Síndrome de Diógenes: revisão sistemática da literatura
Introdução
A Síndrome de Diógenes (SD) constitui uma condição clínica de relevância
crescente do ponto de vista social e de saúde pública pelas consequências que a
ela estão associadas. Caracteriza-se por uma quebra e rejeição de padrões
sociais observados no descuido pessoal e habitacional severo, no abandono
progressivo do contacto social, no reduzido insight para o problema, bem como
no comportamento de acumulação de objetos e lixo. Tendo surgido pela primeira
vez a sua designação em 19751, o estudo desta condição tem crescido
exponencialmente nos últimos anos, com recurso a diversas designações como
"social breakdown in the elderly", "messy house syndrome", "senile self-
neglect", "senile recluse syndrome" e "severe domestic squalor"2,3,4,5.
Desde então e até à atualidade têm sido evidentes os esforços para um
apuramento na definição, descrição e compreensão deste complexo fenómeno, facto
evidenciado no crescente número de relatos de caso publicados em várias
revistas científicas às quais se têm associado explicações psiquiátricas,
sociológicas e de saúde pública6. Retratatando o fenómeno com uma descrição
variável, reflexo de dúvidas conceptuais que se prendem com a própria ausência
de uma definição operacional standard para esta condição, não deixam, no
entanto, de afigurar-se claras algumas características fortemente relacionadas
com a sua apresentação: (i) o descuido severo com o auto-cuidado pessoal; (ii)
o abandono do cuidado ambiental; (iii) o isolamento marcado; (iv) a falta de
pudor e o reduzido insight para o problema; (v) e o comportamento
acumulador7,8,9,10,11,12,13,14. Adicionalmente, percebem-se inúmeras
inconsistências no reconhecimento da SD como uma síndrome ou perturbação mental
(não consta nos principais sistemas de classificação como DSM-IV-TR e a CID-
10), assim como na sua etiopatogenia.
O presente estudo provê uma análise de casos clínicos apresentados em artigos
científicos nacionais e internacionais com a finalidade de sistematizar
evidências sobre o fenómeno, clarificar conceitos e observar prováveis relações
entre a SD e alguns fatores biopsicossociais envolvidos. Para tal, foi
realizada uma revisão sistemática da literatura.
Métodos
Seleção do material para análise
A revisão sistemática de literatura desenvolve-se segundo um método rigoroso de
recolha, avaliação e síntese de documentos científicos15,16. Iniciou-se com uma
ampla pesquisa da literatura de língua Inglesa, Portuguesa, Francesa e
Espanhola sobre o termo-chave "Diogenes Syndrome" nas bases de dados
científicas B-ON, EBSCO, ProQuest e ISI Web of Knowledge, num horizonte
temporal de 1960 a novembro de 2010. Após uma pré-análise da literatura
recolhida, foi pesquisada terminologia associada, designadamente
"syllogomania", "extreme self-neglect", "senile breakdown" e "squalor
syndrome". Em complementaridade, foi executado o método de referências cruzadas
e pesquisa da literatura cinzenta. Obtiveram-se 180 documentos que foram
submetidos a um teste de relevância preliminar e a um teste de relevância. O
primeiro foi constituído por 5 critérios de inclusão: (i) referência ao termo
SD como principal ou sinónimo; (ii) o documento estar orientado para a análise
do fenómeno; (iii) estar publicado nos idiomas selecionados; (iv)
operacionalizar uma definição de SD; (v) remeter para referências
bibliográficas relevantes. O teste de relevância foi constituído pela análise e
caracterização de cada categoria de documentos (tipo de estudo, questões
científicas abordadas, metodologia, contexto de análise, limitações,
resultados) e pela categorização dos dados dos relatos de caso numa grelha
construída para o efeito. Deste processo resultou a recolha de 109 documentos,
divididos em 3 categorias17:
(i) Estudos de pesquisa empírica observacional (n=53). Aqui incluem-se 31
relatos de
caso4,7,10,11,13,18,19,20,21,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31,32,33,34,35,36,37,38,39,40,41,42,43;
15 séries de casos (5 estudos retrospetivos44,45,46,47,48, 3 estudos
longitudinais - de follow-up49,50,51 e 7 estudos
transversais1,14,52,53,54,55,56); 3 estudos dirigidos a profissionais de
enfermagem para análise das experiências sobre a auto-negligência severa57,58 e
questões envolvidas na gestão de casos59,60, e 3 estudos evidenciam uma
pesquisa quanti-qualitativa dirigida a diversos profissionais de saúde pública
e a pacientes com auto-negligência61,62,63.
(ii) Artigos de revisão (n=21). Incluem-se documentos que abordam ou propõem um
quadro teórico para a conceptualização da SD. Apenas 4 revisões incidem sobre
este fenómeno3,8,9,64, já que as restantes abordam uma ampla gama de
problemáticas inseridas na auto-
negligência5,9,37,65,66,67,68,69,70,71,72,73,74,75,76,77;
(iii) Outros (n=35). Abrange 21 cartas ao
editor12,78,79,80,81,82,83,84,85,86,87,88,89,90, 5 editoriais91,92,93,94, 4
resumos95,96,97,98, e 6 documentos diversos que compreendem edições
informativas, guias práticos e relatórios de programas de intervenção com
enfoque sobre a auto-negligência domiciliar99,100,101,102,103,104.
Metodologia de análise
As principais sínteses da análise da literatura são abordadas numa exposição
que reúne igualmente os resultados do estudo da casuística. Nesta revisão foram
apreciados 67 relatos de caso, extraídos de 29 documentos de relato de caso (na
sua maioria relatos únicos4,10,11,18,19,20,21,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31,
seguindo-se os documentos com 232,33,34,35,36, 3 relatos7,38,39,40,42, 443 e 5
relatos13), de 5 artigos de revisão37,65,70,71,77, de 8 cartas ao
editor83,84,86,87,88,89,90,105 e de 1 resumo98. A informação foi sistematizada
e analisada numa grelha categorial (Tabela 1). Este estudo tem como objetivo
determinar evidências científicas sobre a SD pela agregação de relatos de caso
individuais, numa meta-sumarização simples de dados16.
Tabela 1 - Categorias de análise dos casos
Resultados
O interesse internacional sobre o tema e o uso do termo «Síndrome de Diógenes»
Apreciando os documentos verificou-se que o Reino Unido, seguido dos Estados
Unidos da América e Austrália foram os países com maior contributo para o
estudo da SD. Em Portugal apenas foram identificados 2 relatos de caso25,98, o
que evidencia a reduzida sensibilidade face à problemática. Em resultado,
depreende-se que o irreconhecimento desta síndrome por parte da sociedade civil
apresentar-se-á como o principal fator impeditivo da conveniente identificação
e gestão de casos, assumindo-se como uma prioridade a clarificação do termo
«Síndrome de Diógenes» tendo em vista a criação de uma base comum à
interpretação do fenómeno. A este respeito, impõe-se referir que este termo,
mais fortemente adotado em publicações Europeias, revela algumas reservas que
explicam a existência de uma diversidade de termos associados. As considerações
produzidas estão relacionadas com a inexistência de provas de que os indivíduos
com SD tenham escolhido viver assim livremente (o isolamento parece marcado
pela rejeição do mundo exterior e não pelo desejo de auto-suficiência8,38), o
não cumprimento de alguns critérios quando se analisa a vida da figura
literária que inspirou os investigadores, Diógenes de Sínope13,82 e,
finalmente, o facto de o termo não reconhecer a extensão do problema106. No
entanto, a maioria dos autores subscrevem o potencial sensibilizador do termo,
e se não o adotam como referencial empregam-no como sinónimo nos seus
trabalhos.
Informação sócio-demográfica e económica, condições habitacionais e apoio
social
Os relatos de SD apresentam descrições de indivíduos entre os 22 e os 92 anos
de idade. A média de idade ronda os 69 anos e não varia significativamente em
ambos os sexos. Ser mulher adquire especial importância (2/3 dos relatos),
porém os desequilíbrios das etapas finais da vida tornam este dado pouco
expressivo. Dos 52 casos que identificam o estado civil sobressaem os solteiros
(44%) e os viúvos (25%). Na totalidade dos relatos, 84% são idosos, dos quais
21% são muito idosos. Percebe-se, assim, que a SD afeta maioritariamente a
população mais velha.
A análise revela uma omissão global do tipo de habitação, sendo apenas referida
em 23 relatos, nos quais viver em apartamento e em meio urbano foi um dado
relevante para a sinalização (74% dos casos que identificam esta informação).
Em 80% dos relatos observam-se os comentários sobre a habitação que vão desde
«deterioração marcada», «insalubridade extrema», «inabitável» a «condições
infra-humanas». É de realçar a presença de excrementos humanos e/ou de animais
(33%), a presença de animais no interior da habitação (20%) e de infestações
por roedores e/ou insetos (15%), a auto-privação de água canalizada ou
eletricidade (16%), a acumulação de objetos e lixo que reduz o espaço de vida,
dificultando a mobilidade (13%) e a degradação de compartimentos, usualmente
cozinha e wc, que os torna não funcionais (9%). Os restantes 20% de relatos de
caso sem descrição são relativos a indivíduos que vivem na rua, que não
permitem visitas, que possuem o apoio e o controlo de familiares com quem co-
habitam ou que não disponibilizam qualquer informação.
A SD não revelou ser específica de um extrato sócioeconómico baixo,
contrariamente ao que tinha sido preconizado por vários autores1,9,107, uma vez
que 17 dos 27 relatos de caso que disponibilizam informação sobre as
habilitações literárias dos indivíduos, possuem curso profissional ou curso de
nível superior, e dos 47 indivíduos que tinham ou tiveram um emprego
remunerado, 25 foram trabalhadores qualificados. Somente 16 relatos mencionam a
situação financeira, dos quais 13 declaram a posse de recursos económicos
suficientes ou mais que suficientes para responder às necessidades
apresentadas; 3 relatos referem escassez de recursos económicos, mas esta não é
explicação suficiente para a situação de miséria grave verificada.
Relativamente à vivência domiciliar destaca-se o número de indivíduos que
habitam sozinhos (64%) e os que habitam acompanhados do cônjuge ou parceiro
(13%). Metade dos sujeitos mantinha contacto contínuo ou ocasional com algum
familiar próximo, sem contudo manterem relações significativas. Para além
disso, 14 relatos apresentam indivíduos que vivem acompanhados pelo cônjuge,
irmãos ou numa relação mãe-filha onde ambos ostentam critérios de SD (Diógenes
a Deux). Apenas 16 casos subscrevem apoio social parcial para as tarefas e/ou
cuidados diários, na sua maioria apoio informal de vizinhos e familiares para
compras e alimentação. Na análise de casos sobressai a ausência de qualquer
tipo de apoio em 2/3 dos relatos. Algumas séries de casos mostram uma relevante
variabilidade neste dado, desde a total ausência de apoio64 a um grupo que na
sua maioria recebia apoio social formal14,51.
Deteção e sinalização dos casos: os sinais proeminentes da Síndrome de Diógenes
Analisou-se nos relatos a expressão efetiva dos critérios descritos na
literatura, de modo a identificar uma tendência para a sua operacionalização.
Sobressaiu a presença de 3 características centrais as quais são listadas na
Tabela 2.
Tabela 2 - Características proeminentes da SD nos relatos de caso
Relativamente à conduta acumuladora, esta pode derivar de perturbações mentais
diversas (por ex. esquizofrenia, perturbações orgânicas cerebrais, perturbações
de personalidade)10,27,88 que não se encontram diretamente relacionadas com a
SD. No entanto, numa parte considerável dos casos a conduta acumuladora ajudou
a identificar a síndrome, sendo uma pista útil24. Apresenta-se sob a forma de
conduta ativa, pela intenção e esforço para acumular objetos sem valor ou
serventia, ou conduta passiva, onde a maioria dos indivíduos com SD se deixa
invadir pelo lixo em resultado da falta de iniciativa ou incapacidade de
descarte. Os indivíduos mais jovens apresentaram uma conduta de acumulação
essencialmente ativa, enquanto a população idosa exibe uma tendência para a
apresentação da conduta acumuladora passiva. Embora a maioria dos casos não
revele uma explicação clara para acumulação, sobressaíram 4 tipos de crenças:
suposta carência económico-financeira20, resposta a ideação persecutória21,
resposta apoiada na aprendizagem social13, e o valor afetivo dos objetos22.
Nesta análise reafirma-se que as pessoas com SD que apresentam conduta
acumuladora possuem níveis de tolerância superiores relativamente à
desordem108, e que esta conduta apresentava-se em si própria como uma fonte de
satisfação e alívio da ansiedade50,108.
Finalmente, a negação do problema e a recusa de ajuda são também proeminentes
para a deteção e sinalização dos casos. Em relação a esta última, os relatos
apresentam várias hipóteses explicativas que vão desde a menor propensão dos
indivíduos auto-negligentes a precisar de ajuda em atividades funcionais54, a
presença de personalidades independentes e dominadoras, ser uma forma de
proteção pessoal e manutenção do controlo da sua vida13,44,62 ao descompasso
entre as necessidades do indivíduo e a forma como os serviços de apoio são
organizados62.
Referenciação: entre os serviços de saúde pública e os serviços de apoio social
O grave isolamento, numa condição de vida à margem da sociedade, torna difícil
a deteção destas situações. Geralmente são do conhecimento da comunidade que os
referencia aos serviços de saúde pública anos após a deteção do fenómeno e
apenas perante situações de grave risco para o próprio ou para terceiros5,9,50.
Na casuística em análise foram os vizinhos os principais referenciadores (56%).
Este resultado levanta questões quanto às implicações da SD na comunidade
geográfica (principalmente quando o fenómeno se estende para fora de casa,
ameaçando a saúde e segurança dos vizinhos), ao limitado papel da família (20%)
e ao papel dos serviços de saúde (20% - o médico de clínica geral revelou-se
uma peça chave na identificação da SD) e serviços comunitários, pois a SD não
lhes causa impacto direto, senão perante a inexistência de condições para a
prestação dos cuidados necessários65. Muitos relatos de caso descrevem
condições para a prestação de serviços que geram desmoralização e recusa por
parte dos serviços comunitários pelo risco associado (por ex. infestações,
inutilização dos espaços de higiene, comportamentos do indivíduo que suscitam
receio). Embora alguns relatórios40 apontem a família como principal
sinalizadora do fenómeno, os resultados desta análise colocam em causa o seu
papel neste processo. Da casuística emergem hipóteses para a aparente falta de
preocupação dos familiares: (i) o respeito pela auto-determinação e privacidade
da pessoa; (ii) sentimento de frustração após várias tentativas de ajuda; (iii)
sentimento de impotência, vergonha e medo quanto à sua excentricidade; (iv)
degradação da relação; (v) despreocupação por não considerarem uma conduta
patológica; (vi) desconhecimento do estilo de vida do familiar devido ao
isolamento a que ele se remete; (vii) desconhecimento de recursos na comunidade
com competência para lidar com o fenómeno.
Quanto aos motivos de referenciação (Tabela 3), verificou-se que decorreram
sobretudo de situações de urgência médica aguda. A segunda causa de
referenciação foi ocasionada por queixas relativas a degradação ambiental (odor
ofensivo, infestações, insalubridade percebida externamente e risco de
incêndio). Os comportamentos desviantes são também causa de referenciação ao
englobar ações que causam receio e mal-estar aos demais. Não é invulgar também
a descoberta de cadáveres no domicílio, sendo a sinalização ocasionada pela
ausência prolongada dos indivíduos e odor corporal38.
Tabela 3 - Motivos de referenciação nos relatos de caso
Ao apreciar o processo de sinalização na casuística, a principal entidade civil
contactada foi o Serviço de Saúde (66%), através do internamento, consulta
médica e do Serviço de Saúde Mental. Seguiu-se a sinalização aos serviços
sociais (25%) e à polícia (9%) que, em pelo menos 15% dos relatos, possuíam
conhecimento prévio das condições de vida dos indivíduos, sem realizarem
intervenção relevante.
Nosologia, avaliação e «diagnóstico»
A análise nosológica, relativa ao estudo da etiopatogenia compreendida na SD,
não é unânime. O modelo exposto na Figura 1 pode ser útil na análise dos
resultados.
Figura 1 - Modelo representativo da Síndrome de Diógenes (adaptado do esquema
Preventive approach to self-neglect syndrome de Reyes-Ortiz, presente numa
carta ao editor intitulada "Self-neglect as a geriatric syndrome" em 2006).
A SD secundária é o fenómeno que coexiste com um diagnóstico neuropsiquiátrico
com influência direta no comportamento do indivíduo com SD, ao prejudicar a
capacidade de decisão e ao espoletar um estilo de vida negligente. Por sua vez,
a SD primária relaciona-se com uma atitude hostil perante o mundo, sem ser
observada manifestação psicopatológica relevante. Poderá ter explicação na
interação entre traços de personalidade pré-mórbidos, uma escolha individual
intencional ou desejo associado ao final de vida e/ou um possível declínio
cognitivo leve, consistente com a idade9,50,68,109,110.
Na casuística é percetível a influência que determinadas transformações sociais
manifestam na SD marcando, muitas vezes, os seus primeiros sinais ao gerarem
estados de desmoralização1,34,38,50,64. Observando a Tabela 4, verifica-se que
a perda de pessoas próximas, à qual está fortemente associada a viuvez e o luto
patológico, é identificada como o principal evento negativo perturbador.
Tabela 4 - Possíveis fatores de risco obtidos na história de vida dos relatos
de caso
A «Síndrome de Diógenes por proximidade» ou Diógenes à Deux32, encontra-se
relatada em 16% dos casos (i.e. fator «coabitar com pessoas auto-negligentes»),
nos quais a SD é partilhada entre os familiares que habitam juntos,
correspondendo a 2 pares de irmãos, 3 casais e uma mãe dependente de uma filha
cuidadora auto-negligente. Alguns dos dados que ressaltam da análise dos
relatos são: (i) um dos indivíduos apresenta traços de personalidade dominadora
e o outro adota uma postura de subjugação, manifestando indiferença quanto ao
estado de miséria que o rodeia, ou reproduzindo os comportamentos desviantes do
familiar32,35; (ii) um dos indivíduos apresenta algum insight sobre a situação,
recusando ajuda pelo constrangimento e vergonha da situação em que vive e/ou do
sentimento de proteção para com o seu par37; (iii) situação de dependência de
um cuidador auto-negligente87; (iv) dificuldade na deteção do indivíduo foco do
problema32,35,37,65. Mais de um terço dos relatos de caso revelam traços de
personalidade pré-mórbidos de caráter patológico, pautados por comportamentos
de independência, hostilidade, desconfiança e instabilidade emocional, que
compelem ao isolamento e dificultam a adaptação social. Estes parecem
desempenhar um papel relevante na patogénese da Síndrome1,50,110.
A Síndrome de Diógenes e a presença de perturbações mentais
Na análise da avaliação neuropsicopatológica descrita nos relatos identificam-
se diversos diagnósticos que se apresentam de forma concomitante em 68% dos
casos e podem tomar lugar de fatores predisponentes, precipitantes ou meras
condições ou doenças sobrepostas (Tabela 5).
Tabela 5 - Perturbações mentais diagnosticadas nos relatos de caso
Numa análise aos diagnósticos psicopatológicos relevantes na SD, sobressaem os
diagnósticos de demência, em especial a resultante de uma disfunção
frontotemporal, sendo entendida por alguns autores como o principal fator
explicativo da sintomatologia da Síndrome de
Diógenes4,8,12,22,23,43,77,84,92,105,111,112. Uma disfunção nos lobos frontais
e córtex pré-frontal pode revelar-se nos indivíduos através de comportamentos
de impulsividade, falta de iniciativa, auto-negligência e comportamento
acumulador em resultado da apatia e de alteração das funções executivas, com
disfunção ou desinibição do instinto primitivo de recolha e acumulação113,
redução da capacidade de discernimento e até ideias delirantes12,21,22,43,107.
A presença de perturbações obsessivo-compulsivas (designadamente POC de
descontaminação, de acumulação de objetos e de repetição) e de perturbações da
personalidade revelaram estar presentes em 15% dos relatos respetivamente,
sendo que a presença deste diagnóstico no estudo da casuística assemelha-se aos
valores divulgados noutros estudos49. Em relação à perturbação delirante,
importa destacar que esta tende a motivar o isolamento social marcado e a
incapacidade para o auto-cuidado (nos relatos de caso sobressaiu a do tipo
persecutório). A deficiência mental e a presença de uma perturbação depressiva
apresentaram expressividade similar (10%), associando-se a limitações no
funcionamento adaptativo dos indivíduos, podendo ser reconhecidas como factores
de risco para diversos comportamentos associados à auto-negligência67,71,
destacando-se que noutros estudos a significância percentual deste diagnóstico
é superior71,77. Finalmente, o abuso de substâncias, nomeadamente de álcool,
apresentou-se como estando relacionado com condutas pobres de auto-
cuidado7,9,13,14,29,30,32,38,39,46,51,71,77,84. O diagnóstico de esquizofrenia,
presente em 7% dos casos, evidencia uma variedade de sinais e sintomas
particularmente relacionados com o diagnóstico de
SD4,9,10,13,30,46,49,64,77,84, desde o isolamento, à perda de interesse,
dificuldade em resolver problemas, deterioração dos cuidados pessoais e
apresentação de comportamentos atípicos.
É ainda relevante mencionar a incidência de diferentes diagnósticos entre
jovens-idosos na casuística analisada. Nos indivíduos idosos destaca-se a
identificação de demência, de défice funcional e mesmo a ausência de
diagnósticos psicopatológicos, enquanto nos indivíduos não idosos sobressaem
diagnósticos de deficiência mental, abuso de substâncias psicoativas,
esquizofrenia e perturbação depressiva major.
De um modo global, a análise da casuística permitiu verificar que a existência
de um diagnóstico neuropsicológico alerta os profissionais para subtis sinais
de risco, no entanto, estas desordens não parecem suficientes para explicar o
declínio dos padrões sociais, pessoais e outras condutas25,27,92. Os resultados
da casuística permitiram identificar também a apresentação de contornos
distintos entre os jovens e os idosos, com a manifestação de diferentes fatores
precipitantes da SD.
Comorbilidades físicas, orgânicas e metabólicas
Da análise casuística não se consegue identificar que influência possui a SD na
apresentação de uma doença física e/ou que consequência esta pode acarretar na
SD, pois pouco mais de metade dos relatos (61%) referencia uma avaliação
física. Da análise da Tabela 6 percebe-se que o distúrbio nutricional em
resultado da carência alimentar (por ex. estados de desnutrição, distúrbios
eletrolíticos ' ferro, folato, vitamina B12, entre outros) assume um papel de
destaque. Este diagnóstico exibe um efeito cíclico como consequência e causa de
deterioração comportamental na SD ao fragilizar o estado de saúde e limitar a
execução de atividades. O comprometimento da mobilidade (por ex. resultado de
artropatia degenerativa e quedas) pode exacerbar as características da SD pela
diminuição da capacidade para o auto-cuidado34,71,77 e ao mesmo tempo resultar
de comportamentos de risco, como o isolamento social e a acumulação. Também se
verifica a presença de afeções cutâneas resultantes da privação de higiene, de
parasitas e sujidade e de uma alimentação desequilibrada.
Tabela 6 - Comorbilidades físicas descrita nos relatos de caso
Alguns dos estudos analisados dão ênfase a infeções urinárias, incontinência e
doenças respiratórias, que na presente análise adquirem reduzida
relevância1,25,38,40,50,55,66,71,77,104. Para além dos 3 primeiros
diagnósticos, os restantes são comummente observados e tratados pelas equipas
geriátricas50,55, não possuindo estreita relação com a SD. Todavia, convém
destacar que estas comorbilidades, são alvo de preocupação acrescida na SD,
pela grave incapacidade para o auto-cuidado e recusa de recursos benéficos
apresentadas por estes indivíduos, afigurando-se a avaliação do estado de saúde
e o tratamento como uma ação problemática e delicada para os serviços de saúde
pública.
Que intervenções?
A literatura mostra a indispensável utilidade da visita domiciliar e de uma
avaliação neuropsicológica completa5,8,9,12,29,64,70,71,72,77,90,92,105,114.
Quanto à visita domiciliar, uma vez que a procedência da descrição da habitação
nem sempre foi esclarecedora, não foi possível determinar o número de casos nos
quais esta foi efetuada. Já a avaliação do estado mental foi referenciada em 56
relatos de caso, todavia apenas em 4 é descrita uma avaliação completa composta
por anamnese (84%), análise bioquímica (36%), testes de triagem (52%), bateria
de provas neuropsicológicas (13%) e exames de neuroimagem (24%). As descrições
de alguns relatos apresentam estados do sujeito sem explicitação dos métodos de
avaliação usados. Já no que concerne aos principais obstáculos a uma avaliação
integrada foram identificados: (i) o não reconhecimento da SD como problema de
saúde pública43; (ii) a dificuldade em reconhecer sinais de risco em indivíduos
solitários35,43; (iii) a falta de cooperação na avaliação exaustiva por parte
das pessoas afetadas43,71; (iv) a referência a diagnósticos diferenciais com
critérios comuns com a SD que desencorajam uma avaliação pormenorizada35; (v) e
a carência de instrumentos válidos de triagem e de «diagnóstico» da SD.
As principais intervenções descritas na casuística foram o internamento
voluntário (45% dos relatos), o tratamento compulsivo (6%), o tratamento
farmacológico para inibir ou controlar comportamentos associados a outras
comorbilidades que podem coexistir com a SD (36%), e a abordagem na comunidade
(33%). Na maior parte dos relatos os investigadores não revelam o tempo de
intervenção, e é evidente a referência quase exclusiva ao internamento médico,
sem continuidade nos cuidados. Destacam-se os 12 relatos que apresentam
melhoria do bem-estar físico, psicológico e da higiene pessoal e ambiental, e/
ou redução de riscos significativos. Destes, 11 descrevem como principal método
de intervenção o acompanhamento com uma diversidade de serviços e cuidados
dispensados na comunidade (por ex. visitas domiciliares por profissionais de
saúde e de saúde mental, apoio de entidades da comunidade para a promoção de
atividades ocupacionais, abordagem para a segurança em casa e apoio nas AVD -
alimentação, encorajamento para a higiene pessoal)10,25,31,33,34,39,40,43,84.
Conclusões
De um modo global, a análise casuística revelou como critérios fundamentais
para a definição da SD o isolamento e a auto-negligência física e habitacional.
A conduta acumuladora, o reduzido insight e a recusa de apoio encontram-se
vulgarmente associados, apoiando o «diagnóstico» formal. Do ponto de vista da
saúde pública este fenómeno resulta muitas vezes em situações de ameaça à saúde
e segurança pública ao afetar a pessoa auto-negligente e as pessoas
(nomeadamente vizinhos) e serviços que se cruzam com esta problemática. Numa
perspetiva sociointerventiva levantam-se inúmeras questões, dilemas éticos e
obstáculos que assentam na urgência de buscar melhor compreensão acerca da
etiologia da SD. A presente revisão apreende o fenómeno como uma síndrome que
congrega etiologia multifatorial ao compartilhar fatores de risco com outras
síndromes, ao apresentar uma forte relação com o declínio cognitivo e funcional
e efeitos que parecem elevar a mortalidade. A SD em indivíduos mais jovens
parece estar sobretudo associada a diagnósticos de deficiência mental, abuso de
substâncias psicoativas, esquizofrenia e perturbação depressiva major,
precursores de uma variedade de condutas associadas à auto-negligência, mas que
apresentam potencial de tratamento ou determinam um meio para uma intervenção
fundamentada. Nos sujeitos idosos que apresentam SD sobressai a presença de
demência, o declínio da capacidade executiva ou a ausência de diagnósticos
psicopatológicos. Foi citada a inexistência de consenso sobre os mecanismos
etiopatogénicos desta desordem comportamental e a reduzida oportunidade de
prevenção pela ausência de "triggers" que facilitem a deteção de situações de
risco, sendo as consequências negativas da SD o usual impulso para a
intervenção. Este fenómeno sofre a influência de um conjunto de fatores que a
Tabela 7 sistematiza, e que expressam a diversidade de situações atuantes na
génese e manutenção do fenómeno.
Tabela 7 - Sistematização de fatores com influência na SD
Na casuística destaca-se um perfil de indivíduos com SD, caracterizado por
sujeitos idosos (84%), mulheres (66%), sujeitos solteiros (44%) ou viúvos
(25%), que habitam sozinhos (64%), em apartamento, em habitações com graves
deficiências de habitabilidade, incapazes de garantir relações significativas e
relutantes em receber qualquer ajuda, principalmente em contexto formal. Os
serviços de saúde, especialmente de saúde mental, foram as principais entidades
civis contactadas; porém, os serviços e as autoridades locais possuíam,
ocasionalmente, conhecimento prévio da situação.
A intervenção sobre a SD implica a avaliação dos fatores atuantes e do contexto
de vida do indivíduo. As formas de intervenção descritas incluem o internamento
voluntário, o tratamento compulsivo, o tratamento farmacológico e a intervenção
integrada na comunidade. Destaca-se a evidência de uma intervenção domiciliar
centrada na visita de profissionais, sendo esquecido e/ou dificultado o esforço
por sensibilizar, formar e envolver a comunidade e a família, o que constitui
um fator explicativo do prognóstico pobre da gestão de casos. Para finalizar, é
de mencionar que os principais obstáculos à intervenção na SD são o isolamento
e a recusa de apoio, revelando, sobretudo, o desequilíbrio entre as
necessidades do sujeito com SD e a forma como os serviços lhe são dirigidos.
Limitações da revisão sistemática da literatura e do estudo da casuística
A dificuldade no estudo da SD reflete-se no desenho das investigações
científicas em análise que revelaram incluir amostras reduzidas e por
conveniência, com recolha de dados secundários. Uma das maiores dificuldades
encontradas diz respeito à falta de congruência metodológica entre os diversos
relatos de caso, onde se observa uma falha na relevância e na abrangência dos
dados (por ex. geralmente focam apenas uma das categorias definidas para a
análise e não descrevem com pormenor métodos de avaliação, diagnóstico e
intervenção). Assim, os resultados do estudo de casuística devem ser
interpretados com cautela por não ser possível inferir com segurança a
prevalência dos fatores analisados nem estimar o potencial das intervenções
consideradas.
Sugestões de investigação futura
Primeiramente reconhece-se a importância de comprometer o meio científico com o
termo «Síndrome de Diógenes», impulsionando a convergência de esforços para o
seu melhor conhecimento e esclarecimento científico. Será útil potenciar o
desenvolvimento de estudos com foco na perspetiva dos sujeitos com SD (para a
identificação de fatores precipitantes ligados à consciência individual) e que
se centrem na investigação de intervenções na SD e nos seus resultados.
Concretamente em Portugal, a reduzida consciência sobre a SD reflete-se no
número de artigos científicos publicados. Para conduzir o fenómeno para a
discussão científica será indispensável a sensibilização dos profissionais,
através de medidas como a introdução da temática no plano formativo de vários
cursos e pós-graduações, que estimule o compromisso destes profissionais
perante situações de grave risco de isolamento e auto-negligência e que oriente
o desenvolvimento de estudos através, sobretudo, da publicação de relatos de
caso que permitam identificar as particularidades do fenómeno em Portugal e a
sua relevância. Desta forma se determinará a urgência em projetar protocolos de
resposta à SD que envolvam entidades e serviços de proximidade, com vista à
atuação em situações de risco manifesto para a saúde pública.