Mais ACCORD: o que é demais é erro?
Mais ACCORD – o que é demais é erro?
Conceição Alves
USF S. Julião
ACES Oeiras
The ACCORD Study Group. Long-term effects of intensive glucose lowering on
cardiovascular outcomes. N Engl J Med 2011 Mar 3; 364 (9): 818-28.
Na Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2), estudos epidemiológicos identificaram uma
relação entre o nível de hemoglobina glicosilada (HbA1C) e eventos
cardiovasculares. O estudo ACCORD pretendeu determinar se a diminuição da HbA1C
para valores inferiores a 6,0% reduz o risco de eventos cardiovasculares
importantes em doentes com DM2 e doença cardiovascular estabelecida ou factores
de risco cardiovascular adicionais. Porém, quando foram analisados os dados
correspondentes a 3,5 anos de seguimento médio, o comité independente que
acompanhava o ensaio recomendou a sua suspensão devido a maior mortalidade no
grupo de tratamento intensivo.
Este artigo descreve agora os outcomes a 5 anos desde o início do estudo, em
termos de mortalidade e eventos cardiovasculares major, após tratamento
hipoglicemiante intensivo por um período médio de 3,7 anos.
Métodos
Ensaio clínico que recrutou diabéticos entre os 40 e os 79 anos de idade, com
HbA1C ≥7,5% e doença cardiovascular ou factores de risco cardiovascular
adicionais.
Os doentes foram aleatorizados para tratamento hipoglicemiante intensivo, com
HbA1C-alvo <6,0%, ou tratamento padrão, com HbA1C-alvo de 7,0 a 7,9%. Devido a
mortalidade superior no grupo do tratamento intensivo, esta estratégia foi
descontinuada após 3,7 anos e todos os participantes transitaram para
tratamento padrão, com HbA1C-alvo de 7,0 a 7,9%, e foram seguidos por mais 1,2
anos.
Foram também aleatorizados 4733 doentes para tratamento anti-hipertensor
intensivo ou padrão e 5518 doentes para tratamento anti-dislipidémico com
estatina e fenofibrato ou estatina e placebo.
Registaram-se os outcomes primários (enfarte do miocárdio não fatal, acidente
vascular cerebral não fatal ou morte por causas cardiovasculares) e outcome
secundário (morte por qualquer causa) antes da fase de transição e até à data
final do ensaio.
Resultados
O estudo englobou 10.251 doentes, com uma média de idade de 62,2 anos e de
duração da DM2 de 10 anos.
Antes da fase de transição, a HbA1C mediana no grupo de tratamento intensivo
foi de 6,4% (7,5% no padrão). No final do ensaio, este valor foi de 7,2% (7,6%
no padrão).
A incidência do outcome primário global não diferiu de forma significativa
entre grupos antes da fase de transição (2,0% no intensivo versus 2,2% no
padrão) e até ao final do ensaio (2,1% versus 2,2%). Contudo, o grupo de
tratamento intensivo teve mais mortes por qualquer causa, primeiramente
cardiovascular (hazard ratio [HR] 1,21; intervalo de confiança [IC] 95% 1,02-
1,44; p=0,036) e menos enfartes do miocárdio não fatais (HR 0,79; IC 95% 0,66-
0,95; p=0,01). Estas associações persistiram durante todo o período de
seguimento (HR para morte de 1,19; IC 95% 1,03-1,38; p=0,02; e HR para enfarte
do miocárdio não fatal de 0,82; IC 95% 0,70-0,96; p=0,01).
Registou-se ainda uma interacção significativa entre o grupo de tratamento
hipoglicemiante intensivo e o grupo de tratamento anti-hipertensor intensivo,
durante todo o período de seguimento. Observou-se que, antes da fase de
transição, a taxa de mortalidade por qualquer causa foi ligeiramente superior
no grupo de tratamento hipoglicemiante e anti-hipertensor intensivos,
comparativamente à do grupo de tratamento hipoglicemiante padrão e anti-
hipertensor intensivo (HR 1,45; IC 95% 1,00-2,12; p=0,05).
Não houve interacções significativas entre os grupos de tratamento
hipoglicemiante e de tratamento dislipidémico.
No período pós-transição, o uso de fármacos hipoglicemiantes e taxas de
hipoglicémia grave e outros eventos adversos foram similares nos dois grupos.
No final do ensaio, verificou-se um ganho ponderal superior a 10 kg do peso
inicial em 15,8% dos doentes do grupo intensivo, versus 10,1% nos do grupo
padrão.
Discussão
Quando comparado com o tratamento padrão, o tratamento hipoglicemiante
intensivo por 3,7 anos para uma HbA1C-alvo <6,0% diminuiu os enfartes do
miocárdio não fatais a 5 anos, mas aumentou a mortalidade a 5 anos.
Tendo em conta as análises exploratórias efectuadas após a conclusão do estudo,
este fenómeno não poderá ser explicado por hipoglicémias graves, nem pelo grau
de redução dos níveis de HbA1C. Estudos futuros deverão explorar, por exemplo,
o papel dos vários fármacos, suas combinações e interacções; o efeito do ganho
ponderal; o período relativamente curto de intervenção (3,7 anos); e a
interacção observada entre os ensaios da tensão arterial e glicémia no que
respeita à mortalidade.
Os resultados do ensaio ACCORD mostram que, em diabéticos de evolução longa,
com alto risco de doença cardiovascular, uma abordagem terapêutica intensiva
visando uma HbA1C <6,0% com recurso a medicações múltiplas está associada a
maior mortalidade do que uma abordagem padrão com HbA1C-alvo superior.
Sugere-se uma HbA1C-alvo menos ambiciosa/rígida para doentes de alto risco com
DM2 avançada, alcançada através da combinação das várias abordagens
correntemente disponíveis.
Comentário
A DM2 é um factor de risco independente para doença cardiovascular e morte e
muitas análises identificaram uma relação progressiva entre hiperglicemia e
estes outcomes. Os ensaios clínicos controlados aleatorizados UKPDS, PROactive,
ADVANCE, VADT e ACCORD procuraram responder à incerteza quanto ao facto de um
tratamento hipoglicemiante intensivo, em detrimento de um tratamento padrão,
poder reduzir o risco aumentado de doença cardiovascular nos DM2. Uma meta-
análise, que reuniu os resultados dos 33.040 participantes dos cinco ensaios
referidos, mostrou de forma consistente que o tratamento hipoglicemiante
intensivo tem benefício cardiovascular, comparado com o tratamento padrão.1
Durante 5 anos de tratamento, a redução da HbA1C em 0,9% diminuiu,
significativamente, o enfarte do miocárdio não fatal em 17% (odds ratio [OR]
0,83; IC 95% 0,75-0,93) e os eventos coronários em 15% (OR 0,85; IC 95% 0,77-
0,93) e, de forma não significativa, o AVC em 7%. Contudo, não se conseguiu
provar um benefício claro na mortalidade por qualquer causa, tendo-se registado
significativa heterogeneidade entre ensaios, nomeadamente, quanto a
características demográficas dos doentes, duração do ensaio e esquemas
terapêuticos hipoglicemiantes utilizados. Por exemplo, nos ensaios ACCORD e
VADT, onde se demonstrou um aumento da mortalidade no grupo de tratamento
hipoglicemiante intensivo, os pacientes tinham o diagnóstico mais longo de
diabetes (pelo menos 10 anos), com a concentração de HbA1C mais elevada no
início do ensaio, e com um risco maior de hipoglicemia. Quanto à HbA1C final
alcançada nos grupos de tratamento intensivo, apenas no ACCORD se situou abaixo
dos 6,5%; nos outros ensaios variou entre 6,8 e 7,0%.
Este seguimento adicional do ensaio ACCORD vem reforçar os resultados obtidos
no período de 3,7 anos de tratamento hipoglicemiante intensivo – o alvo
terapêutico da HbA1C não poderá ser a sua aproximação, a qualquer custo, a
valores normais em qualquer população diabética. Os potenciais benefícios duma
terapia hipoglicemiante intensiva poderão não compensar os riscos e ter
repercussões negativas, até mesmo a longo prazo, como se verificou na
mortalidade aumentada no grupo de tratamento intensivo, durante todo o
seguimento, mesmo após a estratégia terapêutica ter mudado para a do grupo
padrão.
Evidência sólida sugere que o tratamento dislipidémico e a redução da pressão
arterial são, de facto, benéficos na redução dos eventos cardiovasculares e na
mortalidade por qualquer causa nos indivíduos com DM2.1 Todavia, os resultados
do ensaio ACCORD vêm pôr em causa a segurança de um duplo controlo intensivo,
quer glicémico, quer tensional, em populações diabéticas com risco
cardiovascular aumentado.
Actualmente, em termos de normas clínicas sobre controlo glicémico, há a
referir que a National Institute for Health and Clinical Excellence recomenda
uma HbA1C-alvo de 6,5%, se esta for alcançável através de mudanças de estilos
de vida ou de apenas um antidiabético oral. Já em doentes que requeiram um
tratamento mais intensivo (dois ou mais fármacos hipoglicemiantes, incluindo a
insulina), o recomendado será uma HbA1C-alvo <7,5%.2
As normas mais recentes da Direcção-Geral da Saúde continuam a defender uma
HbA1C-alvo <6,5%. Referem, também, o seu ajuste individualmente, consoante a
idade, esperança de vida, tempo de evolução da doença, risco de hipoglicemia e
presença de doença cardiovascular e/ou de outras co-morbilidades.3 A
mortalidade aumentada verificada no grupo de tratamento intensivo do ensaio
ACCORD, cujo valor mediano da HbA1C, após 3,7 anos da estratégia intensiva, foi
de 6,4%, ou seja, inferior a 6,5%, salienta a urgência de se estabelecer uma
HbA1C-alvo com um risco-benefício mais adequado à população diabética de maior
risco.