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EuPTCEEx1646-88722012000100003

EuPTCEEx1646-88722012000100003

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioEx-Tech-Multi Sciences
Great areaExact-Earth Sciences
ISSN1646-8872
ano2012
Issue0001
Article number00003

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Análise Urbana de Territórios Construídos: Os Aterros na Baixa e na Frente Ribeirinha de Lisboa, Portugal

1. Introdução As condições naturais proporcionadas pela foz do Tejo e pelo vale da Baixa, possibilitaram que fosse criado através da transformação do território primigénio um porto protegido próximo do mar e das principais rotas comerciais do Mediterrâneo e do Atlântico, o que foi decisivo na consolidação de Lisboa como cidade de comércio marítimo e à expansão de Portugal no mundo. O Tejo foi também o principal meio de comunicação, de transporte e de comércio entre localidades do território português influenciando a consolidação de populações no seu interior (Gaspar, 1970), para além de permitir, desde as primeiras ocupações humanas, a obtenção fácil de alimentos, como moluscos, mariscos e peixes (Marques, 1988). Lisboa nasceu, junto à foz do rio, nas colinas expostas a sul, num território muito diferente do actual, pois as águas do Tejo banhavam-no em parte. Se o assoreamento natural do próprio rio teve influência na diminuição do seu caudal e das ribeiras, foi a ocupação humana e a prática continuada de aterros sobre os terrenos baixos e lodosos onde chegava uma ribeira ao Tejo, na zona da actual Baixa e na margem do rio que formaram/ transformaram 1 significativamente o território fazendo subir, na Baixa, em cerca de 3m o nível do solo (Melo, 2005).

Figura_1

No esteiro da Baixa, apesar do tecido urbano ter nascido fora das muralhas e de ter-se constituído inicialmente como arrabalde da cidade, este consolidou-se porque ficou integrado na cidade devido à urbanização das colinas envolventes, ao fecho realizado pela muralha da ribeira e posteriormente pela cerca fernandina 2 que o envolveu. Os aterros na margem do Tejo geraram espaços de características diferentes dos anteriores, porque são espaços exteriores à própria cidade, que não são envolvidos, mas estabelecem a relação cidade/rio, tendendo mais para a cidade ou para o rio conforme os usos. São espaços de mediação. Foram e são fundamentais na contínua readaptação da cidade que usa a frente rio de modo diversificado no tempo mas, como veremos, sempre ligada desde a sua génese à construção do porto de Lisboa, onde nos finais do século XX alteraram-se muito as suas actividades, o que suscita novas utilizações numa cidade sempre a olhar e a utilizar o seu rio conforme as necessidades e circunstâncias de cada época.

1.1 Território e identidade. Os aterros da frente ribeirinha como espaços ambíguos Este território, construído pelo homem, símbolo de Lisboa, espaço portuário e/ ou de representação da cidade é um espaço ambíguo e complexo, porque:

* Pertence a dois mundos diferentes, juntos mas muito - diferentes a terra e o mar, * Não pertence a nenhum desses mundos e é antes um - outro um espaço de fronteira, de mediação.

Tal como na cidade invisível de Despina (Calvino, 1990) o homem da terra e entende este espaço como se pertencesse ao mar, enquanto o homem do mar, o viajante, aquele que chega aqui, o mesmo espaço como se pertencesse à terra.

É sobretudo um espaço de fronteira entre dois mundos muito diferentes, mesmo antagónicos. O mundo do homem, a cidade o lugar, e o mundo do desconhecido, o mar o outro (Pozo, 2003). É um não lugar. Vai-se mas não se habita .

Porque o habitar está reservado para os lugares (Heidegger, 1954). Usa-se economicamente, funcionalmente, mesmo para lazer, entende-se a sua existência mas não se vive nele. É o sítio fora da muralha como o foi quando Lisboa tinha as suas cercas. Por isso Francisco D’Holanda (1571) reclamava nos finais de quinhentos que o rei devia voltar a formara cidade, a dar-lhe novamente forma construindo novas muralhas, protegendo-a e dignificando-a. Clareza e não ambiguidade foram o que o arquitecto de D. Sebastião reclamou. Hoje, este espaço, continua fora da cerca, uma cerca invisível, mas muito presente e que foi criada ao longo de séculos entre a cidade e o seu rio, uma infra-estrutura de tal modo imponente que relegou a cidade para o seu interior. Estes espaços de aterro representam o homem como ser dominador e construtor do seu território. O homem predador. É um homem que para além de utilizar os terrenos disponíveis e construir a urbe, mais ou menos abstracta, como manifestação da sua cultura, constrói o próprio território urbano, manifestação máxima do domínio humano a este nível. Mas este território novo, construído pelo homem, permite leituras diferentes e mesmo antagónicas. É ambíguo na sua génese.

1.2 Ambiguidade na génese urbana Entende-se haver ambiguidade na génese urbana porque um elemento primário da formação urbana, neste caso da génese antrópica, gera ambiguidade na formação urbana e/ou na formação/transformação urbana, porque permite mais do que uma leitura em simultâneo do espaço que foi criado. Percebe-se melhor o carácter da cidade e a sua identidade ao entender a sua génese e particularmente a sua morfogénese que neste caso está indissociavelmente ligada à ambiguidade genética assinalada.

Essa característica é a origem da duplicidade de interpretações e opiniões que se formam quando se analisa de diversos modos este complexo espaço urbano, que é a frente ribeirinha. É um território construído fora das muralhas, ou seja, fora da cidade, fora do ventre, e que não é envolvido por esta, não está dentro dela. analogias entre o ventre, o lar e a cidade cercada de muralhas como espaços de vivência humana pelas características comuns que possuem (Bachelard, 1957) (Pozo 2003). A frente ribeirinha é um sítio, mas não é um lugar. Ao fim de séculos de construção continuou fora da urbe. Esta característica agravou-se muito mais com o considerável aumento da largura dos aterros dos finais do século XIX e inicio do século XX, que afastou fisicamente a cidade dos bairros, do rio, e devido à construção de uma das mais importantes vias estruturantes de tráfego rodoviário, das estações de caminho-de-ferro do Cais-do-Sodré e de Santa Apolónia e respectivas linhas férreas que cortam todo o acesso entre a cidade e o rio tanto do lado ocidental como do oriental.

2. Os aterros na Baixa e na frente ribeirinha de Lisboa Os aterros realizados na Baixa e na frente ribeirinha permitiram a urbanização sobre os terrenos aluvionares do esteiro, sobre as praias e mais tarde sobre o próprio leito do rio. Os terrenos resultantes dos aterros são planos, em contraste com os restantes espaços urbanos da cidade antiga, localizados nas ladeiras adjacentes ao castelo de S. Jorge. Eram por isso mais fáceis de organizar e de utilizar como permitiam uma significativa economia de construção. A rede viária principal da cidade assentou, a partir de determinado momento do desenvolvimento urbano, sobre esses terrenos planos, criando os principais trajectos matrizes (Caniggia & Maffei, 1979) que ainda hoje são eixos estruturantes da cidade, quer na penetração para o interior do território, a norte, quer sobretudo na realização do eixo ribeirinho que se prolonga para oriente até Chelas e Sacavém, como para ocidente até Alcântara e Belém.

Partindo da análise de levantamentos arqueológicos, de estudos sobre a cidade, da análise das principais plantas, cartas e gravuras realizámos o Mapeamento dos Aterros como se indica na figura_2, podendo-se classificar os aterros pelos locais onde se realizaram, o que corresponde a momentos diferentes de crescimento do território da cidade (Durão, 2011):

* Os primeiros aterros realizaram-se sobre o esteiro da Baixa - iniciando-se cerca de dois milénios e são o resultado da sobreposição de construções das diferentes culturas que dominaram a cidade; * Os aterros das praias e de terrenos das margens do rio - iniciados no século XIV, ou anteriormente, criaram a frente ribeirinha de Lisboa, entre as Tercenas da Porta da Cruz (actual Museu Militar) e o Largo de Santos, incluindo a frente do esteiro da Baixa, onde se formou o Terreiro do Paço.

Realizaram-se também importantes aterros no séc. XV-XVI para a construção do Paço Real de D. Manuel I e no pós-terramoto com a reordenação Pombalina; * Os grandes aterros na passagem do século XIX para o XX - foram os de maior dimensão e complexidade e criaram a frente ribeirinha actual que ultrapassou definitivamente os limites anteriores para formar toda a frente rio da cidade.

Figura_2

3. Os aterros na Baixa de Lisboa Os primeiros aterros realizaram-se no esteiro da Baixa onde chegavam as ribeiras de Valverde (Av. da Liberdade) e de Arroios que se encaminhavam por um único braço para o Tejo. O que se conhece de vestígios físicos da ocupação urbana mais antiga do vale da Baixa deve muito ao trabalho dos arqueólogos (Andrade, 2001). O núcleo arqueológico da rua dos Correeiros, na Baixa, realizou diversas escavações no terreno do BCP (Banco Comercial Português), aquando da construção da sede, onde foram detectadas pelos arqueólogos trinta e duas camadas de aterros com cerca de 3m de profundidade na totalidade, onde identificaram e classificaram sete épocas de construção urbana a que corresponde mais de dois milénios de ocupação: idade do ferro de características orientais fenícias ou de outros povos da região; romana; islâmica; medieval; pré-pombalina; pombalina; pós-pombalina ou moderna (Bugalhão, 2003). Esta escavação e outras realizadas apontam para uma ocupação generalizada do esteiro nas diferentes épocas, apesar de variar o género e densidade dessa ocupação, apontando para que a partir do período romano, ou mesmo anteriormente, tenha havido uma ocupação significativa do esteiro da Baixa (Matos & Hassanein, 1999).

vestígios fenícios ou orientais de um ancoradouro para a atracagem de barcos no esteiro da Baixa (Arruda, 1996) o que indicia ter havido alguma ocupação nessa época ligada à actividade marítima, para além de diversa cerâmica que tende a demonstrar o mesmo. Da época romana muito maior densidade de vestígios. Reconhecem-se diversas estruturas na encosta da colina de S. Jorge e no esteiro, que demonstram ter havido em Olisipo uma ocupação generalizada deste local pois abrangem-no quase na totalidade (Silva, 2009). Está ordenada segundo eixos reguladores como normalmente sucedia em cidades romanas.

Encontraram-se no esteiro vestígios de diversos edifícios que deveriam ser armazéns de uma importante indústria de conserva de peixe (Amaro, 1994). O hipódromo romano realizado sobre a ribeira de Valverde, no local do actual Rossio (Silva, 2005), desviava ou canalizava as águas dessa ribeira.

De época islâmica existem diversas estruturas no esteiro da Baixa que normalmente se sobrepõem a achados arqueológicos de época romana e anteriores (Matos & Hassanein, 1999; Bugalhão, 2003), e terá sido uma época de consolidação da urbanização nestes locais apesar de ser, até ao momento, um período insuficientemente estudado. Tal como noutras cidades romanas, a ocupação islâmica terá transformado o traçado romano (Benévolo, 2005) através de um processo sistemático de fazer e desfazer construções segundo o seu modelo urbano (Rijo & Silva, 2009). Quando em 1147, portugueses e cruzados tomaram a cidade, o esteiro estaria ocupado, pois nos anos seguintes foram criadas freguesias (Silva, 1943) e paróquias (Silva, 1942), o que na parte baixa corresponde ao espaço que a cerca fernandina encerrou no século XIV (Matos & Hassanein, 1999).

As primeiras construções realizavam-se sobre o solo natural, e conforme foram edificando, nivelando os interiores e reconstruindo os edifícios, os níveis foram subindo pela sucessão de pequenos aterros que foram fazendo, pela ruína de edifícios e pela subida dos pavimentos exteriores. Assim, num processo gradual de fazer e desfazer construções, camada sobre camada, época sobre época, criaram-se 3m de altura de aterros em todo o esteiro da Baixa que é o que se mede na actualidade. Os muitos sismos que se sentiram em Lisboa, 3 terão contribuído para uma maior necessidade de reconstrução dos edifícios. A composição destes aterros é o resultado do depósito de terras, areias, entulhos e pedras assentes sobre uma camada de terrenos lodosos e de aluvião com cerca de 10m de espessura no Rossio e 50m no Terreiro do Paço (Melo, 2005). Foi nestes terrenos de aterro e aluvião que ocorreu em 1755 o maior derrube de edifícios como referiu Pereira de Sousa (1928) enquanto noutros locais localizados na proximidade e cujo solo é constituído por zonas calcárias e basálticas o derrube dos edifícios foi menor, como sucedeu em Alfama onde a maior destruição foi junto ao rio, como foi descrito pelos párocos que responderam ao inquérito realizado no pós-terramoto (Santana, s/d). Augusto França (1983) delimitou a área onde o sismo teve maior intensidade e a sua análise chega a resultados idênticos. Um estudo mais recente realizado por Costa Nunes em 1994 simula um sismo na região de Lisboa demonstrando que nas zonas de aterros a frequência é ampliada o que poderá causar maiores danos em edifícios existentes nesses locais (Ramos & Lourenço, 2000). Pode-se supor que a onda sísmica tenha provocado a liquefação de solos pela significativa destruição da Baixa e Terreiro do Paço, como pode ter havido algum movimento de massa como sugere a perspectiva de Bernardo de Caula (figura_3) que, entre as muitas que divulgaram a cidade destruída, é a que tem maior rigor e preocupação com os pormenores da destruição urbana. Percebe-se, neste extracto, o principal local de incidência do terramoto onde na frente do Terreiro do Paço os terrenos de aterro terão aparentemente desaparecido.

Figura_3

Após o terramoto, os novos edifícios que se construíram na Baixa Pombalina assentaram sobre arcos em cantaria que estão, por sua vez, assentes sobre estacas em madeira, criando galerias visitáveis no subsolo, por onde corre a água (Ramos & Lourenço, 2000). Nos séculos XIX e XX modificou-se o sistema de circulação de águas superficiais e subterrâneas na Baixa, devido à impermeabilização dos espaços públicos, à canalização de linhas de água e à construção de caves, parques de estacionamento e metro no subsolo, que pode ter alterado a circulação e caudais e por isso é actualmente monitorizado pela CML (Melo, 2005).

3.1 A formação da frente ribeirinha. Os aterros das praias e das margens do rio A frente ribeirinha de Lisboa até à passagem do século XIX para o XX definia-se no espaço entre o Largo de Santos, a ocidente, e as Tercenas da Porta da Cruz a oriente, porque o relevo pelo lado do rio era escarpado, sem praia, o que para ser aterrado obrigava a meios técnicos consideráveis (Durão, 2011). A partir do largo de Santos, o acesso para ocidente fazia-se a cota superior pelo trajecto interior que era o trajecto matriz ocidental a que correspondia, em 1856, à rua Direita das Janelas Verdes, à Calçada de Santos o Velho e à Calçada do Marquês de Noronha. Para oriente, a saída da cidade fazia-se pela rua dos Remédios e do Paraíso.

Foi esta frente ribeirinha, onde se destacava o Terreiro do Paço, que veio a ser, para além dos aspectos funcionais e de utilidade para a cidade, a principal e mais reconhecida imagem de Lisboa. O centro económico e financeiro da cidade deslocou-se para o esteiro no reinado de D. Dinis, no princípio do século XIV, devido à sua crescente importância como entreposto do comércio marítimo entre o mediterrâneo e o atlântico. Em novos espaços de aterro na frente do esteiro, no sopé do monte S. Francisco, foram construídas as Tercenas Reais e os estaleiros navais (Moita, 1983). Nas décadas seguintes foram edificados uma série de edifícios como a Alfandega, Terreiro do Trigo, Portagem entre muitos outros (Góis, 1554), que são o espelho da estrutura pública de administração que a cidade foi criando conforme ia crescendo e tornando-se mais complexa a actividade comercial e financeira. Conforme iam necessitando, criavam novos aterros na frente do esteiro da Baixa que por serem realizados, conforme as necessidades, sem qualquer planeamento, produziram um espaço disforme, onde cresceu o Terreiro do Paço como se na figura_4. instalou- se a Corte com D. Afonso III em meados do século XIV e para aqui mudou-se o centro político da cidade (Moita, 1983). A opção da Corte por Lisboa fez com que a cidade ganhasse uma importância política decisiva no reino tornando-se na mais influente e conhecida cidade de Portugal de que viria a ser a capital.

Figura_4

Com os Descobrimentos, a actividade portuária, comercial e financeira de Lisboa incrementou-se, porque passou a ser das mais importantes cidades comerciais da Europa. O conhecimento mais denso sobre cidades europeias e as riquezas que chegavam à cidade permitiram, no reinado de D. Manuel I realizar, de um modo mais planeado que anteriormente, obras estruturantes e melhoramentos na cidade (Carita, 1999). Foi construído o Paço Real por D. Manuel I e entre outros edifícios de carácter público construíram-se a Alfândega e o Terreiro do Trigo, junto ao rio, no lado oriental do Terreiro do Paço, e o edifício das Tercenas da Porta da Cruz na frente oriental de Alfama. Nesse tempo foi criado, por novos aterros, um amplo espaço ribeirinho entre o Terreiro do Paço e o Postigo de Alfama que se apresenta na figura_5, onde foi reformado e dignificado o chafariz d’El-Rei, o qual permitia usos diversificados desde vendas de peixe a estaleiros de materiais ligados ao comércio marítimo. Criaram-se novos espaços planos ribeirinhos, como em Cata-que-Farás (local do actual Cais-do-Sodré) e Santos, através do aterro de praias, onde se construíram armazéns para as actividades comerciais e portuárias, assim como se definiram sítios de desembarque de mercadorias dos barcos de pequeno calado que faziam a trasfega de mercadorias dos de grande calado que ancoravam no meio do rio por não se poderem aproximar das suas margens. A formação destes novos territórios possibilitou à Coroa ou à Administração da cidade realizar os objectivos urbanísticos sem intervir na cidade consolidada não necessitando de negociar com os nobres nem com as ordens religiosas (dissolvidas em 1834), que eram os principais detentores das propriedades em Lisboa o que terá facilitado em muito a execução de todas estas obras que criaram uma estrutura urbana central, de carácter público e de utilização flexível, que julgamos ter sido determinante ao longo do tempo na readaptação da cidade.

Figura_5

Viajantes que por aqui passaram nos séculos XVII-XVIII elogiaram a cidade vista do rio. A amplitude que os espaços ribeirinhos apresentavam tendo como cenário o casario nas encostas proporcionava uma imagem atraente e agradável de cidade.

Contudo, alguns, como sucedeu com o escritor Henry Fielding ou como Semple, que penetraram nos bairros, referiram-se, nas suas crónicas, à dicotomia entre a imagem urbana percebida do rio e a que ocorria no interior da cidade, onde as ruas eram muito tortuosas, sujas e mal cuidadas (Castelo-Branco, 1987). Os espaços amplos ribeirinhos também eram apreciados para a construção de edifícios residenciais dado serem lugares privilegiados da cidade. No piso térreo desenvolviam-se comércios que valorizavam a frente ribeirinha que era usada em actividades comerciais, lúdicas e de passeio. Era um importante ponto de encontro e de acontecimentos das gentes da cidade e dos viajantes. Aqui realizavam-se festas religiosas, a maior parte dos autos-de-fé e no Terreiro do Paço chegaram a realizar-se touradas, era o espaço de carácter público de referência da cidade (Dias & Rego, 1995).

O terramoto de 1755 permitiu transformar o Terreiro do Paço que ganhou ordem e maior importância como praça de representação da cidade e do poder político pois os valores racionalistas e iluministas determinantes no Pombalino estiveram na génese desta renovação que fez afirmar esta praça como símbolo de Lisboa e de um Portugal renovado, divulgando para o mundo uma imagem ordenada e sóbria. A nova concepção espacial obrigou à realização de novos aterros na frente ribeirinha como se observa no extracto do Plano de 1758 (figura_6) onde se consolidou o cais das colunas integrado num desenho geométrico resultante do novo paradigma urbano e em continuidade com a Baixa. Reordenaram-se usos no Terreiro do Paço onde deixou de haver cais de embarque e de descarga de mercadorias como outros edifícios do género que foram trasladados para outros locais da frente ribeirinha como sucedeu com a construção dos Armazéns da Alfandega e o Terreiro do Trigo na frente de Alfama como uma nova frente de comércio portuário que continuou a desenvolver-se em toda a frente da cidade excepto no Terreiro do Paço.

Figura_6

4. Consolidação e expansão da frente portuária 4.1 Os grandes aterros dos finais do século XIX e do início do século XX Até meados do século XIX Lisboa era uma cidade que evoluía muito lentamente quando comparada com as grandes capitais europeias, Londres ou Paris. A vontade da burguesia ascendente de acompanhar essas tendências transformadoras de modo a que Lisboa fosse uma cidade reconhecida, capaz de se afirmar no plano internacional, que melhorasse qualitativamente e pudesse suportar a expansão que se adivinhava conduziu à realização de Planos urbanísticos gerais que integravam o estudo das grandes infra-estruturas como a estrada de circunvalação, o caminho-de-ferro, o grande porto e que eram consideradas decisivas para cumprir os objectivos propostos para além de planearem as infra- estruturas básicas ao fornecimento de água e de criação da rede de saneamento que grande parte da cidade não possuía. O levantamento coordenado por Filipe Folque em 1856-58 é resultante desses novos modos de ver, pois privilegiou-se a obtenção prévia do conhecimento do existente, o que ajudou a planear a futura expansão urbana. O levantamento deu bases rigorosas para o planeamento da nova cidade que na segunda metade do século XIX, culminando uma série de debates e discussões, aprovou planos urbanísticos globais que definiram a modificação da rede viária principal da cidade onde se destaca a construção de uma avenida ribeirinha em toda a frente rio sobre novos terrenos de aterro. Para concretizar essas importantes infra-estruturas realizaram-se novos aterros na margem do rio que foram os mais extensos de área e de maior profundidade.

Construíram-se docas para atracagem de barcos de pequeno calado e diversos molhes para o desembarque de barcos de grande calado, enquanto entre a avenida ribeirinha e o rio surgiram edifícios administrativos do porto de Lisboa, armazéns e outros espaços portuários que se edificaram ao longo de diversas décadas. Numa primeira fase, no lado oriental, foi realizado o aterro junto ao Arsenal do Exército, pelo lado do rio, resolvendo o acesso marginal a Santa Apolónia, onde se instalou a estação de comboios do norte. Numa segunda fase realizaram-se os maiores aterros de sempre como se constata na reconstituição urbana realizada na frente de Alfama e que se apresenta na figura_7, em que se compara o inicio do séc. XVI com o levantamento de 1856-58 e com o inicio do século XX, onde se consolidou morfologicamente a frente ribeirinha tal como hoje a conhecemos.

Figura_7

Criou-se avenida Infante D. Henrique e as novas docas para atracagem de barcos com molhes capazes de receber barcos de calado significativo devido às dragagens realizadas. No lado ocidental do Terreiro do Paço realizam-se diversos aterros como o da Boavista onde se implantou inicialmente a rua 24 de Julho (figura_8) que marginava o rio. Sobres estes aterros foi criada, como se na figura_9, a Praça Duque de Terceira junto ao Cais-do-Sodré e a estação de caminho-de-ferro que ligou Lisboa a Cascais, a Avenida 24 de Julho que passou a ser o mais importante trajecto matriz ocidental e toda uma nova frente portuária de armazéns, docas e molhes de atracagem (Castilho, 1893).

Figura_8

Figura_9

O porto de Lisboa foi inaugurado pelo rei D. Luis I em 1887, estando a obra completa na passagem para o século XX, registando-se por volta de 1940 a realização de novos edifícios (Dellinger, 2010) e diversas transformações no edificado no final do século. Dentro do rio, as muralhas de protecção foram construídas em pedra assente sobre uma estrutura de betão armado formada por pilares e vigas. O espaço interior foi cheio com terra compactada. Utilizaram- se, também, novas máquinas, como dragas e comboio para o transporte de pedras e areias desde as pedreiras de Alcântara (Nabais & Ramos, 1987). A avenida ribeirinha, os espaços de armazenagem e os próprios molhes afastaram a cidade do rio, funcionando como novas cercas que ainda mais a interiorizaram. O rio, a principal entrada da cidade durante séculos, perdeu a sua importância simbólica cedendo-a ao aeroporto, às estações de caminho-de-ferro e aos acessos rodoviários (Salgueiro, 1992).

A profunda transformação da cidade é bem demonstrada na Carta Topográfica de 1911, (figura_10) onde, junto ao rio, marcado a vermelho, estão desenhados a vermelho os novos espaços de aterro que transformaram a frente ribeirinha num grande porto internacional, no suporte de importantes infra-estruturas rodoviárias, ferroviárias e fluviais mal conectadas, quase sem actividades lúdicas e comerciais praticamente durante todo o século XX. Com a chegada da camionagem e o seu significativo incremento, o porto deixa de necessitar de tantos espaços e nas duas últimas décadas criam-se espaços de lazer junto às margens e fazem-se modificações funcionais em antigos armazéns e espaços portuários onde novos comércios e actividades lúdicas se implantam.

Simultaneamente os aspectos ambientais ganharam relevo nas últimas décadas, valorizando-se a despoluição das águas e da atmosfera (Barata 1996). Esta conjugação permite na actualidade, em alguns locais, os cidadãos desfrutarem do rio numa frente ribeirinha mais humanizada e de funcionalidades variadas onde o porto de Lisboa continua a ter importância para a cidade e o país.

Figura_10

5. A cidade e o rio 5.1 A difícil relação cidade / rio desde meados do século XIX Este espaço surge como um espaço lateral à cidade ou aos seus habitantes, porque não é um lugar onde se viva, mas relegado para a actividade portuária, em declínio, e de suporte de grandes infra-estruturas viárias e ferroviárias.

muitos outros lugares na cidade que têm essas características as vias rodoviárias estruturantes, as linhas ferroviárias, os viadutos, o aeroporto, interstícios urbanos entre outros espaços do género são exemplos de locais onde não se vive, são não lugares. Mas todos eles são pertença da cidade. São indispensáveis ao funcionamento da cidade actual mas são dispensáveis como espaços de vivência urbana tal como são e quando não fizerem mais falta com os seus actuais usos a cidade vai reclamá-los e dar-lhes outros usos. É isso que vem acontecendo desde os finais do século XX, com a frente ribeirinha de Lisboa a cidade começou a reclamá-la como espaço possível de vivência urbana na qual a influência das actividades lúdicas e do turismo em crescimento foram e são fundamentais às modificações que então se iniciaram. Em 2006 o autor participou, na universidade 4, no estudo de uma ligação pedonal entre a Torre de Belém e o Centro Cultural de Belém. Os alunos propuseram que se eliminasse a linha de caminho de ferro e que a via estruturante de tráfego rodoviário deixasse de o ser de modo a permitir que a frente ribeirinha fosse uma continuidade urbana da cidade até ao rio. O trabalho foi realizado mantendo essas barreiras urbanas e demonstrou que é de facto uma impossibilidade o relacionamento entre cidade e rio enquanto essas infra-estruturas se mantiverem porque a continuidade urbana não se faz por túneis ou passagens aéreas, porque não se consegue estabelecer suficiente permeabilidade, mas num continuum espacial. Todas as acções que se têm realizado não resolvem esta questão porque não vão à essência do problema que é de transformar o tráfego rodoviário intenso em tráfego local e retirar as ligações ferroviárias deste local, ou pelo menos da sua superfície.

5.2 O valor do rio e da frente ribeirinha para a cidade A identidade urbana de Lisboa está muito relacionada com a frente ribeirinha e com o rio porque nasceu com este e cresceu com ele. O rio é um dos principais, se não o principal, símbolo da própria cidade. A cidade nunca se dissociou do rio porque em grande medida lhe pertence. A estrutura urbana, a lógica formal e funcional, a história, pese todas as variações, foi marcada no território por essa relação de ambiguidade crescer afastando-se do rio e estar sempre próximo do rio. Mesmo nos momentos em que o porto mais isolou a cidade do rio como no séc. XX, em que o contacto da população excepto dos que nela trabalhavam quase não se fazia, o rio continuou a ser Lisboa. Continuou a ser da sua génese porque não é da vivência em si que se vive e que se valoriza os elementos é em muito do valor de uso que se lhes atribui. Estão, em parte, neste plano os castelos e muitos dos edifícios que chamamos de monumentos.

As pessoas deixaram de se lavar no rio, de ter praias que permitiam tomar banho de rio, de ter proximidade física com a água do Tejo. Deixaram muito de lhe tocar, de sentir a água, de a usar. O rio como meio de transporte de mercadorias foi gradualmente sendo abandonado conforme se foi incrementando a camionagem (Salgueiro, 1992). Aqui em Lisboa, não tem pescadores e toda a faina marítima própria. Não tem botes nas praias. Mas continua a ser o rio e este aspecto parece ser o determinante.

Lisboa nunca esteve de costas virada ao rio, pelo contrário. A actividade portuária foi e é uma actividade da cidade, goste-se ou não. Foi das mais decisivas, e em certos momentos a mais decisiva, na afirmação de Lisboa no mundo. O que sucedeu com a retracção do porto de Lisboa foi um excedente de espaços junto ao rio que possibilitou criar novas actividades económicas que substituíssem as portuárias evitando o abandono e a degradação destes locais.

Essa substituição que tem tido diversos êxitos pode consolidar junto ao rio actividades lúdicas, de lazer, desportivas ou culturais mas isso não altera o carácter ambíguo deste espaço de fronteira nem resolve na essência a relação cidade/rio pois não modificou os elementos que os separam.

5.3 A frente rio que podia ter sido. Discutir a impossibilidade A contínua vontade e necessidade de fazer cidade, de crescer, de readaptar, de melhorar, transformaram de um modo mais ou menos consciente e violento o território onde se construiu Lisboa. Se não tivessem sido realizados os aterros teríamos uma cidade muito diferente ao nível da sua forma, estrutura viária principal, organização das funções e das vivências nomeadamente na frente ribeirinha. Não teríamos uma cidade com um porto em toda a sua frente porque o território não o permitia. Não teríamos uma cidade, ou que deveria ter sido a cidade, desligada do rio mas com pequenas praias, enseadas e pequenos portos a que se acedia pelos vales e colinas que permitiam, junto ao sopé, vivências junto ao rio e uma paisagem mais integrada com o sítio, mais natural, até mais verdadeira. Os bairros projectar-se-iam na frente ribeirinha o que produziria uma variedade formal muito mais rica do que a unidade mono funcional que o porto produz. Uma frente mais humanizada por ser criada e usada de perto pelos seus habitantes, como usam os seus bairros.

Lisboa é, pois, uma cidade em que a actividade de comércio portuário, que se desenvolveu exponencialmente a partir dos Descobrimentos, começou a prevalecer sobre o seu sítio original e gerou uma identidade falsa, pois não era a sua. A relação com o rio é visual, é económica, é simbólica mas também é sofrida por não ser natural. Os esforços que têm sido realizados para aproximar os cidadãos do seu rio através de criar espaços lúdicos e culturais junto ao Tejo estão ainda muito longe de resolver este profundo afastamento por ser genético.

Não cabe no âmbito deste trabalho sugerir soluções mas provavelmente gerando uma relação de intrusão terra/água, cidade/rio e simultaneamente uma modificação séria das grandes infra-estruturas e de alguns usos é que será possível repropor de algum modo, a morfogénese perdida não para fazer o que não foi feito mas para fazer novo.

5.3 Riscos ambientais e valor da frente ribeirinha. Os aterros na actualidade Os espaços públicos mais significativos e simbólicos de Lisboa, como o Rossio, a Praça da Figueira, a Baixa e toda a frente ribeirinha, são, ao nível dos riscos ambientais, dos que apresentam maior perigosidade em caso de sismo (CML/ PC, 2008a), tsunami ou cheias (CML/PC, 2008b). No tempo em que se criaram e transformaram estes territórios o homem não tinha preocupações com riscos ambientais, por ausência de conhecimento e mesmo de possibilidade de fazer diferente. A sua cultura não revelava essas preocupações o que fez com que criasse os principais locais da urbe nos locais de maior risco ambiental. A formação/transformação do território, resultando directamente da cultura, fez- se de modo dialéctico pois foi, em cada época, o resultado dos objectivos, dos meios e dos métodos disponíveis à sua realização. Os aterros não representam nem representaram um fim em si mesmo pois são e foram o modo de obter o pretendido espaços planos de carácter público. Foram e são a solução técnica que permite a construção de novos territórios conquistados ao rio. Hoje, com um elevado grau de exigência sobre a qualidade das matérias a utilizar na sua realização e com soluções técnicas cada vez mais exigentes, consolidam-se esses espaços de modo a diminuírem-se riscos em situações de catástrofe. Deve-se procurar que novas acções de formação de território urbano realizado por aterros se façam numa perspectiva de gestão integrada dos territórios da qual é parte integrante a gestão das bacias hidrográficas e das zonas costeiras o que pode em muito contribuir para diminuir os riscos humanos em caso de ocorrência de catástrofes naturais (Dias, 2005).

6. Conclusão Os aterros foram, em todas as épocas, a solução mais económica de urbanização em relação à construção nas colinas e sobre o tecido consolidado, mais expedita por não ser necessário negociar com proprietários, mais efectiva pela proximidade à actividade de comércio portuário que contribuiu a essa opção. Foi uma solução que em grande medida possibilitou que Lisboa fosse conseguindo ultrapassar os diferentes desafios que a sociedade nas diferentes épocas lhe foi impondo. Contudo, todo este esforço de adaptação foi muito maior por ser necessário transformar a génese do território e não somente adaptá-lo pontualmente ou se as opções politicas e económicas da cidade tivessem sido outras que não a de ser uma importante cidade de comércio marítimo internacional, que muitos sempre defenderam como um propósito de Lisboa pela sua privilegiada posição geográfica que se desenvolveu inicialmente como entreposto entre o Mediterrâneo e o Atlântico, para se sedimentar ao longo da história no Atlântico e pelo mundo.

6.1 Gestão costeira integrada, análise e história urbana Procurámos neste trabalho, para além de tratarmos das matérias específicas de análise urbana e de caracterização fenomenológica dos espaços de estudo, Baixa e frente ribeirinha de Lisboa, evidenciar os aspectos que têm importância ao nível do conhecimento das transformações humanas sobre o território para a gestão costeira. Foi o homem que realizou e continua a realizar as transformações do território e é simultaneamente quem tem possibilidade de minimizar os riscos inerentes à sua construção. Este trabalho demonstra a estreita relação entre matérias aparentemente distantes, ou que muitas das vezes são tratadas como tal, quando integradas permitem compreensões mais globais. Este trabalho vai ser em fase posterior desenvolvido numa perspectiva de análise mais concreta dos elementos físicos e quantitativos que compõem estes espaços urbanos o que pensamos irá permitir um entendimento ainda mais abrangente, mais profundo e mais integrado das matérias tratadas tendo o precioso auxílio de instrumentos digitais de análise territorial.

A gestão costeira preocupa-se com a análise e planeamento de um espaço de conflito entre territórios marítimos e terrestres que são as zonas ribeirinhas e costeiras, locais mais sensíveis a riscos ambientais, onde hoje incide parte significativa da actividade e construção humana, que se sedimentou ao longo da história como vimos nos casos estudados da Baixa e frente ribeirinha de Lisboa.

uma permanente dicotomia entre a utilização de locais mais vulneráveis e de maior risco, como são as frentes ribeirinhas e costeiras, e o valor que a sociedade a esses mesmos espaços obrigando a consensos e equilíbrios muitas das vezes difíceis. Conhecer em termos históricos o que tem sucedido nos diferentes locais do território é um contributo significativo ao planeamento actual destas zonas ribeirinhas nomeadamente à sua monitorização e à realização de acções de prevenção. O que se passou neste local pode suceder noutros de características idênticas e essas memórias tratadas pela análise urbana, preservadas pela história urbana podem e devem articular-se com processos da gestão costeira integrada, na permanente procura de aproximação à totalidade do conhecimento sobre o território, de modo a que a construção do ambiente humano se faça com maior equilíbrio e tenha em consideração os processos naturais.


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