as
condições das deposições.
Tabela 3 'Condições de deposição de TCOs.
2.2 Caracterização dos filmes finos
Na caracterização dos filmes finos depositados efectuaram-se ensaios de
perfilometria e de microscopia electrónica de varrimento.
Sendo a superfície do papel bastante irregular, acrescentou-se em todas as
deposições um vidro de forma a caracterizar e comparar mais convenientemente a
espessura dos filmes depositados. Utilizou-se um perfilómetro Veeco Dektak3,
com uma ponta de diamante de 12,5μm de raio e uma força ajustável de 10 a 50mg.
Com uma resolução máxima de 10 Å na vertical numa faixa entre 100 Å a 655k Å, o
varrimento horizontal pode ser ajustado entre 50μm e 30mm.
A análise das amostras por microscopia electrónica de varrimento foi efectuada
recorrendo a um Microscópio Electrónico de Efeito de Campo, modelo S-4100 da
Hitachi, com potencial de aceleração de 500V a 30kV e resolução de 15 Å.
Utilizou-se também um equipamento mais recente, da mesma marca, modelo SU-70.
As imagens foram obtidas utilizando um ângulo de inclinação de 40º. As amostras
de papel foram previamente revestidas com Carbono.
2.3 Caracterização eléctrica das baterias
Para a caracterização eléctrica das baterias foram efectuados ensaios de Curvas
I-V, Voltametria Cíclica e Descargas com Resistências de valor conhecido.
Recorreu-se ainda à técnica de Espectroscopia de Infravermelhos por
Transformada de Fourier num substrato de papel vegetal de modo a analisar o
tipo de ligações presentes no papel.
A partir das Curvas I-V (ensaios de voltametria de varrimento linear),
determinou-se a corrente de curto-circuito (Isc) e a tensão de circuito aberto
(Voc), definida como a tensão de equilíbrio na ausência de ligações eléctricas
aos eléctrodos. Estes valores correspondem ao máximo de corrente e de tensão
fornecidos pelas baterias.
Nas medições de voltametria de varrimento linear, a imposição de limites de
varrimento e do degrau entre as medições (step size) são os cuidados a ter.
Efectuaram-se ensaios entre os limites de -1V e +1V, com uma velocidade de
varrimento de 55mV/s. Para a determinação de curvas I-V recorreu-se a um
electrómetro ' Keithley 617 Programmable Electrometer ' acoplado a uma placa de
aquisição de dados ' National Instruments GPIB. Os ensaios foram controlados
através do software K-curves, desenvolvido no CENIMAT.
Pretendendo-se averiguar o efeito das condições ambientais no desempenho dos
dispositivos, foram efectuados diversos testes nos quais se monitorizou a
corrente de curto-circuito do dispositivo em função do tempo. Foram realizados
estudos em vácuo e com atmosferas ricas em N2, O2, e CO2, e testou-se também o
efeito da variação da temperatura e da humidade no dispositivo.
A voltametria cíclica foi empregue no sentido de avaliar a estabilidade e a
durabilidade das amostras. Nestes testes recorreu-se ao potenciostato Reference
600 da Gamry Instruments. Durante as medições, os eléctrodos de referência e
auxiliar encontraram-se curto-circuitados, pelo que a diferença de potencial
imposta pelo equipamento está referenciada ao próprio ânodo da bateria e não a
um eléctrodo de referência.
Na fig. 4a encontra-se esquematizado o circuito utilizado no estudo da descarga
dos dispositivos (1) através de uma resistência fixa (2). Conectou-se o
terminal negativo dos dispositivos a uma resistência (2) de valor conhecido.
Ligou-se o terminal positivo do dispositivo à massa, sendo a carga (2)
conectada à entrada inversora do electrómetro (3). A entrada não-inversora
encontra-se ligada à massa, pelo que se cria uma massa virtual entre a bateria
e a resistência. Consequentemente, o circuito construído é idealmente
equivalente ao do esquema apresentado na fig. 4b.
Fig. 4 ' Esquema do circuito de descarga.
Esta configuração permite a monitorização da corrente i que passa no circuito.
Um computador (4) conectado a uma placa de aquisição de dados (Global Labs
DT2812a) regista o ensaio experimental, permitindo assim monitorizar a variação
da corrente no circuito em função do tempo de descarga e também a diferença de
potencial aos terminais da bateria. A multiplicação da corrente pela duração do
ensaio representa a capacidade (energia armazenada) do dispositivo
electroquímico.
Os ensaios de espectroscopia de infravermelhos por transformada de Fourier
(FTIR) foram efectuados no equipamento Nicolet 6700 FT-IR da Thermo Electron
Corporation. Os testes foram realizados em modo de transmitância, numa gama de
números de onda entre 400cm-1 e 4000cm-1. Um espectro foi obtido numa amostra
de papel vegetal em condições ambientes (40% humidade relativa, 24ºC).
Subsequentemente, a mesma amostra foi mantida numa atmosfera relativa de 80%
durante cerca de 10 minutos, sendo em seguida colocada no interior do
espectrofotómetro para nova análise.
3. Resultados e discussão
3.1. Espessura e densidade dos papéis utilizados
Na tabela 4 são apresentadas a espessura e a densidade dos papéis utilizados.
Tabela 4 ' Espessura e densidade das matrizes utilizadas.
A densidade das matrizes foi calculada a partir da gramagem e da espessura do
papel. O papel vegetal é o menos denso e o menos espesso dos três tipos de
papel testados, o que pode facilitar a migração iónica através do papel.
3.2. Análise de Microscopia Electrónica de Varrimento
As figuras 5 e 6 mostram a morfologia superficial dos diferentes tipos de
papel.
Fig. 5- Imagem de SEM obtida com um ângulo de inclinação de 40º de: a) Papel
Normal, b) Papel Reciclado.
Fig. 6 'Imagem de SEM obtida com um ângulo de inclinação de 40º de: a) Papel
Vegetal com ampliação de 600x, b) Papel Vegetal com ampliação de 10000x.
A morfologia do papel normal de impressão é bastante irregular, conforme se
observa na fig. 5a. Este papel apresenta na sua constituição diversos
compostos, o que poderá ser uma vantagem na utilização como electrólito sólido
em baterias ' devido à presença de espécies iónicas. No entanto, é de salientar
que os iões podem não estar disponíveis para a condução se forem pouco móveis
na matriz de fibras. O papel reciclado (fig. 5b) é morfologicamente muito
semelhante ao papel branco.
O papel vegetal (fig. 6) apresenta um revestimento lustroso que cobre toda a
superfície. Por outro lado, é visível na imagem de maior ampliação que as
fibras são formadas por aglomerados de nanofibras. Esse facto é responsável por
uma maior porosidade, o que potencia a absorção de maior quantidade de soluções
(caso das impregnações) ou de agentes atmosféricos (como o vapor de água), bem
como uma melhor difusão de cargas no interior da matriz. Estes factores,
aliados à menor espessura da matriz, podem facilitar a sua aplicação como
electrólitos sólidos em baterias.
A imagem de SEM da fig. 7 representa a morfologia da superfície do papel normal
com um revestimento de 600nm de SiO e Cu.
Fig. 7- Imagem de SEM de Papel Normal revestido com diferentes camadas de
filmes finos.
Embora a superfície do papel seja bastante rugosa, os filmes depositados são
contínuos e uniformes, resultando num bom revestimento das fibras superficiais
do papel. Devido à irregularidade da superfície da matriz, a área de interface
entre o papel (electrólito) e os eléctrodos é maximizada, pelo que o
comportamento dos dispositivos é optimizado.
3.3. Caracterização Eléctrica dos Dispositivos
O dispositivo constituído por Cobre / Papel / Alumínio é o mais simples e fácil
de produzir. Foram escolhidos estes eléctrodos por terem demonstrado resultados
bastante satisfatórios e por serem abundantes na natureza, baratos e
ecológicos.
A fig. 8 mostra a curva I-V desta estrutura com uma área de 10cm2.
Fig. 8 ' Curva I-V de uma amostra em papel vegetal com ânodo de Al e cátodo de
Cu e 10cm2 de área superficial.
Os resultados obtidos indicam um potencial de circuito aberto (VOC) de -0,60V e
corrente de curto-circuito (ISC) de 1x10-6A.
O valor da potência, obtido através dos valores de corrente e de tensão da
figura anterior, indica um máximo de 0,21µW obtido para uma tensão de 0,35V e
uma corrente de 5,92x10-7A.
Partindo desta estrutura, estudou-se o efeito da espessura dos materiais dos
eléctrodos, o efeito da introdução de uma camada extra de iões de lítio
(LiAlF4), impregnações do papel com soluções salinas e a influência do tipo de
eléctrodos.
3.3.1. Efeito da espessura dos materiais de eléctrodo
Nesta análise apenas se estudaram estruturas com o ânodo de Alumínio e o cátodo
de Cobre (tabela 5). A tensão de circuito aberto (Voc) e a densidade de
corrente de curto-circuito (Jsc) foram obtidos a partir dos dados das curvas I-
V. Os resultados obtidos para os três tipos de papel estudados encontram-se
resumidos na tabela 5.
Tabela 5-Efeito da espessura dos Eléctrodos.
Os resultados indicam que a espessura dos eléctrodos não influencia
significativamente o Voc nem a Jsc das baterias, especialmente nos dispositivos
produzidos em papel vegetal. Depreende-se que é apenas necessário garantir uma
espessura suficiente para que o papel fique revestido com filmes pouco
resistivos e sem quebras (sem zonas isoladas), permitindo uma recolha eficaz
das cargas. A densidade de corrente de curto-circuito é bastante superior no
papel vegetal. De forma geral, os resultados indicam que as baterias feitas com
papel vegetal apresentam as melhores características eléctricas (Voc e Jsc),
enquanto as amostras em papel reciclado as piores. Este facto deve-se
provavelmente ao tipo de iões contidos nos diferentes tipos de papel e a outros
factores como a sua espessura e densidade.
3.3.2. Introdução de fonte de iões
Na tentativa de analisar o efeito da adição de uma fonte de iões extra,
relativamente aos iões contidos no próprio papel resultantes do processo de
fabrico, foi realizado um estudo onde se introduziu um filme fino de LiAlF4 na
estrutura. Foram também efectuadas impregnações de iões de lítio no papel.
a) Camada de LiAlF4
Introduziu-se uma camada de LiAlF4 entre o papel e o cátodo e também sobre
ambas as faces do papel. Os resultados obtidos através dos ensaios de curvas I-
V estão resumidos na tabela 6 para o caso do papel vegetal.
Tabela 6 -Efeito da introdução de uma camada de LiAlF4 em papel vegetal.
Verificou-se uma diminuição da tensão de circuito aberto e da densidade de
corrente de curto-circuito quando a camada de LiAlF4 foi colocada entre o papel
e o cátodo. Quando colocada em ambas as faces, ocorre um aumento do Voc e uma
diminuição significativa de Jsc. O estudo foi repetido para várias espessuras
de LiAlF4 e nos restantes tipos de papel (normal e reciclado), mas em nenhum
caso se observou um aumento de Jsc relativamente à estrutura mais simples Al/
papel/Cu.
b) Impregnação de fontes de iões
Impregnou-se papel vegetal e normal com as soluções indicadas na tabela 7. Após
a impregnação, deixaram-se as membranas (papéis) ao ar o tempo necessário para
evaporação do solvente. Após a evaporação do solvente, foram depositados os
eléctrodos de Cobre e Alumínio.
Tabela 7 -Soluções das impregnações (V=3ml).
Na tabela 8 apresenta-se a variação da massa das matrizes impregnadas, ou seja,
a percentagem em peso do composto impregnado ' permaneceu na matriz após a
evaporação do solvente. Destaque para a variação de massa no caso das soluções
a 3% (w/v) que, por conterem maior quantidade de composto, causam uma variação
de massa superior às soluções de 0,5% (w/v).
Tabela 8- Variação da massa da matriz com as impregnações.
As maiores variações de massa ocorrem no papel vegetal, pois a sua estrutura
menos densa permite uma maior impregnação de solução. Exemplificando o caso da
amostra 8 em papel vegetal, ocorreu um aumento de massa para cerca do dobro do
valor inicial. A mesma solução em papel normal provocou um aumento de cerca de
50% da massa inicial.
A tabela 9 mostra os principais resultados das impregnações. Os ensaios foram
efectuados à temperatura ambiente (25ºC) e com uma humidade relativa de 43%.
Tabela 9-Principais resultados das Impregnações.
Tal como esperado, as diferentes amostras não aparentam diferenças
significativas a nível de diferença de potencial.
Os resultados demonstram que, numa matriz de papel vegetal ou papel normal, as
soluções de LiOH e LiI não introduzem melhorias significativas na corrente de
curto-circuito. Por outro lado, as amostras impregnadas com LiClO4em etanol
levam a um aumento muito significativo da densidade de corrente, nomeadamente
de 124nA/cm2para 815nA/cm2 em papel vegetal no caso da amostra 8. O mesmo se
verifica no papel normal, com Jsc da ordem dos 2 µA/cm2 na amostra 8. O aumento
da concentração de LiClO4 de 0,5% para 3% contribui para melhorar o valor de
Jsc. Nas amostras com melhor desempenho mediu-se a estabilidade do valor da
corrente de curto-circuito durante aproximadamente 400 segundos. Os resultados
estão representados na fig. 9.
Fig. 9 -Densidade de corrente de curto-circuito nas amostras impregnadas com
LiClO4 (3% w/v) em etanol. PN corresponde ao Papel Normal e PV corresponde ao
Papel Vegetal.
No caso do papel vegetal, ocorre um aumento de 2µA/cm2 para 2,7µA/cm2
imediatamente após o inicio do ensaio e durante os primeiros 25s. O papel
normal exibe inicialmente um comportamento semelhante, aumentando de 5,75µA/cm2
para 8,25 µA/cm2. No restante período de ensaio, no papel vegetal verifica-se
uma variação incremental enquanto no papel normal o valor da densidade de
corrente de curto-circuito tende a estabilizar em cerca de 8µA/cm2, após os 100
segundos iniciais.
Note-se também que a amostra de papel vegetal estudada possui uma área
superficial de 7,14cm2, apresentando uma corrente entre 20 a 30µA. A amostra de
papel normal apresenta uma área superficial de 6.96cm2, sendo a corrente por
ela debitada superior a 52µA.
As baterias desenvolvidas apresentam uma propriedade muito interessante: a
recuperação. Ao contrário das baterias tradicionais, as características
eléctricas são regeneradas sem qualquer tensão aplicada, até estabilizarem nos
valores iniciais. Tal característica é comum a todas as estruturas
desenvolvidas, incluindo as mais simples (Cu/papel/Al).
O tempo necessário para restabelecimento das propriedades eléctricas depende da
estrutura das camadas e da matriz do dispositivo. Assim, as baterias produzidas
não são necessariamente dispositivos descartáveis, na medida em que podem ser
reutilizadas repetidamente sem ser necessária uma etapa de recarga com consumo
energético (como a que ocorre nas baterias recarregáveis tradicionais).
O fenómeno de recuperação é exemplificado na fig. 10, onde as medidas foram
obtidas em contínuo. Nos primeiros 25s do ensaio, observou-se a estabilidade da
tensão de circuito aberto (cerca de 0,46V). Em seguida, colocou-se a bateria em
curto-circuito de modo a ocorrer a sua descarga. Por fim, ligaram-se novamente
os terminais da bateria ao medidor. Verifica-se um aumento imediato do Voc.
Após 300 segundos de recuperação, a tensão aos terminais da bateria é 91% do
valor inicial.
Fig. 10 'Recuperação da tensão do dispositivo.
Este fenómeno é igualmente visível após os ensaios de descargas com resistência
fixa. Durante o ensaio, a tensão fornecida pelo dispositivo reduz-se
gradualmente. No entanto, findo o ensaio, verifica-se a recuperação das
condições iniciais, estando novamente apto para nova descarga.
3.3.3. Tipos de Eléctrodos
De entre as mais de 40 estruturas analisadas, apresentam-se na tabela 10
algumas das que evidenciaram melhores características. Os valores apresentados
foram retirados dos ensaios de curvas I-V.
Tabela 10-Diferentes estruturas e suas características eléctricas.
O estudo efectuado mostra que a tensão de circuito aberto é significativamente
influenciada pelo tipo de materiais utilizados nos eléctrodos. Os melhores
resultados, com Voc e Jsc simultaneamente elevados, foram obtidos com a
introdução de uma camada de WO3 no cátodo da estrutura de referência Al/papel/
Cu (amostra 5). O facto da introdução de camadas de WO3 mostrar bons resultados
leva a que seja viável a realização de baterias para alimentar circuitos
electrónicos transparentes e flexíveis em papel.
3.4. Efeito das Condições Atmosféricas
Para colmatar deficiências no entendimento dos fenómenos químicos e físicos
ocorridos no dispositivo, foram efectuados diversos estudos relativos à
influência das condições ambientais.
Pretendeu-se nesta etapa estudar o efeito do vácuo, da temperatura, da humidade
e de diferentes gases (como o dióxido de carbono e o oxigénio) no funcionamento
da bateria, bem como determinar as melhores condições atmosféricas que
optimizam o desempenho dos dispositivos produzidos. Os testes efectuados
permitiram concluir que a pressão e humidade da atmosfera são os factores que
mais influenciam as características das baterias.
3.4.1. Efeito do Vácuo
Numa câmara de vácuo, com a amostra inicialmente nas condições de pressão
atmosférica, humidade e temperatura ambiente, foi monitorizada a variação da
corrente do dispositivo em contínuo, tendo-se realizado vácuo até 10-2mbar,
seguido de pressurização e novamente vácuo. Os resultados estão representados
na fig. 11. A área do dispositivo em estudo é 14,0cm2.
Fig. 11 -Efeito do vácuo nas características eléctricas.
Os resultados mostram que a corrente do dispositivo decresce cerca de uma ordem
de grandeza, desde que se inicia o processo de vácuo (t=40s) até que se
pressuriza novamente a câmara (t=160s). Nessa altura a corrente recupera o
valor inicial muito rapidamente, demorando cerca de 100s a estabilizar no valor
inicial. Repetiu-se o procedimento, verificando-se um comportamento muito
similar nas diversas etapas do ensaio. Conclui-se assim que a atmosfera
envolvente influencia significativamente o comportamento da bateria.
3.4.2. Efeito da Humidade
A influência da humidade no desempenho do dispositivo é um dos pontos mais
importantes que permite inferir sobre eventuais fenómenos electroquímicos que
estejam envolvidos na produção de energia eléctrica nas baterias de papel. Um
higrómetro/termómetro no interior da câmara permite a monitorização da humidade
e da temperatura junto à bateria. Variou-se a humidade dentro da câmara e
monitorizou-se a corrente de curto-circuito da bateria, a variação obtida está
representada na fig.12. Os dispositivos realizados em papel vegetal e papel
normal apresentam inicialmente a mesma tensão de circuito aberto, 0,5V.
Fig. 12 - Relação entre a corrente e a humidade das amostras em papel vegetal e
em papel normal.
Os resultados mostram que a corrente da bateria sofre um incremento de três
ordens de grandeza quando a humidade varia de 40% até 90%. O comportamento é
idêntico nas duas matrizes testadas, papel normal e papel vegetal. Interrompeu-
se o ensaio com cerca de 90% de humidade relativa para evitar a degradação dos
eléctrodos de filme fino. Findo o ensaio, as baterias permaneceram incólumes e
com as propriedades eléctricas idênticas às iniciais. No entanto, tal poderia
não ocorrer caso se atingissem humidades superiores a 90%, onde facilmente
ocorre a degradação do dispositivo por condensação de água sobre os filmes
finos. O gráfico mostra também a existência de um limiar de humidade, a partir
do qual a corrente de curto-circuito do dispositivo é mais fortemente
influenciada.
Apresentando a mesma estrutura, é notória a diferença na corrente dos
dispositivos em papel normal e em papel vegetal. Enquanto a amostra com papel
vegetal atinge uma densidade máxima de corrente de 50µA/cm2 (84% de humidade
relativa), a amostra com papel normal apenas atinge 7,5µA/cm2 (89% de humidade
relativa).
Essa disparidade pode ser melhor compreendida tendo em conta que o papel
vegetal utilizado é significativamente menos espesso e denso, o que minimiza o
número de cargas geradas no interior da matriz e não captadas nos eléctrodos.
Esta característica favorece não só uma melhor e maior absorção de vapor de
água mas também uma melhor mobilidade das cargas na estrutura do papel vegetal,
pelo que a corrente de curto-circuito é maior.
O comportamento observado é coerente com outros estudos [17, 18 e 19]. De
facto, a absorção é maximizada perto do limite de saturação, de forma
exponencial, sugerindo que as partículas do vapor são absorvidas na forma de
multicamadas [17].
A forte interacção entre a humidade e a matriz celulósica é espectável. As
fibras de celulose têm uma superfície de carácter polar devido à presença de
grupos hidroxilo (fig. 13), formando facilmente ligações de hidrogénio (pontes
de hidrogénio) com moléculas do vapor de água. A presença dos grupos hidroxilo
é a razão para o comportamento hidrofílico das fibras celulósicas, implicando
uma elevada absorção do vapor por parte da matriz de papel. Este efeito é
variável conforme o tipo de papel utilizado, pois também a existência de certos
revestimentos (ceras) inseridos durante o processo de fabrico podem inibir os
grupos OH [19]. Em meios húmidos, o estabelecimento destas ligações causa a
dilatação da matriz celulósica, pelo que a migração de cargas no interior do
papel é facilitada.
Fig. 13' Esquema representativo de pontes de hidrogénio entre o vapor de água e
a celulose.
3.4.2.1. Espectroscopia do Infravermelho por Transformada de Fourier
Esta técnica foi utilizada para melhor compreender as possíveis alterações
induzidas pelo nível de humidade no seio da matriz.
Na fig. 14 encontram-se os resultados experimentais da amostra de papel vegetal
no estado considerado seco (40% de humidade relativa) e depois de sujeita a uma
atmosfera húmida (80% de humidade relativa), onde apesar da baixa espessura do
material são visíveis regiões saturadas (entre 3250 e 3600cm-1 e entre 1200 e
1000cm-1). Nos espectros são indicados os centros dos picos de absorção ' picos
invertidos ' evidenciados pelo software OMNIC. A análise FTIR do papel
vegetal seco ilustra um espectro coerente com diversos resultados obtidos em
papéis de origem celulósica [20, 21, 22, 23 e 24]. No espectro do papel vegetal
seco, o pico centrado em 2899cm-1 está relacionado com o estiramento da ligação
CH dos grupos CH2 presentes na celulose. O pico de absorção a 1428 cm-1é
característico do estiramento do grupo CH2. Na região saturada 1200 ' 1000cm-1,
o pico detectado pelo software e centrado em 1074cm-1 deve-se provavelmente à
absorção da ligação C-O.
Fig. 14 'Espectros de transmitância do papel vegetal seco e no estado húmido.
Não pretendendo analisar exaustivamente as ligações presentes no papel, mas sim
avaliar o efeito do vapor de água no desempenho do dispositivo, os picos mais
interessantes são os referentes ao grupo hidroxilo O-H. No entanto, o espectro
da amostra húmida apresenta mais regiões saturadas que a amostra seca (o sinal
detectado por transmissão é muito fraco), na região entre 500-1000cm-1e na
região 3000-3650cm-1. Ainda assim, o espectro da amostra húmida é coerente com
a condição seca, estando apenas presentes pequenos desvios nas posições
centrais dos picos.
O pico centrado em 617cm-1 deve-se à deformação fora do plano da ligação OH, o
que explica a dilatação da gama de números de onda entre as situações seca e
húmida. De modo semelhante, o pico centrado em 1639cm-1 é resultado da
deformação dos grupos OH da água absorvida pela matriz celulósica.
O estiramento da ligação OH ocorre na região 3200 ' 3650cm-1. No espectro da
amostra húmida, o facto do pico a 3567cm-1 ser bastante mais largo que o
correspondente no caso seco indica claramente que o teor de grupos OH aumentou
na amostra em análise. Ocorre até uma quase total aglutinação do pico centrado
em 2904cm-1.
O estudo de Kondo [25] e as referências [26, 27] são relevantes, uma vez que
sugerem a atribuição de bandas de absorção a grupos hidroxilos (O-H) livres, na
região dos mais altos números de onda. Kondo constatou a existência de picos de
absorção (3580 e 3555cm-1) de grupos hidroxilos livres, próximos da banda
referente à absorção de grupos OH com ligações intermoleculares de hidrogénio
(3485cm-1). Não é possível realizar uma análise idêntica aos resultados
experimentais, uma vez que essa região se encontra saturada, no entanto foi
detectado pelo software um desvio do pico do estado seco (3409cm-1) para o
húmido (3567cm-1), pelo que não é de negligenciar a hipótese de ter aumentado a
presença de grupos OH livres no seio da matriz de papel vegetal, mais
disponíveis para as reacções electroquímicas do dispositivo.
Os resultados não acusam a quebra das ligações presentes, o que indicia a não
degradação da matriz após uma exposição a uma atmosfera com 80% de humidade
relativa. Esta observação é importante, pois assim se confirma a viabilidade de
utilização das baterias em ambientes húmidos.
3.4.3. Efeito do Dióxido de Carbono, Azoto, Oxigénio e Temperatura
Foram efectuados estudos com outros agentes gasosos contidos na atmosfera,
nomeadamente CO2, N2 e O2. Nenhum destes gases mostrou ter tanta influência
como a humidade nas características eléctricas das baterias de papel.
Ensaios efectuados permitem afirmar que a temperatura é um agente importante no
comportamento dos dispositivos, pois é detectável um aumento da densidade de
corrente com o aumento da temperatura. De notar que, exceptuando estes estudos,
todos os restantes testes foram realizados à temperatura, pressão e humidade
(40-50%) ambiente.
3.5. Descargas com Resistência de Valor Fixo
O gráfico da fig. 15 mostra a variação da tensão e a capacidade de uma bateria
com área de 14cm2 e tensão de circuito aberto de 0,75V. A tensão aos terminais
da bateria decai rapidamente, estabilizando em 0,5V com uma carga de 10MΩ
durante mais de 12 horas.
Fig. 15 -Descarga da amostra durante mais de 12h através de uma resistência de
10MΩ.
Dos resultados experimentais, infere-se que a bateria deverá demorar mais de
115h a descarregar até uma diferença de potencial de 0,40V. A capacidade do
dispositivo (multiplicação da corrente pela duração do ensaio) é de cerca
0,6µAh, ao longo das 12h de teste.
O comportamento estável que se observa na figura anterior corrobora a hipótese
de os agentes atmosféricos contribuírem para um funcionamento contínuo do
dispositivo enquanto se mantiverem disponíveis.
Tendo em consideração ensaios anteriores, pode depreender-se que o agente
atmosférico mais importante é o vapor de água.
Interessa também avaliar o comportamento do dispositivo quando a carga do
circuito é bastante pequena. Espera-se uma corrente substancialmente mais
elevada do que no caso anterior e também um decréscimo na diferença de
potencial aos terminais da bateria. O gráfico da fig.16 mostra a variação da
corrente e da capacidade ao longo do tempo do ensaio, utilizando uma
resistência de 120Ω.
Fig. 16 -Descarga da amostra em papel vegetal com uma resistência de 120Ω.
Após uma descarga inicial acentuada, a corrente debitada estabilizou em cerca
de 1µA durante mais de 6000 segundos de descarga, repetindo o comportamento
exibido pela tensão.
3.6. Electroquímica dos dispositivos
Os ensaios de voltametria cíclica efectuados permitiram verificar uma elevada
estabilidade e durabilidade das baterias de papel, capazes de suportar elevado
número de ciclos sem degradação de propriedades. No entanto, não foram visíveis
reacções redox (identificáveis através de picos de oxidação e redução).
Encontra-se na fig. 17 um exemplo de um voltamograma cíclico efectuado numa
bateria de papel normal com um cátodo de cobre e um ânodo de alumínio (área
superficial de 45cm2), com uma humidade relativa de 48% e temperatura de 26ºC.
Fig. 17 -Voltametria cíclica com velocidade de varrimento de 10mV/s.
Com o intuito de detectar eventuais reacções numa gama mais alargada de
diferenças de potencial, foram também efectuados ensaios entre -4V e +4V, não
se detectando quaisquer reacções redox. Acrescente-se ainda que esta situação
não é exclusiva da estrutura Cobre / Alumínio, sendo idêntica nas restantes
baterias concebidas.
Nestas condições, na conjectura mais provável as cargas resultam de ligações
não compensadas no interior da própria matriz de papel, da presença de iões OH-
e H3O+ da água ou do movimento iónico dos metais alcalinos constituintes do
papel (os designados electrólitos naturais) [28]. Estes fenómenos não originam
picos de oxidação nem redução, havendo no entanto um fluxo de cargas no
interior da matriz. O papel comporta-se como um condutor iónico mas não
electrónico, estando estas ilações de acordo com outros estudos [28, 29].
Os eléctrodos (por exemplo, cobre e alumínio) formam o campo eléctrico causador
da migração dos iões no interior da matriz, atraindo-os. Estes movem-se por
difusão no interior do papel e, obviamente, quanto maior for a diferença de
potencial entre os eléctrodos mais fortemente são atraídas as cargas.
3.7. Protótipo
O demonstrador final da tecnologia desenvolvida consiste numa bateria,
integrando em série vários elementos numa única folha de papel, capaz de
fornecer uma tensão suficiente para o controlo da porta de um transístor de
papel (3V), tendo em vista a possível aplicação de alimentação de circuitos
electrónicos em papel.
Um transístor é um componente eléctrico de três ou quatro terminais, que actua
como um interruptor (ON/OFF) à passagem de corrente. Os transístores de papel
produzidos no CENIMAT possuem três terminais: a fonte (source), o dreno (drain)
e a porta (gate), conforme esquematizado na fig. 18.
Fig. 18 -Transístor de papel [15].
No estado ON, um fluxo de cargas (electrões) atravessa o semicondutor, entre a
fonte e o dreno (ID). A corrente flui no transístor devido a uma diferença de
potencial entre estes dois terminais (VD). No estado OFF não passam cargas
através do semicondutor, mesmo com a aplicação da tensão VD.
A permuta entre os estados é controlada pela tensão na porta (VG), pois a
partir de determinado limiar é induzido um canal no semicondutor que permite a
condução electrónica entre a fonte e o dreno.
A fig. 19 é a curva de transferência do transístor de papel utilizado, para uma
tensão no dreno (VD) constante de 15V.
Fig. 19 -Curva de transferência do transístor de papel. VD = 15V.
O transístor de papel opera em depleção, pelo que é permitida uma corrente ID
significativa com 0V na porta, cerca de 10-6A. A curva mostra também que a
aplicação de uma diferença de potencial de cerca de -3V interrompe o canal,
pois a corrente correspondente é 10-8 A (estado OFF) e com cerca de +3V
aplicados na porta, a corrente ID é da ordem dos 10-5A.
Na montagem experimental, recorreu-se a uma associação em série de 8 baterias
(Cobre / Alumínio), concebidas de forma planar numa única folha de papel
vegetal (fig. 20). O dispositivo utilizado, extremamente flexível, exibe uma
tensão VOC de cerca de 3V.
Fig. 20- Flexibilidade da bateria utilizada no fecho do canal do transístor de
papel.
Os terminais da bateria foram sucessivamente conectados e desconectados da
porta do transístor tendo-se obtido o gráfico da fig. 21, no qual os valores de
corrente estão totalmente de acordo com a curva de transferência. É possível
visualizar o efeito de corte de corrente alternando entre os estados de tensão
negativa aplicada (-3V) e sem tensão aplicada (0V). O valor máximo de corrente
é cerca de 10-6A, ocorrendo uma variação de 2 ordens de grandeza entre os dois
estados.
Fig. 21 -Corte de corrente no transístor devido à bateria de papel, nas
situações de -3V e 0V. VD=15V.
O comportamento é reprodutível e estável, tendo-se interrompido o canal 10
vezes durante os 400 segundos do ensaio.
Uma vez que o fluxo de cargas entre a porta e o semicondutor é mínimo, não se
verificou quebra na diferença de potencial aos terminais da bateria. Deste modo
prova-se a possibilidade de aplicação de baterias de papel no fecho (ou na
abertura) do canal de transístores, comprovando-se assim a viabilidade da
adaptação das baterias produzidas em circuitos electrónicos, nomeadamente de
papel.
4. Conclusões
A força motriz para este trabalho surgiu da crescente necessidade de tornar
circuitos da electrónica do papel auto-alimentados. Inserem-se neste caso os
transístores de papel e os electrocrómicos em papel, ambos recentemente
desenvolvidos no CENIMAT. A produção de baterias directamente integráveis
nestes sistemas é um feito que pode dar origem a produtos electrónicos de baixo
custo e descartáveis.
Para além de ser o suporte físico do dispositivo, o papel é também um elemento
activo pois actua como electrólito sólido. Contrariamente ao que é prática
corrente nos dispositivos de armazenamento de energia com separadores de papel
(nomeadamente condensadores electrolíticos), não é necessária a introdução de
soluções electrolíticas para a sua activação.
As baterias produzidas exibem um comportamento electroquímico bastante próprio.
O pensamento inicial passava pela construção de baterias primárias
descartáveis, nas quais os iões que sofrem reacções nos eléctrodos seriam
originados na própria constituição do papel (através de aditivos inseridos na
pasta do papel durante o seu fabrico).
No entanto, o comportamento surpreendente de recuperação das propriedades
eléctricas após descargas, bem como o pronunciado efeito das condições
atmosféricas no comportamento da bateria, sugerem um funcionamento misto entre
bateria primária, secundária e célula de combustível.
Pretende-se com o termo bateria secundária enfatizar a possibilidade de os
dispositivos não serem necessariamente descartáveis, pois a capacidade de
regeneração possibilita uma utilização repetida, não sendo necessária uma etapa
de recarga com consumo energético.
Com a designação célula de combustível, pretende-se salientar a dependência
dos agentes atmosféricos gasosos. Nas baterias produzidas, a humidade pode ser
mesmo equiparada ao combustível das células de combustível, sem o qual a
corrente gerada é mínima.
A estrutura das baterias é simples, consiste no depósito de películas finas
sobre ambas as faces do substrato. Os materiais depositados constituem os
eléctrodos, podendo ser concebidos na forma de mono-camada ou multi-camada
(sucessão de vários materiais sobrepostos na mesma face do papel).
As baterias produzidas denotam uma tecnologia pouco dispendiosa, ecológica e
eficiente para alimentação de componentes electrónicos de baixo consumo.
Adicionalmente, os dispositivos mantêm o desempenho eléctrico quando são
flectidos, torcidos ou encurvados, o que evidencia a sua elevada flexibilidade.
São invulgarmente leves, o que é determinante em situações onde a massa é um
factor a ter em conta.
Foram estudados substratos de papel vegetal, normal e reciclado. Na globalidade
dos casos, a diferença de potencial não varia de modo marcante com o tipo de
matriz utilizada, mas sim com o par de eléctrodos escolhido.
Acerca da corrente debitada, a matriz de papel vegetal apresentou
características mais interessantes, seguida do papel normal. As baterias em
papel reciclado apresentaram densidades de corrente baixas. Este fenómeno deve-
se a diferenças composicionais entre as matrizes utilizadas, dimensões das
fibras celulósicas, porosidade, densidade e espessura das matrizes.
Na análise do efeito das espessuras dos eléctrodos, observou-se uma fraca
influência da espessura nas propriedades eléctricas. Um revestimento contínuo e
pouco resistivo sobre o papel é suficiente para facilitar o escoamento de
cargas.
Adicionou-se à estrutura de referência uma camada de LiAlF4, suposta fonte de
iões de lítio. Pelos resultados obtidos, parece razoável admitir que a corrente
não é incrementada pela introdução desta camada.
As matrizes celulósicas foram também alvo de estudos de impregnações. A solução
de LiClO4 em etanol destacou-se das demais, originando melhorias significativas
na corrente. Consideraram-se concentrações de 0,5% e 3% (w/v), surgindo no
segundo caso densidades de corrente superiores. Conclui-se que a presença de um
maior teor de iões (alcalinos) aumenta a corrente debitada pelo dispositivo.
O estudo efectuado sob condições de vácuo permitiu averiguar a dependência dos
dispositivos para com agentes atmosféricos. Assim, analisaram-se ensaios sob
atmosferas de oxigénio, azoto e de dióxido de carbono e diferentes humidades
relativas. Dos agentes considerados, a humidade do meio é o parâmetro com maior
influência nas características eléctricas das baterias. Os testes efectuados
revelaram incrementos de 3 ordens de grandeza na corrente de curto-circuito,
tanto em papel vegetal como em papel normal. A variação da corrente ocorreu
entre as condições de humidade normais no laboratório 40-50% e uma humidade
relativa de 90%. Este fenómeno está de acordo com a literatura, pois há mais de
60 anos é conhecido o efeito exponencial da humidade na condução iónica da
celulose. Análises de FTIR indicaram a estabilidade do papel em ambientes
húmidos. Assim se confirma a viabilidade de utilização das baterias em
ambientes mais húmidos quando se pretende maximizar a corrente debitada pelos
dispositivos.
Os testes de descarga com resistências fixas permitem simular aplicações reais.
Um dos testes consistiu na descarga de um dispositivo com 0,75V de tensão de
circuito aberto, que apresentou uma diferença de potencial estável de 0,50V ao
longo de 12h de teste. A estabilização das características eléctricas durante
os ensaios de descarga está associada aos agentes atmosféricos. Assim, conclui-
se que é possível a operação em contínuo do dispositivo enquanto estes agentes
se mantiverem disponíveis, um comportamento análogo ao das células de
combustível.
Foram concebidas estruturas planares de 8 a 10 elementos associados em série
(estrutura Cobre / Alumínio), produzindo tensões de circuito aberto entre 2,5 e
4V. Este tipo de associação, o protótipo final, possibilitou a comutação entre
o estado ON e OFF de um transístor de papel obtendo-se uma boa resposta
eléctrica do dispositivo e a reprodutibilidade dos resultados.
Os dispositivos de papel produzidos são apenas a primeira etapa nesta área
tecnológica que se espera desenvolver no futuro próximo. São a demonstração de
uma tecnologia passível de integração directa em circuitos electrónicos de
papel. Estes poderão ser um dos componentes essenciais da electrónica
(descartável) do futuro.