Contribuição para o conhecimento de Garcia de Orta
INTRODUÇÃO
Nos finais da Idade Média, a partir do século XIV, começou a surgir uma forma
diferente de estar, a que Portugal não foi alheio, precursora do Renascimento.
Deixou de se aceitar simplesmente os seres vivos como eram, procurando
aprofundar-se o seu conhecimento através da experiência, revelando o gosto pela
sua observação pormenorizada e, notável para a época, sentindo-se a necessidade
de deixar o seu registo (Lopes, 2006).
Podemos encontrar esta atitude no Livro da montaria, de D. João I, que, sem ser
de modo algum um livro científico, patenteia uma mudança de pensamento. Foi
publicado em 1918, por ordem da Academia das Ciências de Lisboa, pela Imprensa
da Universidade de Coimbra.
Continuamos a verificar uma forma diferente de abordagem do tema no Livro de
ensinança de bem cavalgar toda a sela, de D. Duarte, verificando-se nele,
igualmente, novas inclinações de pensamento. Foi descoberto apenas em 1820, na
Biblioteca Real de Paris, e publicado em 1843 em Lisboa.
A expansão marítima e descobrimentos portugueses, tendo como objetivo a procura
de novos locais de comércio e o alargamento da fé cristã, decorreram nos
séculos XV e XVI, entre 1415 e 1543. Permitiram mudar os conceitos antigos
através da observação, tornando-a cada vez mais atenta e pormenorizada.
Os navegadores observaram, desde o início, que o mundo era maior, as novas
terras e o mundo natural eram diferentes da informação contida nos textos
clássicos greco-romanos. Aqueles viam com atenção tudo o que observavam e nos
seus roteiros de viagem incluíram os registos das novidades que encontravam,
prestando grande atenção ao novo mundo, geográfico e natural, que iam vendo.
Até essa altura, os conhecimentos de geografia existentes apoiavam-se,
nomeadamente, no livro de Ptolomeu, Introdução à geografia, e no de Marco Polo,
O livro das maravilhas ' A descrição do mundo.
Ptolomeu, grego-alexandrino, escreveu o seu texto na segunda metade do século
II, onde apresentava um mapa do mundo apenas com três continentes, Europa,
África e Ásia, o Oceano Índico como o maior e o Atlântico inexistente. A
primeira tradução para latim ocorreu no início do século XV, e a sua influência
permaneceu até ao século XVI. Foi uma parte traduzida para português em 1537.
Marco Pólo, veneziano, acompanhou o pai e um tio numa viagem comercial ao
oriente, em 1271, só regressando em 1295, tendo percorrido praticamente toda a
Ásia, detendo-se sobretudo na China. Algum tempo após a chegada, no resultado
de uma batalha, foi aprisionado, estando na cela juntamente com um escritor a
quem contou as suas aventuras. Este escreveu o livro citado, que foi traduzido
para latim em 1315, tendo um êxito enorme. Foi impresso em português em 1502.
A descoberta do caminho marítimo até a Índia, em 1498, tinha subjacente a ideia
que seria fácil obter aí as mercadorias orientais, nomeadamente as especiarias
e drogas medicinais, muito apreciadas na Europa, e assenhorarmo-nos do seu
comércio, que desde há muito era feito por Veneza e Génova.
Em Calecute, os portugueses depararam, com surpresa, que aquele comércio e
transporte eram feitos por muçulmanos. Estes eram tidos como inimigos dos
cristãos, principalmente desde a tomada de Constantinopla em 1453.
Para atingir o objetivo gizado foi necessário utilizar a força militar para
conquistar posições estratégicas do Índico, onde se instalaram feitorias-
fortalezas, se fez a ocupação de pequenos territórios e se estabeleceram
alianças locais, que permitiram assegurar, não só o domínio do comércio das
especiarias e drogas farmacêuticas, como o monopólio das rotas marítimas,
procurando estar nos locais de origem das mercadorias de maior valor. Todas as
operações foram comerciais e militares (Thomaz, 1998).
No entanto, dada a escassa e fantasiosa informação que existia sobre o Oriente,
a realidade encontrada continuou a ser uma surpresa para os portugueses, quer
em relação às civilizações que encontraram, quer relativamente às condições
geográficas e naturais (Loureiro, 1991).
Foi necessário observar, obter informações fidedignas e registar a realidade
sob todos os aspectos, nomeadamente a geográfica e natural, alargando o
conhecimento em vários domínios.
Devido à grande distância do reino, e sendo necessário uma administração
célere, estabeleceu-se um governo na Índia, com sede em Goa.
Este facto levou, em primeiro lugar, à existência de Vice-rei ou Governador,
aparecendo os necessários Órgãos de Administração Central e afluindo
religiosos, militares, nobres, intelectuais, boticários, físicos (nome
atribuído aos médicos na época), artífices, um hospital, imprensa, etc.
As revelações de navegantes, mercadores, missionários, cronistas, boticários e
físicos começaram a chegar à Europa, sequiosa delas.
Garcia de Orta vai figurar entre aquele número, integrando-se no movimento
renascentista, que se vivia na época.
De forma pioneira acrescenta e corrige informação botânica e médica com base no
que observou e soube pessoalmente no livro que nos deixou Colóquios dos
simples, e drogas e coisas medicinais da Índia..., publicado em 1563.
O seu nome é incontornável na História da Medicina, Farmacognosia e Botânica
orientais como tendo dado o primeiro contributo científico europeu para o
conhecimento das plantas medicinais orientais.
A sua obra, depois de um pouco transformada e posta em latim, teve enorme
repercussão na Europa, registando ainda, nos nossos dias, interesse científico
e trabalhos de investigação.
GARCIA DE ORTA
Percurso de vida
Devem-se ao Conde de Ficalho, em trabalho publicado em 1886, com segunda edição
em 1983, os primeiros estudos aprofundados sobre a vida de Garcia de Orta.
No entanto, o médico e historiador Silva Carvalho (1934) conseguiu a resposta a
muitas incógnitas que existiam acerca daquela figura, sua filiação, provável
data de nascimento, porque foi para a Índia sem retornar ao reino, o seu
casamento, data da sua morte, existência de tão poucos exemplares da primeira
edição da sua obra, de esta ter ficado quase na obscuridade até ao século XIX e
uma exaustiva análise dos Colóquios.
Com base nestes dois estudos, apresenta-se um pouco da sua vida.
Garcia de Orta, nasceu em Castelo de Vide, em data incerta, mas certamente no
início do século XVI. Era filho primogénito do casamento entre Fernão Orta,
mercador, e Leonor Gomes, judeus espanhóis que viviam em terras próximas de
Portugal, onde se refugiaram quando da expulsão daqueles pelos Reis Católicos e
se tornaram cristãos-novos. O casal teve também tês filhas.
Fernão Orta teve um filho anterior ao casamento.
Os dois primeiros estudos foram efectuados em Portugal, em lugar incerto,
admitindo-se que possa ter sido em Vila Viçosa e ter sido aí iniciada a amizade
com Martim Afonso de Sousa, fidalgo de alta linhagem desta vila.
A seguir a estes estudos foi para Espanha estudar nas Universidades de
Salamanca e Alcalá, sequência com que surgem nos Colóquios e defendida por
Ficalho (1983), ou inversamente, como neles se encontra referido por Dimas
Bosque, no prólogo da obra aos leitores.
Naquelas Universidades, tal como na restante Europa de então, os estudos
assentavam nos autores da Antiguidade, como Hipócrates, Teofrasto, Platão,
Aristóteles, Plínio, Dioscórides, Galeno e Avicena, entre outros, pelo que a
sua formação académica era fundamentada na autoridade dos textos destes.
Em Salamanca, o ensino era baseado nos livros árabes, nomeadamente em Avicena,
enquanto em Alcalá se seguiam, sobretudo, Hipócrates e Galeno, de acordo com o
movimento helenista italiano, mas não eram esquecidos os restantes textos
antigos. Na última Universidade referida tinha sido iniciada uma cadeira de
Botânica, a primeira a existir na Península.
Estes estudos deram-lhe a licenciatura em Artes, Filosofia e Medicina,em data
que se crê ser 1523.
Regressou à sua terra, tendo seu pai já falecido (1521), onde exerceu durante
algum tempo, tendo-se deslocado a Lisboa a fim de fazer exame perante o físico-
mor para poder exercer medicina e pedir licença para andar de mula em Abril de
1526.
Na região de onde era oriundo começaram a surgir muitas queixas contra os
judeus, assumidos ou ocultos, razão que o deve ter impelido a fixar-se em
Lisboa nesse mesmo ano, onde passou a exercer o seu mister, ao mesmo tempo que
começou a desenvolver esforços para leccionar cadeiras na Universidade, por
considerar que ali se encontraria mais protegido.
Foi admitido em 1530, regendo algumas cadeiras e eleito como deputado da
Universidade em 1533.
Por esta altura, o Rei sofria fortes pressões para que fosse instituída a
Inquisição em Portugal, pelo que os cristãos-novos, declarados ou não, se
sentiam inseguros e começaram a tomar providências para sair do país.
O seu velho amigo, Martim Afonso de Sousa, pertencia desde alguns anos atrás, à
casa de D. João III, foi designado como capitão-mor do mar da Índia, afim de
defender as feitorias portuguesas dos ataques de corsários e ocupação por
estrangeiros.
Foi Garcia de Orta integrado na armada como físico do seu amigo, a quem Orta
dedicou o seu livro, apelidando-o de seu protetor, referindo que o criou,
ajudou, favoreceu e disse que lhe pertencia.
A esquadra, composta por cinco naus, partiu para o Oriente a 12 de Março de
1534 chegando a Goa em Setembro desse mesmo ano.
Orta partiu, não só porque se sentia mais seguro na Índia, onde não se
vislumbravam movimentos contra os judeus, como também, como nos revelou no
início da sua obra, pelo seu grande desejo de conhecer as drogas medicinais e
outras mezinhas, assim como as frutas, a pimenta, saber seus nomes em todas as
línguas, os lugares onde nasciam, como eram as plantas que as produziam, como
as usavam os médicos indianos. Para além disto, queria ainda conhecer outras
plantas e frutas, mesmo que não fossem medicinais, bem como os costumes e
acontecimentos locais.
Acompanhou Afonso de Sousa em todos os seus empreendimentos como físico da
armada, durante os quatro anos que durou a empresa daquele.
Orta teve ensejo de percorrer a grande parte dos lugares portugueses e alguns
indianos, testemunhou tratados de paz com reis locais, fortes combates,
assistiu a tratamentos feitos por médicos árabes, entre outros acontecimentos.
Durante aquelas deslocações nunca perdeu o ensejo de ir a terra sempre que
aportavam, de conhecer as plantas, as doenças que existiam, os locais, as
raças, os costumes, as línguas, tudo o interessava e tudo observava
atentamente.
Afonso de Sousa regressou ao reino em finais de 1538 e Orta permaneceu em Goa,
pois a Inquisição tinha sido estabelecida em Portugal em 1536.
Em Goa adquiriu uma casa, exerceu a sua profissão, não só junto de figuras
relevantes, mas também de todos que dele necessitassem; também no hospital e
prisão, tinha alguns amigos, ia todos os dias à missa, mantinha relações
amistosas com Franciscanos, Dominicanos e Jesuítas e participava em cerimónias
académicas destes.
Na sua casa, tinha uma biblioteca com os livros que levou com ele e os que lhe
chegavam enviados do reino, estando na posse de tratados de medicina e história
natural de recente publicação e criou um pequeno museu com amostras que
arranjou das diversas drogas medicinais que ia conhecendo.
Esta habitação tinha um quintal onde Orta fazia sementeiras e plantações do que
lhe parecia interessante, como diversos jambeiros e outras fruteiras.
Apreciava percorrer o bazar das drogas onde existiam numerosos estabelecimentos
de médicos indianos, muçulmanos o outros. Observava tudo com atenção,
conversava com todos, inquiria sobre tudo o que era usado medicinalmente e suas
propriedades e de como as aplicavam, etc.
Fez amizade com o rei de um estado indiano nosso aliado, Buhran Nizam Shah, a
quem os portugueses chamavam Nizamaluco, um mulçumano de grande tolerância
religiosa, que se rodeava de homens de ciências e letras de todas as raças.
Passou várias vezes por esta corte onde pôde conviver, entre outros, com
médicos árabes e indianos, com os quais muito aprendeu e tirou dúvidas; e para
seu espanto, tinham conhecimento dos textos antigos, tanto dos árabes, como dos
da Antiguidade Clássica.
Como entendido na matéria, também se ocupou em comerciar drogas, pérolas e
pedras preciosas que enviava para o reino.
Martim Afonso de Sousa voltou à Índia em 1541, como Vice-Rei, lugar que ocupou
até 1546. Quando chegou, nomeou Garcia de Orta como seu físico, o que lhe
conferiu o lugar de Físico-mor.
Casou entre 1541 ou 1542 com Brianda Solis, sua prima, que pertencia a uma
família rica, que se deslocou para Goa na primeira data referida. Do seu
casamento nasceram duas filhas. Parece não ter sido feliz neste enlace, uma vez
que nunca se refere à sua família nos Colóquios, ao contrário do que faz com os
seus amigos.
Em 1548 foi-lhe cedida, por aforamento, a ilha de Mombaim, mais tarde
denominada Bombaim. Aqui tinha uma casa e um jardim muito cuidado, no qual
dispôs arbustos e árvores, por ele consideradas interessantes, provenientes das
mais variadas origens, até europeias, nunca antes vistas nestas paragens. Foi
onde se tentou, pioneiramente, a aclimatação de espécies, o prenúncio de um
Jardim Botânico.
Neste mesmo ano chegaram a Goa duas das suas irmãs, Catarina e Isabel, com a
respetiva família, e sua mãe, que ele chamara de Lisboa. As irmãs tinham estado
aprisionadas pelo Santo Ofício, conseguindo sair em liberdade.
Mais tarde privou com Camões, que chegou a Goa em 1559.
Contudo, em 1560 foi implementada a Inquisição em Goa.
Orta escrevia o seu livro que foi publicado em 1563, sob licença do Inquisidor
Aleixo Dias Falcão.
Em Lisboa tinha sido preso seu sobrinho, filho do seu meio-irmão, em 1561,
conseguindo sair reconciliado em 1563. No entanto, nos depoimentos que prestou,
disse que "tinha um tio, meio-irmão de seu pai, que andava na Índia e se
chamava Garcia Orta".
Estas informações chegaram a Goa, mas Orta tinha grande prestígio na cidade,
quer pelo exercício da sua profissão, quer pela publicação dos Colóquios e o
Inquisidor tinha licenciado a publicação, pelo que, então, nada lhe aconteceu.
Em 1568 estava doente, tendo falecido no primeiro semestre do ano, sendo o
funeral feito sem nada lhe acontecer.
No entanto, na posse dos elementos que tinha, o Inquisidor mandou prender a
irmã Catarina em Outubro daquele mesmo ano. Nos depoimentos que aquela prestou
acusou seu irmão de práticas judaizantes e outras pessoas, desdisse-se várias
vezes alternando em seguir a lei de Moisés ou ser cristã, acabando por ser
condenada em Outubro do ano seguinte. No fim do seu processo figura a lista das
pessoas incriminadas e que deviam ser procuradas, onde se incluía o nome de
Orta.
O Inquisidor Aleixo Dias Falcão deixou o cargo em 1572, sucedendo-lhe
Bartolomeu da Fonseca, que chegou a Goa em Outubro daquele ano.
O novo Inquisidor, tal como aconteceu com outros, abriu um processo, onde
Garcia de Orta foi considerado judeu praticante, apesar de ser batizado e
praticar atos cristãos, tendo sido lavrada a sentença: Garcia dorta doutor
cristão-novo português defunto morador que foi nesta cidade (Goa) por judeu
entregue seus ossos à justiça secular. Relaxado.
O auto de fé foi realizado em 4 de Dezembro de 1580 e os seus ossos lançados à
fogueira doze anos após a sua morte.
Como Aragão (1894) referiu, a inquisição alcançava até os mortos. Os crimes de
heresia nunca prescreviam. Se aqueles fossem reconhecidos posteriormente, os
cadáveres ou os esqueletos eram exumados, levados ao auto de fé. Ser
considerado relaxado implicava a vítima ser queimada na fogueira e os seus bens
sequestrados.
Nos anos seguintes, a Inquisição de Goa emitiu uma ordem para que as livrarias
fossem visitadas e os livros nelas existentes de autores infiéis ou que
continham matéria suspeita e não tinham sido autorizados pelo tribunal, fossem
queimados, pelo que a grande obra foi apreendida e teve destino idêntico.
Nas cópias dos processos em Goa, à irmã Catarina e seu marido, tal como nos
anteriormente em Lisboa de Catarina e Isabel, faltam os elementos que eram
anotados antes do interrogatório, como ascendentes, data da prisão,
denunciantes e respectivas declarações, o que foi mais um motivos para o
esquecimento do nome de Orta e saber quais os seus ascendentes.
O nome de Garcia de Orta, em Portugal, foi praticamente esquecido e ignorado
desde aquela altura até ao século XIX.
Foi referido apenas por Abraão Zacuto, que foi Astrónomo de D. João II e
prestou relevantes serviços a Portugal, de onde conseguiu fugir quando da ordem
de D. Manuel, e viveu no estrangeiro. Mencionou o nome do nosso médico nas suas
obras.
COLÓQUIOS DOS SIMPLES, E DROGAS
Garcia de Orta escreveu o seu livro, em 1563, de título: Coloquios dos simples,
e drogas he cousas mediçinais da India, e assi dalguas frutas achadas nella
onde se tratam alguas cousas tocantes amedicina, pratica, e outras cousas boas,
pera saber
A capa, a seguir ao título, apresenta: cõpostos pelo Doutor garcia dorta:
físico del Rey nosso senhor, vistos pello muyto Reverendo senhor, ho licenciado
Alexos diaz: falcam desembargador da casa da supricaçã inquisidor nestas
partes.
Seguindo-se: Com privilégio do Conde viso Rey.
E: Impresso em Goa, por Joannes de enden as x. dias de Abril de 1563. annos.
Constata-se que apresenta, para além do título, nome do autor e sua categoria
profissional, a informação relativa à autorização do Inquisidor de Goa, a
concessão do Vice-rei, e a relativa à edição.
Esta edição tipográfica foi muito imperfeita, contendo muitos erros. Estes
terão ocorrido devido à ausência do impressor principal e ter ficado nas mãos
de um companheiro, que não era muito hábil nem sabia do ofício, como foi
referido por Dimas Bosque no seu Prólogo no livro.
O autor ainda tentou corrigir os erros que detectou, num texto final, mas sem
grande sucesso.
Não podemos abordar a obra de Garcia de Orta sem nos debruçarmos sobre a Edição
publicada pela Academia Real das Ciências de Lisboa, dirigida e anotada pelo
Conde de Ficalho, em 1891-1895.
A Academia encarregou o Conde de Ficalho da publicação, revisão do texto e
redacção de notas.
O trabalho foi feito procurando deixar inalterada a doutrina, linguagem e
ortografia do autor, escrever por extenso as palavras que estavam abreviadas,
regularizar as letras maiúsculas que no século XVI não tinham regras fixas, pôr
em itálico as palavras latinas, procurar pontuar o texto de modo a dar sentido
às frases e corrigir os erros tipográficos que ocorreram durante a impressão.
Ficalho introduziu notas com o que de mais recente se sabia sobre os diversos
assuntos tratados no texto, quer a nível da botânica, identificando as plantas
referidas pelo seu nome científico à época, dando alguma informação sobre as
plantas ou drogas em questão, assim como da matéria médica do Oriente,
geografia e história e identificando as pessoas tratadas.
Não podemos, contudo, olvidar os valiosos contributos e análises que têm vindo
a ser dados por outros historiadores.
Analisando o livro, este apresenta em primeiro lugar o alvará do vice-rei pelo
qual, durante três anos, ninguém podia publicar a obra sem licença do autor,
sob pena de multa.
Segue-se o Prólogo com diversas participações.
A primeira, do autor, dedicando a obra a Martim Afonso de Sousa pelo autor, em
prosa, e em verso o envia ao seu benfeitor para análise e proteção.
Torna-se importante fazer a sua análise porque o autor apresenta elementos
interessantes.
Para além do elogio do seu protetor, diz ainda que este lhe tinha aconselhado a
passar a escrito o que sabia, o que para ele é uma ordem e solicita-lhe que o
defenda.
Revela que tinha composto primeiramente o livro em latim, o que seria de maior
gosto para Martim Afonso, mas que o pôs em português por ser mais geral a sua
compreensão, sobretudo para os que habitam aquela terra.
Refere também que ainda não produzira nada que aproveitasse aos mortais após
trinta anos que estava naquela terra, o que era motivo de repreensão, porque:
aqueles que por preguiça não deixam aos vindouros alguma mostra dos seus
trabalhos, como fazem os brutos animais, não se podem chamar homens, pois pouco
diferem daqueles.
Seguem-se os primeiros versos impressos de Luís de Camões, ao Vice-rei, O Conde
do Redondo.
Dimas Bosque apresenta duas intervenções: uma em português, onde faz grande
elogio do autor, traça o seu percurso de vida e comentários a que já
anteriormente aludimos; e outra em latim, dirigida a Thomaz Rodrigues da Veiga,
cristão-novo de ascendência espanhola, médico e professor prestigiado da
Universidade de Coimbra, pedindo-lhe a sua protecção para a obra.
Segue-se uma composição em verso e em latim, de Thoma Caiado elogiando a obra
que, segundo Ficalho, deveria ser um cidadão de Goa, com fama de latinista, que
aparece citado como tendo feito um louvor a D. João de Castro após a tomada de
Diu.
Vem em seguida a obra, sob a forma de 58 colóquios, onde as diversas plantas,
drogas, frutas e outras abordagens se dispõem por ordem alfabética.
Os colóquios desenvolvem-se entre dois interlocutores, Ruano e o próprio Orta,
colegas na Universidade, entrando, por vezes, outras personagens.
Ruano, também médico, vai à Índia afim de conhecer as suas mezinhas e todos os
simples. Tendo ouvido falar de Orta, conhecendo-se eles de longa data, vai-lhe
falar para que o esclareça. Interpreta o papel do que sabia e pensava o autor
ao chegar à Índia transportando o seu conhecimento adquirido na Universidade,
ou seja, segundo os textos antigos.
Garcia de Orta vai esclarecendo o amigo acerca de cada matéria, encarnando o
Orta daquela presente época, já com o conhecimento adquirido nos anos passados
no Oriente, mas apreendido da realidade observada atentamente, experimentada,
objetivada, amadurecido pela experiência, que lhe permitia tirar conclusões. Só
afirma que alguma coisa é boa, depois de o ter testemunhado ou recebido a
informação de pessoas conhecedoras e nas quais depositava confiança.
Consiste numa apresentação de plantas asiáticas, algumas conhecidas de há
muito, mas de forma deturpada, incompleta, ou apenas sob a forma de droga.
Cada Colóquio apresenta-se segundo o modelo predeterminado, no qual se salienta
a denominação da planta em cada língua da região, proveniência, distinguindo os
países de origem natural daqueles onde se cultivava, descrição da planta,
apresentando o porte, o caule, as raízes, as folhas, flores e frutos, analogias
com europeias, para que se usavam e modo de o fazer.
Trata-se de uma exposição em moldes científicos iniciada pelos renascentistas.
Nota-se, ainda, a chamada de atenção para as diversas partes da planta que se
deveria usar para cada caso e que as propriedades daquela variam de acordo com
a sua proveniência.
Continua a ser uma constatação científica. As propriedades da planta variam de
acordo com a composição química de cada órgão e a influência do habitat.
O diálogo desenvolve-se num permanente questionar do saber tradicional perante
o novo, apresenta-se com um constante intercâmbio de opiniões. Deste modo, são
criticadas muitas das informações dos autores clássicos, emendadas e
clarificadas de acordo com a realidade observada. Não menos-preza aqueles,
mostra que lhes tem respeito, mas, pela experiencia vivida, permite-se corrigi-
los.
Pela forma como tirou conclusões, após uma cuidadosa observação e
experimentação e a crítica segura e penetrante dos antigos, integra o movimento
intelectual da Renascença (Carvalho, 1934).
A atitude que tomou, conhecia e queria dar a conhecer, e a forma como o fez,
representa um sinónimo de modernidade, é a atitude de um renascentista, exige
conhecimentos e ousadia (Lopes, 2006).
Ainda como forma renascentista, a obra de Orta foi apresentada em diálogo como
intercâmbio de opiniões, enquanto o diálogo como transmissão de conhecimento
vinha desde a Antiguidade (Siepmann, 2008).
A obra de Garcia de Orta constitui o primeiro contributo científico europeu
para o conhecimento das plantas orientais, na maioria medicinais.
Para além de plantas também aborda outros aspectos, como algumas das suas
viagens, as relações sociais que mantinha e apontamentos da sua vida doméstica,
o que permitiu conhecer como terá sido a sua vida na Índia.
Esta obra constitui o primeiro livro de medicina escrito em português e por um
médico (Carvalho, 1934).
Os "Colóquios" constituem ainda hoje uma obra notável no tocante às drogas
indianas. Como cita Ficalho (1983), o Doutor F. A. Fluckinger, Professor de
Farmacognosia da Universidade de Strassburg, escreveu no final do século XIX "
Os Colóquios são sobretudo notáveis pela riqueza das informações e pelas
descrições muito circunstanciadas... Sempre que se tratar da história das
drogas indianas será necessário recorrer a Garcia de Orta os Colóquiosocuparão
um lugar de honra na história da Farmacognosia".
DIFUSÃO DA OBRA
Orta, ao optar por o escrever o seu livro em português, limitou a sua
divulgação internacional.
A língua erudita na época era o latim.
Charles de l'Écluse, conhecido pelo nome latinizado de Carolus Clusius, em
português Carlos Clúsio, teve papel primordial para aquela mensagem científica
ser difundida internacionalmente.
Foi um médico e botânico Flamengo, de renome na Europa no século XVI. Esteve na
Península Ibérica em viagem científica que iniciou em 1564. Em Lisboa teve
oportunidade de ver os Colóquios, que lhe despertaram enorme interesse, obtendo
um volume.
Publicou um livro em Antuérpia, em latim, em 1567, com o título Aromatum et
simplicium aliquot medicamentorum apud indos nascentium historia.
Este título corresponde a uma versão dos Colóquios, onde foram conservadas
todas as indicações científicas, mas retirada a forma de diálogo, e tudo o que
ele considerou a mais, alterada a ordem das matérias, introduzidas numerosas
notas e intercaladas 17 gravuras, tendo tido o cuidado de mencionar na capa que
era uma obra reduzida de uma escrita dois anos atrás, em diálogo e em
português, por Garcia de Orta, médico do Vice-rei.
Esta obra teve enorme aceitação e foi alvo de grande difusão, no entanto ao
alterar a sua estrutura e o diálogo metodológico e cultural, permanecendo
apenas o conteúdo científico, a novidade, retirou-lhe o caráter renascentista,
permanecendo apenas o factual (Lopes, 2006).
Sobre a difusão dos Colóquios, apoiamo-nos nos trabalhos de Silva (1934) e
Jaime Walter (1963).
Os Colóquios foram difundidos por meio da versão de Clúsio, que teve cinco
edições até 1605, por vezes com mais algumas anotações.
A sexta edição foi publicada em 1963, na Holanda, facsimilada da primeira,
comemorativa da edição goesa de Orta.
A sétima edição, fac-simile da primeira, consistiu numa versão portuguesa e
latina do livro de Clúsio, comemorativa do quarto centenário da publicação dos
Colóquios dos Simples, editada em Lisboa, pela Junta de Investigações do
Ultramar, em 1964.
A versão de Clúsio foi traduzida para italiano, em Veneza, que foi alvo de nove
edições até 1616.
Também teve uma tradução para francês, com duas edições: a primeira em 1602 e a
segunda em 1619.
Relativamente às edições dos Colóquios na sua versão original, apenas tiveram
cinco edições até aos nossos dias e uma tradução.
Verifica-se que da original, de 1563, se encontram muito poucos exemplares,
cerca de vinte e quatro em todo o mundo.
Ocorreu uma edição em 1872, da responsabilidade da Imprensa Nacional, Lisboa,
dirigida por Francisco Adolfo Varnhagen. Foi uma edição feita em ortografia
modernizada, com diversos erros. Teve pequena tiragem e o título contém um
acrescente "Várias cultivadas hoje no Brasil". Teve a virtude de dar a conhecer
o livro, no século XIX, tão falado, mas tão pouco conhecido.
À Academia das Ciências de Lisboa se deve a edição crítica e cuidadosamente
anotada do Conde de Ficalho. As notas são exaustivas, incluindo a identificação
científica das espécies tratadas. A obra ficou assim mais longa, pelo que foi
desdobrada em dois volumes, datados respectivamente, de 1891 e 1895.
Esta obra teve em 1987 a sua 2ª edição fac-similada, editada em Lisboa pela
Imprensa Nacional.
Surgiu este ano, 2011, a sua 3ª edição, reproduzida em fac-símileda edição de
1987 e da 2ª edição reproduzida em fac-símile da edição de 1891, editada pela
Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Ocorreu em 1963 uma edição, publicada pela Academia das Ciências, que é uma
reprodução fac-similada da edição de Goa, comemorando o quarto centenário da
primeira edição.
Uma tradução para inglês da edição do Conde de Ficalho, foi publicada em 1913,
em Londres, com introdução e índice de Sir Clements Markham.
Esta tradução foi novamente publicada em 1987, em Delhi, na Índia, pelo
Periodical Expert Book Agency, no entanto parece conter muitos erros.
CONCLUSÕES
Do exposto verifica-se que:
Garcia de Orta, nos Colóquios dos simples e das drogas e coisas medicinais da
Índia ,integra o movimento intelectual da época, sendo um dos portugueses que
melhor representa a Renascença científica de quinhentos.
Os Colóquiostiveram larga repercussão internacional, contribuindo
decisivamente para o avanço da ciência botânica, medica e farmacognosia,
nomeadamente tropical.
A primeira difusão ocorreu na Europa, graças à intervenção de Clúsio.
A difusão integral do texto, internacionalmente, só ocorreu após a edição
anotada pelo Conde Ficalho.
Teve enorme repercussão internacional no mundo científico da época.
Continua a ser alvo de vários estudos e análises, por nacionais e
estrangeiros, pelo que a edição ocorrida no corrente ano veio colmatar uma
falta há muito sentida pelos investigadores.