Avaliação da pressão arterial no ambulatório: Revisão baseada na evidência
INTRODUÇÃO
Descrita há mais de um século por Koroktoff, a técnica clássica de medição do
consultório tem persistido como o método de eleição para a avaliação da pressão
arterial (PA). No entanto, nas últimas décadas, a literatura tem vindo a
identificar nesta várias limitações.1-4 Estas derivam sobretudo do facto de se
aplicar um método de medição casual e temporalmente pontual - a medição no
consultório - a um parâmetro com uma variabilidade fisiológica considerável ao
longo das 24h diárias.5
Desta simbiose podem resultar dois erros grosseiros de avaliação diagnóstica.
Por um lado, podem ser diagnosticados como hipertensos indivíduos com médias
diárias normais. Esta situação - hipertensão da bata branca - pode encontrar-se
em percentagens superiores a 20%.2 Por outro lado, os indivíduos hipertensos
não apresentam os valores de PA sempre acima do limiar diagnóstico ao longo das
24h diárias, podendo originar o fenómeno da ocultação diagnóstica - hipertensão
mascarada - descrita recentemente por Thomas Pickering.3
Os prejuízos para os doentes podem ser significativos. Considerando as duas
situações, mais de um terço dos utentes da nossa prática clínica podem estar
diagnosticados erradamente, uma parte deles crendo ter um problema de saúde na
realidade inexistente e fazendo medicação sem necessidade - na hipertensão da
bata branca - e outra parte perpetuando um risco vascular elevado - na
hipertensão mascarada. Outra questão suplementar se poderá ainda levantar.
Considerando as falhas metodológicas do método convencional do consultório,
será este suficientemente preciso para a avaliação no seguimento dos
hipertensos efectivos?
Uma correcta medição e interpretação da PA é essencial para o diagnóstico e
avaliação da HTA, um factor de risco com um impacto importante no indivíduo e
na sociedade.1,6,7 A medição da PA no ambulatório teoricamente confere
vantagens porque, ao contrário da medição casual do consultório, é realizada
num ambiente neutro para o utente, permitindo ainda retirar informação de uma
sequência temporal.1
A auto-medição da pressão arterial (AMPA) e a monitorização ambulatória da
pressão arterial de 24h (MAPA) são as duas grandes técnicas de medição da PA no
ambulatório.1 A AMPA obtém a sequência temporal da PA através da média de
várias medições - segundo a Sociedade Europeia de Hipertensão,8 a média de sete
dias de medições, pelo menos duas de manhã e duas à noite, desprezando os
resultados do primeiro dia. A MAPA obtém a sequência nas 24h diárias.9 Permite
ainda obter informações adicionais, nas quais se destaca o perfil circadiano, o
qual classifica o hipertenso como dipper, não dipper e reverse dipper,
consoante o grau de descida de PA nocturna em relação à diurna.5
As técnicas de medição da PA no ambulatório têm vindo a registar evidência
crescente nas últimas décadas.10 Desde 198311 que a MAPA tem vindo a ser
sustentada como técnica muito vantajosa em termos prognósticos, qualidade que
lhe é apontada por permitir extrair informação das 24h diárias. Dentro da MAPA,
a relação entre PA diurna e nocturna, estratificando os doentes em dippers,
non-dippers e reverse dippers, tem sido considerada um excelente marcador
prognóstico.2,9 Foi em 1988 que O'Brien12 reportou pela primeira vez a
associação entre um ritmo circadiano anormal, traduzido por descida menos
acentuada da PA nocturna - perfil non-dipper - e acidentes vasculares
cerebrais. Já a AMPA, como técnica validada para o estudo do doente hipertenso,
teve um desenvolvimento mais recente, aliada ao potencial criado pela
proliferação dos aparelhos de auto-medição.1,4
A conveniência da utilização da técnica convencional do consultório, bem como a
confiança inerente a décadas de utilização isolada deste método, têm
dificultado uma aplicação mais generalizada das técnicas do ambulatório. Por
outro lado, existe ainda um desconhecimento da evidência em relação à
aplicabilidade destas técnicas.
Este artigo de revisão baseada na evidência (RBE) pretende explorar a evidência
da utilidade de cada uma das técnicas de medição da PA do ambulatório como
parte integrante da avaliação e seguimento do doente hipertenso. Para responder
a esta questão complexa, estas técnicas foram comparadas com a técnica
convencional do consultório em três domínios-chave: capacidade de identificação
do risco cardiovascular (CV), avaliação e controlo no seguimento do doente
hipertenso e relação custo-benefício.
MÉTODOS
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica de artigos publicados desde Janeiro de
2000 até Maio de 2011 nas seguintes bases de dados: Pubmed, Cochrane, National
Guideline Clearinghouse, Trip Database, DARE, Bandolier, Índex de Revistas
Médicas Portuguesas e referências bibliográficas dos artigos seleccionados.
Foram pesquisadas normas de orientação clínica, meta-análises, revisões
sistemáticas, ensaios clínicos (ECA) e estudos observacionais. Foi realizada
pesquisa suplementar nas quatro revistas de dedicação exclusiva à HTA com maior
factor de impacto internacional: Hypertension, Journal of Hypertension,
American Journal of Hypertension e Journal of Human Hypertension. A pesquisa
inicial foi realizada entre 6 de Fevereiro a 30 de Junho de 2010. Após o artigo
ter sido aceite para publicação nesta revista, foi realizada pesquisa
suplementar entre 1 a 5 de Junho de 2011, para actualização da revisão com
artigos publicados entre Julho de 2010 a Maio de 2011. Foram utilizadas, nos
motores de busca, as seguintes palavras-chave: o termo MeSH «ambulatory blood
pressure monitoring», bem como os termos «home blood pressure monitoring» e
«self blood pressure monitoring» e os equivalentes na língua portuguesa. Foi
decidida a utilização dos dois últimos termos com o intuito de diminuir a
exclusão potencial de artigos relevantes relativos à AMPA, uma vez que esta
técnica não dispõe de um termo MeSH exclusivo. Foram seleccionados artigos
relevantes para o objectivo proposto nas línguas inglesa e portuguesa, e foram
excluídos os artigos centrados na abordagem em crianças e grávidas. A selecção
final foi realizada atendendo à qualidade dos aspectos metodológicos. Foi
aplicada a escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT)13 da American
Family Physician para classificar em níveis de evidência e forças de
recomendação. Segundo esta taxonomia, a qualidade do estudo está subdividida em
três Níveis de Evidência (Nível de Evidência 1: estudos de boa qualidade,
evidência orientada para o doente; Nível de Evidência 2: estudos de qualidade
limitada, evidência orientada para o doente; Nível de Evidência 3: outra
evidência) e a Força de Recomendação em três graus (Força de Recomendação A:
consistente, evidência orientada para o doente; Força de Recomendação B:
inconsistente ou qualidade limitada, evidência orientada para o doente; e Força
de Recomendação C: consensos, evidência orientada para a doença).
RESULTADOS
Foram encontrados 6522 estudos, tendo sido seleccionados para esta revisão 38
artigos: duas revisões sistemáticas, nove meta-análises, quatro normas de
orientação clínica, 19 ECA e quatro estudos observacionais. Os restantes foram
excluídos por divergirem do objectivo do trabalho, por não cumprirem os
critérios de inclusão ou por serem repetidos.
1. Avaliação do risco cardiovascular em comparação com a técnica do consultório
1.1 Normas de orientação clínica
Em relação à AMPA, as Sociedades Europeia8 e Americana de Hipertensão14
encontram forte evidência em relação à melhor predição do risco CV,
identificando uma maioria de estudos que reportam esta conclusão. Existe um
consenso generalizado, por parte dos autores de ambas as normas de orientação
clínica, de que esta técnica de medição da PA deve, cada vez mais, ser parte
integrante na rotina de avaliação do doente. Esta conclusão baseou-se na
integração da evidência de vários parâmetros, entre os quais, a importância
prognóstica adicional desta técnica.
Em relação à MAPA, a American Heart Association15 e a Sociedade Europeia de
Hipertensão16 consideram haver vantagens desta técnica ao nível do prognóstico,
justificando a posição apontando vários estudos com resultados concordantes
(Quadro I). Estas sociedades recomendam a realização da MAPA em alguns
subgrupos de hipertensos.
QUADRO I. Normas de orientação clínica
1.2 Meta-análises
Não foram seleccionadas meta-análises em relação à AMPA. Foram seleccionadas
quatro meta-análises referentes à MAPA (Quadros II e III) com boa qualidade
metodológica (nível de evidência 1). Todos os estudos englobados nas meta-
análises seleccionadas são prospectivos. Para cada elemento do estudo, fazem a
correlação entre os eventos CV e os valores de PA obtidos no início do estudo
com a MAPA e a técnica do consultório. Os intervalos de estudo variam entre 1,9
e 11,1 anos.
QUADRO II. Meta-análises em relação à MAPA - Comparação desta técnica do
consultório em relação à capacidade de previsão de eventos CV
QUADRO_III. Meta-análises que estudam, em relação à MAPA, o valor preditivo
para as pressões diurnas, nocturnas e ratio diurno/nocturno
As meta-análises de Hansen et al17 e Conen et al18 (Quadro II) reportaram, para
a população geral (hipertensos e normotensos), uma evidente superioridade
prognóstica da PA medida pela MAPA em relação à obtida pela técnica do
consultório. Por cada 10mmHg adicionais de pressão arterial sistólica (PAS), a
medição da MAPA é entre 17 a 21% (p ≤ 0,001) mais fiável na predição do risco
CV. Há ainda a relatar a perda da significância estatística da PA medida pela
técnica do consultório no estudo de Conen. Os autores deste estudo encontraram,
em relação à hipertensão mascarada e hipertensão da bata branca, um risco CV
intermédio em relação à normalidade tensional e HTA.
Perante os resultados encontrados para a MAPA, e uma vez que na prática clínica
é valorizada a relação entre as pressões arteriais diurnas e nocturnas, foi
decidido realizar uma pesquisa suplementar incidindo no valor prognóstico
diferencial das PA diurnas, nocturnas e suas relações. Neste desígnio, foram
seleccionadas duas meta-análises19,20 englobando uma população total de 10926
indivíduos (Quadro_III). Uma delas19 incidiu apenas em doentes hipertensos,
fazendo análise separada para cada tipo de evento CV. A outra20 incidiu numa
amostra aleatorizada da população com idade superior a 18 anos, englobando na
mesma análise todos os eventos CV e apenas para a PAS. Apesar das diferenças
metodológicas, os resultados foram concordantes. Em ambas, a PA nocturna foi a
melhor preditora de eventos CV, comparativamente à PA diurna ou ao ratio
diurno/nocturno. Esta superioridade da PA nocturna poderá advir, por um lado,
do seu carácter mais estável, e por outro, da sua menor susceptibilidade a
factores externos (exercício físico, emoções). Considerando os dois estudos, o
ratio foi o parâmetro que se relacionou em menor grau com os eventos CV, não
obtendo significância estatística no estudo IDACO II.20 No estudo de Fagard et
al,19 por outro lado, só a PA nocturna manteve significância estatística quando
esta e a PA diurna foram introduzidas no mesmo modelo estatístico.
1.3 Estudos originais
Foram seleccionados sete ECA em relação à AMPA e quatro estudos em relação à
MAPA, dois ECA e dois observacionais, direccionados à análise prognóstica
comparativa com a técnica do consultório.
Os estudos compararam a relação entre os eventos CV e os valores de PA obtidos,
no início do estudo, com a técnica do consultório e uma das técnicas do
ambulatório (Quadro IV). Os intervalos de seguimento variaram entre os três e
os 11 anos.
QUADRO IV. Estudos originais que comparam o valor prognóstico da AMPA
(Sistólica/Diastólica) para eventos CV em relação à técnica de medição
convencional do consultório
A maioria dos estudos incidiu em amostras de base populacional, dois deles
focando-se apenas em hipertensos tratados.21-26 A técnica de medição da AMPA
variou consideravelmente entre os estudos. Três deles (Belga23, Pamela24 e J-
Health26) compararam as técnicas utilizando apenas uma ou duas medições para a
AMPA, sendo que apenas o estudo mais recente (Finn-Home)27 se aproximou da
metodologia actualmente preconizada.
Alguns estudos incidiram em amostras relativamente pequenas (Belga,23 Didima25)
e, na sua maioria, obtiveram um número reduzido de end-points (Belga,23
Pamela,24 Didima,25 e J-Health26), limitando o seu poder estatístico. Pelas
limitações referidas, todos os estudos seleccionados foram classificados como
nível de evidência 2, com excepção do estudo Finn-Home27 (nível de evidência
1), que incluiu uma amostra mais facilmente generalizável à população
hipertensa, com um adequado tempo de seguimento, técnica de AMPA de acordo com
as recomendações actuais e número de eventos adequado para obtenção de um
razoável poder estatístico.
A maioria dos estudos identificam uma superioridade prognóstica da AMPA,
incluindo os dois estudos em que esta técnica se baseou apenas em uma medição.
A eliminação do efeito da bata branca parece ser o factor decisivo para a
obtenção dos resultados. Em adição: vários estudos21,23,25 não encontram
relação estatisticamente significativa entre os valores de PAS da técnica do
consultório e os eventos CV; o estudo Ohasama22 apenas encontrou significância
para valores superiores a 160/100mmHg (ou 140/90mmHg associado a factores de
risco CV); o estudo J-Health26 apenas encontrou significância para PAS acima
dos 160mmHg; o estudo Finn-Home27 não encontrou significância para a
mortalidade total, ao contrário do verificado para a AMPA.
O estudo Didima25 foi o único que obteve resultados discordantes, não
encontrando valor prognóstico adicional para a AMPA. Porém, este estudo
apresenta limitações em relação aos restantes. É de salientar a não ocorrência
de relação estatisticamente significativa entre as PAS obtidas por ambas as
técnicas e os eventos CV. O limitado poder estatístico deste estudo é
sustentado ainda pela falha em estabelecer causalidade entre vários factores de
risco CV, como história pessoal de doença CV e o tabagismo, com os eventos do
estudo. Para além do reduzido número de eventos CV, o estudo incluiu uma
fracção significativa de jovens adultos saudáveis na amostra, diluindo
significativamente o seu poder estatístico.
Para a MAPA (Quadro V), os ECA de Eguchi28 (nível de evidência 2) e de Burr
(Dublin)29 (nível de evidência 2) estão de acordo com os resultados prévios das
meta-análises - maior correlação da MAPA para os eventos CV futuros. O último
tem a particularidade de ter avaliado a população idosa (> 65 anos), onde ainda
havia um déficit de evidência. Nesta população, a prevalência de hipertensão
mascarada pode ser mais elevada.
QUADRO V. Estudos originais que comparam o valor prognóstico da MAPA para
eventos CV em relação à técnica de medição convencional do consultório
Já o estudo espanhol de Sierra30 (nível de evidência 2), centrado nos cuidados
de saúde primários e de larga escala, analisou transversalmente a relação entre
o perfil circadiano e os eventos CV e encontrou uma relação entre o perfil não
dipper e lesão de órgãos-alvo e complicações CV. Contudo, não explorou se esta
relação era superior às obtidas pelos valores diurnos ou nocturnos da PA.
Num coorte de 1200 indivíduos portugueses referenciados para a realização de
MAPA entre 1991 e 1998, o estudo retrospectivo de Mesquita Bastos31 (nível de
evidência 2) identificou, 15 anos após a realização da MAPA, uma franca
superioridade prognóstica da técnica. A PA medida no consultório revelou-se um
fraco preditor dos eventos CV no geral (RR 1,02) e sem significância
estatística para eventos coronários. Em concordância com as meta-análises
referidas anteriormente, a PA nocturna foi melhor preditora dos eventos, quando
comparada com a PA diurna ou o ratio diurno/nocturno, sendo o valor deste
novamente questionado face à sua baixa reprodutibilidade.
2. Controlo no seguimento do hipertenso comparativamente à técnica do
consultório
2.1 Normas de Orientação Clínica
Em relação à AMPA, a Sociedade Europeia da Hipertensão8 identifica, através da
análise de diversos estudos, benefícios prováveis no controlo da PA e
envolvimento do utente no seu tratamento.
2.2 Meta-análises e Revisões Sistemáticas
Para a AMPA, foram seleccionadas duas revisões sistemáticas32,33 e quatro meta-
análises34-37 (Quadro VI), todas com um protocolo bem estruturado, detalhado e
explícito (nível de evidência 1).
QUADRO_VI. Revisões sistemáticas30,31 e meta-análises31,33,35 referentes ao
estudo do controlo da HTA com a AMPA30,31,32,33 e a MAPA34
No estudo de Verberk,32 os estudos englobados realizam uma comparação entre os
valores de PA obtidos com a AMPA e com a técnica do consultório, para cada um
dos indivíduos seleccionados. Os resultados mostram que, quando se mede a PA
com as duas técnicas, num determinado período, a AMPA associa-se a valores de
PA significativamente mais baixos (Quadro VI), sendo a probabilidade de
diferença maior nos hipertensos não tratados. Na origem desta diferença está a
eliminação do efeito da bata branca. Na revisão da Cochrane,33 a AMPA foi das
poucas intervenções que provou ter eficácia na redução da PA.
As meta-análises de Capuccio34 (nível de evidência 1), Bray35 (nível de
evidência 1) e Agarwal36 (nível de evidência 1) incluíram apenas ensaios
clínicos que aleatorizaram os indíviduos pela AMPA (intervenção) e pela técnica
do consultório (controlo). Verificou-se que a utilização da AMPA, por si só, ou
associada a uma estratégia de resposta terapêutica, se traduziu em valores
significativamente mais baixos de PAS (descida até 4,25mmHg) e PAD (descida até
2,37mmHg) no consultório. As descidas nos valores de PA originaram aumentos das
taxas de controlo tensional entre 9% a 11% nos estudos, estatisticamente
significativos excepto na meta-análise de Agarwal36 (tornando-se, no entanto,
significativos quando excluiu os estudos de menor qualidade metodológica).
A associação de uma estratégia de resposta terapêutica aos valores obtidos pela
AMPA é um factor que aumenta a probabilidade de melhor controlo.34,35,36 Quando
incluiu apenas os estudos que cumpriam este critério, os resultados de
Agarwal36 adquiriram significância estatística. Outros factores que podem estar
na origem dos valores mais baixos da AMPA incluem: (1) diminuição da inércia
clínica,35 (2) capacitação dos doentes em relação à gestão da HTA e aumento do
cumprimento terapêutico,14,35 (3) o fenómeno da habituação a medições
repetidas da PA.34,35
Quando se avalia o fenómeno específico da resposta terapêutica,32,37 ou seja, a
repercussão na PA após a introdução de um novo fármaco, como na meta-análise de
Ishikawa37 (nível de evidência 1), uma situação diferente ocorre: ambas as
técnicas identificam a esperada descida da PA, mas a AMPA revela-a em grau
menos acentuado. Existe, portanto, uma sobre-estimação dos efeitos da
instituição terapêutica com o método do consultório. Esta situação, em aparente
contradição com a anterior, pode ter várias justificações segundo os autores.
Em primeiro lugar, os valores iniciais pelo método AMPA não são tão elevados
devido à ausência do efeito da bata branca. Por outro lado, parece ser descrita
uma tendência natural dos clínicos no arredondamento favorável do valor medido
da PA, na expectativa inconsciente da eficácia do tratamento imposto. Por
último, a casualidade da medição do consultório pode aproximar-se mais do pico
do período da actuação do anti-hipertensor instituído.
Já no que diz respeito à MAPA (Quadro_VI), a meta-análise seleccionada avaliou
apenas a resposta terapêutica. Tal como para a AMPA, a meta-análise ampla de
Mancia38 encontrou uma resposta terapêutica menos acentuada, em grau ainda mais
significativo que a relatada em média para a AMPA (36%).
2.3 Estudos originais
Foram seleccionados dois ECA e um ensaio clínico aleatorizado e controlado
(ECAC) relativos à AMPA e quatro estudos, três ECA e um ECAC, relativos à MAPA.
Os estudos originais seleccionados para a AMPA39,40,41 (Quadro VII), um dos
quais em contexto nacional, mostram resultados semelhantes aos apresentados nas
meta-análises - sustentam a observação de um melhor controlo da PA com a
utilização da AMPA.
QUADRO VII. Estudos originais referentes ao estudo do controlo da HTA com a
AMPA, comparada com a técnica do consultório
No estudo português39 (nível de evidência 1), para cada doente hipertenso as
taxas de controlo tensional foram de 37,2%, quando aferida pela técnica do
consultório, e de 48,6%, quando aferida pela AMPA. Face a estes resultados, e à
expressão significativa da hipertensão da bata branca (19,4%) e da hipertensão
mascarada (8%) naquela população portuguesa, Maldonado e colegas concluem
existir uma superior adequação da AMPA à monitorização da PA, especialmente em
indivíduos com maior risco CV, nos quais a informação obtida pela medição do
consultório se revelou insuficiente. Os resultados do estudo português estão de
acordo com as recomendações europeias no sentido da exclusão dos valores do
primeiro dia de registo da AMPA por se verificarem valores significativamente
mais elevados (sujeitos ainda a parte do efeito da bata branca que se perde com
a habituação à técnica).
Já o estudo J-Home40 (nível de evidência 2) utilizou um amplo intervalo (2
semanas) para a obtenção do valor da AMPA, o que condicionou a obtenção dos
resultados. Durante este intervalo, os clínicos tiveram total liberdade para
agendar consultas de seguimento bem como para alterar a terapêutica. Este viés
condicionou uma maior agressividade terapêutica registada no grupo avaliado com
a AMPA.
Recentemente, o ECAC de McManus41 (nível de evidência 1) teve a particularidade
de comparar a AMPA, associada a uma estratégia de auto-gestão da medicação por
parte dos doentes e telemonitorização, com a estratégia habitual. Aos doentes
foi fornecido, pelo médico de família, um algorítmo individualizado para ajuste
simples (até dois passos) da medicação ao resultado da AMPA (realizada uma vez
por mês, durante uma semana). A estratégia resultou numa redução significativa
da PAS (o parâmetro avaliado) equivalente a uma estimativa de redução do risco
de AVC em 20% e de doença coronária em 10%.
Tal como o observado para a AMPA, a generalidade dos estudos originais
referentes à utilização da MAPA reportam taxas mais elevadas de controlo
tensional, entre 24% a 57% (Quadro VIII).42-45
QUADRO VIII. Estudos originais referentes ao estudo do controlo da HTA com a
MAPA, comparativamente à técnica do consultório
Os estudos foram aplicados no contexto do seguimento de hipertensos tratados em
cuidados de saúde primários, na Suiça,42 Espanha (de larga escala),43 Reino
Unido44 e Itália.45 Nestes estudos, para cada hipertenso, a MAPA revelou, em
média, valores mais baixos do que a PA medida pela técnica do consultório e,
por inerência, maiores taxas de controlo. No estudo italiano, ao contrário dos
anteriores, a fraca concordância entre as pressões arteriais medidas no
consultório e pela MAPA foi originada sobretudo pelo efeito da hipertensão
mascarada e não pelo efeito da bata branca. No entanto, na maioria dos estudos
realizados em contexto de cuidados de saúde primários, um dos quais realizado
na população portuguesa,39 a hipertensão da bata branca tem maior peso. Os
estudos suiço42 e britânico44 foram considerados com nível de evidência 2 pelo
inferior poder estatístico inerente a amostras mais reduzidas, e por falhas na
caracterização inicial da população. Os dois restantes estudos foram
considerados bons sob o ponto de vista metodológico (nível de evidência 1).
Assim, verificou-se, para ambas as técnicas, uma discordância entre os valores
de PA obtidos com estas e no consultório, com repercussões ao nível do controlo
da HTA.
3. Relação custo-benefício comparativamente à utilização isolada da técnica
convencional do consultório
Ao permitirem eliminar o efeito da bata branca e, consequentemente, eliminarem
o eventual uso de medicação numa fracção considerável de utentes, foi colocada
como hipótese as técnicas do ambulatório apresentarem um custo-benefício
favorável. Sobre este aspecto, foram seleccionados cinco estudos, dois
observacionais e três ensaios clínicos (Quadro IX).
QUADRO IX. Estudos originais referentes à análise do custo-benefício para ambas
as técnicas
O estudo transversal de Fukunaga et al46 (nível de evidência 1) estimou os
custos para o sistema de saúde japonês caso a AMPA fosse implementada a todos
os indivíduos rastreados como hipertensos pelo método do consultório. Estes
dados têm em conta a cobertura total dos custos com os aparelhos de AMPA por
parte dos utentes. Considerando uma incidência anual média de 7,4% de
hipertensos do consultório na população japonesa, identificou uma redução média
de 1,56 milhões de dólares por 1000 indivíduos em cinco anos. Esta redução de
custos é proporcional ao fenómeno da hipertensão da bata branca.
Apesar de gozar da fama de uma técnica dispendiosa, a verdade é que vários
estudos têm demonstrado, também para a MAPA, uma favorável relação de custo-
benefício,47-50 sobretudo a longo prazo.
O estudo transversal de Krakoff47 (nível de evidência 1) estimou uma poupança
de 3% a 14% nos custos associados à HTA e uma redução de 10% a 23% nos dias de
tratamento, para um período de cinco anos, caso a MAPA fosse incorporada no
algoritmo diagnóstico de todos os novos hipertensos americanos. Esta análise
teve em conta a prevalência de 20% de hipertensão da bata branca no rastreio
inicial com a técnica do consultório, a estimativa de incidência anual de HTA,
os custos associados à MAPA e os custos associados ao seguimento e tratamento
dos hipertensos.
Os três restantes ensaios clínicos focam-se na realidade dos cuidados de saúde
primários da Austrália,48 Reino Unido49 e Portugal.50
O estudo australiano48 (nível de evidência 1) seguiu 62 doentes durante sete
anos e realizou uma análise do custo-benefício para vários modelos de
utilização da MAPA - anual, bienal e trienal. A hipertensão da bata branca foi
identificada em 26% dos utentes. Ao terceiro ano, todas as estratégias de
monitorização compensam os gastos iniciais e, a partir daí, têm uma relação
custo-benefício muito favorável.
Por sua vez, o estudo de Lorgelly et al49 (nível de evidência 2) realizou uma
análise ao custo-benefício da MAPA anual a 374 hipertensos seguidos durante
dois anos numa unidade de cuidados de saúde primários do Reino Unido.
Identificou 31% de doentes com efeito da bata branca que, sem a utilização da
MAPA, teriam potencial para serem submetidos a intervenção e consultas de
seguimento desnecessárias. Em situação oposta, identificou 6% de doentes nos
quais os valores de PA do consultório mas não da MAPA estavam bem controlados.
Este foi o único estudo que teve em atenção este fenómeno inverso. Considerando
as duas situações, e os gastos inerentes à utilização da MAPA (13790 libras/
ano), a utilização desta no seguimento dos hipertensos atenuaria os gastos. No
entanto, no que diz respeito à relação custo-benefício, o intervalo de follow-
up de dois anos foi insuficiente para se verificar um efeito positivo (-3612
libras/ano).
Em Portugal, o estudo de Pessanha et al50 (nível de evidência 2) identificou
uma prevalência de hipertensão da bata branca de 38,7%, calculada de uma
amostra de 336 hipertensos do consultório seguidos durante 16 meses. Ao
contrário dos resultados do estudo britânico, foi verificada uma relação custo-
benefício favorável com a utilização da MAPA já ao fim dos dois anos: redução
de 23% dos custos associados à terapêutica anti-hipertensora em procedimentos
médicos de diagnóstico e seguimento. Para estes resultados foram considerados
os custos de aquisição dos aparelhos MAPA por parte da unidade, formação dos
profissionais de saúde e consultas médicas de seguimento, incluindo tratamento
e exames complementares de diagnóstico.
CONCLUSÕES
Foi realizada uma análise à implementação de cada uma das técnicas de medição
da PA do ambulatório (MAPA e AMPA) comparativamente ao uso isolado da técnica
do consultório. A comparação incidiu em três domínios: identificação do risco
CV, avaliação no seguimento do doente hipertenso e relação custo-benefício.
Estes foram considerados os domínios essenciais para a avaliação destas
técnicas como parte integrante do estudo e avaliação do doente hipertenso. Foi
decidido englobar num mesmo estudo a MAPA e a AMPA pela raridade de estudos que
as incluem num mesmo modelo de investigação. Procurou-se, assim, contrariar um
certo distanciamento científico prejudicial entre as duas.
Apesar de terem sido considerados fundamentais os princípios referidos, os
autores reconhecem uma maior dificuldade metodológica subjacente a um estudo de
revisão baseada na evidência tão amplo. Porém, é total convicção dos autores
terem sido cumpridos todos os requisitos científicos e que as conclusões do
estudo reflectem a melhor evidência actual.
Em relação à identificação do risco CV, existe evidência para a utilização das
técnicas do ambulatório com o objectivo de obter avaliações diagnóstica e
prognóstica mais fidedignas - força de recomendação A para a MAPA e força de
recomendação B para a AMPA. Especificamente em relação à MAPA, foi identificada
evidência de uma superioridade prognóstica da PA nocturna em relação à PA
diurna. Não existe evidência para sobrevalorizar, em termos prognósticos, a
relação entre a PA diurna e nocturna (status dipping) em relação à PA nocturna
por si mesma - força de recomendação A.
No que diz respeito à avaliação no seguimento do doente hipertenso, existe
evidência sólida para a utilização de ambas as técnicas de medição do
ambulatório (MAPA e AMPA) com o intuito de obter um controlo mais adequado da
PA, ou seja, que uma percentagem maior de hipertensos atinjam os valores-alvo
pretendidos - força de recomendação A.
Por último, existe evidência para a aplicação das técnicas do ambulatório a
todos os novos hipertensos do consultório e durante o seguimento destes com o
propósito de reduzir os custos associados à HTA - força de recomendação B.
O Quadro X resume as principais conclusões relativamente aos aspectos estudados
para cada uma das técnicas do ambulatório.
QUADRO X. Resumo com as principais forças de recomendação das técnicas de
medição da PA do ambulatório (AMPA e MAPA) em relação aos diferentes parâmetros
avaliados
Assim, a medição do consultório, não obstante continuar a ser fundamental no
processo de avaliação da PA, pode limitar a prestação dos melhores cuidados ao
doente hipertenso, quando usada isoladamente. Os autores concluem existir uma
evidência premente para a integração da medição da PA no ambulatório no
processo de avaliação diagnóstica e seguimento do doente hipertenso.
Das duas técnicas, existem áreas de evidência convincente e outras onde ainda
existe alguma incerteza nas quais mais estudos são necessários. A AMPA requer
mais estudos de qualidade que incidam sobre o intervalo mais adequado para as
medições e a exclusão ou não do primeiro dia de registos. A falta de
uniformização internacional destes aspectos estruturantes tem-se reflectido nos
estudos e prejudicado a sua investigação.
Serão igualmente necessários no futuro estudos de qualidade que incluam AMPA e
MAPA no mesmo processo metodológico. A AMPA tem vantagens como técnica mais
acessível e económica, permitindo ainda o acompanhamento a longo prazo do
hipertenso e com o potencial de aumentar a adesão e comprometimento deste no
seu tratamento. Por outro lado, a MAPA é técnica que permite a obtenção da
maior quantidade de informação, nomeadamente a PA nocturna.
Face à evidência actual em relação à utilidade da AMPA para o diagnóstico e
seguimento do hipertenso, a sua acessibilidade e custo reduzido, as vantagens
na capacitação dos doentes e inerente cumprimento terapêutico, e a preferência
destes em relação a este método para um uso repetido, os autores reforçam a
recomendação das sociedades europeia e americana de hipertensão no sentido da
aplicação generalizada deste método na avaliação do doente hipertenso. Perante
a evidência existente para a população portuguesa, deverão ser seguidas as
recomendações europeias: a média de uma semana de medições, nas condições
ideais de medição, duas medições de manhã em jejum, antes da medicação, e duas
medições antes do jantar. Deverão ser excluídos os registos do primeiro dia. O
cut-off diagnóstico de 135/85 mmHg deverá ser usado para o diagnóstico de
hipertensão, correspondendo aos 140/90 mmHg da medição no consultório.
Os autores concordam ainda com a tendência científica crescente de explorar a
viabilidade da disponibilização da MAPA ao nível dos cuidados de saúde
primários. Esta técnica poderá ser útil em casos seleccionados, nomeadamente,
para valores de AMPA no limiar diagnóstico, entre os 125/75 mmHg e os 135/85
mmHg, para doentes que prefiram esta técnica ou aqueles que revelem ansiedade
prejudicial com a utilização da AMPA. No caso da população portuguesa, será
necessário um estudo de qualidade a nível nacional que calcule o custo-
benefício a médio-longo prazo desta técnica, tendo em conta as estimativas da
prevalência de hipertensão da bata branca, incidência de HTA e custos
associados à aquisição dos aparelhos e formação dos profissionais de saúde.