Saúde pública e crise: uma reflexão
Saúde pública e crise: uma reflexão
Global crisis and public health
Paula de Faria a
aProfessora Associada de Direito da Saúde e Biodireito, ENSP'UNL
"Public trust in any health system is essentially sustained by developing
health structures which are consistent with essential fundamental rights such
as the universal right to access health care." In: Defining health law or the
Edgewood syndrome, Paula Lobato de Faria, Wendy K. Mariner, George J. Annas,
RPSP. Especial 25 anos (2009) p. 123
"Base IV - (...) 3. Os cidadãos e as entidades públicas devem colaborar na
criação de condições que permitam o exercício do direito à protecção da saúde e
a adopção de estilos de vida saudáveis." In: Lei nº48/90, de 24 de Agosto - Lei
de Bases da Saúde
A ideia instalou-se paulatinamente e de início sem grande aceitação. No
entanto, neste momento, já ninguém em Portugal e noutros países atingidos pela
maior crise financeira mundial desde a Great Depression
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a contesta: estamos a viver num "estado de emergência"
2
. Informal é certo, dado que sob a perspectiva jurídica este não foi decretado
pelo Presidente da República nem por qualquer outra instância nacional ou
internacional, mas existente de facto e como tal modelador da realidade e
presente em todas as áreas, incluindo, em especial, a Saúde Pública, tema
central deste editorial.
Na verdade, viver num estado de emergência financeiro pode afectar de várias
formas a Saúde Pública. Algumas são mais óbvias e outras menos detectáveis ou
até mesmo insidiosas, podendo surgir de surpresa na fase aguda de uma crise,
mas todas constituem um alerta para a necessidade do reforço de medidas de
prevenção e protecção da Saúde Pública neste tipo de situação. Nesta premissa,
há a assinalar que muito recentemente a imprensa internacional e mesmo o ECDC
começaram a dar o alerta para o retorno de mosquitos infectados com o vírus da
malária na Grécia, relacionando este facto com a crise económica e social neste
país
3
. O efeito da crise grega no estado de saúde dos seus cidadãos tem sido alvo de
estudos divulgados e.g. na Lancet
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, revista que, aliás, já em 2009 publicara um artigo que provava que as
mudanças de fundo na organização da sociedade podem levar a um significativo
aumento de morbilidade nas populações, sobretudo através do consumo nocivo de
álcool
5
.
Também os cortes no orçamento da saúde que acompanham as crises financeiras de
um Estado, não só põem em risco o acesso aos cuidados de saúde e medicamentos,
colocando em perigo a saúde das populações, como podem ter ainda por efeito
criar um acréscimo na insegurança e no stress das pessoas. Sabendo-se que
Portugal é já um país muito afectado pela doença mental
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, é de prever que a carga desta aumente, elevando-se também o número de casos
extremos, nomeadamente de actos de suicídio.
Mesmo numa mera abordagem empírica, não existem quaisquer dúvidas sobre o facto
de que as crises, sejam estas de natureza financeira, económica, política ou
social (sendo de prever que todos estes elementos acabem juntos), afectam de
forma inequívoca e multissectorial, directa e/ ou indirectamente o "estado de
saúde" de uma população
7
.
Migrant Mother, Dorothea Lange, Nipomo, California, March 1936.
Ora estando Portugal num "estado de emergência informal" financeiro e económico
(podendo alastrar-se em breve para o âmbito social), está na hora de começar a
agir com mais energia na prevenção dos danos deste na saúde pública das nossas
populações, sobretudo das mais carenciadas, pois, apesar de o cenário ser
potencialmente de catástrofe eminente, há alternativas que a sociedade actual
apresenta que poderão ser utilizadas de forma inovadora pelos agentes sociais
e, em especial, pelas "autoridades em matéria de saúde pública"
8
.
Nesse sentido, o impacto da crise financeira sobre a saúde dos Portugueses
necessita de uma abordagem que não passa apenas por ilações de natureza mais
óbvia (e.g. menos dinheiro leva a pior alimentação, mais stress, mais violência
e mais acidentes), mas pelo acréscimo a estas de novas abordagens prospectivas,
pioneiras ou mesmo temerárias, que usem a inovação e os novos cenários
tecnológicos, biomédicos e comunicacionais do mundo actual, podendo ou não
passar por algum tipo de pressão social. Os académicos e os cientistas têm que
ter aqui a coragem para utilizar como arma o seu saber mais documentado,
acreditando que a sociedade pode criar novos paradigmas de organização da
sociedade, baseados no conhecimento e na associação civil e não só pela força
do dinheiro ou dos interesses sectoriais como tem sido regra da Humanidade.
Os cidadãos dos países em crise têm sobejas razões para se indignarem e para
não quererem aceitar restrições redutoras dos seus direitos sociais. De facto,
as contradições, as arbitrariedades e as discriminações patentes nos diversos
tratamentos a diferentes grupos sociais ou em diferentes situações (filosofia
coloquialmente definida como "dois pesos, duas medidas") a isso levam. Cito um
exemplo na área da saúde: os investimentos em tecnologias e investigação
sofisticados tais como sondas de ADN, células estaminais ou nanomedicina,
enquanto os serviços de saúde se debatem diariamente com a carência de recursos
materiais e humanos. Todos conhecemos esta e outras contradições correntes no
mundo em que vivemos (sendo a mais chocante a que confronta as imagens diárias
de crianças africanas subnutridas com as toneladas de restos comestíveis que
das nossas mesas do hemisfério norte seguem para os colectores de lixo), as
quais carecem da solução célere e justa que mereceriam, perdendo-se a vontade
de a criar numa "trivialização" quase obscena de cenas como a descrita atrás e
na mudez resultante do que reconhecemos como imutável por razões que a maior
parte das vezes desconhecemos.
Se em 1789
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um país Europeu gritou pela igualdade e fraternidade entre os seus cidadãos
apesar de tal parecer insano, não deverá ser impossível encontrarmos hoje meios
de proclamar um estado de equilíbrio entre os recursos existentes entre as
várias populações do mundo. À "luta de classes", a globalização adicionou a
luta de "zonas do mundo", uma luta nova de contornos de injustiça e opressão,
sem um fim previsível à vista. E, podem perguntar, o que têm estas "lutas"que
ver com o tema deste editorial, "Saúde Pública e Crise"? Eu diria que quase
tudo. De facto, a crise que vivemos actualmente seria impensável se os governos
planeassem de forma sensata a distribuição dos seus recursos e se acima de tudo
cumprissem, tão simplesmente, a Lei. É sabido que as leis que são feitas neste
país, a maior parte das vezes pensadas longamente e baseadas em dados sociais e
científicos, são impunemente violadas ou ignoradas. Exemplos a citar desta
realidade em Portugal são o da Lei do Orçamento, a qual não é cumprida e o dos
próprios direitos constitucionais (onde se inclui o direito à protecção da
saúde) que se encontram em risco de desaparecer sob a égide das urgências
financeiras e das excepções de um estado de emergência que nenhum diploma legal
explica como surgiu, nem quando é previsto cessar ou (pelo menos) ser
reavaliado.
A actual crise tem muito de "Kafkiano"
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e como tal de potencialmente opressivo e potenciador de injustiça e revolta. O
respeito pelos direitos humanos é a consagração do respeito por valores
universais, enquanto o respeito por normas de emergência é apenas a consagração
do respeito por normas casuísticas e de excepção, imbuídas dos interesses "do
momento", com todos os riscos que tal discricionariedade implica. Não há dúvida
que neste momento há forças políticas, económicas e industriais que são clara e
frontalmente contra a Saúde Pública. A crise tem pois que ser enfrentada de uma
forma não ingénua e a Saúde Pública tem um papel decisivo nesta atitude,
encontrando-se num momento de grande desafio: soçobrar às mãos de regras
arbitrárias e perigosas para a saúde dos cidadãos ou reinventar-se de forma a
encontrar a argumentação idónea (por "argumentação" entendam-se palavras ou
actos) e inovadora para enfrentar quem considera a Saúde um mero mercado de
bens e serviços, interessando sobretudo o melhor ou pior desempenho dos seus
actores e o maior ou menor lucro para os seus accionistas ou administradores.
A palavra-chave é agir
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. Ser inovador será aqui essencialmente um processo de agir da Saúde Pública,
usando o lobbying sistemático através de instrumentos ágeis e adequados à
realidade actual, com o objectivo de criar soluções novas para "velhos"
problemas. A Saúde Pública como todas as artes sociais "faz-se fazendo",
andando de casa em casa, nem que virtualmente, informando e convencendo as
pessoas de algo tão simples quanto os benefícios que lhes trariam o exercício
físico regular e uma alimentação equilibrada, enquanto poupariam dinheiro às
suas famílias e ao próprio Estado. O mundo actual permite a utilização de
recursos pouco onerosos de informação em massa de enorme valor estratégico
sendo as redes sociais poderosas ferramentas de promoção da saúde quando
veiculam a informação neutra e correcta que promova estilos de vida saudável e
que desmascare de vez os principais factores de morbilidade acrescida, como
adições a substâncias ou alimentos, ou mesmo a modos de pensar.
Para terminar esta breve reflexão diria que a Saúde Pública trava uma luta
difícil nesta Crise, mas que lhe pode sobreviver, dependendo da iniciativa de
todos nós e medindo-se no cálculo cumulativo da ausência de conformismo e da
não-aceitação cega de medidas de excepção.
Notas
1. Como se denominou a recessão nos EUA a partir do crash da bolsa norte-
americana de 1929 (Black Tuesday) e que se prolongou até 1940.
2. Ver artigos 19º, 135ª e 138ª da Constituição.
3. De Benito E. El mosquito de la fiebre amarilla vuelve a Europa 50 años
después. El País. (18/08/2010); Hansford K, Bennett E,
Medlock JM. Public health importance of the invasive mosquitoes of Europe.
Solna, Sweden: European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC); 2010.
4. Kentikelenis A, Karanikolos M, Papanicolas I, Basu S, McKee M, Stuckler D.
Health effects of financial crisis: omens of a Greek tragedy. The Lancet.
2011;378:1457-8.
5. Stuckler D, King L, McKee M. Mass privatisation and the post-communist
mortality crisis: a cross-national analysis. The Lancet. 2009;373:399-407.
6. Ver The World Mental Health Survey Initiative. WMH cross national sample.
[Internet]. Harvard: Harvard School of Medicine; 2005. [consultado 10 Nov
2011]. Disponível em: www.hcp.med.harvard.edu/wmh/national_sample.php.
7. Sobre o conceito de "saúde social" ver Huber M et al. How should we define
health? BMJ. 2011;343:163.
8. Utiliza-se este conceito como a infra-estrutura macro da saúde pública,
incluindo o Ministério da Saúde, a Direcção Geral da Saúde e os médicos de
Saúde Pública e/ou autoridades de saúde e, ainda, estruturas como o INSA, a
ENSP, os académicos, cientistas e ONGs que trabalham nesta área, bem como todos
os gestores e profissionais da saúde, municípios e os próprios cidadãos. O
papel destas estruturas pode ser mais marcante se as suas competências
(poderes) forem vinculativas, pelo que uma entidade com poderes regulamentares
com força executiva, tal como a DGS, torna-se nestas situações muito mais
eficaz no pautar das acções das populações, dada a força jurídica dos seus
actos na prossecução do interesse público.
9. 14 de Julho de 1789, dia da queda da Bastilha em Paris ("Revolução
Francesa").
10. Relativo a Franz Kafka cujas obras descrevem cenários absurdos e injustos.
11. Passo a exemplificar: quando um dirigente da saúde afirmar que não há
dinheiro para pagar campanhas anti-tabagismo, a Saúde Pública deverá perguntar
se os impostos sobre o tabaco não poderiam ser aí obrigatoriamente utilizados;
ou quando não houver fruta e leite para dar de pequeno-almoço a crianças
necessitadas nas escolas públicas, a Saúde Pública deve ir falar directamente
com os produtores; ou quando sabemos que certos restaurantes fast-food facturam
milhões de Euros por hora em Portugal, a Saúde Pública deveria lutar para que
uma percentagem fixa desses lucros revertesse a favor de campanhas de
informação à população sobre os malefícios das gorduras sobreaquecidas,
hidrogenadas ou do excesso de sal.
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