Detecção precoce de neoplasias cutâneas em cuidados de saúde primários: Relato
de uma experiência
INTRODUÇÃO
As neoplasias cutâneas constituem a forma mais frequente de neoplasia maligna
na população de pele branca. Portugal, devido a sua grande exposição solar ao
longo do ano, tem elevada prevalência, causando acentuada morbilidade e
mortalidade. Apesar dos dados oficiais serem pouco rigorosos, os números
disponibilizados no Instituto Português de Oncologia (IPO) permitem estimar a
incidência de neoplasias cutâneas. De acordo com a Liga Portuguesa contra o
Cancro, estima-se para o melanoma uma incidência de 8/100.000 hab/ano e para os
epiteliomas uma incidência de 100/100.000 hab/ano.
A incidência do melanoma tem vindo a aumentar em cerca de 6 a 7% ao ano.
Actualmente é o segundo mais frequente nas mulheres dos 20 aos 29 anos (depois
do cancro da tiróide) e é o segundo mais frequente nas mulheres dos 30-39 anos
(depois do cancro da mama). Um em cada cinco doentes com melanoma morrerá da
doença e metade destes com menos de 40 anos. Este progressivo aumento deve-se
não só a um aumento real de casos novos, mas também a uma maior procura de
serviços e a um diagnóstico mais precoce.1,2
Ainda que os esforços educacionais para a prevenção primária de neoplasias
cutâneas tenham contribuído para um maior conhecimento da população sobre o
cancro de pele e a importância do uso protectores solares, houve alterações
mínimas relativamente ao bronzeamento e exposição solar. Na verdade, aumentou a
incidência de queimaduras solares e da prática de bronzeamento artificial.
Estas conclusões resultaram do 59o encontro da American Academy of Dermatology.
Além disso, a eficácia dos protectores solares na prevenção dos diversos tipos
de neoplasias cutâneas é ainda controversa; parece certo que previnem a
queimadura solar e o carcinoma espino-celular, não sendo possível retirar
conclusões da sua eficácia preventiva quanto ao carcinoma baso-celular e ao
melanoma. Por outro lado, o seu uso pode transmitir uma falsa sensação de
segurança, levando a uma exposição intencional prolongada.3
Embora o diagnóstico e tratamento precoces sejam fundamentais para melhorar o
prognóstico e reduzir a mortalidade, ainda permanece controversa a utilidade
dos programas de rastreio em massa. A U.S. Preventive Services Task Force (na
sua revisão de Fevereiro de 2009) considera que falta evidência científica para
recomendar quer o exame da pele de rotina por médico, quer o auto-exame da pele
(recomendação de grau I). Esta opinião é partilhada por outras organizações,
nomeadamente a Canadian Task Force on Preventive Health Care, a American
Academy of Family Physician e a Physician Data Query. Entretanto, a American
Cancer Society e a American College of Preventive Medicine recomendam o exame
de rotina de toda a superfície corporal pelo médico e o auto-exame mensal. O
maior problema dos testes de rastreio tem a ver com a acuidade do diagnóstico
clínico. A U.S. Preventive Services Task Force justifica a sua recomendação com
o facto de não haver estudos randomizados que avaliem a associação do rastreio
clínico a um melhor prognóstico do cancro cutâneo. A possibilidade de que o
tratamento precoce, como resultado do rastreio, melhore o prognóstico depende
de uma evidência indirecta.4,5
A exérese de lesões cutâneas suspeitas para posterior exame histológico pode
ser feita através do recurso a técnicas simples de pequena cirurgia
(procedimentos cirúrgicos menores, cirurgia de ambulatório minor). Embora não
exista um consenso internacional para a sua definição, a Associação Portuguesa
de Cirurgia de Ambulatório (APCA) propõe no seu Enquadramento Nacional e
Internacional a seguinte definição: «Toda a intervenção cirúrgica que, embora
executada em condições de segurança e assepsia, possa dispensar a sua
realização numa sala de bloco operatório (embora essa prática seja desejável),
não exige mudança completa de roupa (cirurgião e doente), seja executada sem
ajuda directa de um ajudante, sob anestesia local, não excedendo regra geral,
20 minutos, e sem necessidade de cuidados especiais de recobro».6 Os Cuidados
de Saúde Primários constituem o nível assistencial mais próximo da população,
onde devem ser orientados a maior parte dos problemas de saúde. A pequena
cirurgia representa uma importante ferramenta de diagnóstico e tratamento que
pode estar mais acessível e próxima da população. Os médicos de família, sob
uma correcta capacitação e condições sanitárias adequadas, podem desempenhar um
importante papel com elevado custo-eficácia.7,8
Este trabalho pretende relatar uma experiência ao longo de 22 meses (Julho 2008
a Maio 2010) de prática de exérese de lesões cutâneas e detecção de neoplasias
cutâneas com recurso a procedimentos cirúrgicos menores (pequena cirurgia) no
Centro de Saúde de Amarante (USF S. Gonçalo).
METODOLOGIA
Organização do serviço
Inicialmente os procedimentos foram realizados numa vulgar sala de tratamentos
de enfermagem. Posteriormente, foi disponibilizada uma sala especificamente
para o efeito com condições elementares (soalho e paredes laváveis, iluminação
natural e artificial dirigível e condicionamento térmico do ambiente). A sala
possui também equipamento essencial, nomeadamente, mesa operatória com
acessibilidade em ambos lados, altura ajustável e superfície lavável, lavatório
para as mãos, recipientes para lixo contaminado accionado por pedal, recipiente
para objectos cortantes, carrinho de apoio e armário para consumíveis.
Os procedimentos foram agendados em horário específico. Os utentes sem médico
ou de outras listas foram intervencionados em horário de consulta de reforço,
também com agendamento prévio. Atendendo à disponibilidade de agendamento e de
instrumental cirúrgico, foi estabelecido um limite de cinco intervenções por
semana.
Técnica utilizada
A remoção de nevos e outros «sinais» foi feita por exérese elíptica com 1-2 mm
de pele normal circundante. Não foi usado em nenhum caso a técnica de exérese
cilíndrica (punch). O encerramento foi feito com sutura não absorvível e em
alguns casos com sutura cutânea adesiva («steri-strip») para melhor efeito
cosmético. As verrugas foram removidas por curetagem. Não foi usada crioterapia
por não estar disponível no serviço. A electrocoagulação foi usada em alguns
casos de papilomas e outras pequenas lesões sem necessidade de exame
histológico. Todas as lesões suspeitas foram conservadas em formol e enviadas
para exame histológico. Foram considerados suspeitos os nevos de surgimento
recente ou com alteração recente de aspecto, nomeadamente assimetria, bordos
irregulares, coloração variada no mesmo nevo ou coloração negra, diâmetro maior
que 6 mm, prurido, ulceração e sangramento. Todos os doentes com cancro
confirmado foram referenciados ao Instituto Português de Oncologia do Porto
(IPO-Porto), exceptuando os casos de carcinoma baso-celular com margens livres
iguais ou superiores a 2 mm.
Registos
Todos os procedimentos foram registados em processo informático SAM e
codificados pelo ICPC-2 (Quadro I). Também foi feito o registo em ficheiro
EXCEL com identificação, idade, número do processo, médico de família,
diagnóstico clínico, diagnóstico histológico, complicações e destino do utente,
para análise descritiva.
Quadro I. Códigos do ICPC-2 mais utilizados para o registo dos diagnósticos e
procedimentos em processo informático SAM no Centro de Saúde de Amarante
Critérios de admissão e de exclusão
Foram avaliados todos os utentes com lesões suspeitas ou incómodas sempre que
solicitado pelo próprio ou pelo respectivo médico de família. Foram admitidos
todos os utentes com lesões dermo-epidérmicas e subcutâneas com menos de três
centímetros, móveis em relação aos planos profundos e cuja localização
permitisse o encerramento primário por sutura simples. Foi tido em consideração
o consentimento e a preferência do utente de realizar a intervenção no centro
de saúde. As crianças com menos de 10 anos só foram admitidas para tratamento
de lesões superficiais desde que tolerassem a anestesia local e mediante
consentimento dos pais.
Foram excluídos os utentes com lesões maiores que três centímetros, lesões
fixas aos planos profundos, lesões localizadas nas pálpebras ou outros locais
próximos de grandes vasos ou nervos. Foram também excluídos os utentes
hipocoagulados, insuficientes cardíacos, renais e hepáticos graves, com
antecedentes de cicatrização hipertrófica ou quelóides, atrofia cutânea ou
cicatrização deficiente (esclerodermia, hipoproteinémia, porfirias), portadores
de pacemaker (contraindicação para o uso de electrocoagulador), doentes
agitados e pouco colaborantes e doentes com história de alergia ou intolerância
a anestésicos locais.
RESULTADOS
Foram intervencionados 282 utentes dos quais 164 (58%) do sexo feminino,
incluídos em todas as faixas etárias, com predomínio entre os 15 e os 59 anos
(Figura 1). Do total de utentes, 40 pertenciam à lista de utentes da autora,
193 de outras listas, e 49 foram utentes sem médico de família (Figura 2).
Figura 1. Distribuição dos utentes intervencionados no Centro de Saúde de
Amarante por grupos etários
Figura 2. Distribuição dos utentes intervencionados no Centro de Saúde de
Amarante por listas de utentes
Foram realizados 341 procedimentos (em alguns utentes foi realizada a exérese
de mais do que uma lesão), dos quais 170 (49,8%) com recurso a exame
histológico para confirmação diagnóstica. No caso dos papilomas cutâneos, foi
registado como uma lesão por utente independentemente do número de lesões. As
lesões mais comuns foram (Quadro II): quisto epidérmico (61 casos), nevo
melanocítico dérmico (47 casos), nevo melanocítico composto (27 casos),
queratose seborreica (28 casos) e papilomas cutâneos (27 casos). Foram também
identificadas as seguintes lesões pré-cancerosas: queratose solar actínica (8
casos), corno cutâneo (2 casos), lesão induzida por HPV (1 caso), nevo
melanocítico atípico (7 casos) e nevo melanocítico congénito (2 casos). Além
disso, encontraram-se as seguintes lesões cancerosas: carcinoma espinocelular
in situ (1 caso), carcinoma basocelular (3 casos) e melanomas (3 casos).
Quadro II. Lesões cutâneas identificadas (diagnósticos clínicos e histológicos)
Em todos os casos de lesões pré-cancerosas foi confirmada histologicamente a
exérese com margens livres e todos os casos de lesões cancerosas foram
referenciados aos cuidados secundários (IPO-Porto) para seguimento. Dos 3 casos
de melanoma, um foi identificado numa mulher de 71 anos, que apresentava um
nevo ulcerado e inflamado na perna. O segundo caso foi identificado num homem
de 31 anos, que apresentava um pequeno nevo de cor negra na região sub-
mentoniana de surgimento recente. E o terceiro caso foi identificado numa
rapariga de 16 anos, que apresentava um nevo de cor negra e crescimento recente
no terceiro dedo do pé direito. Em todos eles foi feita a revisão da cicatriz e
confirmada exérese completa com ausência de metástases pelo IPO-Porto.
Todos os utentes foram acompanhados até à remoção da sutura ou à finalização de
curativos pela enfermeira assistente e todas as complicações foram registadas e
tratadas. Verificaram-se quatro complicações pós-operatórias (0,01%),
nomeadamente, dois casos de formação de quelóide, um caso de deiscência de
sutura (região interescapular) e um caso de infecção pós-operatória.
DISCUSSÃO
Estes resultados não reflectem a taxa de incidência esperada de cancro cutâneo
na população do Concelho de Amarante nem era este o propósito deste trabalho.
De qualquer modo, esperava-se encontrar mais casos de carcinoma espinocelular e
carcinoma basocelular do que de melanomas. Este facto pode dever-se a uma maior
preocupação da população mais jovem relativamente aos «sinais» e suas
alterações ou mesmo efeito estético; enquanto a população mais idosa, em que os
epiteliomas são mais frequentes, se encontrem menos sensibilizados, atribuindo
a desculpa da velhice às lesões que vão surgindo. Provavelmente a incidência
será bem maior pelo facto de uma grande parte da população desta região viver
do trabalho agrícola e por isso estar muito tempo exposta ao sol.
A taxa de infecções pós-operatórias foi insignificante, embora as condições de
assepsia não fossem as ideais. Isto deve-se provavelmente ao facto de o
ambiente local ser menos conspurcado por bactérias multirresistentes como
acontece em meio hospitalar. Isto pode ser considerado como mais uma vantagem
da aproximação deste serviço à comunidade, para além da redução do tempo de
espera e da redução da distância ao hospital de referência.
Esta experiência mostra que é possível estender a detecção precoce e o
tratamento de neoplasias cutâneas aos Cuidados de Saúde Primários. Esta prática
está muito generalizada na Austrália, Espanha e no Reino Unido. A Austrália é o
país com a maior prevalência mundial de neoplasias cutâneas e onde a maior
parte dos doentes são diagnosticados e tratados por clínicos gerais.9,10 Num
estudo publicado em 2008, Heal et al demostram que os clínicos gerais da região
de Queensland têm competência comparável à dos dermatologistas do diagnóstico
clínico de lesões com potencial maligno. Isto se deve à sua larga experiência
associada a uma certificação pelo Australasian College of Skin Cancer
Medicine.11,12 A British Medical Association considera que os procedimentos de
pequena cirurgia realizados por clínicos gerais têm um alto custo-benefício e
resultam em altos níveis de satisfação dos utentes.13 O documento «Our health,
our care, our say: a new direction for community services», publicado em 2006
no Reino Unido, preconiza o futuro dos cuidados de saúde fora dos hospitais.14
Reforça a importância dos serviços prestados por profissionais de saúde
próximos da comunidade. Neste contexto, foi elaborado o documento «Guidance and
Competencies for provision of services using GPs with Special Interests
(GPwSIs) - Dermatology and Skin Surgery», em conjunto com representantes da
British Association of Dermatologists, Primary Care Dermatology Society, Skin
Care Campaign e Royal College of General Practitioners, que descreve diferentes
modelos de serviços de dermatologia, formação, treino e creditação de clínicos
gerais com interesse em cirurgia dermatológica.15,16
Em Portugal, a prática de pequena cirurgia em Cuidados de Saúde Primários tem-
se tornado mais evidente com o surgimento das Unidades de Saúde Familiar que a
incluem como carteira adicional de serviços. A Reforma dos Cuidados de Saúde
prevê a diferenciação profissional resultante da emergência de novas
competências que permitam uma estratégia de diversificação que vá ao encontro
de novas necessidades e expectativas dos cidadãos.17 Assim, impõe-se, nos
Cuidados de Saúde Primários, o aprofundamento de uma cultura de análise
prospectiva de necessidades, tendo em vista a concepção e a promoção de «novos»
produtos e serviços. É necessário promover o desenvolvimento de competências
tendo em vista o rejuvenescimento da carteira básica e adicional de serviços
com novos serviços e cuidados de saúde que resultem da integração de abordagens
multidisciplinares e da aposta em soluções com vocação preventiva e curativa.
Também é importante desenvolver protocolos com vista à estandardização e
homogeneização destes serviços, tendo em conta critérios de qualidade,
segurança e eficiência.
A nossa experiência, que iniciou de forma ocasional, sem qualquer tipo de
publicidade, tornou-se rapidamente muito popular, com grande adesão por parte
dos utentes. O facto de reduzir tempos de espera e de encurtar distâncias
relativamente aos hospitais de referência desta região foi um factor
determinante na preferência dos utentes. Existem fortes evidências que a
prática continuada de exérese de lesões melhora a capacidade do médico de fazer
rastreios clínicos, evitando assim tratamentos e biópsias desnecessárias.
Melhora também a relação dos utentes com o seu médico de família e a
proximidade com o seu centro de saúde. Por outro lado, descongestiona os
serviços hospitalares ao limitar as referenciações a situações com diagnósticos
comprovados e/ou de maior gravidade.