Comparação dos utentes do antigo Hospital do Desterro com os utentes do
Hospital de S. José no acesso à consulta de Medicina Interna - Parte I:
objectivos, população, métodos e resultados sobre potencial de acesso
Introdução
O presente estudo surge num contexto político nacional marcado pela
implementação de políticas de reestruturação dos serviços de saúde e foca a
transferência de serviços do Hospital do Desterro que integrava o Centro
Hospitalar de Lisboa da Zona Central (CHLC) desde Janeiro de 2004, pelas
restantes unidades que compõem o CHLC, nomeadamente, o Hospital de S. José, o
Hospital de Stº. António dos Capuchos, o Hospital de Santa Marta e o Hospital
de D. Estefânia.
Os utentes que eram servidos pelo Hospital do Desterro (HD) assistiram a
alterações na sua fonte habitual de cuidados, surgindo-lhes como alternativa a
utilização de outros hospitais com novas normas administrativas, onde se
concentram maiores aglomerados de pessoas e onde o ambiente é menos familiar.
Note-se que embora geograficamente estas unidades de saúde se situem
relativamente próximas do Hospital do Desterro (o Hospital de São José, por
exemplo, fica a pouco mais de cinco minutos a pé), os utentes que mudam de
hospital não deixam de ser levados a descobrir um novo trajecto, com novas
barreiras arquitectónicas, eventualmente a ter de utilizar um diferente meio de
transporte (o que poderá significar maiores custos se for necessário um táxi,
por exemplo), ou a depender da companhia de outrem na deslocação às consultas.
Estas dificuldades poderão ser tão potenciadas quanto maior for o
envelhecimento da população enquanto factor natural de vulnerabilidade1.
Tendo em conta este cenário, marcado pela contestação da população em que a
resistência à mudança da habitual fonte de cuidados é manifestada pelo
Movimento dos Utentes dos Serviços Públicos (a título de exemplo citam-se os
esforços desenvolvidos em parceria com a União dos Sindicatos de Lisboa como
abaixo-assinados, manifestações e concentrações frente ao Ministério da Saúde2-
4), o presente estudo propõe verificar se o encerramento do Hospital do
Desterro teve algum impacto no acesso a serviços de saúde, por parte da
população por ele anteriormente servida, mais especificamente, no acesso ao
serviço de Consulta Externa de MI, transferida do Hospital do Desterro para o
Hospital de São José. Para tal, este artigo é dividido em duas partes distintas
em que cada uma se ocupa de cada um dos objectivos específicos que adiante
serão indicados.
A complexidade do conceito "Acesso a Cuidados de Saúde"
O conceito de acesso a cuidados de saúde tem sido marcado pela falta de uma
definição clara acerca do seu significado5-13.
Por outro lado, mesmo mediante a pluralidade de definições atribuídas ao
conceito de acesso (seja a capacidade de produzir serviços e de responder às
necessidades de saúde de uma determinada população14, seja o grau de
ajustamento entre as necessidades de saúde da população e a capacidade do
sistema em responder a essas necessidades6, seja a utilização de serviços de
saúde em tempo adequado de modo a conseguir o melhor resultado possível8, seja
o grau de facilidade ou dificuldade com que as pessoas obtêm serviços de
saúde15 ou a oportunidade de utilização apropriada de serviços de saúde por
parte de utentes que, empoderados, são capazes de tomar decisões que orientam a
procura de cuidados de saúde16), este está sempre intimamente associado às
noções de necessidade e equidade, que por seu turno, também são marcadas pela
sua natureza subjectiva potenciadora de ambiguidade.
No tocante ao termo necessidade, já Aday e Andersen5 tinham alertado que mesmo
fazendo a distinção entre necessidade percebida pelo indivíduo e necessidade
diagnosticada, existe sempre a forte possibilidade das percepções individuais e
as avaliações profissionais serem variáveis de pessoa para pessoa. Na verdade,
tal como Oliver e Mossialos17 referem, tem-se assistido a um forte desacordo
sobre o que constitui necessidade de cuidados de saúde, daí que compreender,
definir, medir e comparar necessidades individuais em saúde se revele difícil e
uma tarefa altamente complexa.
A carência de uma definição precisa e uma noção objectiva acerca do significado
de equidade torna-se igualmente premente. Sabe-se que a equidade (tida por
Donabedian15 como um dos componentes da qualidade em cuidados de saúde e
definida como a conformidade com o princípio que determina o que é justo na
distribuição de cuidados de saúde de acordo com as necessidades de cada um e
seu usufruto entre os membros de uma população), para além de carecer de um
quadro de referência bem desenvolvido e baseado no consenso dos diferentes
autores, (limitando por isso, o desenho de estratégias orientadas para a
equidade em cuidados de saúde18), devido às crescentes preocupações éticas e
económicas é um princípio que todos os decisores políticos almejam no estado de
saúde e na obtenção de cuidados de saúde tornando-se uma questão prioritária
para organizações internacionais como a OMS, a OPAS ou a OCDE19. A associação
com os direitos humanos faz da equidade em saúde um conceito ético baseado no
princípio de justiça social mas que, segundo Braveman e Gruskin20, não tem sido
passível de medição directa.
Na verdade, esta condição advém do facto de nem todas as diferenças em saúde
reflectirem necessariamente iniquidade em saúde implicando esta característica
que a avaliação da equidade em saúde exija comparar indicadores de saúde mas
também os seus determinantes entre grupos sociais mais ou menos
privilegiados20.
Para pôr em prática esta tarefa convém não esquecer que os problemas de saúde
variam entre os diferentes grupos, que a necessidade de cuidados de saúde para
problemas similares também é variável e que cada grupo tem as suas próprias
prioridades e valores10. Isto é conducente à noção de equidade vertical
(tratamento desigual para necessidades desiguais10,16 ou diferentes
necessidades deverão ter diferentes e apropriadas oportunidades de aceder a
cuidados de saúde17,16) conhecida por ser mais difícil de medir que a equidade
horizontal (acesso justo para grupos com necessidades equivalentes10 ou iguais
oportunidades de acesso a cuidados de saúde17).
Em 1998, Gold9 faz lembrar que, a par da grande preocupação por esta temática,
coexiste também um forte desacordo no que toca a formas de medir acesso e de
determinar se é ou não equitativamente distribuído pela população.
Para além da ambiguidade potenciada pela indefinição de necessidade e pela
difícil avaliação da equidade em saúde, outro dos factores que contribui para
que medir e avaliar o acesso a cuidados de saúde se revele um complexo desafio,
é a sua ligação intrínseca a um contexto mutante.
Tal como Gold9 sublinha, a reconfiguração do sistema marcada pelo crescimento
de novas formas de gestão e filosofias baseadas na eficácia e custo-
efectividade implicam necessariamente uma adaptação dos tradicionais métodos de
medição e avaliação de acesso a cuidados de saúde.
Por estes motivos e tal como diz Gulliford et al10, reconhecer que acesso é um
conceito multidimensional ajuda a explicar os conflitos gerados em torno da sua
definição bem como as tensões que surgem na tentativa de o promover através da
implementação de diferentes medidas.
A construção do quadro de referência
O quadro de referência para este estudo (fig.) surge a partir da conjugação de
publicações de diversos autores sobre a conceptualização e mensuração de acesso
a serviços de saúde e representa uma tentativa de adaptação à especificidade do
problema em estudo, nomeadamente, o acesso de dois grupos populacionais
específicos ao serviço de consulta externa do Hospital de S. José.
Figura -Quadro de referência adaptado ao estudo do acesso à consulta externa de
MI do H. S. José.
A reconstrução e a introdução de variáveis neste quadro de referência visa
considerar de uma forma um pouco mais efectiva a relação dinâmica entre os
diversos factores intervenientes e a consequente complexidade que caracteriza o
conceito de acesso.
Estratégias em saúde
Dado que o princípio de acesso se revela de uma importância singular, todas as
estratégias a nível dos determinantes de saúde o devem ter em conta uma vez que
são o ponto de partida para a sua efectividade.
Note-se que neste estudo é preferido o termo estratégias em saúde em detrimento
do termo políticas em saúde devido à natureza particular da situação em estudo.
Segundo Ferrinho21, enquanto as políticas de saúde definem um modelo de
sociedade gerador de determinado modelo de sistema de saúde, as estratégias em
saúde, de natureza mais restrita, referem-se apenas a um modelo de sistema de
saúde. Enquanto as políticas de saúde são mobilizantes e orientadas para a
concretização de valores em saúde (como a justiça social, a universalidade, a
equidade, o respeito pela pessoa humana, a solicitude, a solidariedade, a
sustentabilidade, a continuidade, a autonomia do cidadão e a humanização de
cuidados) as estratégias em saúde são promotoras de acção tendo em conta os
valores e finalidades previstos pelas políticas e orientam-se para a
concretização de metas, sempre que possível, smart, ou seja, específicas,
mensuráveis, alcançáveis, relevantes e calendarizadas. Posto isto, no presente
estudo tem-se como quadro estratégico de referência a reorganização da rede
hospitalar e o consequente encerramento do Hospital do Desterro o que obrigou a
uma integração e reorganização de serviços a nível do Centro Hospitalar de
Lisboa Central.
Características da população em risco
Aday e Andersen5 dividem as características da população em risco em três
categorias: Predisposição, Capacidade e Necessidade. Nas duas primeiras
categorias os autores diferenciam as variáveis em "vulneráveis" e "não
vulneráveis" consoante as políticas de saúde possam ou não, ter sobre elas
alguma influência. No entanto, no quadro de referência adaptado, o termo
"vulnerável" aparece associado à possibilidade que as experiências e
utilizações anteriores dos serviços de saúde têm de influenciar as variáveis em
questão.
É adoptada a denominação "população em risco" proposta no quadro de referência
para o estudo do acesso a serviços de saúde construído pelos autores
supracitados, referindo-se neste contexto aos utentes cujo acesso à consulta de
MI do HSJ pretende estudar-se, ou seja, aos utentes do grupo I (HD) e grupo II
(HSJ). Note-se que, tal como será expresso nos critérios de inclusão das
unidades amostrais, todos os elementos de ambos os grupos transpuseram já um
processo organizacional de admissão uma vez que todos eles realizaram pelo
menos uma consulta de MI nos três meses que antecederam a integração de
serviços após o encerramento do HD. É nesta perspectiva que é atribuída
importância acrescida às características individuais enquanto fortes
determinantes do maior ou menor "risco" de faltar a uma consulta de MI marcada
no HSJ.
Características do ambiente externo
Nesta dimensão inclui-se: zona de residência (rural/urbano), distância até ao
local da consulta, tempo de viagem, custos de uma consulta (associados ao
transporte e refeições, caso se aplique).
Características da consulta externa de Medicina
Nesta dimensão são considerados aspectos como o volume e distribuição de
recursos, nomeadamente, recursos humanos, infra-estruturas e equipamentos
intervenientes na prestação de cuidados de saúde.
Paralelamente aos recursos, surge a organização que, segundo Aday e Andersen5
não é mais do que como os profissionais e serviços existentes se coordenam e
controlam no processo de oferta de cuidados de saúde5.
A organização do sistema de prestação de cuidados engloba questões relacionadas
com a entrada e seguimento do indivíduo5, nomeadamente, o tempo dispendido na
sala de espera, tempo dispendido na consulta ou o horário de funcionamento.
Utilização da consulta externa de Medicina Interna
A evolução do modelo que serve de base ao quadro de referência aqui
apresentado, pretende explicar a utilização como produto não exclusivo dos
determinantes individuais, mas sim como fruto dos factores individuais em
estreita relação com os factores inerentes ao sistema de saúde e do contexto
social, sem esquecer a experiência passada de utilização dos serviços22.
Para a operacionalização da dimensão utilização, serão então considerados o
número de consultas realizadas desde a transferência de serviços, o número de
consultas marcadas às quais o utente não compareceu e suas razões e o tempo de
intervalo entre as consultas.
Satisfação após utilização da consulta externa de Medicina Interna
Associada à satisfação do utente está a qualidade percebida23,24,25 definida
como o "julgamento do utente sobre os serviços prestados pelo hospital"25, p.
19 ou como a impressão geral do utente acerca da relativa superioridade/
inferioridade do serviço prestado26. No presente estudo, a qualidade percebida
será dividida em várias categorias, nomeadamente no que diz respeito ao
atendimento pelo administrativo, à percepção sobre o tempo dispendido na sala
de espera (apontada como importante barreira ao acesso por Chung, Wong e
Yeung27, indicador de qualidade por McCarthy, McGee e O'Boyle28 e determinante
de satisfação por Bower et al29 e Anderson, Camacho e Balkrishnan30), à
percepção sobre a duração da consulta (mais especificamente sobre alterações no
tempo de duração após o encerramento do HD), à percepção sobre o tempo de
espera após a consulta (mencionada no trabalho de Caetano25), à percepção
acerca do atendimento pelo médico (cuja importância é frisada por vários
autores como Koszegi31 ou Emany32) e à qualidade global percebida (cujos
efeitos na probabilidade de comparecer às consultas são frisados por McIvor, Ek
e Carson33).
O cumprimento das expectativas anteriormente referenciadas, (definidas por
O'Loughlin e Coenders34 como o resultado de um prévio consumo de serviços
relacionado com o nível de qualidade que os utentes esperam receber) é outro
dos determinantes da satisfação do utente com o serviço obtido, tal como
defendem estudos de Kravitz35 ou Caetano25.
Como consequente do nível de satisfação sentido pelo utente surge o conceito de
lealdade que Caetano25 defende ser um dos indicadores de maior importância,
concebendo-a como reveladora de "intenções de comportamento que são
denunciadoras de um envolvimento afectivo/cognitivo com o hospital"25, p. 19.
Roberge et al36 acrescentam ainda que a lealdade está relacionada com o
comportamento do utente que, por sua vez, é influenciado por vários factores
facilitadores incluindo o compromisso de duas partes: confiança do utente no
profissional de saúde e a qualidade da relação interpessoal estabelecida. No
contexto do presente estudo pretende avaliar-se tanto a intenção do utente em
voltar a escolher o HSJ para realizar a sua consulta de MI assim como a de o
recomendar a familiares, amigos ou colegas.
Na construção do presente quadro de referência foi adoptada a sugestão de
Andersen et al37 segundo a qual são identificadas duas categorias de acesso:
Potencial, composto por factores que limitam ou ampliam a capacidade de
utilização (factores capacitantes), características individuais predisponentes,
necessidades em saúde e factores contextuais. Em suma, inclui variáveis que
influem na probabilidade de usufruto efectivo dos serviços de saúde;
Realizado, condicionado pelo Potencial de Acesso e reflectido em indicadores
objectivos (utilização dos serviços) e indicadores subjectivos (qualidade
percebida, cumprimento das expectativas, satisfação consequente, probabilidade
de recomendação e lealdade).
Dada a complexidade do conceito de acesso e tal como é ilustrado no quadro de
referência do estudo, as variáveis que compõem a dimensão Potencial de Acesso
são numerosas e a operacionalização de todas elas seria incomportável devido às
limitações de tempo e à grande extensão do questionário que seria implicada.
Assim, de acordo com a importância atribuída na literatura e a exequibilidade
da sua operacionalização foram seleccionadas as variáveis Estado de Saúde
Percebido, Expectativas antes da última consulta, Idade, Género, Estado Civil,
Agregado Familiar, Escolaridade, Situação Profissional, Área de Residência,
Distância do domicílio ao HSJ, Tempo de viagem e Percepção sobre a Facilidade
em chegar ao HSJ, sobre as quais foram apurados os dados através da construção
e aplicação de questões directas às unidades amostrais ou pela gentil
disponibilização do Serviço de Gestão de Doentes do CHLC.
Ressalva-se que são seleccionadas e comparadas variáveis que apenas dizem
respeito às características da população em risco e às características do
ambiente externo partindo-se do pressuposto que ambos os grupos usufruem, após
a integração de serviços, dos cuidados de uma mesma Consulta Externa com as
mesmas características para ambos, ou seja, tanto o grupo I (HD) como o grupo
II (HSJ) são utentes da Consulta Externa de MI do HSJ, supostamente sujeitos às
mesmas normas organizacionais e às mesmas questões relacionadas com o volume e
distribuição de recursos humanos, infra-estruturas e equipamentos
intervenientes na prestação de cuidados de saúde.
Por outro lado, atribui-se grande importância às características individuais e
do ambiente externo para o estudo do acesso à consulta de MI do HSJ uma vez que
os elementos da população que pretende estudar-se encontram-se numa posição
onde as barreiras ao acesso relacionadas com o processo de admissão foram já
transpostas, ou seja, todas as unidades amostrais realizaram pelo menos uma
consulta de MI e o facto de comparecerem à próxima consulta marcada poderá
depender em grande medida de variáveis como as supracitadas.
Objectivos do estudo
Objectivo 1
Verificar se existem diferenças a nível do acesso à consulta externa de MI do
Hospital de S. José entre os utilizadores dos últimos três meses (Outubro,
Novembro e Dezembro de 2006) do serviço de consulta externa de MI do Hospital
do Desterro (Grupo I) e os utilizadores da consulta externa de MI do Hospital
de S. José, no período acima descrito (Grupo II).
Objectivo específico 1.1
Verificar se existem diferenças nos componentes Potencial de Acesso
(características a nível da população e a nível do ambiente externo) à consulta
externa de MI do Hospital de S. José, entre o Grupo I e o Grupo II.
Objectivo específico 1.2
Verificar se existem diferenças nos componentes de Acesso Realizado (utilização
em 2008, qualidade percebida, cumprimento das expectativas, satisfação,
recomendação e lealdade) à consulta externa de MI do Hospital de S. José, entre
o Grupo I e o Grupo II.
Nesta primeira parte relatamos o material e métodos e os resultados referentes
ao objectivo 1.1. e na segunda parte abordaremos os resultados referentes ao
objectivo 1.2.
População e métodos
Desenho do estudo
O delineamento do presente estudo é do tipo epidemiológico, transversal,
analítico, comparando duas populações distintas.
População
As populações em estudo serão referidas como grupo I (HD) e grupo II (HSJ). No
grupo I (HD), consideram-se os utentes que já foram utilizadores da consulta
externa de MI Hospital do Desterro (nos três meses que antecederam a
transferência do serviço, ou seja Outubro, Novembro e Dezembro de 2006). No
grupo II (HSJ), são contemplados os sujeitos que, no período acima descrito,
foram utentes da consulta externa de MI do Hospital de S. José.
Amostra
Os critérios de inclusão das unidades amostrais são:
Ter realizado uma consulta de MI no período de Outubro, Novembro e Dezembro
de 2006 no Hospital do Desterro ou no Hospital de São José, respectivamente;
Ter morada e número de telefone disponíveis para que possam ser contactados;
Ter recebido a carta prévia que convida e explica os contornos do estudo,
enviada por correio registado e com aviso de recepção.
No cálculo do tamanho da amostra, para minimizar o erro do tipo I é
estabelecido um nível de significância (a) de 0,05 (ou seja 5%), estabelecido
um valor de b de 0,20 representando nas pesquisas biomédicas uma probabilidade
pequena (dois em dez) de cometer um erro do tipo II, estabelecido para a
dimensão do efeito o valor de 0,15 e obtido o valor de 4 para o número de graus
de liberdade.
Estipulados os parâmetros e aplicado o método de Nisen e Schwertman38, chega-se
ao valor de n = 255,25 para cada um dos grupos a comparar.
O método de amostragem é aleatório proporcionalmente estratificado para os dois
grupos em estudo, de acordo com o género e idade da população previamente
analisados e de dimensão igual a 256 elementos para cada um dos grupos. Note-se
que na análise exploratória preliminar não se detectaram diferenças entre os
dois grupos relativamente ao género (40% Homens e 60% Mulheres para ambos) mas
no que toca à idade é sugerida uma população mais envelhecida para o grupo I
(HD) com uma diferença de cerca de 8% de elementos nas classes etárias (25-45)
anos e (65-99) anos, ou seja, a primeira com mais 8% de elementos do grupo II
(HSJ) e a segunda com mais 8% de elementos do grupo I (HD).
Técnica de recolha de dados
Como alicerce da construção dos dois questionários a aplicar por via telefónica
a cada um dos grupos, serviu o Instrumento de medida de satisfação dos utentes
nos Hospitais EPE - Consultas Externas, aplicado em 2005 pelo Sistema de
Avaliação da Qualidade Percebida e Satisfação do Utente nos Hospitais EPE,
gentilmente cedido pela Administração Central do Sistema de Saúde.
Como forma de minimizar o risco de obter uma baixa taxa de resposta, o
instrumento de colheita de dados, devidamente pré-testado, foi precedido por
uma carta dirigida ao domicílio de cada unidade amostral na qual é solicitada e
reforçada a importância da colaboração do utente, explicado o objectivo do
estudo e garantido o anonimato das respostas.
Após a obtenção dos dados (morada completa e número de telefone, data de
nascimento, género e nome completo) referentes à população em estudo
solicitados ao serviço de gestão de doentes do CHLC, decorreu a aplicação por
via telefónica dos instrumentos de colheita de dados entre 26 de Fevereiro e
24 de Maio de 2009.
No final da colheita de dados foi possível calcular uma taxa de resposta de
93,9%.
Análise estatística
Realizada a análise dos dados comparando os dois grupos através dos testes de
homogeneidade e independência do qui-quadrado e ANOVA one-way.
Procedimentos éticos
Foi pedida e obtida autorização formal e por escrito do Conselho de
Administração do CHLC e da sua Comissão de Ética para a realização do estudo
bem como para a disponibilização da base de dados com contactos dos utentes em
estudo.
A identificação de quem realiza o estudo, o tema, os seus objectivos, o
carácter voluntário da participação no estudo e a garantia de anonimato e dos
dados cedidos pelos respondentes já constava na carta previamente enviada por
correio registado e com aviso de recepção para o domicílio das unidades
amostrais, no entanto, a mesma informação foi reforçada aquando da chamada
telefónica que visava a colheita de dados.
Resultados sobre potencial de acesso à consulta externa de MI do Hospital de
São José
Neste ponto serão salientadas as diferenças entre os grupos em estudo
nomeadamente no que diz respeito: ao estado civil, sendo o grupo I (HD) marcado
por conter maior proporção de viúvos que o grupo II (HSJ); à situação
profissional, com maior proporção de pessoas activas no grupo II (HSJ); ao
número de crianças residentes na mesma casa do respondente, superior no grupo I
(HD); à escolaridade, detendo o grupo II (HSJ) níveis académicos superiores aos
do grupo I (HD); às expectativas antes da última consulta, mais baixas no grupo
I (HD); à percepção sobre acessibilidade física ao HSJ, percebida como mais
difícil para o grupo I (HD) do que para grupo II (HSJ) e à distância e tempo de
viagem do domicílio ao HSJ, menores para o grupo I (HD).
Estado civil
Ambos os grupos em estudo assumem o estado "Casado" como categoria modal, com
53,8% no grupo I (HD) e 64,1% no grupo II (HSJ), ao que se segue a categoria
"Viúvo" com 25% e 15,1% para o grupo I (HD) e grupo II (HSJ), respectivamente.
Diferença estatisticamente significativa com p = 0,027 (tabela 1).
Tabela 1 - Comparação entre o grupo I (HD) e grupo II (HSJ) relativa ao estado
civil
Agregado familiar
A análise dos dados sugere que a categoria mais frequentemente seleccionada
pelos inquiridos em ambos os grupos em estudo é "Acompanhado por uma única
pessoa maior de idade", com 47,0% no grupo I (HD) e 47, 8% no grupo II (HSJ)
(p = 0,133).
O número de menores de idade que partilha a mesma habitação com as unidades
amostrais estudadas varia entre 0 e 3 para o grupo I (HD) e 0 e 4 para o grupo
II (HSJ). Note-se que em ambos os grupos a situação mais frequente é não
existirem menores de idade no agregado familiar (em ambos se verifica
Mediana = 0 e Moda = 0) (tabela 2).
Tabela 2 - Comparação de medidas de tendência central e de dispersão relativas
ao número de elementos menores de idade que partilham a mesma residência com a
unidade amostral
No caso particular do grupo I (HD), observa-se uma Média de 0,47 menores de
idade, valor em torno do qual todos os outros se encontram dispersos gerando um
Desvio Padrão de 0,77 elementos menores de idade. Comparativamente a estes
dados, surgem os do grupo II (HSJ) para os quais é observada uma Média de 0,26
com Desvio Padrão (0,72 elementos) semelhante ao grupo I (HD) (p < 0,001).
Escolaridade
Analisando o comportamento da variável escolaridade pode observar-se que ambos
os grupos exibem o primeiro ciclo como grau mais frequente com 45,3% para o
grupo I (HD) e 30,6% para o grupo II (HSJ).
Por sua vez, a evolução dos sinais dos valores de resíduo sugere que, embora a
proporção de elementos que não detêm qualquer grau académico seja semelhante
nos dois grupos em estudo, os elementos pertencentes ao grupo II (HSJ)
localizam-se em maior proporção nos níveis superiores de escolaridade: ciclo
Preparatório (6º ano); antigo 5º ano/9º ano; antigo 7º ano/12ºano e curso
superior (p = 0,027) (tabela 3).
Tabela 3 - Comparação entre o grupo I (HD) e grupo II (HSJ) relativa à
escolaridade
Situação profissional
Em relação a esta variável, a análise dos dados indica que a categoria
reformado é a mais frequente para ambos os grupos em estudo com 69,5% para o
grupo I (HD) e 46,5% para o grupo II (HSJ) (tabela 4).
Tabela 4 - Comparação entre o grupo I (HD) e grupo II (HSJ) relativa à situação
profissional
A partir da análise dos resíduos que surgem em cada uma das categorias,
observa-se que a que mais influi na não homogeneidade da proporção dos
elementos dos dois hospitais nas diferentes situações profissionais são
"empregado" (com maior número de elementos do grupo II (HSJ), ultrapassando
aquele que seria de esperar) e "reformado" (com maior número de elementos do
grupo I (HD), também excedendo a frequência esperada) (p < 0,001).
Área de residência
A análise dos dados sugere não existirem grandes diferenças entre os grupos. A
maior parte dos elementos de ambos é residente dentro dos limites da Grande
Área Metropolitana de Lisboa, com 95,8% para o grupo I (HD) e 93,9% para o
grupo II (HSJ) (p = 0,352).
Distância do domicílio ao HSJ e tempo de viagem
Após a análise da distância do domicílio ao HSJ e do tempo dispendido na
respectiva viagem observa-se que, enquanto um indivíduo pertencente ao grupo I
(HD) tem de percorrer em média 11,00 Km, demorando uma média de 15,35 min, um
indivíduo pertencente ao grupo II (HSJ) percorre em média 20,90 Km, demorando
uma média de 22,18 min (p = 0,009) (tabela 5).
Tabela 5 - Comparação entre o grupo I (HD) e grupo II (HSJ) relativa à
distância e tempo de viagem do domicílio ao HSJ
No que diz respeito ao tempo de viagem, as diferenças na dispersão voltam a
verificar-se: no caso do grupo I (HD) a dispersão volta a ser menor com Desvio
Padrão de 14,47 min contrapondo-se o grupo II (HSJ) com Desvio Padrão de
28,69 min (p = 0,005) (tabela 5).
Estado de saúde percebido
No que se refere à percepção sobre o próprio estado de saúde, a análise dos
dados sugere que a categoria mais frequentemente seleccionada pelos inquiridos
em ambos os grupos em estudo é "Razoável", com 39,4% no grupo I (HD) e 40, 8%
no grupo II (HSJ) (p = 0,127).
Expectativas antes da última consulta
No tocante às expectativas que o respondente assume ter tido antes da última
consulta realizada no HSJ (por exemplo em relação à ausência de erros, à
satisfação de todas as necessidades do utente ou à prestação de um serviço de
qualidade) pode ser observado o nível 3 como o mais frequente no caso do grupo
I (HD) com 48,7% dos inquiridos e o 4 como nível modal no grupo II (HSJ) com
46,9% do total de elementos (tabela 6) (escala em que o nível 1 representa
expectativas muito baixas, no extremo oposto, o nível 5, expectativas muito
altas.)
Tabela 6 - Comparação entre o grupo I (HD) e grupo II (HSJ) relativa às
expectativas antes da última consulta no HSJ
Observa-se a partir da tabela 6 que o nível 2 e o nível 4 são os principais
responsáveis pela não homogeneidade da proporção de elementos dos dois
hospitais nos diferentes níveis. De facto, o nível 2 apresenta uma proporção de
elementos do grupo I (HD) maior do que a frequência esperada. Esta discrepância
mantém-se, ainda que um pouco menos acentuada no nível 3, invertendo-se por
completo quando são analisados os dados referentes aos níveis 4 e 5 para os
quais a frequência observada de elementos do grupo I (HD) é menor do que a
frequência esperada. A análise dos dados parece, assim, indicar que o grupo II
(HSJ) tem um nível mais elevado de expectativas prévias à consulta quando
comparados com o grupo I (HD) (p < 0,001).
Percepção sobre acessibilidade
Analisando a percepção dos respondentes acerca da maior ou menor facilidade em
chegar ao HSJ (mais uma vez utilizando a escala de 5 pontos em que 1 significa
uma acessibilidade "muito má" e 5 uma acessibilidade "muito boa"), observa-se
que o nível modal no caso do grupo I (HD) é o 2, com 33,8% dos elementos e no
caso do grupo II (HSJ) são os níveis 3 e 4 os mais frequentes com 35,3% e 34,8%
dos elementos, respectivamente (tabela 7).
A análise das discrepâncias entre frequência observada e frequência esperada
leva a crer que os níveis 2 e 4 são os mais influentes na não homogeneidade de
proporções, o primeiro contendo mais elementos do grupo I (HD) que o esperado e
o segundo incluindo um número destes elementos inferior ao previsível. A par do
exposto, parece verificar-se uma tendência para os níveis inferiores (1 e 2)
serem seleccionados pelos elementos do grupo I (HD), enquanto os níveis
superiores são tendencialmente seleccionados pelos elementos do grupo II (HSJ)
(p < 0,001) (tabela 7).
Discussão e conclusões
A inexistência de diferenças ao nível do estado de saúde percebido entre os
grupos em estudo ajuda a rejeitar o possível efeito desta variável nas
diferenças encontradas em variáveis de Acesso Realizado (como as que se
relacionam com a utilização de serviços) encontradas em estudos de Hoz e
Leon39 e de Finkelstein40.
A análise dos dados parece indicar que o grupo II (HSJ) tem um nível mais
elevado de expectativas prévias à consulta quando comparados com o grupo I
(HD). Neste contexto é importante relembrar que, embora a população do grupo I
(HD) seja mais envelhecida, não existem diferenças significativas no que diz
respeito ao estado de saúde percebido daí que possa descartar-se o efeito
encontrado em estudos de Remor41 desta última variável nas diferenças
encontradas nas expectativas prévias à consulta.
Apura-se ainda que o grupo I (HD) contém significativamente mais viúvos do que
o grupo II (HSJ). Convém não esquecer que associada a esta diferença poderá
estar a idade mais avançada identificada no grupo I (HD). Por outro lado,
apesar de ser categoria modal para ambos os grupos, o estado civil casado
apresenta mais elementos do que aqueles que seriam de esperar no grupo II (HSJ)
o que, tal como Scheppers et al.42 refere, poderá funcionar como um facilitador
no acesso à consulta de MI do HSJ.
A análise dos dados leva também a que se considere que grupo I (HD) e grupo II
(HSJ) têm situações familiares semelhantes. Perante a inexistência de
diferenças significativas a este nível poderão pôr-se de parte os efeitos da
situação familiar nas diferenças encontradas na utilização dos serviços da
consulta de MI e consequentemente no seu Acesso Realizado detectados nos
estudos de Aguilar et al.43.
Por outro lado, a análise dos dados permite dizer que os utentes do grupo I
(HD) vivem com mais menores de idade que os utentes do grupo II (HSJ) o que não
deixa de ser interessante visto o primeiro grupo ser mais envelhecido do que o
segundo. Cabe relembrar aqui que, de acordo com Fitzpatrick44, ser cuidador de
outrem pode constituir uma barreira ao acesso a cuidados de saúde pelo que esta
variável deve ser tomada em consideração quando realizada a comparação do
acesso potencial à consulta de MI do grupo I (HD) com o grupo II (HSJ).
Embora a proporção de elementos que não detêm qualquer grau académico seja
semelhante nos dois grupos em estudo, os elementos pertencentes ao grupo II
(HSJ) localizam-se em maior proporção nos níveis superiores de escolaridade:
ciclo Preparatório (6º ano), antigo 5º ano/9ºano, antigo 7º ano/12ºano e curso
superior. Perante esta análise cabe relembrar que o nível de escolaridade está
relacionado com o maior conhecimento da disponibilidade de serviços de saúde,
assim como dos benefícios associados à sua utilização, tal como Aguilar et
al.43 defende, e que por isso é um determinante bem estabelecido da procura de
cuidados de saúde tal como é referido por Ensor e Cooper45.
Mais uma vez se considera que a diferença encontrada poderá ter sofrido
influência das discrepâncias da idade entre os dois grupos.
Tendo em conta que o grupo I (HD) supera o grupo II (HSJ) também no tocante ao
número de desempregados, parece haver uma maior proporção de pessoas activas no
grupo do HSJ. Tal facto, mais uma vez, não é de estranhar uma vez que a
população do grupo I (HD) é mais envelhecida.
De acordo com o previamente estabelecido, considera-se que a grande maioria da
população reside em área urbana, descartando-se por isso os efeitos detectados
por Rosenbach e Dayhoff46 no que diz respeito à influência da zona de
residência no acesso a serviços de saúde.
Tendo em conta o que é defendido por Oliveira, Travassos e Carvalho47, perante
a análise da variável distância e da sua repercussão em tempo de viagem do
domicílio ao HSJ pode dizer-se que os elementos do grupo I (HD) se encontram
até privilegiados em relação aos utentes do grupo II (HSJ).
Analisando a percepção dos respondentes acerca da maior ou menor facilidade em
chegar ao HSJ, parece verificar-se que os elementos do grupo I (HD)
percepcionam a acessibilidade física ao HSJ como mais difícil que os elementos
do grupo II (HSJ). Tal facto não deixa de ser interessante uma vez que, tal
como se observou anteriormente, o grupo I (HD) encontra-se a residir a uma
distância ao HSJ inferior ao grupo II (HSJ), sendo obrigado a despender menos
tempo na viagem. Ressalva-se no entanto que, quando se fala do grupo I (HD), é
referida uma população envelhecida com as limitações na mobilidade que lhe são
próprias, daí que a percepção sobre a acessibilidade possa diferir entre os
grupos. No contexto desta variável parece oportuno relembrar que, de acordo com
o que é defendido por Shavers et al.48 a percepção de um elevado nível de
dificuldades em aceder aos cuidados de saúde está associada a uma menor
probabilidade de receber cuidados de saúde e a uma maior demora no início do
processo de procura de cuidados quando é percepcionada a sua necessidade, bem
como a uma menor probabilidade de usufruir da sua continuidade após dar entrada
no serviço de saúde.
Em conclusão pode dizer-se que existem importantes diferenças a nível do
potencial de acesso entre o grupo I (HD) e o grupo II (HSJ) nomeadamente no que
diz respeito à idade, às expectativas antes da última consulta, ao estado
civil, ao número de crianças residentes na mesma casa do respondente, à
escolaridade, à percepção sobre acessibilidade física ao HSJ, à distância e
tempo de viagem do domicílio ao HSJ e à situação profissional. Cabe ressaltar
que estas diferenças poderão vir a repercutir-se em diferenças de acesso
realizado à consulta externa de MI do HSJ.