O factor de coberto vegetal, para árvores e Arbustos, em modelos de erosão
hídrica
INTRODUÇÃO
A conservação do solo e da água constitui prioridade fundamental na gestão
adequada de bacias hidrográficas e do uso dos terrenos. O combate à erosão
hídrica dos solos e o controlo dos escoamentos são dois dos principais aspectos
a ter em conta nestas estratégias de gestão. Em várias regiões do mundo,
nomeadamente em zonas de climas mediterrânicos do Sul da Europa, é comum uso
misto do solo, e observam-se cobertos arbóreos e arbustivos, muitas vezes
associadas a culturas arvenses, no subcoberto. A análise e tratamento destes
cobertos não tem sido objecto de estudos pormenorizados, no que respeita ao seu
comportamento hidrológico e os modelos de quantificação da erosão são,
praticamente, omissos neste aspecto.
Neste contexto, pretendeu-se compreender os principais efeitos destes cobertos,
em termos do processo de intercepção da precipitação, nomeadamente, retenção e
gotejo, e estabelecer uma componente a incluir em modelos de erosão, que
permita quantificar o factor de coberto vegetal quando se verifique a ocupação
do solo por cobertos arbóreos e arbustivos e a sua associação com culturas no
subcoberto, designadamente, para aplicação na equação universal da perda de
solo revista (RUSLE), em que a quantificação do coeficiente C se encontra
estabelecida, para culturas agrícolas.
O trabalho experimental utilizou um simulador de chuva, tendo-se obtido valores
do diâmetro das gotas (gotejo) das folhas de espécies características dos
sistemas de uso do solo mais comuns no Sul de Portugal, nomeadamente sobreiro
(Quercus suber L.); azinheira (Quercus ilex L. ssp. rotundifolia Lam) e
carrasco (Quercus coccifera L.), e quantificado valores de retenções (iniciais
e finais) na superfície das folhas.
A partir dos resultados obtidos estabeleceram-se cenários para o comportamento
hidrológico dos cobertos. Estimou-se a energia cinética para diferentes alturas
de queda e, consequentemente, valores de ajustamentos a aplicar ao factor C
tradicionalmente associado a culturas agrícolas.
A metodologia desenvolvida permite estimar valores do factor C a considerar em
cobertos arbóreos e arbustivos, isolados, em que o valor médio, a atribuir a
uma determinada área resultará da ponderação dos valores de C relativos às
culturas agrícolas e aos referidos tipos de coberto, em função das áreas
ocupadas e densidade de ocupação respectiva.
MATERIAL E MÉTODOS
Quantificação da erosão hídrica
Para quantificação da perda de solo por erosão hídrica as variáveis envolvidas
nos processos associados a este fenómeno são as características do clima
(Coutinho e Tomás, 1995), as propriedades do solo, a fisiografia das encostas
(espaço interfluvial), as características da superfície do terreno e as
actividades humanas e coberto vegetal (uso do solo).
A Equação Universal da Perda de Solo Revista (USLE/RUSLE) (Wischemeier e Smith,
1978; Renard et al. 1997), apresentada em seguida, traduz o modelo que permite
quantificar a erosão hídrica:
E = R . K . LS . C . P (1),
onde,
E - perda de solo por erosão hídrica (distribuída) (t. ha. ano -1);
R - erosividade da precipitação (MJ. mm. h -1. ha -1. ano -1);
K - erodibilidade do solo (t.h MJ -1. mm -1);
L S - factor fisiográfico (comprimento ' declive, adimensional);
C - factor de coberto vegetal (adimensional);
P - factor de prática agrícola (adimensional).
Nesta equação, a estimativa do factor relativo ao coberto vegetal é bastante
complexa, dado que o factor C traduz o efeito de protecção do solo, pelo
coberto vegetal, podendo variar entre os valores de um, quando o terreno não
apresenta nenhuma cultura (área protegida ≈ 0 %), e próximo de zero, quando a
área do solo protegida atinge um valor da ordem de 100%. O valor anual médio do
efeito de protecção do solo, pelo coberto vegetal resulta da ponderação, em
período médio, do factor de coberto, em cada período do calendário agrícola,
tal como, solo lavrado (após pousio), cama de sementeira, sementeira,
estabelecimento da cultura, maturidade, colheita e pousio; com a incidência da
precipitação (em %), em cada período do referido calendário. Para a estimativa
deste factor é, também, fundamental um conhecimento razoável das medidas de
gestão do coberto.
No trabalho desenvolvido pretende-se quantificar o factor cultura/coberto
(C') quando se verifique ocupação do solo por cobertos arbóreos e
arbustivos, e o seu eventual agrupamento com culturas agrícolas, cujo valor a
atribuir para uma determinada área resultará da ponderação dos valores de C
relativos às culturas agrícolas e os referidos aos diferentes tipos de coberto,
em função das áreas e densidade de ocupação respectiva.
Conceitos e comportamento hidrológico do coberto vegetal
Na análise da precipitação que atinge o solo podem considerar-se duas
componentes: a que atinge o solo sem ter sido interceptada pelo coberto arbóreo
ou arbustivo (precipitação directa); e, a que só chega após ter sido
interceptada pelas folhas, ramos e tronco. Na Figura 1 representa-se,
esquematicamente, o modelo conceptual do coberto vegetal na intercepção da
precipitação e indica-se a ênfase que é atribuída à modelação do gotejo.
Figura 1 ' Modelo conceptual do coberto vegetal na intercepção da precipitação.
Na precipitação sujeita à intercepção pelo coberto pode-se considerar que uma
parte origina escoamento pelo tronco, outra parte gotejo na periferia do copado
e a restante gotejo, sobre o solo, após as sucessivas intercepções sofridas em
várias camadas de folhagem, que se apresentam no trajecto das gotas.
O processo de intercepção pode ser dividido em três diferentes etapas.
Considera-se em primeiro lugar a fase de impacto da gota e a retenção
superficial, desde o momento em que a folha começa a acumular água até ficar
saturada. Durante a segunda etapa, em condições de saturação da superfície da
folha, a água que a atinge vai contribuir para o seu gotejo. A última etapa
ocorre quando terminada a precipitação ainda se mantém gotejo até se
estabelecer o nível de equilíbrio da retenção final à superfície das folhas. O
total de água interceptada é a soma da água retida pelo coberto e gotejo nas
referidas etapas (Antunes, 1995).
Face à complexidade do processo de intercepção da precipitação pelo coberto
vegetal (Herwitz e Slye, 1995), admitiu-se, inicialmente, a folha como uma sub-
rotina do modelo, tendo-se considerado como referência a folha do sobreiro.
Posteriormente, aplicou-se a referida sub-rotina, definida para cada folha
isoladamente, a um conjunto de folhas, no sentido de simular um coberto arbóreo
ou arbustivo, em que o grau de complexidade para análise do fenómeno de
intercepção e determinação do diâmetro das gotas é bastante maior. Além de se
atender a aspectos como a área foliar, a forma, a espessura, a morfologia do
bordo e o ângulo de exposição, em relação ao solo, adicionou-se o efeito de
sobreposição, entre folhas e ramos, em várias camadas, e a própria arquitectura
dos ramos e folhas, que confere diferentes tipos de geometria ao copado. Estes
aspectos são condicionantes dos valores de índice de área foliar (LAI) e de
matéria lenhosa (WAI) e, consequentemente, do comportamento hidrológico global
dos cobertos.
Da precipitação que incide no copado, uma parte atinge a primeira camada (dos
estratos da folhagem) e a restante vai atingir as camadas seguintes ou atingir
o solo, sem ser interceptada. Convém referir que, a partir da segunda camada,
há folhas que além de receberem a precipitação atmosférica não interceptada,
estão sujeitas ao gotejo proveniente de camadas anteriores, pelo que é
essencial conhecer-se a fracção de sobreposição entre camadas. Para se efectuar
a análise desenvolveram-se os conceitos de número médio de camadas e de
coeficiente de sobreposição entre camadas.
No modelo desenvolvido (Antunes, 1995; Coutinho e Antunes, 2000) houve a
preocupação de descrever e quantificar, sempre que possível, as características
morfológicas do coberto, aspecto fundamental para a análise de sensibilidade do
comportamento e, consequentemente, para modelação dos processos, no que à
intercepção diz respeito.
Para a modelação da precipitação interceptada pelo coberto interessa conhecer
os valores do gotejo que após retenção na folhagem atinge o solo. Com base
nestes valores e nas retenções superficiais estabelece-se o valor da
precipitação que efectivamente atinge o solo. Obtêm-se, também, os valores de
energia cinética da precipitação por gotejo, os valores do coeficiente
correctivo ao factor de coberto e, por último, o valor do factor de coberto a
afectar à parcela do subcoberto.
Desenvolvimento experimental
Para o estudo foi necessário construir um simulador de chuva e houve que
proceder à respectiva calibração, com o objectivo de se garantirem as
características adequadas da chuva artificial, nomeadamente, a intensidade, a
distribuição e o diâmetro das gotas formadas (Antunes, 1995). Para a
precipitação simulada na área de trabalho as intensidades podem variar entre 20
e 40 mmh-1.
Ao nível da análise do comportamento da folhagem, relativamente à medição da
retenção superficial e do gotejo, para se poder estimar o valor da área das
folhas das espécies em análise, foram obtidos ramos de sobreiro, azinheira e
carrasco nas zonas de Portel, Évora, Monsanto e Sintra. Procedeu-se à análise
estatística das características da dimensão das folhas (várias centenas), uma
vez que se pretendia garantir que na simulação seriam utilizadas folhas
consideradas representativas das espécies em estudo. No Quadro 1 indicam-se as
características principais de folhas de sobreiro, azinheira e carrasco
utilizadas no presente estudo.
Quadro_1
' Características das folhas de sobreiro, azinheira e carrasco, do Sul de
Portugal.
Nos ensaios foram medidos os volumes do gotejo e de retenção nas folhas. Para
as determinações efectuadas foram consideradas folhas com áreas foliares,
textura, tipo de bordo e inclinações diferentes.
Na metodologia de cálculo dos diâmetros do gotejo foram contados os números de
gotas e medidos os volumes totais de gotejo e da precipitação em recipientes de
controlo. A determinação do diâmetro das gotas (em mm) foi obtida por um
procedimento volumétrico global da quantidade de água gotejada e número de
gotas medidas. Admitiu-se a forma esférica das gotas.
Nas Figuras 2 e 3 observam-se fotografias que indicam a forma de recolha de
gotejos em duas situações: folha isolada e cascata de folhas, respectivamente.
Figura 2 - Esquema para recolher gotejos - Folha isolada.
Figura_3 - Esquema para recolher gotejos - Cascatas de folhas.
Das classes de comprimento de folhas, anteriormente indicadas no Quadro_1,
foram seleccionadas, folhas de dimensões classificadas como pequena, média e
grande, para a realização das medições. Para cada uma destas dimensões de folha
foram efectuados três medições, num total de nove ensaios que foram
posteriormente replicados (Paulo, 1998), conduzindo aos resultados na gama dos
valores apresentados no Quadro 2 e Quadro 3.
Quadro 2 ' Produção de gotas em folhas de sobreiro, azinheira e carrasco, do
Sul de Portugal.
Quadro 3 ' Retenções foliares em sobreiro, azinheira e carrasco, do Sul de
Portugal.
No Quadro 2 indicam-se para as classes de comprimento das folhas utilizadas, os
valores máximo, mínimo e médio do volume das gotas e os respectivos diâmetros.
O valor da retenção (em mm) foi obtido pela diferença entre a estimativa do
volume da precipitação e do volume de gotejo dividida pela área de cada folha.
No Quadro 3 apresentam-se, para as principais classes de comprimento das folhas
utilizadas no presente estudo, os valores de retenções foliares em sobreiro,
azinheira e carrasco.
Uma vez determinado o diâmetro das gotas é possível calcular a respectiva
energia cinética ao atingir o solo, por unidade de gotejo no subcoberto (Epema
e Riezebos, 1983). O valor ponderado da energia, correspondente a diferentes
dimensões de folhas, constitui a erosividade média do gotejo. A energia
correspondente a diferentes diâmetros e alturas de queda foi determinada
analiticamente.
Da comparação deste valor com o da erosividade da precipitação de referência '
1 mm de precipitação com intensidade de 20 mm.h-1 - (Epema e Riezebos, 1983)
resulta o factor de correcção do coeficiente de coberto arbóreo. O valor médio
da energia da precipitação natural é de cerca de 20,2 J.mm-1.m-2. A energia
cinética correspondente ao gotejo no subcoberto, varia entre cerca de 4,5 a
27,8 J.mm-1.m-2, respectivamente, para quedas médias de 0,5 e 5,0 m.
O valor do coeficiente de coberto para situações mistas (C') resulta da
ponderação dos coeficientes de coberto aplicáveis às culturas sobre o terreno
(C), sujeitas à precipitação não interceptada, com os valores correspondentes
ao gotejo, tomando em consideração a respectiva altura de queda média, conforme
apresentado em seguida:
C' = fC . C (2)
onde,
C' - coeficiente de coberto para situações mistas (adimensional);
fC - factor correctivo;
C - factor de coberto vegetal ' RUSLE (adimensional).
RESULTADOS
Na análise das características da retenção superficial das folhas consideraram-
se dois aspectos: a retenção até ao início do gotejo; e, a retenção final. O
volume de retenção é uma função da área da folha, mas compreende uma parcela
significativa relacionada com a textura da superfície, incluindo a rugosidade
do tecido e a incisão das nervuras. Assim, a retenção final, específica,
observada apresenta valores superiores nas folhas pequenas e o volume de
retenção, obviamente, é maior nas folhas grandes.
Observou-se que a dimensão das gotas (gotejo) não varia significativamente com
a intensidade da precipitação simulada. Essa situação foi ainda confirmada pelo
dispositivo de simulação de gotejos em cascata (Figura_3). As variações que se
observaram, em função das dimensões das folhas, têm a ver com a respectiva área
mas, principalmente, com particularidades da geometria geral da folha,
especialmente a irregularidade da superfície e o dentado dos bordos, na
vizinhança dos pontos em que se formam as gotas.
Verificou-se, em termos estatísticos da análise morfológica das folhas das três
espécies estudadas, que a sua geometria, em termos práticos, era idêntica e que
em termos hidrológicos apresentavam o mesmo comportamento, pelo que se podiam
considerar idênticas (Coutinho e Antunes, 2000). A espécie carrasco, em termos
de representatividade e uso não é relevante pelo que, nos resultados, se
mencionam apenas o sobreiro e a azinheira.
No Quadro 4 apresentam-se os valores de retenção média e de diâmetro médio do
gotejo, para sobreiro e azinheira.
Quadro 4 ' Valores de retenção média e de diâmetro médio do gotejo, para folhas
de sobreiro e azinheira.
Nota-se que a gama de variação observada é função, fundamentalmente, das
dimensões das folhas e independente das espécies consideradas. Para a retenção,
os maiores valores correspondem a folhas de menor dimensão, sendo o diâmetro do
gotejo influenciado pela forma do bordo da folha.
Em casos de sobreiro e azinheira com índices de área foliar (LAI) de cerca de,
5,0 a 8,0 as retenções totais podem atingir o valor de cerca de 3,0 mm.
Decorre dos resultados referidos que, em situações de cobertos mistos, é
necessário na determinação do valor de C' tomar em consideração, no
balanço hídrico, os efeitos de retenção na folhagem, e, na erosão, a energia
cinética do gotejo.
Para a área do subcoberto, afectada pelo gotejo, o valor a adoptar para
C' resulta da aplicação da expressão (2). Na referida expressão o factor
correctivo (fC) é função da altura média do coberto, conforme apresentado na
Figura 4.
Figura 4 - Factor correctivo do coeficiente de coberto, em cobertos mistos com
sobreiro e azinheira.
CONCLUSÕES
As conclusões mais significativas deste estudo são apresentadas de seguida:
a) a retenção superficial (específica) da folhagem depende das características
das folhas, sendo maior para folhas de menor dimensão;
b) a dimensão das gotas (gotejo) depende das características do bordo das
folhas e é, praticamente, independente da intensidade da precipitação;
c) a erosividade do gotejo depende do valor médio da altura de queda das gotas
(das folhas ao solo);
d) no sobreiro e azinheira as retenções totais podem ultrapassar valores de
cerca de 3,0 mm;
e) para quedas médias de gotejo inferiores a cerca de 2,0 a 3,0 m, a
erosividade em subcobertos arbóreos e arbustivos (sobreiro e azinheira) é
inferior à da precipitação não interceptada;
f) os valores obtidos permitem estimar para cobertos arbóreos e arbustivos, com
maior rigor, balanços hídricos, erosividades da precipitação efectiva (sob o
coberto) e factores de coberto vegetal C' (corrigidos), em situações
mistas, com diversos estratos de coberto.