Concentração de urânio em plantas desenvolvidas em solos agrícolas e de
escombreira da área mineira da Cunha Baixa (Mangualde)
INTRODUÇÃO
A exploração mineira gera grandes quantidades de resíduos que se acumulam,
frequentemente, à superfície em escombreiras de volumetria variável. Estes
resíduos são, em regra, enriquecidos em elementos vestigiais perigosos para o
Homem e o biota em geral e podem levar a uma perda da biodiversidade na área.
A dispersão fisicoquímica de contaminantes pela acção da água da chuva e pelo
vento a partir destes locais pode ser minimizada pela colonização daqueles
materiais por espécies vegetais, introduzidas pelo Homem ou de crescimento
espontâneo, desde que sejam tolerantes a ambientes extremos. Estes substratos
possuem elevadas concentrações de elementos químicos gravosos para o meio e,
na grande maioria dos casos, valores de pH bastante baixos associados a baixos
níveis de nutrientes para as plantas. Na envolvente das explorações mineiras,
as águas superficiais e subterrâneas e os solos são, também, frequentemente
afectados pelo impacto da actividade mineira. Se estes solos e águas
contaminadas forem usados para fins agrícolas, e se as espécies vegetais que
aí se cultivam apresentarem capacidade para absorver e concentrar na parte
aérea elementos químicos gravosos para a saúde, potenciarão desta forma a sua
transferência, através das cadeias tróficas, para o Homem.
Ao longo de quase um século (1907 2000) foram exploradas pela Empresa
Nacional de Urânio (ex-ENU) e entidades suas antecessoras, 59 minas uraníferas
distribuídas pelos distritos da Guarda, Viseu e Coimbra. Uma das mais
importantes áreas mineiras de exploração de minérios radioactivos da região
Centro Portuguesa foi a da Cunha Baixa que se localiza no concelho de
Mangualde, na vizinhança da povoação com o mesmo nome. Os trabalhos mineiros de
reconhecimento tiveram início em 1967 e a sua exploração decorreu entre 1970 e
1993. A caracterização geológica da área e as características da mineralização
assim como do método de exploração foram descritas por vários autores (Matos
Dias & Costa,1972; Santos Oliveira & Ávila, 2001; Neves, 2002). Da
exploração subterrânea e a céu-aberto resultaram grandes volumes de estéreis e
rejeitados que foram depositados em escombreiras, nas imediações da mina. Após
o seu fecho, foram tomadas medidas para diminuir o impacto visual e
paisagístico decorrentes desta actividade, quer ainda pela ex-ENU quer
recentemente pela Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM). Estas medidas
compreenderam a vegetalização das escombreiras junto ao céu-aberto principal,
com pinheiros (Pinus pinasterAiton). Inicialmente as acções de vegetalização
desenvolvidas pela ex-ENU não foram muito satisfatórias dado que a espécie
apresentava dificuldades de desenvolvimento (Figura 1a). Porém, actualmente,
verifica-se que não só o pinheiro parece adaptado às características físico-
químicas das escombreiras sem manifestar, aparentemente, sintomas visíveis de
toxicidade (Figura 1b), como também a área está a ser colonizada por espécies
espontâneas, como é o caso das do género Cytisus. Estudos realizados por
Petrova (2006) sobre o desenvolvimento de pinheiros (Pinus sylvestrisL. e
Pinus nigraArn.) em escombreiras de minas uraníferas da Bulgária, permitiram
concluir que nos primeiros anos o seu crescimento era significativamente
reprimido, mas que mais tarde este tipo de vegetação se ia adaptando às
condições desfavoráveis do meio conseguindo sobreviver com um desenvolvimento
vegetativo aparentemente normal.
Figura 1' Vista da recuperação paisagística da área mineira da Cunha Baixa: (a)
Setembro de 1996 e (b) Setembro de 2006 (* indica o mesmo ponto de referência)
A proximidade de uma área populacional (100 m a SW da mina) exigiu o
diagnóstico da natureza e extenção dos problemas ambientais existentes na
região envolvente à mina e os possíveis riscos químicos e radiológicos
associados à exploração mineira. Alguns estudos anteriormente desenvolvidos
(Neves, 2002; Santos Oliveira et al., 2005; Neves & Matias, 2008) indicaram
contaminação do meio hídrico com repercursões na qualidade da água superficial
(linha de água que drena a mina) e água sub-superficial que é utilizada, pela
população, para rega das culturas agrícolas.
Apesar de o urânio não ser reconhecido como um elemento essencial ou benéfico
tanto para as plantas como para os animais, muitas plantas podem absorvê-lo e
incorporá-lo na sua biomassa (Gulati et al., 1980; Ebbs et al., 1998; Shahandeh
& Hossner, 2002; Duquène et al., 2006). Os dados obtidos por estes autores
sugerem, por um lado, a possibilidade de fitoremediação de locais contaminados
com urânio e por outro, algum risco associado à ingestão de alimentos de
natureza vegetal.
Neste trabalho pretendeu-se avaliar e comparar a concentração e capacidade de
bioconcentração do urânio em diversas espécies vegetais que se desenvolveram em
solos de escombreira e cultivadas em solos da zona agrícola envolvente à área
mineira da Cunha Baixa.
MATERIAL E MÉTODOS
Na zona da escombreira, que preenche a antiga corta do céu-aberto principal da
Mina da Cunha Baixa, amostrou-se a parte aérea (folhas e raminhos) de uma
espécie arbórea plantada (Pinus pinasterAiton) e de duas espécies espontâneas
do estrato arbustivo: a giesta amarela (Cytisus striatus(Hill) Rothm) e a
giesta branca (Cytisus multiflorus(L'Hérit) Sweet). Nos terrenos agrícolas
localizados a jusante amostraram-se culturas como o milho (Zea maysL.), o
feijão verde (Phaseolus vulgarisL.) e a alface (Lactuca sativaL.), aí
cultivadas para consumo animal e humano. Em cada local de colheita das
plantas, amostrou-se o respectivo solo (amostra compósita 0-20 cm). A água
usada na rega das culturas agrícolas foi, igualmente, amostrada. As amostras
de milho (folhas e caule) e respectivos solos (S5 e S15), assim como a
respectiva água de rega foram colhidas em Setembro de 1996. As amostras
compósitas de plantas e solos foram obtidas com um mínimo de pelo menos três
subamostras. A restante amostragem foi realizada entre Setembro e Outubro de
2006 na sequência de ensaios de campo controlados e no âmbito do Projecto UCROP
(POCI e PPCDT/ECM/59188/2004). As amostras de solo com a referência SB6 e SB8
foram colhidas no mesmo terreno agrícola onde, dez anos antes, tinha sido
colhida a amostra de solo S15 e o milho aí cultivado.
Na fracção terra fina (<2 mm) do solo seco ao ar, determinou-se o pH em água
(1:2,5 m:v) e a salinidade através da condutividade eléctrica (CE) do extracto
de saturação (Póvoas & Barral, 1992). O material vegetal colhido na fase
de maturação, depois de bem lavado em água corrente seguida de água
desionizada, foi seco a 40 ºC, moído e enviado para análise química no Actlabs
Laboratory, Canadá. Amostras das águas de rega, bem como dos solos e das
soluções resultantes da extracção com acetato de amónio 0,5 M a pH 7 (fracção
de U disponível no solo) foram também analisadas no mesmo laboratório. O
urânio na água de rega foi determinado por ICP-OES. Nos solos e plantas por
ICP-MS: U total no solo, no extracto após digestão triácida; fracção disponível
do U no solo, extraída com acetato de amónio; U nas plantas, no extracto após
digestão com HNO3 e H2O2
Para caracterizar a capacidade de concentração de um elemento químico pelas
plantas é frequentemente utilizado o coeficiente de bioconcentração (CB),
definido pela relação entre a concentração do elemento na planta e a sua
concentração total no solo. No entanto, a determinação do CB considerando a
concentração da fracção disponível do elemento no solo, em alternativa ao seu
teor total, parece ser mais adequada, por aquela corresponder de forma mais
aproximada ao teor biodisponível (Nriagu & Allan 1993; Abreu et al., 2008).
Assim, neste trabalho a capacidade das plantas para concentrarem urânio na
parte aérea foi avaliada com base na concentração da fracção de urânio
disponível no solo.
A análise estatística de parte dos resultados foi realizada no programa
STATISTICA 7.0. Para aferir diferenças entre concentrações efectuou-se uma
análise de variância (ANOVA) pelo teste de Tukey HSD e recorreu-se ao
coeficiente linear de Pearson para avaliar possíveis correlações estatísticas.
O nível de significância usado neste estudo foi P < 0,05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No Quadro 1 apresentam-se as características dos solos agrícolas e dos solos
desenvolvidos sobre escombreira. Em 1996, os solos onde se desenvolveu o milho
(S5 e S15) e que foram regados com água contaminada em urânio (2 a 2,5 mg L-1)
eram hiperácidos (pH < 4,5) e muito pouco a moderadamente salinos (2 < CE < 12
mS cm-1). A concentração total (225 e 362 mg kg-1) e a fracção disponível de
urânio (158 e 128 mg kg-1) era bastante elevada, quando comparada com a
concentração de 12 mg kg-1indicada por Santos Oliveira et al. (2005) como sendo
o valor de fundo geoquímico para solos aluviais desenvolvidos na região da
Cunha Baixa ou mesmo com a concentração de 14 mg kg-1indicada para solos
amostrados fora da influência da mina da Urgeiriça (Araújo et al., 2001). Em
relação a estes valores, os solos S5 e S15 apresentavam-se em média 22 vezes
mais enriquecidos em urânio total.
Quadro 1 -Características dos solos agrícolas e dos solos desenvolvidos sobre
escombreira da área mineira da Cunha Baixa onde se colheram as amostras de
plantas
Comparando a amostra de solo S15 com as amostras de solo SB6 e SB8, verifica-se
que, no período de 10 anos que decorreu entre a primeira e a segunda colheita,
ocorreu uma melhoria na qualidade do solo, no que respeita a características
como o pH e salinidade assim como no teor de urânio disponível (Quadro 1).
Em 2006, todos os solos amostrados se apresentavam ácidos (4,6 < pH < 5,5),
muito pouco a pouco salinos (2 < CE < 8 mS cm-1) e com baixa concentração de
urânio disponível (< 13,3 mg kg-1) em relação ao teor total (68 a 259 mg kg-1),
ainda que este seja, em média, 10 vezes superior aos valores de referência
supracitados. Comparativamente a 1996, a concentração de urânio na água de
rega era, em 2006, também menor (0,94 a 0,96 mg L-1) o que confirma a tendência
da diminuição da contaminação da água já antes observada, durante a
monitorização feita até 2004, por Neves & Matias (2008). Apesar das
melhorias observadas, se considerarmos o valor guia preliminar de 23 mg kg-1,
estabelecido no Canadá, para o urânio em solos com uso agrícola, tendo em
atenção a protecção da saúde humana (PSQGHH, CCME, 2007), verificase que a
concentração deste elemento nos solos analisados continua muito elevada, pelo
que não se recomendaria a sua utilização para aquele fim.
O solo desenvolvido sobre a escombreira é hiperácido, não salino e com
percentagem considerável de urânio na fracção disponível (36,4%) relativamente
ao urânio total, cuja concentração se aproxima, em média, do determinado nos
solos agrícolas em 2006 (Quadro 1). Em 1997, três sondagens realizadas pela
ex-ENU a pedido do Laboratório Nacional de Energia e Geologia ' LNEG (ex-
Instituto Geológico e Mineiro ' IGM) nos resíduos mineiros do céu-aberto
principal, forneceram os seguintes valores médios de urânio total: 85, 201 e
164 mg kg '1(Neves, 2002). O valor de urânio total no solo da escombreira
sugere que a acção de lixiviação efectuada durante nove anos pelas águas
pluviais, aliada à acidez do meio ainda não foi suficiente para mobilizar de
forma considerável o urânio contido nestes resíduos, apesar de uma fracção
importante se encontrar sob formas potencialmente mobilizáveis (na solução do
solo e no complexo de troca).
No Quadro 2 apresenta-se a concentração de urânio na parte aérea das várias
espécies vegetais estudadas, assim como o respectivo valor do coeficiente de
bioconcentração. A concentração de U (peso seco) obtida nas diferentes espécies
desenvolvidas em solo de escombreira seguiu a seguinte ordem: pinheiro (P.
pinaster) >giesta branca (C. multiflorus) > giesta amarela (C. striatus). Os
teores de urânio nas plantas analisadas (< 13,9 mg kg-1) aproximam-se dos
determinados por Araújo et al. (2001)em folhas de pinheiro e de giestas (< 10
mg kg-1) que cresceram em escombreiras antigas, com mais de 40 anos, da mina da
Urgeiriça. Estes autores concluíram que estas espécies apresentavam um
comportamento exclusor, relativamente ao urânio, que impedia que atingisse
níveis tóxicos nas plantas apesar das elevadas concentrações totais do elemento
nos solos amostrados (69 a 356 mg U kg-1).
Quadro 2-Concentração de urânio (mg kg-1peso seco) na parte aérea de culturas
agrícolas e de plantas do estrato arbóreo e arbustivo e respectivo coeficiente
de bioconcentração (CB = [U na parte aérea da planta]/ [U disponível no solo])
As plantas de milho (Z. mays) desenvolvidas em solo agrícola e após rega com
água contaminada em urânio continham na sua parte aérea (folhas e caule)
valores semelhantes ao determinado na giesta amarela; tendo-se observado uma
maior concentração nas folhas (0,8 e 1,24 mg kg-1) do que no caule (0,13 e
0,17 mg kg-1) (Neves et al., 2003).
Em 2006, culturas de alface (L. sativa)e feijão (P. vulgaris) desenvolveram-se
em solos que apresentavam antes, respectivamente, da plantação e da
sementeira, diferentes concentrações de urânio total (SA2 e SB6: 92 e 248 mg
kg-1; SA4 e SB8: 53 e 109 mg kg-1, respectivamente). No final, e após rega com
água contaminada o teor médio de urânio no feijoeiro (folhas e caule) de ambos
os solos, era estatisticamente semelhante (1,46 e 1,24 mg kg-1peso seco)
enquanto que na alface, o teor médio de urânio nas folhas das plantas
desenvolvidas no solo mais contaminado (SB6) era quatro vezes superior (5,37 mg
U mg kg-1peso seco) ao determinado nas plantas do solo menos contaminado
(Quadro 2). Verificase, igualmente, que o teor de urânio na alface
desenvolvida no solo SB6 é superior ao referido na bibliografia disponível para
esta cultura; 2,15 mg U kg-1(peso seco) em alface que cresceu num solo
contendo um total de 17 mg U kg-1numa área mineira da Sérvia (Sarić et al.,
1995) e 2,30 mg U kg-1(peso seco) em alfaces de ensaios em vaso cujo solo não
contaminado foi regado com água contendo 1,2 mg U L-1(Hakonson-Hayes et al.,
2002). Apesar do teor de urânio nesta hortícola ser elevado, a estimativa da
exposição associada ao seu consumo por um adulto da população da Cunha Baixa,
revelou que esta é inferior à dose oral de referência (RfD) estabelecida pela
Agência de Protecção Ambiental Americana (US EPA) (Neves & Abreu, 2009).
A concentração de urânio, na parte aérea do milho e do feijoeiro, poderá
eventualmente representar riscos quer para os animais, através da sua
ingestão em grandes quantidades, quer para o solo, por decomposição dos
resíduos vegetais quando estes são incorporados no solo sob a forma de
fertilizante orgânico, como é prática corrente na região. A informação e dados
relativos a efeitos do urânio em animais domésticos ou selvagens são ainda
reduzidos. Sintomas da toxicidade do urânio referidos em animais domésticos
incluem alterações na morfologia das células sanguíneas, alterações na função
da tiróide e funções hepáticas e ainda o aparecimento de albumina na urina
(CCME, 2007).
O coeficiente de bioconcentração para o urânio indica que, entre as espécies
colonizadoras da escombreira o P. pinasterfoi a que mais concentrou o elemento
na parte aérea (CB = 0,32) e entre as espécies cultivadas, a alface (CB: 0,4 e
0,6) concentrou mais que o feijão (CB: 0,1 e 0,5) e que o milho (CB: 0,01).
Este coeficiente que, de acordo com a CCME (2007) varia com a espécie de planta
e com as diferentes propriedades do solo, regista variações desde < 0.001 até
1,8, mas é, geralmente, inferior a 1, o que sugere que a maioria das espécies
vegetais analisadas não é acumuladora de urânio.
Para as plantas analisadas, não se verificou correlação estatística entre o
teor do elemento na parte aérea e a concentração de urânio total e da fracção
disponível no solo.
CONCLUSÕES
O solo desenvolvido sobre a escombreira, que preenche o antigo céu-aberto
principal na área mineira da Cunha Baixa, e os solos agrícolas analisados
continuam, cerca de 13 anos após o fecho da mina, a apresentar concentrações
totais de urânio elevadas (68 a 258 mg kg-1), as quais segundo as normas
canadianas seriam um factor condicionante no que respeita à sua utilização
agrícola. O solo de escombreira e os colhidos há cerca de 10 anos têm maior
quantidade (35-70%) de urânio disponível e pH mais baixo (4,1-4,4) do que os
solos agrícolas colhidos mais recentemente. As espécies colonizadoras da
escombreira estão bem adaptadas ao substrato, sendo o pinheiro a espécie que
mais urânio concentrou na parte aérea (folhas e raminhos, peso seco): pinheiro
(13,9 mg kg-1); giesta branca (6,26 mg kg-1); e giesta amarela (0,96 mg kg-1).
Porém, nenhuma das espécies é acumuladora deste elemento (CB < 1), podendo por
isso, conjuntamente com a cobertura vegetal eficaz que oferecem, contribuir
para a estabilização dos resíduos mineiros, ainda com elevadas concentrações
em urânio, que constituem as escombreiras da mina da Cunha Baixa.
Apesar do coeficiente de bioacumulação indicar que nenhuma das espécies
cultivadas é bioacumuladora, a alface apresentou maior capacidade de
concentrar urânio na parte aérea (folhas) do que o feijoeiro (folhas e caule) e
do que o milho (folhas e caule). A absorção do urânio por estas plantas, a
partir do solo e/ou água de rega, ambos ainda considerados bastante
contaminados, e a sua translocação para a parte aérea não inviabilizou o seu
desenvolvimento vegetativo que é aparentemente normal.