Tipologia de perfis socioprofissionais e a identificação profissional numa
organização de saúde
Introdução
As organizações de saúde são essencialmente compostas por pessoas que contactam
diariamente numa relação mútua de interesses na área de prestação de cuidados
de saúde. Os diferentes profissionais de saúde possuem determinados atributos e
saberes que os posicionam em díspares categorias. Cada vez é maior a exigência
teórico-prática destes profissionais e parece que as profissões já não são o
que eram na sua origem, apesar de manterem as mesmas designações. Veja-se o
exemplo da profissão de enfermagem, inicialmente exercida por freiras e
mulheres não qualificadas e agora por profissionais licenciados, mestres e
doutores. A crescente mudança organizacional e o fenómeno da globalização
trouxeram consigo maior exigência às organizações relativamente ao seu capital
humano. Tendo em conta este crescente tumulto de alterações e exigências nos
cuidados de saúde, desponta a inquietação sobre se a identificação do indivíduo
com a sua profissão permanecerá intacta. A identificação profissional
influencia os comportamentos dos profissionais de saúde para com os clientes,
pelo que será de extrema importância compreender o fenómeno em causa. Apesar
dos diversos estudos existentes sobre a formação da identidade profissional,
são escassos os que nos possibilitam a caracterização da identificação
profissional dos profissionais no contexto da saúde em Portugal. O presente
estudo pretende contribuir para o conhecimento nessa área, definindo perfis
socioprofissionais e sua relação com a identificação profissional.
Quadro teórico
Os serviços de saúde têm sofrido grandes alterações devido à crescente evolução
técnica e social ocorrida nestas últimas décadas. A complexidade técnica e a
necessidade de reorganização dos cuidados de saúde conduziram a uma maior
exigência aos profissionais de saúde. De salientar a grande evolução na
profissão de enfermagem que, com o impulsionamento de Florence Nightingale e os
contributos dos modelos conceptuais e teorias de enfermagem, se torna
progressivamente numa disciplina. A reforma de Florence Nightingale veio
«constituir uma referência fundamental no sentido da construção de uma
identidade como grupo socioprofissional»1 (p. 32).
A identificação profissional refere-se à autodefinição da pessoa em termos do
trabalho que faz e das características específicas atribuídas aos indivíduos
que realizam esse trabalho2. A identidade profissional é crucial para o bom
funcionamento de uma organização. Cada pessoa individual conhece o seu papel
dentro da organização e atua de acordo com este. A sua relação com os outros
profissionais na organização e com os clientes é condicionada por esta
identidade profissional.
De acordo com Abreu3, a identidade profissional forma-se, principalmente,
através de processos sociais e reconstitui-se a partir das interações sociais.
Estes processos sociais, nos quais se formam e transformam as identidades,
estão dependentes da estrutura social. De salientar que o indivíduo possui uma
identidade antes de adquirir uma habilitação profissional, logo não podemos
reduzir a construção da identidade social a estatutos ou níveis de formação.
Abreu3 (pag. 95) considera que quer a identidade social, quer a identidade
profissional «[ ] não são definitivas nem estáticas ' encontram-se em
permanente evolução. Evoluem ao longo da história e da vida e constroem-se
através de escolhas mais ou menos conscientes, que lhes vão conferir novas
orientações e significações». A identidade profissional reflete aquilo que o
indivíduo conceptualiza sobre o que é central e distintivo na sua profissão,
enquanto a identificação profissional reflete a perceção de pertença do
profissional à profissão4.
Nas organizações de saúde, todo o trabalho desenvolvido tem como objetivo final
servir o cliente nas suas necessidades. Os clientes são a razão de existência
destas organizações e dos respetivos profissionais. De acordo com Rodrigues5, a
identificação profissional influencia os comportamentos dos profissionais de
saúde em relação aos clientes. Segundo esta autora, os comportamentos de
ligação e de cooperação dos profissionais para com os clientes são tão mais
visíveis quanto maior a intensidade da identificação do profissional com a
organização e com a profissão que exerce.
Considerando a identificação profissional como um fator positivo nos
comportamentos dos profissionais de saúde para com os clientes, surge a
importância de compreender os fatores influenciadores dessa identificação e
como esta é caracterizada dentro dos diferentes grupos de profissionais de
saúde.
No seu estudo, Rodrigues5 identifica as habilitações literárias como um
preditor significativo da identificação profissional.
Também Duarte, Nunes e Martins6 estudaram a identificação profissional dos
farmacêuticos e verificaram que os profissionais do sexo masculino apresentavam
menor identificação profissional do que as colegas do sexo feminino, e que a
idade tem uma relação direta com a identificação profissional.
Devis et al.7 referem alguns estudos em que a idade pode ser um fator chave
para interpretar a evolução da identificação profissional. No entanto, no campo
da atividade física e desporto, a idade terá uma relação inversa com a
identificação profissional devido ao envelhecimento.
Vários autores descrevem o papel da formação e do trabalho na construção da
identidade profissional8,3, mas pouco conhecemos sobre a identificação do
indivíduo com a profissão que exerce e como esta integração do eu pessoa e do
eu profissional sofre afeções.
Metodologia
Nas organizações de saúde são imensas as profissões necessárias a uma boa
prática de cuidados de saúde. Atualmente, para um hospital funcionar
eficazmente, precisa de profissionais qualificados de diversas áreas, como, por
exemplo, gestores, administrativos, farmacêuticos, analistas, dietistas,
fisioterapeutas, médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica, etc.
Considerando que a identificação profissional influencia os comportamentos dos
profissionais para com os clientes, serão as profissões de maior contacto com
os mesmos as mais prolíficas para o estudo pretendido, nomeadamente médicos,
enfermeiros e auxiliares de ação médica.
Tendo em conta a dimensão dos hospitais centrais e a dificuldade em contactar
os profissionais desejados, realizou-se um estudo descritivo-exploratório com
profissionais de saúde que desenvolvem a sua atividade em clínicas privadas de
hemodiálise da região de Lisboa e Vale do Tejo. Foi pedida e deferida por
escrito a autorização do estudo.
O instrumento de colheita de dados aplicado foi um questionário que permitiu
caracterizar os profissionais de saúde quanto à sua situação sociodemográfica e
profissional, bem como avaliar o comportamento organizacional. Para medir a
variável identificação profissional, utilizou-se a escala de avaliação da
identificação organizacional9,4 adaptada e validada por Duarte, Nunes e
Martins6 para a identificação profissional (Alpha de Cronbach=0,85). Trata-se
de uma escala constituída por 2 itens que refletem a integração entre a
identificação pessoal e a identificação com a profissão, e na qual o indivíduo
deve posicionar-se entre o 1 («De maneira nenhuma integrado») e o 8 («Em larga
medida integrado»).
O período de colheita de dados ocorreu nos meses de agosto e setembro de 2008.
A distribuição e recolha dos questionários foram realizadas com a colaboração
dos enfermeiros chefe de cada clínica, garantindo-se a confidencialidade dos
profissionais e respetivas clínicas.
O número de respostas recebidas, validadas e utilizadas no estudo é de 190,
correspondendo a uma taxa de resposta de 37,7%.
Resultados
Observa-se uma estrutura etária claramente jovem, com 64,3% com idades
inferiores a 40 anos, e fortemente feminina relativamente ao conjunto (73,3%).
Relativamente à antiguidade, 47,3% dos inquiridos desempenham funções na
empresa entre 4 a 10 anos. No que respeita ao nível de escolaridade, uma parte
significativa (85,2%) dos inquiridos tem ensino superior. Tendo em conta a
profissão exercida nas clínicas, 73,7% dos 190 profissionais são enfermeiros,
16,8% são auxiliares de ação médica e 9,5% são médicos. Quanto ao vínculo
profissional, 29,6% dos sujeitos em estudo estão vinculados à organização. Os
restantes profissionais, que constituem a maioria (70,4%), são trabalhadores
independentes, sem qualquer vínculo à organização. Finalmente, 71,1% dos
inquiridos presta serviço noutra organização, valor que reflete a
especificidade deste contexto organizacional.
A identificação profissional, sendo avaliada através do grau de integração do
ser pessoa com o ser profissional, poderá sofrer alterações de acordo com a
profissão exercida, as habilitações literárias, a idade e o género, como já
sugerido por outros autores5,6,7, assim como poderá ser influenciada pelo local
de trabalho ou situação profissional do indivíduo. Desta forma, foram criados
perfis socioprofissionais que agrupam os indivíduos de acordo com as medidas em
análise.
Com o objetivo de identificar perfis socioprofissionais foi realizada uma
análise de correspondências múltiplas (ACM). Para o efeito, considerou-se os
indicadores de caracterização já anteriormente apresentados (género,
habilitações literárias, idade, duplo emprego, profissão, antiguidade e
vínculo), tendo sido selecionadas 2 dimensões. Não obstante, verifica-se que a
dimensão 1 é determinante com uma consistência interna bastante elevada (Alpha
de Cronbach=0,814), a dimensão 2 é igualmente importante com uma consistência
interna satisfatória (Alpha de Cronbach=0,598). Estas permitiram perceber a
especificidade das relações entre as categorias dos diversos indicadores e
identificar configurações distintas no que se refere aos perfis dos
trabalhadores.
O indicador género tem projeção próxima da origem, pelo que parece ser
relativamente indiferente ser homem ou mulher, no que se refere à identificação
dos lugares ocupados neste espaço social. Os outros indicadores apresentam
medidas de discriminação elevadas, pelo menos numa das dimensões, diferenciando
os indivíduos em análise. O indicador habilitações literárias, como elucida o
seu posicionamento diagonal na Figura_1, é simultaneamente importante na
composição das 2 dimensões. Desta forma, as variáveis que remetem para a
situação profissional contribuem decisivamente para a estruturação da dimensão
1, enquanto que as variáveis que se destacam na dimensão 2 são as que remetem
para a situação de antiguidade profissional (Figura_1).
Analisando a disposição das categorias dos indicadores no plano definido pelas
2 dimensões (Figura_2), verifica-se que existe, na dimensão 1, uma relação
entre as habilitações de nível intermédio (ensino básico e secundário), a
profissão auxiliar de ação médica, com vinculação ao quadro e sem duplo
emprego; distinguindo-se da relação entre habilitações de nível superior
(licenciatura), a profissão enfermeiro, sem vínculo (prestação de serviços) e
com duplo emprego. Está-se perante 2 grupos cujos perfis são distintos.
Já na dimensão 2, há que salientar a disposição das categorias que remetem para
a antiguidade profissional, nomeadamente entre as categorias idade até 30 anos
e tempo de serviço até 3 anos, distinguindo-se das categorias idade com mais de
50 anos e tempo de serviço com mais de 10 anos. Existe uma distinção entre os
trabalhadores mais novos e, consequentemente, com menor tempo de serviço e os
trabalhadores mais velhos e com maior tempo de serviço. No entanto, esta
dimensão aproxima os 2 grupos profissionais diferenciados na dimensão 1, porque
eles partilham um traço comum, ou seja, representam os trabalhadores mais novos
e com menor tempo de serviço.
Os resultados da ACM e a análise conjugada das 2 dimensões permitiram perceber
a configuração topológica do espaço dos perfis socioprofissionais e identificar
diferentes combinações, indicando, assim, estar-se na presença de um espaço no
qual coexistem representações distintas10.
Constata-se, pelo plano, a existência de 3 configurações muito bem definidas,
cuja especificidade decorre das posições da situação profissional com a
situação da antiguidade profissional. Assim, os indivíduos posicionam-se
segundo menor antiguidade, os auxiliares de ação médica e os enfermeiros, sendo
que as suas posições estão em quadrantes adjacentes, e os indivíduos com maior
antiguidade. São indivíduos que partilham tendencialmente as mesmas
características, levando à caracterização de perfis distintos, mas que
coexistem, com maior ou menor proximidade, no mesmo espaço10.
Tipologia dos perfis socioprofissionais
Após a identificação das diferentes configurações que coexistem entre os
trabalhadores, e para uma caracterização mais detalhada dos seus perfis
enquanto grupos distintos, formalizou-se a tipologia agrupando os indivíduos
através de uma análise de clusters, tomando como referencial as 2 dimensões
estruturantes do espaço socioprofissional. As variáveis utilizadas como input
para a classificação foram as quantificações dos objetos resultantes da ACM
realizada anteriormente.
A projecção dos 3 tipos (Figura_3) no plano da ACM torna evidente a
correspondência entre a configuração por ele sugerida e a tipologia obtida,
dado o posicionamento dos clusters nas nuvens de pontos que traduzem essas
mesmas configurações. Cada um dos clusters associa-se privilegiadamente a um
dos perfis anteriormente identificados, validando a solução sugerida pela ACM.
Os vários perfis podem caracterizar-se da seguinte forma:
- Cluster 1 com 16,8% (profissionais com vínculo) ' caracteriza-se pela
totalidade dos profissionais auxiliares de ação médica, associados a níveis de
escolaridade intermédios [sobretudo o ensino secundário (44,0%)]. Em termos de
idades dominantes, encontram-se aqui os jovens adultos (até 30 anos) e depois
idades mais intermédias. Todos os trabalhadores têm um vínculo com a
organização, com 72,6% pertencendo ao quadro. E praticamente a maioria (95,6%)
não tem duplo emprego.
- Cluster 2 com 25,3% (profissionais com antiguidade) ' referente ao perfil com
maior antiguidade e concomitantemente mais velhos. Mais de metade (54,2%) dos
trabalhadores pertencentes a este cluster desempenha funções há mais de 10
anos, sendo que mais de 2 terços possuem idades superiores a 40 anos (21,7% com
idades compreendidas entre 41 e 50 anos e 49,8% com mais de 50 anos). É
constituído apenas por enfermeiros (79,1%) e médicos (20,9%).
- Cluster 3 com 57,9% (profissionais sem vínculo) ' é aquele que tem um maior
peso no total dos trabalhadores. Caracteriza-se por um predomínio de
enfermeiros (92,7%), mas em que os médicos também estão representados (7,3%).
Neste cluster todos têm um nível superior de habilitações literárias.
Caracteriza-se por a maioria possuir outro emprego (95,2%), sendo que 78,6% se
encontra a recibos verdes.
Conhecidos os perfis socioprofissionais, realizou-se outra ACM com projeção
suplementar da variável identificação profissional. Será de extrema importância
compreender se a identificação profissional está relacionada com os perfis
socioprofissionais, ficando a conhecer-se se determinado grupo de
profissionais, com determinadas características, apresenta uma maior integração
entre o seu ser e a sua profissão.
Relativamente à identificação profissional, os inquiridos situam-se em média
nos 6,42 pontos da escala, sendo que a maioria se posiciona acima da média, o
que revela uma grande integração profissional.
Como se constata na Figura_4, a posição da identificação profissional reflete a
inexistência de associação aos perfis. Ela projeta-se muito próximo da origem,
parecendo ser indiferente o nível de identificação profissional para a
compreensão dos lugares ocupados pelos perfis socioprofissionais.
Verifica-se também, quando aplicado o teste One Way ANOVA, que o nível médio de
identificação profissional é igual nos 3 perfis socioprofissionais (p> 0,05).
Neste contexto, poderá concluir-se pela não-sustentabilidade da tese de que
existem diferenças entre os perfis socioprofissionais no que respeita à
identificação profissional.
Discussão
De acordo com os resultados obtidos, podemos conceber 3 diferentes grupos de
profissionais de saúde: um grupo formado predominantemente por enfermeiros, sem
vínculo contratual e um nível de habilitações literárias superior
(profissionais sem vínculo); o grupo dos auxiliares de ação médica, com vínculo
contratual à empresa, mas com menor nível de habilitações literárias
(profissionais com vínculo); e o grupo formado por enfermeiros e médicos, sem
vínculo contratual, mas com maior antiguidade na empresa e um nível de
habilitações literárias superior (profissionais com antiguidade). Os 2
primeiros grupos identificados são constituídos por profissionais mais jovens e
com menor antiguidade na empresa e no exercício da profissão.
Compreende-se então que os profissionais sem vínculo e os profissionais com
antiguidade possuem habilitações literárias que lhes permitem exercer funções
diferenciadas, associadas a uma maior responsabilidade perante o cliente e a
sua situação de saúde. Rodrigues5 identifica as habilitações literárias como um
preditor significativo da identificação profissional, ao contrário dos
resultados aqui obtidos. Assim, importa denotar que estes resultados,
provavelmente, não são generalizáveis ao conjunto das clínicas de hemodiálise
portuguesas.
Segundo Duarte, Nunes e Martins6, a identificação profissional está diretamente
relacionada com a idade, no entanto, neste estudo, os profissionais com
antiguidade, e, concomitantemente, os mais velhos, não se diferenciam dos
restantes grupos.
Contudo, os resultados obtidos neste estudo denunciam profissionais com
identificação profissional elevada. Tendo em conta a especificidade das
profissões, que se baseiam numa filosofia de relação de ajuda, há consistência
de resultados, pelo que a empresa poderá, na sua estratégia de gestão,
considerar estes profissionais aliados essenciais para alcançar os seus
objetivos e superar as suas necessidades estratégicas.
Conclusão
A identificação profissional, de acordo com diversos autores, tem como fatores
preditivos as habilitações literárias5, a idade e o género6.
Considerando o descrito na literatura, formaram-se 3 perfis socioprofissionais
distintos, 2 deles diferenciados pela situação profissional, e um terceiro
grupo diferenciado pela idade e antiguidade de serviço.
Quanto às características sociodemográficas e profissionais que diferenciam os
grupos profissionais, podemos concluir que são as apresentadas por outros
autores como características que influenciariam a identificação profissional.
Todavia, neste estudo não se verifica uma relação entre os perfis
socioprofissionais apresentados e a identificação profissional.
Pode concluir-se que as organizações de saúde, neste caso, as clínicas de
hemodiálise da região de Lisboa e Vale do Tejo, são compostas por 3 grupos de
profissionais de saúde distintos ' os profissionais com vínculo, os
profissionais com antiguidade e os profissionais sem vínculo, que, apesar das
suas especificidades, apresentam elevada identificação profissional.
A discussão do trabalho e consequente comparação de resultados foi limitada
devido à falta de estudos sobre o tema em Portugal.
Seria interessante alargar o estudo a nível nacional, o que tornaria o trabalho
mais consistente na extrapolação dos resultados, assim como fazer uma
comparação entre profissionais que exercem funções em instituições públicas e
privadas.