Intervenção precoce no enfarte da relação
INTRODUÇÃO
As estratégias de prevenção secundária têm conseguido que o impacto das doenças
cardiovasculares seja cada vez menor na capacidade funcional do doente. Este
tem procurado o seu médico em busca de aconselhamento relativo a actividades da
vida diária, incluindo a actividade sexual.1,2No entanto, as dúvidas sobre a
segurança da actividade sexual num doente com cardiopatia isquémica são tão
comuns nele próprio como no seu médico. Até aos dias de hoje a abordagem da
actividade sexual tem permanecido algo deficitária, quer em consultas de rotina
quer no dia da alta hospitalar após um evento cardiovascular, o que tem
precipitado uma crescente insegurança e desinformação do médico.1,3 Tal foi
fruto de um tabu transgeracional associado à sexualidade que agora tende a
apagar-se.1
Este caso clínico dá relevância ao aconselhamento médico. Fazendo parte do
tratamento não-farmacológico, pode ser altamente terapêutico, pouco
dispendioso, acessível e ter grande impacto na orientação de qualquer doente,
neste caso em particular, do paciente coronário. Porém, tal como uma
farmacoterapia inadequada, um aconselhamento inseguro poderá também ter efeitos
laterais indesejáveis.
DESCRIÇÃO DO CASO
Dados demográficos
Rui (nome fictício) é um homem de 56 anos, engenheiro, natural de Vila Real e
actualmente residente na Senhora da Hora. É o mais novo de três irmãos.
Actualmente, casado com Maria (nome fictício). O casal insere-se numa família
nuclear, na fase VI do ciclo de Duvall.
Do seu genograma (Figura_1), realçam-se os seguintes antecedentes familiares: a
mãe com Diabetes Mellitus tipo 2 e Hipertensão Arterial e o irmão mais velho
com Hipertensão Arterial.
História Médica Pregressa
Como antecedentes pessoais activos, Rui tem
doença coronária diagnosticada em 2009, após um quadro sugestivo de angina
estável classe I (Canadian Cardiovascular Society, CCS);
hipertensão arterial essencial grau 1 (European Society of Cardiology/
European Society of Hypertension) desde 2000;
excesso ponderal.
A medicação habitual inclui lisinopril 20 mg + hidroclorotiazida 12,5 mg/dia,
ácido acetilsalicílico 150 mg/dia, atenolol 50 mg/dia, rosuvastatina 10 mg/dia
e nitroglicerina 0,5 mg sublingual em SOS (dor anginosa).
É ex-fumador (carga tabágica de 10 UMA durante 20 anos) e ingere 19,2 g de
álcool por dia. No entanto, revela ter tido hábitos semanais de consumo
excessivo de bebidas destiladas em eventos sociais, até meados de 2009.
Praticou futebol num clube regional dos 13 aos 25 anos. Desde há cerca de seis
meses faz uma caminhada nocturna durante 30 a 60 minutos.
A História da Doença Actual é, abaixo, dividida segundo as datas das consultas.
O raciocínio clínico desenvolvido em cada contacto com o paciente é parte
integrante de cada divisão.
22/Março/2010
Vem à sua primeira consulta com a actual médica de família (MF), juntamente com
sua esposa Maria. Ambos entraram recentemente para a lista de utentes, após
mudança de centro de saúde e de zona residencial. O motivo desta consulta
consiste em estabelecer o contacto com a nova MF e actualizar os seus perfis de
saúde. É portador dos exames complementares mais recentes.
A nível subjectivo, Rui nega queixas. É questionado sobre o seu estado geral de
saúde, respondendo «estou bem dentro do possível... enquanto cá se vai andando,
é bom...» (sic). A esposa interrompe a entrevista clínica e mostra
discordância. Refere que Rui tem andado mais ansioso e facilmente irritável
desde meados de 2009, altura do diagnóstico da cardiopatia isquémica, e
verbaliza «enerva-se com tudo e está sempre a descarregar em cima de mim...»
(sic).
Rui acaba por confirmar que anda mais irritável, porém atribui tal alteração do
comportamento à sua recente sobrecarga laboral. Nega perturbações do sono ou da
memória. Nega sentir-se triste e desmotivado para actividades de lazer (leitura
e fotografia). Iniciou novo hobbie, a pesca. Porém, abandonou um passatempo
antigo: jogar xadrez com os amigos.
Sob o ponto de vista cardiovascular, encontra-se sem dor e refere nunca ter
tido necessidade de recorrer à nitroglicerina, nem mesmo durante a sua
caminhada diária. É inquirido sobre a história anterior que conduziu ao
diagnóstico de cardiopatia isquémica. Rui documenta que em Junho/2009, após 5
minutos de jogo de futebol com amigos, desenvolveu uma dor retroesternal tipo
peso, intensa, com irradiação para a metade esquerda do pescoço e que teve
alívio após 5 minutos de repouso. Recorreu ao seu anterior médico de família,
pelo que foi pedido um estudo que incluiu prova de esforço
electrocardiográfica.
A nível objectivo nesta consulta, realça-se um aspecto cuidado e idade aparente
correspondente à idade real. Apresenta TA = 124/78 mmHg, peso = 94,2 Kg, altura
= 1,83 m, IMC = 28,1 Kg/m2 e perímetro abdominal = 91cm. A auscultação
cardiopulmonar é normal. Sem alterações relevantes no restante exame físico.
Os exames complementares revelam um colesterol total = 182 mg/dL, HDL = 65 mg/
dL, LDL = 88 mg/dL, triglicerídeos = 143 mg/dL e hemograma e perfis renal,
hepático, tiroideu sem alterações. Traz também os registos dos exames
complementares de diagnóstico solicitados pelo seu anterior médico de família.
O Rx Tórax e o ECG (Junho/2009) são normais, o ecocardiograma (Junho/2009)
revela uma hipertrofia ventricular esquerda e o relatório da prova de esforço
electrocardiográfica (Junho/2009) indica uma presumível doença coronária
aterosclerótica: «prova interrompida aos 10 min e 1 seg (estádio 4 do protocolo
de Bruce; 11 METs) por dor retroesternal moderada coincidente com um
infradesnivelamento de ST de 1 mm em DII, DIII e aVF».
Uma vez que o paciente se encontra com bom controlo sintomático, metabólico e
tensional, o plano inclui a manutenção de atitudes e marcação de nova consulta
entre três a seis meses.
22/Setembro/2010
O casal marca consulta seis meses depois. No entanto, neste dia da consulta,
apenas vem a esposa e Rui falta por motivos profissionais. Maria refere
preocupação com o comportamento de Rui, que continua irritável e
progressivamente mais isolado, refugiando-se nas suas actividades de lazer
solitárias. Conta que esta alteração comportamental causa dano na relação
conjugal: «já nem falamos muito, que é para não nos chatearmos...», «agora já
nem vai aos jantares com os amigos...», «nunca mais conseguiu ultrapassar o
problema do coração... e além disso, não pára de trabalhar » (sic). É marcada
nova consulta para Rui dentro de um mês, altura mais conveniente para o utente.
12/Outubro/2010
No mês seguinte, o doente vem sozinho à consulta e refere estar «saturado» da
actividade profissional e de lidar com colegas de trabalho. Nega mau ambiente
no local de trabalho ou problemas financeiros da empresa assim como humor
deprimido, apatia ou anedonia. Contudo, documenta ele próprio um isolamento
social progressivo: «ando mais neura... por isso, quero estar no meu canto e
mantenho-me activo a fazer as coisas que gosto...» (sic).
Quando questionado, revela que esta alteração de comportamento teve início
insidioso com o diagnóstico de doença coronária. Torna-se perceptível que este
diagnóstico abalou a auto-estima de Rui quando diz: «mexeu um bocado comigo
sempre me vi como um homem de ferro até pratiquei futebol durante 12 anos!».
Não esconde que tal comportamento e isolamento progressivo estejam a corroer a
relação marital.
Parece claro à sua MF que este homem apresenta alguns sintomas depressivos,
embora seja questionável se preenche o número suficiente de critérios para um
diagnóstico de perturbação depressiva major. Estes sintomas depressivos são
interpretados num contexto dependente do diagnóstico de doença coronária em
meados de 2009, ao qual se associa um luto por perda da auto-imagem de pessoa
saudável ou um rótulo que, aparentemente, frustra um homem que foi futebolista
e que é um engenheiro com uma preenchida vida de relação.
Explicam-se, então, a etiologia e as diferentes classes da sua patologia
cardíaca. Esclarece-se que a sua classificação funcional (classe I ' CCS) lhe
permite continuar a desfrutar de inúmeros prazeres da sua vida e faz-se um
aconselhamento genérico relativo a estilos de vida, sob o ponto de vista
biopsicossocial. Sob o prisma biológico, é recomendado a privilegiar uma
alimentação mediterrânica e a manter o seu exercício aeróbico (caminhada). A
nível psicológico, aconselha-se que mantenha a busca de prazer em actividades
de lazer, que perpetue os circuitos familiares de afecto e que procure retirar
bons momentos de intimidade com a sua esposa, nomeadamente através da
actividade sexual. E a nível social, sugere-se que recupere a interacção com os
seus amigos, da qual retire vivências que possam ser, de algum modo,
enriquecedoras.
Como parte do plano, marca-se nova consulta para o mês seguinte para
reavaliação.
19/Outubro/2010
Rui vem à consulta aberta na semana seguinte, referindo sentir-se «obsessivo» e
com dificuldade de concentração no trabalho. Com o adiantar da entrevista
clínica, revela que relaciona o aumento da sua ansiedade basal com a
preocupação relativa a actividades que possa desempenhar no seu quotidiano. E
posteriormente, questiona: «mesmo a actividade sexual?!»
É reforçada a resposta positiva, de acordo com o aconselhamento elaborado na
consulta anterior. Rui afirma, então, que o seu médico assistente anterior o
terá informado, perante o diagnóstico da doença coronária, que possuía um risco
aumentado de enfarte agudo do miocárdio associado a relações sexuais e que o
terá aconselhado a «ter cuidado» (sic).
O paciente refere que «não conseguirei ter relações a pensar que posso ter um
enfarte... não sei bem como se tem cuidado durante as relações... nunca mais
tive uma relação sexual...»
Nesta consulta aberta entende-se o que perturba este paciente, desvenda-se a
causa daquela alteração insidiosa do seu comportamento e compreende-se o dano
prolongado na sua relação conjugal. Uma analogia oportuna é possível ser
elaborada durante o raciocínio médico: tal como a artéria coronária é
responsável pelo suprimento sanguíneo para o coração, a actividade sexual
constitui uma importante artéria de suprimento afectivopara a relação conjugal.
O diagnóstico da doença coronária constitui, por si só, um peso que comprime a
auto-estima, prejudica a performance sexual e, tal como uma placa de ateroma,
estenosa esta artéria da sexualidade. A recepção do aconselhamento pelo seu
anterior médico funcionou como uma terapêutica não-farmacológica desadequada,
criando o medo no paciente, e foi o trigger para a ruptura da placa do
diagnóstico que já estenosava a artéria da actividade sexual. Após esta ruptura
criou-se, ao longo do tempo, um trombo de mitos, receios, ansiedade e
frustração. Este trombo esteve, por sua vez, na origem do enfarte... da relação
conjugal.
É retomado o aconselhamento elaborado na consulta anterior, explicando a
relativa «benignidade» da classe I de angina estável para a prática da
actividade sexual. É transmitido ao doente, utilizando uma linguagem ajustada,
parte do conhecimento científico actual sobre a sexualidade no doente
coronário.
É-lhe explicado que a actividade sexual apresenta um consumo energético médio
de cerca de 3 a 5 METs (máximo na fase do orgasmo), um gasto metabólico
semelhante ao da maioria das actividades do dia-a-dia,1,2,4 nomeadamente
similar à exigência cardíaca subjacente à sua caminhada nocturna que tolera bem
(Quadro_I).
Estudos de boa qualidade, nomeadamente case-crossover, foram realizados nos
últimos anos envolvendo pacientes com doença coronária diagnosticada e
sexualmente activos. Encontraram um risco relativo (RR) de EAM 2,5 para
populações ocidentais5,6,7 ( 5,5 para uma população latina-americana)8apenas
nas duas horas após início da actividade sexual, comparativamente à não-prática
de actividade sexual. No entanto, o risco absoluto permanece muito baixo.
Usando os dados do estudo de Framingham e um factor de multiplicação = 2,5
(correspondente ao RR), o acto sexual eleva o risco absoluto de EAM num homem
de 50 anos (não-diabético e não-fumador) de 1 para 2,5 / 1000000 / hora. No
homem de 50 anos com angina estável classe I eleva esse risco de 3 para 7,5 /
1000000 / hora e naquele pós-EAM de 10 para 25 / 1000000 / hora. Os aumentos do
risco absoluto são, então, modestos e têm somente uma expressão nas duas horas
após o acto sexual. Não se trata de um risco que permaneça durante os milhares
de horas de vida do paciente. Este RR reduz-se em doentes coronários que
praticam actividade física regular (como é o caso do Rui) para um valor muito
próximo de 1.5,6 Por outro lado, a sua medicação habitual é, para além de
antianginosa, preventiva de eventos cardiovasculares.
Apresentando estas três razões, pelas quais o paciente não tem contra-indicação
para a prática de actividade sexual, é realizada uma intervenção precoce, cujo
objectivo visa eliminar parte do trombo de mitos e receios e, assim, restituir
a actividade funcional sexual. É, portanto, conseguida a trombólise nesta
consulta.
26/Outubro/2010
Uma semana depois Rui volta à consulta com a esposa. Refere sentir-se «muito
bem» e que retomou a actividade sexual «sem percalços!» (sic).
Maria revela-se «feliz», porém mantém alguma preocupação e pergunta «não haverá
mesmo risco de causar um enfarte no meu marido durante as relações sexuais?»
Procurando dar a melhor resposta à questão, a evidência científica disponível
sobre o tema é discutida com o casal. É explicado que um homem com 3 factores
de risco (género, idade> 45 anos e hipertenso) e angina estável classe I (SCC)
se classifica como de «baixo risco», segundo as Normas do Segundo Consenso de
Princeton.9 Este Consenso consiste num grupo de peritos cardiologistas que
estabelece que, para a abordagem da sexualidade de um doente cardiovascular,
deverá ser realizada uma rigorosa avaliação clínica. Os doentes de baixo risco
(Quadro_II), que representam a maioria dos doentes cardiovasculares, não
apresentam qualquer contra-indicação para a prática da actividade sexual e
devem ser encorajados a manter a sua actividade íntima intraconjugal. Os de
risco intermédio deverão fazer uma estratificação não-invasiva (nomeadamente
pela prova de esforço que documente a sua capacidade funcional), de maneira que
possam ser classificados como baixo ou elevado risco. Apenas os de risco
elevado deverão ter a sua actividade sexual deferida até o risco reduzir.
A prova de esforço electrocardiográfica, realizada pelo doente (apesar de este
ser de baixo risco), constitui um importante factor mediador ao documentar que
apenas com um exercício correspondente a 11 METs surge isquemia miocárdica, um
gasto metabólico que representa o dobro do máximo exigido numa relação sexual
intraconjugal.1,3 O Rui apresenta, portanto, uma boa reserva funcional.
Com esta exposição da evidência actual, procede-se, junto dos dois elementos da
relação em risco, à eliminação total do trombo que obstruía parcialmente aquela
artéria de suprimento afectivo. Permanecerá, embora de menor tamanho, uma placa
ligeiramente obstrutiva do peso psicológico do diagnóstico da doença coronária,
que provavelmente nunca será possível eliminar do seio daquele casal.
Consultas seguintes
Nas consultas seguintes os dois elementos do casal aparecem sempre juntos no
gabinete. Rui encontra-se de humor claramente mais elevado e refere que retomou
as actividades sociais, nomeadamente o xadrez com os amigos. Maria refere que
«vivemos uma espécie de segunda lua-de-mel». Conclui-se, portanto, que foi
conseguida com sucesso a revascularização da actividade sexual deste casal.
COMENTÁRIO
A actividade sexual constitui um aspecto importante do bem-estar
biopsicossocial do indivíduo e, naturalmente, também o será para um doente com
doença coronária.
O aconselhamento médico constitui parte significativa da terapêutica não-
farmacológica e, quando integra insegurança e desinformação (por erro na sua
transmissão ou na sua recepção), poderá ser desadequado e deletério. Neste caso
em particular, originou um trombo no suprimento da afectividade deste casal e,
consequentemente, um enfarte da relação conjugal.
Talvez porque a sexualidade constituiu um tabu na nossa comunidade, a sua
abordagem foi deixada para segundo plano até aos dias de hoje. Tal perpetuou a
desactualização e insegurança em parte da comunidade médica.1,3
Como comentário final, poder-se-á salientar a abordagem generalista dos estilos
de vida, realizada na segunda consulta com o paciente. Tal aconselhamento terá
tocado em diferentes aspectos de relevância segundo um modelo biopsicossocial,
incluindo a actividade sexual. Acredita-se que tal abrangência terá permitido,
por sua vez, abrir espaço para as dúvidas que levaram o paciente a revelar o
que estaria na base da sua alteração de comportamento.
Por último, o facto do caso ter sido desenvolvido durante o seguimento por
Medicina Geral e Familiar conferiu um campo de actuação mais fácil, o que terá
agilizado todo este processo bem sucedido de revascularização. Na realidade, o
Médico de Família tem a oportunidade de abordar diferentes elementos da família
em diversos contactos, adquirindo informação adicional que lhe permitirá actuar
de forma mais precoce em distintas situações clínicas. Neste caso em
particular, as consultas com a esposa Maria permitiram percepcionar, de forma
bem mais célere, que a afectividade daquele casal se encontrava em risco.