Efeito da casta no enraizamento de estacas semilenhosas de videira
Introdução
Actualmente o sector vitivinícola nacional dispõe de um conjunto de clones
seleccionados com elevado potencial genético, que tem contribuído para a
melhoria da qualidade dos vinhos e do rendimento dos viticultores.
A obtenção de clones de variedades de videira a partir de metodologias de
selecção apropriadas e a respectiva certificação pressupõem, por parte do
obtentor, a manutenção em cultura de um pequeno número de plantas – plantas “de
partida” – representativas de cada clone, sob condições de elevada defesa
sanitária. Todavia, estas plantas “de partida” não produzem material enxertável
em quantidade suficiente para a instalação de vinhas-mãe de garfos e posterior
multiplicação de materiais certificados pelos viveiristas, de forma a
responderem à procura do mercado.
Atendendo a que o processo clássico de multiplicação dos clones de videira é
lento e não se coaduna com as necessidades do mercado, torna-se necessário
recorrer a técnicas de multiplicação rápida desses novos materiais. A selecção
de novos clones exige a sua prémultiplicação acelerada como meio de resposta
imediata aos novos objectivos que forem sendo definidos pelos viticultores
(Martins et al., 2001).
Não só pela necessidade de multiplicar um material vegetal muito limitado em
quantidade (variedades e/ou clones novos), mas também por razões de ordem
sanitária, nomeadamente controlo de viroses transmissíveis pelo solo, desde
meados da década de 80 do século passado, o ENTAV (Établissement National
Technique pour l’Amélioration de la Viticulture), em França, tem recorrido com
sucesso a métodos de produção intensivos “sem solo”, utilizando estacas verdes,
ou seja, material não lenhoso. Esta técnica de produção, em estufa, de material
lenhoso enxertável constitui um progresso considerável em comparação com os
métodos de produção clássicos (Boidron e Auran, 1994).
Atendendo a que diversos estudos com a aplicação desta técnica apontam para a
existência de um efeito da variedade de videira no enraizamento das respectivas
estacas (Munoz e Valenzuela, 1978; Biasi et al., 1997; Moretti et al., 2001;
Roberto et al., 2004a; Bordin et al., 2005; Mayer et al., 2006) e
desconhecendo-se experiências de propagação de castas portuguesas através de
material vegetativo não lenhoso, considerou-se importante estudar a
multiplicação de algumas castas por este processo. Neste contexto, o principal
objectivo deste trabalho, na perspectiva de optimizar a multiplicação acelerada
de clones com elevado potencial genético de variedades de videira seleccionadas
(Martins et al., 2001), foi avaliar o enraizamento de algumas castas
portuguesas com clones homologados quando propagados por estacas semilenhosas,
tratadas e não tratadas com uma auxina sintética – o ácido naftalenoacético
(ANA).
Material e Métodos
O material vegetal foi obtido a partir das plantas “de partida” de um clone de
cada uma das castas Arinto B (cl. 38 EAN), Malvasia Fina B (cl. 100 ISA),
Aragonez T (cl. 59 EAN) e Trincadeira T (cl. 10 EAN), as quais foram objecto de
uma selecção clonal realizada pela “Rede Nacional da Selecção da Videira”. As
plantas envasadas encontram-se numa estufa da “VitiOeste de HortoPoense”,
tendo-se utilizado os terços basais e médios dos pâmpanos ou lançamentos de
plantas com bom desenvolvimento vegetativo. Ensaios preliminares (resultados
não apresentados) permitiram eliminar a aplicação do terço apical das estacas.
Os lançamentos foram colhidos durante o mês de Maio de 2008, entre as oito e as
nove horas da manhã, conservando-os húmidos até ao momento e durante a
preparação das estacas, de forma a mantê-los túrgidos e evitando, deste modo, o
rápido stress hídrico do material vegetativo. Os lançamentos foram
imediatamente segmentados em estacas com dois gomos, eliminando-se a folha do
nó basal e reduzindo em cerca de 50% a área da folha do nó superior da estaca.
A parte basal da estaca foi cortada a cerca de 3-4 cm abaixo do gomo basal e a
parte superior a cerca de 2-3 cm acima do nó com folha.
Em seguida, a zona das estacas abaixo do gomo basal foi mergulhada numa solução
de ANA, nas concentrações de 0 e 50 μM, durante 10 minutos. Na preparação das
soluções de hormona utilizou-se uma solução hidro- alcoólica a 1% para a sua
diluição, tendo-se acrescentado à solução testemunha a mesma quantidade de
álcool etílico usada na preparação da solução com auxina. Ensaios preliminares
(resultados não apresentados) permitiram eliminar concentrações de ANA
superiores a 50 μM e tempos de tratamento diferentes de 10 minutos.
Após o tratamento atrás referido, 40 estacas de cada combinação casta-
concentração de ANA foram colocadas aleatoriamente em tabuleiros (55 x 35 x 8
cm), contendo substrato composto por turfa e perlite, na proporção de 1:1 (v/
v), tendo-se enterrado a zona da estaca abaixo do nó basal. O substrato foi
abundantemente humedecido, de forma a assegurar a turgescência e sobrevivência
das estacas. Em cada tabuleiro, o conjunto das estacas foi protegido por uma
tampa transparente colocada 25 cm acima do respectivo bordo e o intervalo
protegido por película de plástico transparente, por forma a manter as estacas
num ambiente com uma humidade relativa (HR) próxima de 100%.
Os tabuleiros foram colocados numa câmara climatizada com controlo automático
de temperatura e fotoperíodo e com controlo manual da HR. As temperaturas
programadas para este ensaio foram de 26/23 ºC, para um fotoperíodo de 16L/8N.
A HR da câmara foi mantida acima dos 80%. Durante o período em que decorreu o
ensaio, procedeu-se ao controlo da humidade do substrato e à pulverização das
folhas com um produto antibotritis, de acordo com as necessidades.
Em suma, foi adoptado um delineamento experimental factorial a 2 factores
(factor casta com 4 níveis e factor concentração de ANA com 2 níveis)
totalmente casualizado com 40 repetições de cada combinação
casta ‑ concentração de ANA.
Trinta dias após a plantação avaliaram-se as percentagens de enraizamento e de
abrolhamento e o número de raízes emitidas por cada estaca, considerando-se
raízes principais as emitidas da estaca e que apresentavam um comprimento maior
ou igual a 1 cm.
Do conjunto das estacas enraizadas tomou-se uma amostra aleatória de n=12 de
cada combinação casta ‑ concentração de ANA. Nestas amostras foi avaliado o
comprimento total das raízes, o comprimento da maior raiz e o peso seco das
raízes. Este último parâmetro foi determinado após a secagem em estufa à
temperatura de 65 ºC, até peso constante.
A análise estatística dos dados foi realizada através do programa SAS, versão
9.1 (SAS Institute, 2003). Relativamente aos dados de enraizamento,
abrolhamento e número de raízes por estaca, ajustaram-se modelos lineares
generalizados, recorrendo-se para tal ao procedimento PROC GENMOD.
Concretamente, para as variáveis referentes ao enraizamento e ao abrolhamento,
ajustou-se o modelo Logit (modelo de regressão logística). No caso dos dados
relativos ao número de
raízes por estaca, ajustou-se o modelo log-linear. Sempre que um factor revelou
efeito significativo sobre a variável em estudo (com base em testes de razão de
verosimilhanças), procedeu-se à comparação das médias entre todos os possíveis
pares de níveis desse factor. No que respeita aos dados referentes às variáveis
resposta comprimento total das raízes, comprimento da maior raiz e peso seco
das raízes, ajustou-se um modelo linear clássico (análise de variância a dois
factores com interacção), recorrendo-se ao PROC ANOVA. Sempre que um factor
revelou efeito significativo sobre a variável resposta em estudo, procedeu-se à
respectiva comparação múltipla das médias entre níveis desse factor.
Resultados e Discussão
Para uma primeira abordagem descritiva, apresentam-se no Quadro I as médias
observadas das variáveis analisadas nas diversas castas, tratadas e não
tratadas com ANA. Sendo o principal objectivo deste trabalho optimizar a
multiplicação acelerada de clones seleccionados, torna-se desde logo
interessante olhar para a resposta ao enraizamento das estacas. Verifica-se que
os maiores e menores valores foram obtidos nas castas Trincadeira e Malvasia
Fina, respectivamente, o que aponta desde já para o possível efeito da casta
sobre a capacidade de enraizamento das estacas. Uma análise objectiva do
problema está resumida no Quadro II.
QUADRO I
Médias das percentagens de enraizamento e de abrolhamento, do número de raízes,
do comprimento total das raízes, do comprimento da maior raiz e do peso seco
das raízes observadas em estacas semilenhosas de várias castas, tratadas e não
tratadas com ANA
Averages of rooting and sprouting percentages, number of roots, total root
length, longer root and dry root weight found in softwood cuttings of grape
varieties treated with and without NAA
QUADRO II
Valores-p (p) referentes à análise estatística dos dados do enraizamento, do
abrolhamento, do número de raízes, do comprimento total das raízes, do
comprimento da maior raiz e do peso seco das raízes observados em estacas
semilenhosas de várias castas, tratadas e não tratadas com ANA
P-values (p) for the rooting and sprouting percentages, number of roots, total
root length, longer root and dry root weight found in softwood cuttings of
grape varieties treated with and without NAA
Os resultados referentes ao ajustamento global dos modelos aos dados das
diferentes variáveis resposta estudadas dizem-nos que, à excepção do número de
raízes por estaca, não houve interacção significativa entre os factores casta e
hormona (p> 0,05). Esta análise confirma ainda a ocorrência dum efeito
altamente significativo da casta sobre as variáveis enraizamento, abrolhamento,
comprimento total das raízes e comprimento da maior raiz (p< 0,01), não se
tendo verificado qualquer efeito deste factor sobre o peso seco das raízes (p>
0,05). Quanto ao factor hormona, os resultados mostram-nos que este factor não
induziu qualquer efeito significativo sobre as variáveis em estudo (Quadro II)
Um estudo mais detalhado no sentido de estudar quais as castas cujas médias
diferem entre si consta dos Quadros III e IV para as diferentes variáveis
estudadas.
QUADRO III
Estimativas das diferenças dos valores logit entre castas no enraizamento e no
abrolhamento de estacas semilenhosas resultantes do ajustamento do modelo de
regressão logística e valores-p associados
Estimated differences of logit values between varieties on the rooting and on
the sprounting of grapevine softwood cuttings resulting from the fitting of
logit model and associated p-value
QUADRO IV
Efeito da casta sobre o comprimento total das raízes, o comprimento da maior
raiz e o peso seco das raízes de estacas semilenhosas de várias castas
Effect of the variety on the total root length, longer root and dry root weight
in softwood cuttings of grapevine varietie
Analisando o efeito da casta sobre o enraizamento e sobre o abrolhamento, os
resultados apresentados no Quadro III mostram que as estacas da casta Malvasia
Fina apresentaram capacidades de enraizamento e de abrolhamento
significativamente inferiores às observadas nas estacas das restantes castas
(p< 0,05). Relativamente à variável enraizamento, verificou-se ainda que entre
as castas Arinto, Aragonez e Trincadeira não existem diferenças significativas.
Os comportamentos diferenciados entre variedades de videira quanto à capacidade
de formação de raízes adventícias em estacas herbáceas e semilenhosas foram
também observados por outros autores (Moretti e Borgo, 1985; Biasi et al.,
1997; Roberto et al., 2004b; Bordin et al., 2005), sendo a constituição
genética da casta o principal factor que explica os resultados observados
(Tofanelli et al., 2002; Fischer et al., 2008).
Apesar de não avaliados neste trabalho, outros factores têm sido referidos como
possíveis causas para as diferenças de enraizamento encontradas entre
variedades de videira, nomeadamente, uma eventual diferença do estado
nutricional das estacas (Faria et al., 2007) e as estruturas anatómicas das
variedades (Mayer et al., 2006). Relativamente a este último aspecto, existem
relatos de que as estacas de variedades de fácil enraizamento diferem
anatomicamente das que enraízam com mais dificuldade, nomeadamente, ao nível da
largura dos raios vasculares, da camada de esclerênquima, da quantidade de
tecido secundário formado e da actividade do câmbio (Mayer et al., 2006).
Quanto ao abrolhamento, observou-se um efeito significativamente positivo da
casta Aragonez sobre esta variável, não se tendo verificado diferenças
significativas entre os efeitos estimados nas castas Arinto e Trincadeira. No
entanto, a diferença significativa entre o abrolhamento das castas Malvasia
Fina e Aragonez observada neste estudo não foi influenciada pela fenologia, na
medida em que, em condições de campo, ambas são classificadas como castas de
meia-estação em relação ao abrolhamento, ou seja, em média, apresentam
exigências térmicas muito semelhantes (Lopes et al., 2008). Ainda relativamente
a esta variável, em todas as castas, verificaram-se valores médios inferiores
aos observados no enraizamento (Quadro I), possivelmente, devido à mobilização
prioritária dos nutrientes para a formação das raízes, com a consequente
inibição do abrolhamento dos gomos (Botelho et al., 2005a,b).
No que diz respeito às variáveis relativas às raízes, o Quadro IV e a Figura 1
evidenciam que as estacas de Malvasia Fina apresentaram um comprimento total
médio significativamente inferior ao observado nas restantes castas, mostrando
ainda que o maior valor médio obtido para esta variável foi registado na casta
Trincadeira. Entre as restantes castas não se obtiveram médias do comprimento
total das raízes significativamente diferentes.
Figura 1 – Aspectos das raízes emitidas pelas estacas semilenhosas das castas
Malvasia Fina (A) e Trincadeira (B) não tratadas com ANA.
Performance of softwood cuttings roots of the varieties Malvasia Fina (A) and
Trincadeira (B) not treated with NAA
Do mesmo quadro destaca-se também que o efeito da casta Aragonez sobre o
comprimento médio da maior raiz foi significativamente superior ao efeito das
outras castas e que não se verificaram diferenças significativas entre as
médias desta variável nas castas Arinto, Malvasia Fina e Trincadeira. À
primeira vista, o facto de na casta Aragonez se terem observado,
simultaneamente, o maior valor médio do comprimento da maior raiz e o melhor
abrolhamento pode ser devido à maior capacidade das estacas com raízes mais
compridas em absorver nutrientes e, por conseguinte, estimular o abrolhamento.
Ainda quanto às características das raízes, os resultados obtidos mostram que a
casta não teve um efeito significativo sobre o peso seco (Quadro IV). Porém,
estudando o efeito de outros factores, tais como a presença de folha e o
substrato sobre o enraizamento de estacas semilenhosas de duas variedades de
porta-enxertos de videira, alguns trabalhos mostram a existência de diferenças
significativas entre o peso seco das raízes de ambas (Roberto et al., 2004b;
Bordin et al., 2005).
No que diz respeito ao efeito da hormona sobre o enraizamento das estacas
semilenhosas, o facto de não termos verificado no nosso ensaio qualquer efeito
significativo no tratamento das estacas com ANA, na concentração de 50 μM
(Quadro II), leva-nos a considerar que as estacas já apresentavam um teor de
auxina endógeno suficiente para induzir o enraizamento, sendo ineficiente a
aplicação da auxina exógena naquela concentração. Segundo alguns autores, o
efeito da aplicação exógena de auxina pode depender da concentração aplicada,
da duração do tratamento e do tipo de auxina, mas também da idade do lançamento
de onde as estacas foram seccionadas e do tempo entre o corte e o tratamento
das estacas (Jarvis, 1986). Por outro lado, as características genéticas de
cada variedade podem mesmo influenciar a concentração do regulador de
crescimento que maximiza o enraizamento das estacas (Mindêllo Neto et al.,
2004). Deste modo, o menor êxito no enraizamento das estacas da casta Malvasia
Fina pode ser devido a que, quer a quantidade de auxina endógena, quer a
concentração de auxina exógena aplicada, quer a conjugação das duas não foram
apropriadas para a maximização do enraizamento.
No entanto, outros trabalhos em que as estacas foram tratadas com ácido
indolbutírico (AIB) referem resultados opostos. Por um lado, da aplicação de
AIB em pó não resultou um efeito significativo sobre o enraizamento de estacas
semilenhosas de duas variedades de Vitis rotundifolia (Biasi e Boszczwski,
2005), enquanto o tratamento com a mesma hormona aumentou significativamente o
enraizamento de estacas semilenhosas do porta-enxerto de videira Jales (Faria
et al., 2007).
Finalmente, analisando o efeito da auxina sobre os parâmetros que caracterizam
o desenvolvimento das raízes, nomeadamente, o peso seco, não se verificaram
diferenças significativas entre os tratamentos (p<0,05), tendo-se encontrado
resultados semelhantes noutros estudos sobre o efeito de várias concentrações
de AIB no enraizamento de estacas herbáceas de Vitis aestivalis (Keeley et al.,
2004) e de estacas semilenhosas de vários porta-enxertos de videira (Biasi e
Boszczwski, 2005; Faria et al., 2007).
De facto, diferentes concentrações de auxina podem inibir ou estimular o
crescimento e a diferenciação dos tecidos, existindo um nível óptimo para estas
respostas fisiológicas, dependendo directamente dos níveis endógenos dessas
substâncias (Botelho et al., 2005a), os quais podem variar entre espécies e
mesmo entre cultivares (Fischer et al., 2008). No entanto, além do balanço
hormonal, existem diversos factores internos e externos que parecem afectar o
sucesso do enraizamento de estacas herbáceas e semilenhosas de videira: o
estado de desenvolvimento da planta, o tipo de estaca (basal ou apical), as
condições ambientais e o substrato, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas condições deste ensaio, as percentagens de enraizamento e de abrolhamento
das estacas semilenhosas, assim como o comprimento total das raízes e o
comprimento da maior raíz mostraram ser influenciados pela casta, enquanto o
tratamento das estacas com ANA não foi suficientemente vantajoso para ser
utilizado na propagação em rotina dos clones/castas de videira usados no
presente trabalho, uma vez que as estacas sujeitas a tratamento hormonal não
apresentaram resultados significativamente superiores às não tratadas com
aquela auxina.
A técnica de propagação por estacas herbáceas e semilenhosas tem sido muito
utilizada, com êxito, na produção de diversas variedades de porta-enxertos de
videira. Os resultados deste trabalho indicam que também é possível a
utilização desta técnica na produção de material de propagação vegetativa de
clones de castas seleccionadas de Vitis vinifera L., nomeadamente na
multiplicação acelerada desses materiais vegetativos, de modo a obter uma
quantidade de gomos/garfos que se estima significativamente superior à
produzida pelo processo clássico.