Psicoeducação familiar na demência: da clínica à saúde pública
A demência como problema de saúde pública
Dimensão epidemiológica e clínica das síndromes demenciais
As síndromes demenciais têm início, na maioria dos casos, após os 65 anos. O
alongar da esperança média de vida nas últimas décadas contribuiu para o
aumento da sua prevalência, rondando os 5,4 %, após os 60 anos, na Europa
ocidental. Há, actualmente, mais de 6 milhões de pessoas com demência na União
Europeia e 24 milhões no mundo, a maioria com doença de Alzheimer 1,2. Em
Portugal, foram publicados recentemente os resultados de um estudo
epidemiológico no Norte do país, apontando para uma prevalência de demência de
2,7 % (IC 95 %: 1,9-3,8 %) entre os 55 e os 79 anos 3.
Nos serviços de saúde mental portugueses, a actividade relativa a casos de
gerontopsiquiatria tem aumentado nos últimos anos. Como determinantes, além do
referido aumento dos casos de demência, realça-se um acréscimo relativo da
literacia em saúde por parte das populações e dos técnicos, e o reconhecimento
crescente, nos serviços psiquiátricos, de que a responsabilidade sobre estes
casos não deve ser remetida exclusivamente para os cuidados primários e
serviços de Neurologia. No Censo Psiquiátrico de 2001, considerando episódios
de consulta, urgência e internamento, registou-se proporção assinalável de
casos de pessoas com mais de 64 anos (n = 2968; 17,9 % do total), sendo as
síndromes demenciais o segundo diagnóstico mais frequente (525; 17,7 %), após a
esquizofrenia (718; 24,2 %), e seguido das depressões (414; 13,9 %) 4.
As relações entre família, saúde e doença (nomeadamente doença demencial) têm
sido estudadas no envelhecimento, ressaltando a necessidade de recorrer a
modelos multifactoriais de inspiração sistémica. As características da pessoa
doente, da sua doença e dos seus familiares têm impacto sobre a estrutura e
funcionamento das famílias, podendo ser moduladas por estas mesmas dimensões.
As manifestações sintomáticas da demência ou a sobrecarga familiar que delas
deriva devem ser exploradas numa óptica circular 5.
Aspectos familiares nos cuidados informais da demência
Em Portugal, como noutros países europeus, a maioria dos prestadores de
cuidados informais na demência são os familiares da pessoa doente 5. A nível
internacional, a investigação sobre estes cuidados familiares tem proliferado
6: o peso global das demências decorre em muito das repercussões na família. A
colocação institucional, por exemplo, pode ser determinada mais pela falência
dos familiares (saúde precária, sobrecarga subjectiva, colapso) que pela
gravidade do quadro demencial ou pela inexistência de apoio social. As
alterações comportamentais do doente associam-se a sobrecarga familiar e
colapso, enquanto não viver com o doente, tendo de acumular responsabilidades
em casa própria, se associa preferencialmente ao colapso 7.
Georges et al. 2 publicaram um estudo epidemiológico com cuidadores ligados
àAlzheimer Europe. Nos casos graves de demência, 50 % dos cuidadores dedicavam
dez ou mais horas por dia à prestação informal de cuidados e 83 % consideravam
insuficientes ou inadequados os serviços disponíveis. Numa amostra australiana,
em que apenas 25 % das famílias recorriam a ajuda formal, foram estudadas as
razões de não recurso aos serviços por parte dos cuidadores. Estes familiares
referiram: relutância do doente, experiências negativas, características
inadequadas (ex: horários), custos associados; mas as razões apontadas com
maior frequência eram o défice de informação sobre os serviços disponíveis e a
ausência de necessidade. Não obstante, muitos dos familiares sem contacto com
serviços evidenciavam sobrecarga e sofrimento psicológico 8. Reforçando o
problema, persiste a insuficiência dos cuidados formais e a sua pulverização
por diferentes serviços, com articulação deficiente, como é ainda frequente em
Portugal: cuidados primários; cuidados hospitalares (Medicina Interna,
Neurologia, Psiquiatria e Saúde Mental), em ambulatório ou internamento, de
duração prolongada ou curta, com eventual "porta giratória" por via dos
serviços de urgência; sector público e privado, ou IPSS.
Quanto à investigação nacional da sobrecarga familiar pelas demências,
registam-se estudos pioneiros 9,10, na maioria exploratórios ou validando
traduções portuguesas de questionários relacionados. Existem compararações de
cuidadores de idosos dependentes, com e sem demência 11,12. Recentemente, Melo,
Maroco e de Mendonça 13 exploraram associações entre sintomas psicológicos e
comportamentais da demência, personalidade e sobrecarga do cuidador.
Na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, está em
finalização o projecto "Famílias de pessoas com Demência" (FAMIDEM). O seu
objectivo é aprofundar o conhecimento da experiência de cuidar e seus
determinantes, em familiares de doentes demenciados, no ambulatório de serviços
de Psiquiatria e Neurologia. Este estudo tem recorrido a metodologias
quantitativas (avaliação de sobrecarga familiar, gratificações do cuidar,
sofrimento psicológico,coping,conhecimento sobre demência, sentido de
coerência, suporte social e necessidades dos cuidadores, com avaliação
clínicofuncional dos doentes correspondentes) e qualitativas (entrevistas em
profundidade, para triangulação). Envolve estudantes, numa sensibilização para
os aspectos familiares da medicina. Numa amostra inicial, sobressaiu a
proporção de familiares com provável morbilidade psiquiátricaminor (53,4 %);
foi também sugerido que o grau de informação sobre demência por parte dos
familiares pode ter influência limitada na percepção dos aspectos negativos ou
positivos do cuidar 14.
Entretanto, para avaliação de necessidades de cuidados em psicogeriatria,
surgiram instrumentos como oCamberwell Assessment of Need for the Elderly -
CANE, com tradução portuguesa 15. Reconhecendo a perspectiva dos cuidadores
informais na avaliação das necessidades dos idosos de quem cuidam, o CANE
inclui itens específicos para necessidades desses cuidadores (informação sobre
a doença; sofrimento psicológico). Em amostras portuguesas (cuidados
secundários de saúde), estas necessidades não cobertas podem ser consideráveis:
na perspectiva do avaliador, foram avaliadas em 9,4 % dos casos quanto a
informação e em 26,4 % quanto a sofrimento psicológico (n = 53) 15, ou 13,8 %
dos casos quanto a informação e 14,7 % quanto a sofrimento psicológico (n =
116) 14. Estes resultados estão em consonância com estudos internacionais:
havendo necessidades não cobertas relacionadas com o sofrimento dos cuidadores,
o acesso a informação é também frequentemente inadequado 2.
Não obstante esta profusão de literatura científica sobre cuidados informais na
área da demência, a matriz familiar tem sido pouco estudada em termos
sistémicos, até pelas dificuldades metodológicas inerentes. Não basta, por
exemplo, focar o tema das repercussões negativas da doença na família ou nos
familiares-cuidadores. É necessário salientar que a família constitui o recurso
mais comum nas dificuldades ligadas à doença, sendo desejável explorar a
circularidade das interacções 16. Se estes aspectos são ainda pouco abordados
em investigação, não o são mais na prática dos serviços.
Literacia em saúde na área da demência
A literacia em Saúde Mental foi definida como o conjunto de atitudes,
conhecimentos e crenças acerca das perturbações mentais que ajudam no seu
reconhecimento, gestão ou prevenção 17. O conceito foi inicialmente
desenvolvido em relação com a patologia dos adultos jovens, na depressão e na
esquizofrenia. Contudo, as características da população geriátrica (prevalência
dos quadros demenciais, situações de "duplo risco" pela conjunção patologia-
idade avançada) originaram preocupações com a literacia em demência 18. Apesar
de, nalgumas populações, a maioria do público ser capaz de reconhecer sintomas
de demência, têm sido propostas campanhas para melhorar o conhecimento sobre
factores associados a estas doenças 19.
Em Portugal, reconhecem-se progressos no conhecimento público sobre as
síndromes demenciais, realçando-se o papel da Alzheimer Portugal, membro
daAlzheimer Europe. Não obstante, subsistem lacunas, sobretudo nos sectores de
nível educacional baixo. Para mais, o conhecimento geral sobre demência não
implica necessariamente competências para com ela lidar no quotidiano, surgindo
o quadro num familiar próximo. O défice de literacia em demência pode motivar
apresentações clínicas envolvendo a família, para além de colocar obstáculos à
prevenção.
Apresentações clínicas e razões adicionais para envolver a família
Perante um quadro demencial, diagnosticado ou não, a falta de informação pode
ser motivo de recurso a um serviço de saúde, como necessidade expressa da
família ou de forma indirecta. Muitos familiares sabem que a demência causa
limitações cognitivas, mas não compreendem os défices executivos, o significado
de uma apraxia ou a sintomatologia delirante. Outros culpabilizam-se pela
eclosão do quadro (e.g. após uma mudança de domicílio, que terá coincidido com
o início dos sintomas, quando muito, pelo papel inespecífico do "stress" na
reserva cerebral diminuída). Estas situações produzem, com frequência,
sofrimento e respostas desadequadas nos familiares, desencadeando interacções
destrutivas com a pessoa doente.
Muitas outras situações carecem de resposta clínica 20. A distribuição desigual
de sobrecarga entre vários filhos leva frequentemente à conflitualidade,
exacerbada nas tomadas de decisão (e.g. propostas de interdição,
institucionalização). O elemento mais frágil (o doente) pode ser triangulado
por outros elementos da família. São também complexas, na avaliação e
intervenção, as situações de abuso ou violência sobre o idoso 20.
A prática da psiquiatria geriátrica (na demência em particular) associa-se,
assim, à necessidade frequente, nem sempre atendida, de trabalhar com famílias
de forma consistente. A fragilidade ligada ao envelhecimento é potenciada pelas
consequências clínico-funcionais da demência, sendo mais provável a indicação
para intervenções familiares. Envolver a família pode ser uma forma de melhor
ajudar o "doente", para além de atender às necessidades próprias, não
negligenciáveis, dos familiares 16.
Independentemente destes aspectos, práticos e éticos, e conhecido o impacto
económico dos cuidados informais a pessoas idosas na poupança em cuidados
formais, institucionais ou domiciliários, promover o bem-estar das famílias é
também um imperativo económico. Como vimos, a colocação institucional, por
exemplo, pode ser determinada mais por factores relativos ao familiar
(sobrecarga subjectiva, saúde precária) do que pela gravidade do quadro clínico
demencial ou pela inexistência de apoio social 21,22.
Também no que toca à relação com os serviços, só pelo melhor conhecimento das
expectativas dos cuidadores (em relação, por exemplo, aos cuidados
hospitalares), se poderão melhorar os níveis de satisfação 9e,
consequentemente, de adesão dos familiares às intervenções propostas.
Finalmente, o trabalho com famílias constitui uma oportunidade para a promoção
da saúde com cada um dos seus elementos, estejam ou não em sofrimento
neuropsiquiátrico e independentemente do tipo de intervenção familiar.
Tipos de intervenção familiar na demência
Nesta área do conhecimento, persiste alguma indefinição terminológica quanto ao
significado de termos como "psicoeducação", "educação", "terapia" ou
"intervenção familiar" ou, ainda, "trabalho com famílias" (em geral importados
do inglês).
Mesmo as famílias que mostram bons parâmetros de funcionamento na maioria dos
momentos do seu ciclo vital, sofrem, em muitos momentos, dificuldades
significativas perante uma situação de doença grave, enquanto as que já
registavam dificuldades prévias terão necessidades acrescidas de apoio. Ambas
podem precisar de informação sobre a doença ou de melhorar competências para
lidar com ela, i.e., de ajuda psicoeducativa. Mas, tal como discutimos noutro
trabalho, enquanto as primeiras famílias podem não necessitar de mais, as
segundas terão necessidade de apoio suplementar, com foco sistémico 16.
Os objectivos da "terapia familiar sistémica" prendem-se em genérico com
desafiar a circularidade patológica nas interacções entre as pessoas, levando a
formas alternativas de comunicação. Asen 20 ou Richardson et al. 23 referem:
(1) melhorar a relação entre os elementos da família e entre as gerações; (2)
desenvolver a independência e/ou o apoio prestado aos elementos mais velhos da
família. O trabalho sistémico nesta área tem sido menos avaliado, a despeito
dos esforços recentes 24.
Por "psicoeducação familiar" entende-se, especificamente, o trabalho com
famílias para transmitir conhecimento sobre a doença mental ou
neuropsiquiátrica de um dos seus elementos e melhorar as competências para
lidar com ela. Incide na literacia em saúde mental e, no campo da demência, na
informação sobre: sintomas e diagnóstico; etiologia; tratamentos farmacológicos
e psicossociais; prognóstico; como lidar com os comportamentos do doente e
aspectos ligados à institucionalização, falecimento ou luto; questões legais
(direitos da pessoa com demência, inabilitação e interdição, poder de decisão
sobre a assistência clínica); benefícios fiscais e protecção social; ajuda
possível para o cuidador informal (incluindo auto e entreajuda) 5,25-27.
No treino de comunicação e resolução de problemas, de relaxamento, ou de gestão
das crises, a psicoeducação familiar recorre, sobretudo, a estratégias
cognitivo-comportamentais 27. Embora alguns, como Johnson 28, reservem a
designação para intervenções dirigidas à família em conjunto (incluindo o
doente), na demência este trabalho tem vindo a ser feito, sobretudo, com os
familiares-cuidadores: assim, pode ser mais difícil modificar algumas dinâmicas
ou resolver conflitos.
Note-se que as designações "intervenção familiar" ou "trabalho com famílias"
abarcam o conjunto destas abordagens psicoeducativas, havendo tendência a
designar especificamente como "terapia familiar" as intervenções mais clássicas
ou sistémicas.
Uma última nota ao termo "sistémico": revisitando o seu uso em psiquiatria
geriátrica, como noutros contextos 29, a designação aplica-se não só a um tipo
específico de terapia, mas sobretudo ao modelo conceptual traduzível na
expressão inglesa "thinking families, thinking systems" 20. Realçamos que é
possível e vantajoso incluir a pessoa com demência na intervenção
psicoeducativa, pelo menos nalgumas fases do processo e com a necessária
flexibilidade perante as dificuldades. Modelos como o de Falloon têm sido
objecto de adaptações ao campo das perturbações mentais orgânicas 30. Contudo,
este não é o formato habitual da psicoeducação familiar na demência, pelo que
nos restringimos, na secção seguinte, à acepção de Richardson et al. 23:
consideramos as intervenções que desenvolvem a informação e as competências dos
familiares-cuidadores, almejando a diminuição do "stress" na família, mas com
foco principal nas necessidades destes familiares e não da pessoa com demência.
Intervenções dirigidas a familiares-cuidadores e psicoeducação familiar
Como nunca é demais relembrar, os terapeutas esperam muitas vezes demasiado dos
familiares-cuidadores 5. Nomeadamente, que lidem com comportamentos e sintomas
altamente complexos e perturbadores, sem conhecimentos teóricos nem treino de
competências práticas e sem descanso, com uma pessoa doente, em sofrimento, a
quem têm forte ligação emocional.
Donaldson, Tarrier e Burns 31 sistematizaram três formas de intervenção
dirigidas aos familiares de pessoas com demência: a) atenuação dos sintomas da
doença (através de estratégias medicamentosas ou de abordagens
comportamentais); b) redução da exposição do cuidador a estes sintomas, através
de internamentos de alívio ou do apoio ao cuidador; c) alteração da resposta do
cuidador à doença, através de terapia individual ou familiar para os
cuidadores.
É de realçar a lógica sistémica desta divisão, nomeadamente ao considerar as
intervenções para atenuação dos sintomas da doença, focadas directamente no
processo demencial. Daí que os ensaios clínicos para estudo da eficácia,
efectividade e eficiência dos fármacos antidemenciais equacionem, cada vez
mais, variáveis dos cuidadores 32. Citamos exemplos específicos, para o
donepezilo 33, galantamina 34, rivastigmina 35e memantina 36. Em muitos
trabalhos, regista-se a diminuição do tempo dedicado à prestação de cuidados,
da sobrecarga ou do sofrimento dos cuidadores, bem como os benefícios
económicos e sociais do atraso na institucionalização. Sendo necessário definir
o significado clínico (e não apenas estatístico) de algumas destas abordagens
37, a evolução da demência e as insuficiências dos serviços tornam prementes
intervenções psicossociais que considerem directamente a família, mesmo no
pressuposto de tratamentos farmacológicos optimizados.
Acresce que parte da sobrecarga deriva da responsabilidade de supervisionar
medicação e muitos cuidadores (cerca de um terço) estão isolados nessa função,
como cuidadores únicos. Ilustrando o papel das terapias farmacológicas da
demência, Brodaty e Green 38 referem: "doctors need to work in partnership with
caregivers and patients when prescribing drugs for Alzheimer's disease".
Reformulando, os médicos deverão trabalhar em parceria com as famílias (doente
e seus familiares) na doença de Alzheimer como noutras demências, nas
terapêuticas medicamentosas como noutras.
Sorensen, Pinquart e Duberstein 39, numa meta-análise de 78 trabalhos com
cuidadores de doentes idosos, ainda que não exclusivamente com demência,
sistematizaram de outra forma as intervenções relacionadas, considerando:
estratégias de alívio, de suporte, de psicoeducação, de treino de competências,
de incidência psicoterapêutica, e com componentes múltiplos.
Nasintervenções de alívio, por definição, não são oferecidos, necessariamente,
programas ou actividades ao doente. Pode ser proporcionado alívio em
internamento ou em casa, cuidados em centros ou hospitais de dia. Não obstante,
a realidade actual dos serviços raramente permite este apoio.
Asintervenções de suporte, muitas vezes sob a forma de grupos de familiares,
estão mais difundidas. Os elementoschave dos grupos são: apoio emocional mútuo,
normalização de sentimentos, aconselhamento e partilha de informação factual
entre pares. Sendo orientadas por profissionais, buscam raízes ou podem
transformar-se em "grupos de entreajuda" (sem intervenção técnica),
providenciando sentido de identidade e de pertença a uma rede social. Em
Portugal, deve ser salientado o papel pioneiro da Alzheimer Portugal e de
equipas como o Serviço de Psicogeriatria do Hospital Magalhães Lemos 40. Estes
exemplos de intervenções grupais assumem, porém, enfoques mistos (com alguma
incidência psicoeducativa).
Nasabordagens psicoeducativas, muitas vezes com recurso a materiais pedagógicos
estruturados, o componente de suporte pode estar presente mas é secundário ao
informativo. Mittelman et al. 41, por exemplo, salientaram os benefícios de
melhorar as percepções dos familiares sobre a doença. Entretanto, foram
realizados novos ensaios, como o da intervenção breve associada ao protocolo
internacional 10/66 doDementia Research Group (Instituto de Psiquiatria de
Londres), em países em desenvolvimento 42. Entre nós, muitas famílias têm
dificuldade compreensível no reconhecimento precoce da situação de demência,
sendo desejável aumentar o seu grau de informação sobre a doença 43. Não
obstante, o papel do conhecimento isolado é limitado na sua influência sobre as
percepções da experiência de cuidar 14, pelo que as intervenções deverão
contemplar outros componentes, dirigidos àscompetências dos cuidadores, com
abordagens tendencialmente cognitivo-comportamentais. Como exemplo, temos as
intervenções para gestão das alterações psicopatológicas e comportamentais da
demência, como a agressividade, em que a identificação de "gatilhos" ambientais
e o evitamento de precipitantes depende, em muito, do envolvimento da família.
Marriott et al. 44 realçaram a utilidade de programas combinando a vertente
educativa com a gestão de "stress", o trabalho do luto ou o treino da gestão do
comportamento do doente (base no modelo ABC de "coping"). Esta intervenção de
14 sessões foi testada através de um ensaio randomizado e controlado, com
impacto não apenas na psicopatologia reactiva dos cuidadores (depressão), como
nos sintomas psicológicos e alterações comportamentais dos doentes. Martín-
Carrasco et al. 27evidenciaram a redução da sobrecarga familiar com uma
intervenção mista (componente psicoeducativo - informativo e de treino de
competências - e de apoio emocional).
A um nível menos estruturado, oapoio/aconselhamento básico ao cuidador é
fundamental, enquanto alguns familiares, com necessidades mais complexas, terão
indicação parapsicoterapia individualespecífica.
Resumindo, as intervenções dirigidas directamente a familiares-cuidadores podem
ter lugar em contextos diferentes (no domicílio, no serviço), envolver uma
parte variável da família (toda a família, alguns elementos ou, no limite,
apenas um) e abranger conteúdos diversos, transmitidos de formas também elas
diferentes (predomínio didáctico, de transmissão de informação ou de
competênciasversus trabalho emocional ou de partilha; intervenções de "baixo
grau" de complexidade, informaisversus intervenções estruturadas, em grupo ou
com famílias).
No que toca à efectividade destas intervenções, diversas revisões ou meta-
análises têm sido realizadas na última década, nem sempre com resultados
consensuais 39,45-51.
Sorensen, Pinquart e Duberstein 39, ressalvando menor evidência nas demências,
salientam que a efectividade das intervenções com cuidadores de doentes
neuropsiquiátricos idosos está dependente do tipo de intervenção, não sendo
global mas em domínios específicos (e.g. aquisição de competências/informação,
mas também depressão, bem-estar subjectivo/satisfação, sobrecarga familiar, ou
alguma melhoria clínica na pessoa doente). Os benefícios poderão ser mais
consistentes na aquisição de conhecimento e competências, do que na diminuição
de sobrecarga e sofrimento psicológico. Brodaty, Green e Koschera 45 apontaram
impacto no sofrimento psicológico e na informação, mas não necessariamente na
sobrecarga. Alguns dados sugerem que as intervenções grupais serão mais
efectivas na redução dos sintomas do doente que as intervenções individuais com
cuidadores, enquanto estas últimas (ou mistas) serão mais efectivas sobre a
sobrecarga e o bem-estar dos cuidadores. Mas noutra revisão, foi salientada a
utilidade da gestão comportamental individual, em oposição à menor efectividade
de intervenções em grupo e à inexistência de evidência para a educação isolada,
a terapia comportamental de grupo ou a terapia de apoio 50. Não está provado
que a transmissão de informação influencie de forma significativa ou duradoura
os níveis de "stress" e sobrecarga, ao contrário de algumas intervenções sobre
as competências, terapia cognitivo-comportamental ou até do aconselhamento 45.
Algumas intervenções de suporte podem ter impacto no bem-estar psicológico de
cuidadores e doentes 48.
Thompson et al. 51consideraram 44 estudos aleatorizados e controlados,
envolvendo intervenções individuais ou grupais, por vezes com aplicação de
meios tecnológicos. Concluíram por um impacto positivo dos grupos de apoio e
pela premência de adequar as intervenções às necessidades específicas dos
participantes. Salientaram a complexidade na interpretação dos resultados de
meta-análises nesta área, pelo que o grau de evidência dos benefícios se torna
menos claro, como aliás noutros trabalhos 46,52.
Muitos autores concluem, numa perspectiva equilibrada, não ser recomendável um
investimento maciço nestas intervenções familiares, nem o inverso. O próprio
termo "intervenção" é vago, incluindo entidades diversas, e os parâmetros de
avaliação são pouco uniformes, dificultando a análise comparativa. Recomenda-se
melhor produção científica, refinando: uniformidade e relevância (clínica e
para os familiares) das medidas de avaliação; "ocultação" na avaliação; estudos
mais prolongados e dimensão adequada das amostras; qualidade e quantidade da
publicação de resultados 52. Entretanto, já Schulz et al. 49 haviam enfatizado
a necessidade de procurar significância clínica nas intervenções familiares,
para além da significância estatística, mediante desenvolvimentos conceptuais e
metodológicos. Interessa, assim, produzir evidência e replicar resultados. Os
estudos de eficiência, em particular, pelas dificuldades metodológicas e
operacionais, têm sido menos numerosos e conclusivos.
Mas a escassez de evidência não significa necessariamente ausência de eficácia,
até porque a evidência qualitativa que decorre da impressão clínica e da
maioria das intervenções publicadas é muito favorável à implementação deste
tipo de trabalho. Para Cooper et al. 46, a não demonstração de efectividade
pode radicar no uso de medidas pouco sensíveis à mudança (e.g. a sobrecarga
será menos modificável que o bem-estar) ou escolhidas de forma inadequada ao
programa avaliado.
Em resumo, os benefícios das intervenções psicoeducativas variam,
necessariamente, com o seu conteúdo e destinatários. Alguns elementos comuns
aos programas com efectividade demonstrada serão: o envolvimento de doentes e
família (não apenas do cuidador principal), de acordo as necessidades
específicas, flexibilidade, duração e intensidade apropriadas. Estas
intervenções deverão ser ponderadas de acordo com o contexto clínico/familiar e
as possibilidades dos serviços. Serão, muitas vezes, combinadas e/ou faseadas,
de acordo com as necessidades decorrentes da evolução do processo demencial
(e.g. adaptação inicial após diagnóstico, ponderação de disposições legais ou
institucionalização, luto) 45. No que toca especificamente a informação, Wald
et al. 53propuseram uma "regra de 3" para ajudar os profissionais a
disponibilizar a informação mais pertinente para os cuidadores, de acordo com
as prioridades de cada fase da doença 5,26.
Entretanto, têm sido defendidas parcerias genuínas com os familiares no
planeamento de cuidados e serviços de saúde mental para os mais velhos 54.
Conclusões: da clínica à saúde pública
Pensar em termos sistémicos não implica intervir formalmente na linha da
terapia familiar sistémica. Um exemplo clássico é o da circularidade entre
esquecimentos e conflitos, a propósito da demência.
Assim, o modelo sistémico pode ser utilizado em psiquiatria geriátrica, mesmo
sem iniciar uma terapia, informando estratégias mais simples. Com efeito, o
nível de intervenção poderá ir desde o mais elementar ao mais estruturado (e.g.
terapia familiar), incluindo a possibilidade de recurso a grupos de familiares
com enfoque no apoio/entreajuda ou em componentes psicoeducativos. A escolha
dependerá, entre outros factores, da avaliação inicial de necessidades.
De modo geral, a psicoeducação familiar só deverá ser implementada mediante
criteriosa avaliação inicial, cingindo-se a objectivos claros e aferidos de
forma periódica. Como todo o trabalho com famílias em psiquiatria geriátrica,
estas abordagens familiares são faseadas no tempo, de acordo com as fases da
doença face ao ciclo de vida familiar. A sua efectividade depende da duração e
intensidade da intervenção e a sua consistência poderá aumentar com o
envolvimento possível das pessoas doentes. Também as características pessoais
dos terapeutas condicionam o desenvolvimento de um verdadeiro trabalhocom a
família 16.
Em termos organizacionais, muitos dos princípios atrás enunciados serão
consensuais, nomeadamente quanto aos benefícios de atender às necessidades das
famílias na demência. Paradoxalmente, ainda não inspiram de forma significativa
os planos reais de cuidados de saúde. Para além de indagarmos "por que razão as
famílias não usam os serviços?", impõe-se a questão complementar: "por que
razão os serviços não usam as famílias?".
Na clínica, trabalhar com famílias tornar-se à uma necessidade ainda mais
premente nas próximas décadas. Da mesma forma, só aumentando a literacia em
demência terão efectividade as estratégias de prevenção destes quadros
neuropsiquiátricos (a nível primário, secundário - e.g. pelo reconhecimento
precoce - ou terciário), com reflexo na promoção da saúde mental das famílias e
das populações.