Pesquisa qualitativa, saúde e uso de drogas: desdobramentos e implicações
teóricas, analíticas e epistemológicas da utilização da técnica da entrevista
de fala aberta
Introdução
Uma das principais repercussões das iniciativas de articular os estudos da área
de saúde com os da área das ciências humanas e sociais foi a emergência de um
interesse significativo por parte dos pesquisadores da área de saúde em relação
ao que se chama "pesquisa qualitativa", entre os anos 20-40 do
século XX. Neste período, médicos passaram a circular em expedições entre
culturas remotas em relação à Europa e Estados Unidos. Um dos pioneiros - e um
dos exemplos mais significativos desta tendência - foi Erwin Ackerknecht, que
reconheceu a existência de uma "medicina primitiva". A descrição
desta medicina foi considerada relevante para pensar a medicina praticada em
sociedades chamadas complexas.
Por sua vez, a procura por conhecer melhor a pesquisa qualitativa repercutiu em
termos epistemológicos. Isto se deu fundamentalmente porque o desenvolvimento
de projetos de pesquisa quantitativa serviam bem para levantar tendências nas
populações, mas dificilmente conseguiam retratar variações possíveis e
relevantes. Criava-se a necessidade de reconhecimento de "exceções à
regra" que dificultavam as generalizações, portanto, frequentemente
"escondidas debaixo de tapetes metodológicos". Um exemplo recente
está representado pelo que se tem chamado de "necessidades básicas das
populações", cânone de muitas políticas públicas e agendas acadêmicas
quando associadas à saúde. Em geral o conteúdo destas
"necessidades" serve para a definição de políticas de saúde que
atenderiam à "maioria da população". Formular políticas com este
fundamento não seria indesejável se não criasse situações de omissão e descaso,
particularmente no cuidado das ocorrências que não se enquadram nestas
"necessidades das maiorias", e assim, acabam também não se
enquadrando na programação das políticas públicas. Ou, por outro lado, passou-
se a considerar somente programações e prioridades que formulam, no sentido
weberiano, "tipos ideais de problemas". Para refletir acerca da
pesquisa qualitativa na área da saúde, este trabalho discute aspectos
levantados durante o desenvolvimento de projeto de pesquisa "Trajetórias
e itinerários no contexto do uso de drogas em Santa Catarina", financiado
pelo pool CNPq/FAPESC/MS/SES e aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa de
protocolo 0004.0.242.000-07. Na fase de preparação e desenvolvimento da coleta
de dados foram organizados seminários buscando desconstruir ou fazer
desaprender os densos e deletérios condicionamentos aos quais todos estamos e
mesmo somos sujeitos, ao sermos colocados diante dos discursos hegemónicos
sobre uso e abuso de drogas. Nesta preparação problematizamos junto a uma ideia
corrente na antropologia contemporânea o estatuto da relação assimétrica que se
estabelece no trabalho de campo. Nesta perspectiva buscamos torná-lo menos um
"evento administrativo de recurso de pesquisa" e mais o que de
Oliveira1 chamou de "encontro etnográfico" cuja atividade central e
motivadora do encontro é a interlocução. Para promover este encontro deveríamos
ponderar, relativizar as ideias e preconceitos que todos construímos sobre o
que estamos pesquisando. Ou seja, olhar para os dados buscando conhecer o
conteúdo e talvez a forma da "agenda" com a qual nossos
interlocutores de pesquisa orientam pensamento-ação, ou sua práxis.
Após esta fase, entramos em contato com instituições e organizações
governamentais e não governamentais em todo o estado. Foram abarcadas
secretarias municipais de saúde, conselhos antidrogas municipais, centros de
atendimento psicossocial (CAP), associações de alcoólicos anónimos, narcóticos
anónimos e afins, comunidades terapêuticas e outras. Depois de contato
preliminar via telefone ou e-mail, membros da equipe realizavam visitas
preliminares às organizações durante um período aproximado de permanência entre
2-3 dias. Após encontro inicial com os dirigentes os pesquisadores,
participavam de reuniões e solicitavam voluntários ou indicações de potenciais
entrevistados. Apesar de questionarmos o fato de que este procedimento levaria
a uma setorização dos resultados, já que abordaríamos apenas um segmento do
"universo" de usuários de drogas, considerou-se relevante e
consistente a noção de "carreira" de uso de drogas, e seu
desdobramento em um saber específico, constituído na trajetória destes
usuários, que provavelmente teriam passado por processos críticos em relação
aos eventos que enfrentaram ao longo de sua vida, incluindo aqui processo e
desenrolar da própria institucionalização.
A principal técnica utilizada na coleta de dados - associada a anotações gerais
e diário de campo - foi denominada entrevista de fala aberta. Como vimos, este
procedimento tinha como objetivo central obter depoimentos que refletissem um
deslocamento do registro da pesquisa, para que o enfoque da problemática
tivesse como perspectiva a agenda de relevâncias e interrogações - priorizando
e enfatizando percepção, estruturação de ideias e preocupações emergentes - dos
interlocutores entrevistados. Em outras palavras, as técnicas de coleta de
dados buscaram em grande parte do período de cada encontro, a mínima
interferência do entrevistador no estímulo à formulação das falas sobre as
experiências. Enfatizando, procurava-se dar prioridade à elaboração do conteúdo
dos próprios sujeitos da pesquisa, abrindo a possibilidade da emergência dos
saberes locais. Procurávamos relativizar a relevância de obscurecimentos que
poderiam eventualmente ser provocados pela agenda e pelos vieses e ideários dos
próprios pesquisadores. Em suma, em nome de explorar a técnica, corremos o
risco, sempre enfatizado na preparação da equipe, de abordar ingenuamente os
dados como sendo a "verdade" empiricamente obtida. Entretanto, aqui
o princípio metodológico e epistemológico envolvido é que o procedimento
procura de fato suspender os efeitos do condicionamento clássico da expectativa
à qual os participantes de uma entrevista em geral estão submetidos: há uma
lista de interrogações previamente formuladas que devem ser respondidas ou
satisfeitas pelo "informante". Ter buscado explorar a tensão de
modificar esta expectativa já foi considerado pela equipe um passo e uma
conquista importante do ponto de vista metodológico e epistemológico.
Assim, procurando provocar mas "não conduzir" o encontro
etnográfico, o entrevistador dizia para a pessoa a ser entrevistada "fale
o que quiser". Esta frase desencadeava a fala dos entrevistados, já
estimulada inicialmente pela leitura em voz alta do próprio Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Acabamos por considerá-lo e convertê-
lo em instrumento de pesquisa propriamente dito, na medida em que sua leitura
servia como dispositivo de estímulo à fala.
O procedimento analítico, entretanto, não se absteve de formatos mais
clássicos. Paralelamente à coleta do material empírico, os entrevistadores
foram selecionando e propondo "balizas" para análise. O termo
baliza já demarcava seu caráter de localização e enquadramento dos segmentos
dos depoimentos que articulavam os conteúdos relevantes abrigados sob
determinada "rubrica". A ideia de chamar "baliza" a
expressão que reconhecia estes temas centrais, evoca também uma concepção de
que a estruturação da fala reflete a organização e constituição do discurso a
partir de conceitos que articulam evento, espaço, tempo de experiência. As
balizas selecionadas para análise foram: narrativas de mal-estar/doença;
itinerários terapêuticos; serviços de saúde; saúde; autocuidado; drogas: noções
sobre. Ao todo, foram realizadas 46 entrevistas que foram integralmente
transcritas e objeto de análise.
O objetivo deste trabalho, por sua vez, é levantar e problematizar questões de
método e suas implicações éticas, políticas e epistemológicas, através de
discussão de balizas que emergiram na análise dos dados e com a aplicação da
técnica da fala aberta. Para refletir sobre a abordagem selecionamos para a
reflexão as balizas "saúde" e "drogas: noções sobre".
Realizamos esta escolha devido à centralidade e à relevância destes conteúdos
tanto nas interrogações que foram emergindo na análise dos depoimentos, quanto
na importância atribuída pelos participantes da pesquisa nas questões
relacionadas a estes temas. Os relatórios de análise constaram densidade e
pertinência dos hiatos e tensões entre a formulação dos modelos e discursos
"terapêuticos", e a forma com que os interlocutores elaboram suas
experiências, na articulação entre a formulação das teorias sobre e dos modelos
pessoais de avaliação da própria experiência, e os "modelos-
processos" de busca de resolução.
Aspectos preliminares: sobre modelos, leis e métodos
A elaboração do projeto de pesquisa considerava preliminarmente a escassez, a
invisibilidade ou a indisponibilidade de dados na literatura e na mídia que
retratassem: (a) com densidade, as experiências e os contextos socioculturais
locais associados à temática da atenção ao "uso de drogas" no
estado de Santa Catarina; (b) as relações sociais que são estabelecidas nestes
contextos no que se refere a aspectos ligados à saúde; (c) os padrões de
motivação e ação utilizados pelos usuários de drogas na avaliação de sua saúde;
(d) o conhecimento sobre procedimentos e estratégias associadas à busca do bem-
estar e da manutenção da saúde das pessoas inseridas nestes contextos.
Assim, questionou-se também a premissa controversa e socialmente hegemónica que
a pessoa que faz uso de "drogas ilícitas" é necessariamente
"doente" ou "dependente químico". Procurou-se
transcender estes estereótipos, considerando a variedade de situações
possíveis, tendo como fundamento que a imagem construída dos usuários junto aos
serviços de saúde é aquela produzida por situações de crise. Esta imagem de
certa maneira passou a orientar as políticas de saúde ao considerar que usar
drogas é sempre problemático. Esta tendência contribuiu para se pensar que há
somente 2 abordagens possíveis: uma absenteísta, ou seja, que a intervenção
deve ser no sentido de eliminar genericamente o uso de drogas ilícitas, e outra
que volta suas iniciativas à "prevenção", considerando o uso de
drogas ainda algo epidêmico, mas que distingue o uso do abuso de drogas. Para
esta última, as políticas deveriam ser voltadas prioritariamente à mitigação de
riscos e prejuízos, e ficou conhecida pela noção de "redução de
danos" ou reducionista.
Por outro lado, a partir de 2006, com a promulgação da Lei n.º. 11.343, de 22
de agosto de 2006, os usuários que forem processados legalmente passam a
receber penas socioeducativas, aplicadas por juizados especiais criminais, como
prestação de serviços à comunidade ou inscrição em programas de tratamento. A
situação e os processos desencadeados pela nova legislação passaram a exigir um
conhecimento apurado sobre a complexidade e a variabilidade de situações de uso
de drogas, para que os programas e serviços designados para os chamados
"usuários"/"dependentes" fossem realmente adequados e
eficazes. Isso vale tanto para a área da saúde, quanto para a da justiça e da
segurança pública, que ficam responsáveis pelos encaminhamentos e procedimentos
para viabilizar a prestação de serviços associados à aplicação de penalidades.
O dilema moral no qual vivemos2 em relação às drogas denuncia que ao mesmo
tempo em que proibimos e tornamos algumas delas ilegais, somos paralelamente
estimulados a consumi-las através da profusão das drogas lícitas oriundas da
indústria farmacêutica Por isso, parece que o "alarmante problema das
drogas" é em última análise uma construção sociocultural que condiciona a
imagem pública dos usuários de drogas, impelindo-os à clandestinidade e à
exclusão social. Isto colabora para constituir a "crise" e torna
inacessível ou irrelevante o conhecimento produzido por esses sujeitos em suas
trajetórias. Para resgatar este conhecimento e inseri-lo no campo de reflexões,
a pesquisa qualitativa é de grande importância.
Sumariamente, o que enfocamos na coleta de depoimentos foram ideias práticas,
estratégias e itinerários associados a questões de saúde, de pessoas vinculadas
direta ou indiretamente com o contexto do uso de substâncias psicoativas,
através da técnica principal da entrevista de fala aberta. Do ponto de vista
das abordagens metodológica e analítica, podemos chamar genericamente a
elaboração resultante de "fala", que por não ser espontânea e sim
estimulada, reflete um referencial digamos factual. Este referencial factual é
elaborado e constitui-se em "discurso", no sentido que seleciona
conteúdos a serem comunicados verbalmente. é também narrativo, na medida em que
suscita sempre uma rememoração da experiência vivida. O princípio que estamos
adotando é que este discurso rememora e "narra" densamente, tanto a
experiência quanto a "percepção" estabelecida pela vivência, e a
reflexão sobre sua ocorrência.
Quanto à contribuição desta reflexão, esperamos subsidiar o debate sobre a
fundamentação empírica no campo de estudos sobre uso de drogas. Para isso,
utilizamos uma metodologia de pesquisa qualitativa que até então foi ainda
pouco aplicada no campo de pesquisa sobre saúde e uso de drogas no Brasil.
Interessa-nos também disseminar a reflexão sobre o conhecimento produzido por
pesquisa qualitativa entre profissionais de saúde, particularmente entre
pessoas que atuam no atendimento de usuários de drogas e na formulação de
políticas públicas no campo de intervenção.
Neste sentido, consideramos que (1) a ampliação do conhecimento sobre a
temática em investigação poderia contribuir significativamente para tornar mais
consistente e eficaz a abordagem e a intervenção relacionadas aos problemas
ocasionados no campo da saúde que envolvem uso de drogas e recurso aos serviços
resolutivos disponíveis, e (2) que o levantamento de dados empíricos, a
reflexão e a divulgação ampla do conhecimento qualitativamente produzido
reflete na formação dos recursos humanos, preparando melhor profissionais,
outras pessoas envolvidas e os serviços disponíveis em geral, diante às
ocorrências e decorrências de eventuais problemas. Confere também melhor
atenção aos desdobramentos que se referem à resolutividade, à gestão dos
recursos e às questões ligadas aos direitos humanos.
O que nos disse a análise
Sobre as balizas "saúde" e "drogas: noções sobre":
implicações teórico-metodológicas, éticas e políticas
Consideramos agora as repercussões e implicações teórico-metodológicas, éticas
e políticas da análise de dados obtidos com a técnica da entrevista de fala
aberta. Nas entrevistas, destaca-se a articulação entre os depoimentos pessoais
que configuram narrativas acerca das próprias histórias de vida dos
entrevistados e os discursos institucionais de mais amplo espectro,
particularmente aqueles que emergem das vivências nos processos de
"tratamento". Visto que a maioria dos depoimentos foram obtidos
através de indicação de pessoas que estavam envolvidas com prestação de
serviços, as balizas trouxeram à tona, explícita ou implicitamente, o que se
poderia considerar como um "discurso hegemónico" que se constitui
diante das perspectivas que condicionam as diversas dimensões da percepção do
processo. Neste sentido ainda, este discurso tem como registro gerador a noção
de "doença da dependência química" e conteúdos semânticos centrais
a ela associados, por exemplo, (1) a noção que a "dependência
química" é uma "doença incurável", que só poderia ser
controlada através da interrupção imediata e definitiva do uso de drogas (2) ou
que usuários contumazes seriam todos considerados "dependentes
químicos". A constatação de que subjaz este registro nos diversos
depoimentos foi central ao considerarmos as implicações éticas e políticas, as
questões metodológicas e, particularmente, os procedimentos de análise.
A demarcação dos relatórios separadamente evoca a estratégia de definir os
eixos analíticos a partir também da consideração das categorias centrais
estabelecidas a priori, mas que serviam para desencadear os depoimentos. Como
primeira consequência, na medida em que o título do projeto era descritivo de
uma das dimensões da agenda de pesquisa e era apresentado aos depoentes,
familiarizava os entrevistados com o tema geral, que era "saúde e uso de
drogas". Entretanto, ao não apresentar perguntas direcionadas, a partir
da técnica da fala aberta reservava ao entrevistado a prerrogativa de definir
qual seria sua abordagem sobre o assunto. Permitia também o acesso a conteúdos
que eventualmente se colocariam mais sutilmente na malha discursiva emergente e
destacaria a relevância e a possibilidade desta abertura da análise para
proporcionar a indicação de parâmetros para a reorganização de um olhar sobre
as experiências pessoais. Assim como proporcionava uma oportunidade de indicar
como repercutiam no campo semântico as noções disseminadas pela produção de
sentido no contexto de sua formulação. Particularmente, percebeu-se a
influência deste olhar em relação à ambiguidade e às tensões que existem entre
este discurso como um parâmetro identitário, como uma fonte de interpretações
gerais sobre drogas, de um lado, e as próprias noções "nativas" que
não reproduziam o discurso hegemónico, explicitando, assim, muitas vezes, o
entrecruzamento tenso entre as noções nativas e os discursos hegemónicos
constituídos nas instituições.
Passemos agora a abordar os conteúdos específicos que emergiram da análise de
cada baliza:
Saúde
As noções sobre "saúde" que emergem dos discursos podem ser
sistematizadas nas seguintes chaves analíticas desdobradas a partir dos
conteúdos dos depoimentos: noção de saúde de uma forma genérica, noção de saúde
envolvendo particularmente "doenças do corpo",
"sensações" de doença e noção de bem-estar.
Considerando que a temática da saúde é uma das entradas da pesquisa, o primeiro
fato notável que desponta na análise é um aspecto propriamente quantitativo:
saúde é a baliza que possui um número significativamente pequeno de trechos nos
quais é mencionada. De um universo de 46 entrevistas, apenas 13 foram marcadas
com esta baliza. Este fato sugere pelo menos 2 razões possíveis: a temática da
"saúde" em geral, tal como era compreendida pelos interlocutores na
apresentação da pesquisa, não era questão relevante (1); ou o próprio modo como
foi compreendida pelos interlocutores, no que concerne a sua conceituação de
saúde para a marcação das entrevistas, era restrita a expressar-se sobre
doenças, diagnóstico, tratamento (2).
Contudo, nas análises realizadas como as balizas "drogas: noções
sobre" e "uso de drogas", a questão da saúde, tal como a
entendemos a partir da síntese teórica da revisão bibliográfica, e os termos a
ela correlacionados, como corpo, institucionalização, cura e recuperação,
adquiriram centralidade na análise constarem significativamente nos
depoimentos. Estes temas despontaram na vinculação com a noção de
"doença" e de seu campo semântico na perspectiva nativa, no
desenrolar da narrativa como um todo, e, assim, não eram decorrentes -
maioritariamente - do estímulo específico que despontava com a temática da
saúde.
A noção de "saúde", desta forma, poderia ser sistematizada como
ambivalente e polifónica. Categoria, portanto, cujos contornos não podem ser
traçados por linhas firmes. Com as próximas descrições vamos acompanhar os
conteúdos dos depoimentos que levaram a esta conceituação ampla de
"saúde":
Sempre fui uma pessoa saudável (Ari)
De saúde minha acho que não tenho o que falar (André)
"Saúde tá ótima. única preocupação era a falta de uso de
preservativos" (Aline)
"Doença de garganta, pneumonia, não tenho problemas maiores assim"
"Não tenho doenças, sempre faço exames"
Doença que eu ouvi falar é com drogas injetáveis, as pessoas pegam AIDS, pegam
como é que é, hepatite, pegam diversas doenças. Eu já não, porque eu nunca tive
contato com doenças injetáveis, essas coisas assim (Fernando)
Percebe-se um desencontro entre a visão biomédica hegemónica de saúde e a noção
de "doença da dependência química", que circula entre os
informantes. Portanto, não encontra-se de forma representativa o reconhecimento
de que o uso de drogas e as drogas por si só são causas de/ou problemas de
saúde propriamente ditos. Se consideramos ainda a relevância da noção de
dependência química, que veremos na análise adiante, isto se torna muito
significativo na medida em que indica registros diferentes onde operam as
noções.
Portanto, a institucionalização e as instituições assumiriam a característica
de agentes da disseminação de um entendimento amplo quanto à existência e a
constituição do chamado "problema das drogas". Este aspecto da
atuação destes agentes tem como uma de suas consequências a disseminação
circular e condicionadora da noção de doença da dependência química. Isto
ocorre tanto no campo semântico de produção de sua legitimidade como
instrumento de categorização e negociação de sentido, quanto em sua dimensão de
motivação das formas de intervenção. Esta noção parece ser apreendida e
incorporada no discurso pelos entrevistados, apenas parcialmente e ainda de
forma ambígua.
Esboça-se um modelo para compreensão da significativa ineficácia das
instituições voltadas ao "tratamento de dependentes químicos". Ou
seja, o conhecimento trazido pelos usuários dos serviços a partir de, e sobre,
suas próprias experiências parece não ser considerado. Em outras palavras, a
atuação institucional em geral procura modificar simplista e mecanicamente as
noções dos usuários, enfatizando implicitamente uma forma de convencimento que
parece se desdobrar numa noção de "dependência química" como
"doença moral" que, conforme Schneider3 apurou, se desdobra em
termos de "tratamento" para uma transformação de "conduta
pessoal".
Assim, como já mencionamos, a noção de saúde entre os interlocutores emerge de
um modo significativamente ambivalente. Por um lado, temos uma representação de
saúde bastante restrita e vinculada a classes de doenças que "afetam o
corpo", repercutindo uma noção "biologicista". Contudo, não
foi referenciada a noção de "dependência de drogas" como
"doença mental", como muitas vezes é concebido o "abuso de
drogas" no campo da biomedicina. Em todos os relatos sob análise, a noção
de dependência foi mencionada em apenas um fragmento e como um tema secundário,
não incluído em uma malha discursiva que o sujeito estivesse tecendo sobre
saúde. Neste sentido, "saúde" é compreendida em uma outra classe de
fenómenos que não se encontra diretamente com a noção tão corrente e
disseminada, institucionalmente da dependência química como uma doença.
A noção de saúde entre os usuários de drogas institucionalizados pode estar
substancialmente desvinculada da prática de uso e assim às expensas do senso
comum, que em geral trata o uso de drogas - cuja institucionalização do usuário
seria a rigor o caso limite de uma patologia - como um "problema de
saúde". Portanto, embora em muitos sentidos influenciados pelo paradigma
biomédico, a abordagem que encontramos nos depoimentos, digamos
espontaneamente, não menciona o uso de drogas como "doença".
Drogas: noções sobre
O outro quesito que consideramos central para compreender a lógica que podíamos
encontrar nos depoimentos era associado às noções sobre as drogas e que
converteu-se na baliza: "Drogas: noções sobre". Com esta
categorização, descrevemos o que se chama em antropologia de "teorias
nativas", em relação às drogas em geral e de um modo amplo, mas mais
particularmente relacionadas à experiência pessoal e a uma visão um pouco mais
desprendida destas experiências; "sobre a sociedade" e "sobre
as drogas na sociedade".
As noções sobre drogas neste sentido se apresentam de modo polifónico e
ambíguo. A noção de droga enquanto "substância química" produz
depoimentos condicionados pela institucionalização: efeitos, sensações e
prazeres são vinculados à "fuga da realidade", ou a
"engajamentos numa vida ilusória". Concomitantemente, porém,
referem-se à possibilidade de ampliar a existência no mundo. De modo relevante
e denso despontaram conteúdos acerca da droga como uma "aliada"
importante na deflagração e na manutenção da "doença da dependência
química". Revela-se novamente uma tensão entre o uso de drogas como
acesso ao prazer ou como modo de estar e viver no mundo:
Ela dá um prazer muito forte, um prazer que euforia, um prazer de calmaria, um
prazer as vezes como eu usava o sexo ativa, a sexualidade ativa, é...
(Philippe)
A droga te dá uns pontos de adrenalina muito forte, altos, mas quando desce é
muito baixo. Temos que achar um equilíbrio. Então nós vamos ter que buscar
novas formas de preencher nosso corpo [...] O que eu vou buscar, o que vai me
dar prazer novamente- (Júnior)
Não sei o que dizer... todo mundo diz usa droga pra escapar da realidade, nunca
usei droga por minha vida tá ruim, ou por eu tá triste, eu uso só pra quando eu
tó bem, vou usar pra ter o a mais né, mais prá isso, não porque quero fugir da
minha vida, não sei o que, isso não. Dá uma banda, queimar um beckzinho, aí
cada coisa que tu vai usar tu sabe, eu sei pelo menos qual o efeito que vai me
dar. Por exemplo eu tó assim, ah, se eu fizer isso eu vou ter tal satisfação de
usar tal coisa, eu vou ficar nesse estado, ou então não vou usar isso porque eu
não vou ficar legal, vou ficar assim, depende do dia, mais durante a noite nas
festas, durante o dia o máximo fumar assim, mas a noite fuma, bebe também,
bastante, mas é isso. (Joyce)
E a droga como fonte de dor, sofrimento e como modo de se associar de forma
doentia com a vida e o mundo:
O fundo do poço é quando tu perde então a família, tu perde teu trabalho, tu
perde o domínio da tua vida e vive só pra droga [...]Ela não escolhe classe
social, ela não escolhe cor, ela não escolhe nada, o final é igual pra todo
mundo: vai morar na rua, sem dinheiro, sem família, passando fome, e por último
a morte. O final da droga é isso. (Juliana)
A droga te tira a tua responsabilidade, tua dignidade, teu caráter, a tua
fidelidade, ela te tira a tua moral, no geral, ela tira. Eu tive oficina, eu
comecei trabalhar com onze anos de idade (Philippe)
* * *
Apesar dos discursos terem expressado a articulação entre as narrativas
pessoais e os discursos institucionais, a perspectiva metodológica do projeto
revelou ambiguidades e tensões em torno desta articulação. Ou seja, a
localização institucional dos sujeitos apresentou relevância densa nas
reflexões e conclusões da investigação. Percebemos a partir da análise dos
conteúdos das falas que, se por um lado a entrevista de fala aberta e sua
posterior análise revelou discursos condicionados pelas interpretações
hegemónicas, que reproduzem e difundem a dependência química no interior da
noção de doença moral, revelou também, por outro, que os conteúdos dos
depoimentos traziam lógicas diferentes que resistiam aos significantes
institucionais.
Isto aponta para a necessidade de considerar sistematicamente o conhecimento e
a lógica dos próprios usuários dos serviços do ponto de vista da eficácia das
terapêuticas e do ponto de vista do respeito e da valorização dos sujeitos.
Estes, de fato, trazem e vivem as experiências, neste sentido ampliam e ao
mesmo tempo enfocam o nosso olhar, bastante condicionado acerca deste universo
complexo que envolve o uso de drogas. Estas conclusões apontam também para a
necessidade de explorar a forma e o conteúdo que os sujeitos se referem às
próprias experiências, após "processamento" pessoal e coletivo e,
sobretudo, as possibilidades e mesmo os limites da investigação qualitativa em
contextos institucionais.
Em suma, o que parece ocorrer é que o discurso institucional hegemónico tem
como desdobramento uma ambiguidade na forma como os depoentes elaboram sua
visão. Neste sentido sugere que a disseminação sistemática das noções presentes
no discurso institucional parece obrigar os depoentes a reelaborar
artificialmente estas noções, mas mantendo no discurso subjacente uma
perspectiva contrastante.
Implicações analíticas e outros desdobramentos
Sobre aspectos empíricos preliminares
Do ponto de vista empírico, buscamos o discurso narrativo sobre a experiência,
que produz tanto a dialogia implícita na situação de entrevista quanto o que
chamamos de diálogo a posteriori, quando na análise procuramos levantar o
léxico recorrido e a articulação semântica dos conteúdos relevantes sincrónica
e diacronicamente. E mais, na busca de compreender o léxico a que recorre o
entrevistado para constituir suas referências e elaborar a fala, e na captura
da constituição sincrónica da articulação semântica que lhe dá sentido e que
associa sua experiência com as experiências dos outros entrevistados, esperamos
poder compreender as vias de significação e relevância recorrentes. Assim,
procuramos ter acesso ao que se poderia chamar de fundamentos dos pontos de
vista expressos na sua inserção no universo das falas.
Como um princípio que podemos categorizar como político, procuramos implementar
a convicção de que a oportunidade da dialogia proposta implica também no
reconhecimento da relevância do saber organizado na fala. E espera-se: confere
estatuto de conhecimento pertinente e relevante para a constituição da ação,
seja ela o estabelecimento da abordagem analítica, seja ela a adoção de medidas
de intervenção, neste caso, das políticas públicas, particularmente de saúde.
Desta forma, partimos da hipótese de que, mesmo quando vivendo em condições
sociais adversas, estas pessoas elaboram e colocam em prática estratégias para
fazer frente aos problemas de saúde, decorrentes de suas vivências de situações
sociais problemáticas ou tensionadas, e presume-se que inclusive não
necessariamente estejam em situação precária de saúde ou de
"dependência".
Por outro lado, ainda na reflexão sobre a abordagem empírica, é importante
observar que dividido entre chamados absenteístas e reducionistas, o campo dos
estudos e da intervenção sobre o uso de drogas tem demonstrado estar carente de
reconhecer as dicotomias e complexidades que obstaculizam um tratamento
epistemologicamente mais adequado. Neste sentido, parecem os esforços
classificatórios ainda por demais inspirados por esta dicotomia, que parece
servir emblematicamente para definir o "perfil da demanda". E que
particularmente parece condicionar a concorrência pelos bens materiais e
simbólicos que condicionam o fluxo dos recursos que viabilizam a busca de
conhecimento.
Vargas propõe que é preciso passar da abordagem "epistemologicamente
negativa" que considera compulsoriamente qualquer uso de drogas como
problemático, para uma outra, "positiva", no sentido de que é
contraproducente partir de um ponto de vista que desqualifica a experiência do
uso de drogas. Repercutindo esta proposta, mas procurando dar um enfoque
diverso do "epistemologicamente positivo" ou
"negativo", propomos um tratamento epistemologicamente consistente.
A ideia desta abordagem implica em considerar ambiguidades, tensões, dicotomias
ou dualidades, adesões, rupturas, agenciamentos e outros aspectos associados -
que em geral são tratados a partir de categorizações padronizadoras - mas
ampliando o interesse pelas singularidades, pelas pluralidades, pelos
processos, mas também pelas articulações circunstanciais, pela abordagem nativa
da experiência, enfim, menos como geradora de "efeitos", mas sim
desencadeadora de interlocução legítima, relevante e produtiva.
Um dos aspectos que os dados empíricos indicaram foi a apropriação nos relatos
do que poderíamos chamar genericamente de "caminho das drogas",
para distinguir trajetórias de vida nas quais as pessoas podiam fazer escolhas,
daquelas em que a pessoa passa a engajar-se sem a possibilidade de escolha. No
conteúdo das falas-narrativas encontramos de forma recorrente a ideia que usar
drogas representa inserir-se numa trajetória crescentemente exclusiva e
inescapável. Ou seja, que todas as vivências passam a ser condicionadas pelo
uso.
Implicações teórico-metodológicas
Nas últimas décadas, é preciso reconhecer, vem se intensificando o debate
acerca do uso de técnicas qualitativas no campo dos estudos sobre saúde no
Brasil. Isto decorre da constatação por parte dos profissionais das áreas da
saúde da insuficiência das técnicas quantitativas para desenvolver seus
estudos. Esta constatação se desdobra particularmente de situações que envolvem
buscar padrões constituídos de forma mais complexa e que são efetivamente
formadoras de atitude em relação à saúde. Por outro lado, também porque
passaram a encarar a interlocução aberta com o(a)s pesquisado(a)s mais
produtiva em termos de considerar a singularidade das experiências
investigadas, como também a pluralidade de situações e condicionamentos que
influenciam estas experiências. Decorre também da problemática da qualidade das
interlocuções entre profissionais e pacientes que se estabelecem em situações
clínicas4.
Neste sentido, tem se ampliado o interesse de cursos de enfermagem e medicina,
particularmente em incluir ou expandir a inserção de disciplinas como a
antropologia e sociologia em seus currículos. Ainda que se possa perceber
nestes cursos uma influência densa do critério - que pode ser visto como
fragmentador - de separar conteúdos chamados "básicos", dos
conteúdos chamados "clínicos" e de "exilar" a
antropologia e a sociologia para as primeiras fases dos cursos, a perspectiva é
que não tão tardiamente teremos que alunos e alunas destes cursos abordando
questões profissionais, em fases mais adiantadas, sintam que a utilização de
perspectivas antropológicas e sociológicas pode ser de grande valia.
O que parece cada vez mais evidente é que os estudantes e profissionais dos
cursos da área de saúde, ao se depararem em suas atuações clínicas com
problemas que o modelo biomédico não dá conta, particularmente relativas à
implantação do SUSbb
O sistema único de saúde (SUS) foi criado pela Constituição Federal de 1988, no
Brasil, e regulamentado pela Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990.
, têm sentido a necessidade e demandado o auxílio de cientistas sociais na
condução e na reflexão sobre estas situações.
Repercutindo a contribuição que o modo de produzir conhecimento em antropologia
pode proporcionar para a prática de profissionais de saúde, apresentamos a
seguir as implicações dos desdobramentos da aplicação de técnicas de pesquisa
no sentido de superar omissão ou negligência, em relação a aspectos e tensões
oriundos de uma abordagem unilateral e fragmentada, que tem sido amplamente
constatada por pesquisadores e usuários do sistema de saúde. E que, a nosso
ver, despreza um importante elemento das interações: o conhecimento produzido
pelos próprios usuários dos sistemas de saúde em geral sobre suas próprias
experiências:
* 1 - A importância da construção de modelos analíticos e metodológicos capazes
de subsidiar as abordagens da articulação complexa existente entre discursos
institucionais (que condicionam as narrativas) e narrativas pessoais que
refletem lógicas próprias ou referentes às situações vividas em situações
especificas, que não se alinham com os condicionantes e conteúdos dos
discursos institucionais;
* 2 - A importância de uma reflexão metodológica que levante o aspecto das suas
próprias implicações para a constituição de modelos teóricos construídos nas
análises dos dados. De forma correlata, a exposição reflexiva da metodologia
de uma forma que não se reduza a um modelo de um "meio" para
atingir um "fim", o que de fato proporciona e induz à aplicação
de modelos mecanicistas para proceder metodologicamente;
* 3- A importância de analisar do ponto de vista ético e político, e
particularmente autorreflexivo, as implicações dos procedimentos
metodológicos que definem os rumos e os vieses das próprias abordagens
teóricas, para além dos procedimentos tradicionais de apuração de evidência e
prova. Enfim, refletir sobre situações e circunstâncias que condicionam a
realização de pesquisa sempre são relevantes para estabelecer a
autorreflexividade, condição para um bom acompanhamento da dinâmica das
situações complexas que vivemos.
Considerações finais: sobre ética, política, teoria e metodologia
Se implicações e desdobramentos teóricos se articulam com implicações e
desdobramentos metodológicos, implicações e desdobramentos éticos se articulam
com as implicações e desdobramentos políticos. Rigorosa e epistemologicamente
falando, as 4 dimensões só podem ser separadas para organizar heuristicamente a
reflexão.
Em relação ao aspecto ético, é preciso lembrar que as questões e tensões em
relação às exigências formais dos comitês de ética quanto ao desenvolvimento de
projetos de pesquisa já é há algum tempo objeto de reflexão na antropologia
(ver por exemplo Maluf, Langdon e Torquinst5). Estes procedimentos têm sido
geralmente inspirados pelos cuidados com "direitos e deveres" dos
pesquisadores, particularmente em relação às pessoas que participam como
"informantes" de projetos de pesquisa.
Temos discutido que é fundamental o pesquisador considerar elaborar um estatuto
de sua pesquisa. Este estatuto se desdobra tanto em quesitos epistemológicos
quanto sociais. Estes implicam em pensar um projeto como sendo constituído por,
e ao mesmo tempo constituindo, relações sociais particulares. Neste sentido,
também temos levantado a importância de pensar os instrumentos de pesquisa em
antropologia como "artefatos e artifícios sociais e relacionais"
(Groisman6).
Na pesquisa desenvolvida procuramos problematizar o procedimento empírico quase
"clássico" que toma o chamado "informante" quase como
uma fonte inerte e passiva de dados. Este aspecto vem sendo relativizado por
perspectivas que se desdobraram na noção de simetrização, conforme reflexão
desenvolvida por Goldman7. Nesta perspectiva simetrizante é preciso implementar
uma atitude com a qual os chamados "informantes" passam a ser
considerados efetivamente sujeitos da pesquisa. E, se considerarmos a
repercussão desta conduta nas relações estabelecidas em campo, a interação
entre os chamados pesquisador e pesquisado tendem a ter o caráter de
interlocução, quanto se pode de fato dissolver estes papéis, constituindo
agentes e agenciamentos de pesquisa. Desta forma, a situação empírica se
constitui no campo.
Desta forma, incorporamos as contribuições de correntes contemporâneas da
antropologia, como o argumento de Roberto Cardoso de Oliveira a favor da
pesquisa de campo como "interlocução", da antropologia simétrica de
Bruno Latour8, que procura desfazer as reverberações deletérias de uma ciência
que separa natureza e cultura, e do perspectivismo, como proposto por Eduardo
Viveiros de Castro9, que tem como procedimento fundamental levantar os
conceitos, as interrogações e os problemas que os chamados nativos expressam e
colocam, e ainda, inspirados pela noção de simetrização de Márcio Goldman.
Outro aspecto central de nossas preocupações éticas foi ter de lidar com a
problemática de trabalhar com "usuários de drogas", pessoas além de
estigmatizadas também sujeitas a iniciativas de criminalização. Este foi um
elemento de tensão tanto na preparação do protocolo de pesquisa quando no
desenvolvimento da coleta de dados. Tínhamos como princípio e preocupação
evitar situações que pudessem ameaçar a integridade dos sujeitos da pesquisa,
além de comunicar esta preocupação através dos instrumentos éticos. Neste
sentido, criamos a figura do anonimato qualificado, que foi como chamamos ao
procedimento que consiste em apresentar analiticamente os sujeitos de pesquisa
sem mencionar referências, mesmo que indiretas, que pudessem possibilitar sua
identificação. Assim, garantimos o anonimato e o qualificamos suprimindo dados
que pudessem levar terceiros a localizar por informações indiretas quem eram as
pessoas envolvidas na coleta de dados.
Consideramos que a aplicação da técnica da entrevista de fala aberta como a
concebemos pode ser um instrumento na busca de constituir um conhecimento sobre
a experiência do uso de drogas. De certa forma "militante", através
do projeto que abordamos neste trabalho, procuramos explorar a ideia de que as
interrogações e as reverberações analíticas mais relevantes da coleta de dados
emergiam das falas abertas de nossos entrevistados. Ou seja, os agentes
constituintes da coleta (o que chamamos por convenção entrevistadores) tinham
como tarefa apenas provocar (do latim pro-vocare - instigar à verbalização) a
fala dos agentes reconstituintes (convencionalmente, entrevistados).
Consideramos fundamental que para favorecer a interlocução precisaríamos
"dar voz ativa" aos entrevistados para a constituição do acervo a
ser analisado. No lugar da clássica prescrição de que o pesquisador elabora uma
agenda de interrogações e a coloca em atividade no campo, procuramos priorizar
a agenda de interrogações do pesquisado.
Em suma, este artigo procurou sistematizar uma reflexão sobre a aplicação da
técnica de pesquisa qualitativa que chamamos de entrevista de fala aberta,
particularmente considerando as implicações e questões levantadas pela pesquisa
com usuários de drogas, que em geral é condicionada por preocupações e
interrogações a priori. Assim, foi de fundamental importância deslocar a agenda
de investigação do registro do pesquisador para o registro do pesquisado,
abrindo assim a possibilidade de constituir uma abordagem que se aproximasse
muito mais do contexto semântico e da percepção das experiências que os
próprios sujeitos de pesquisa expressaram. Esta foi uma estratégia que
possibilitou inscrever as falas dos sujeitos e as categorias utilizadas, nos
próprios termos da percepção que estes sujeitos construíram sobre suas
experiências. Somente ao se constituir uma compreensão consistente dos
significados transmitidos foi possível estabelecer uma interlocução ativa e
produtiva, e assim, proporcionar uma aproximação semântica mais consequente,
que pudesse fazer da pesquisa um registro e uma abordagem efetivamente
dialógica, tão importante contemporaneamente para a pesquisa em ciências
humanas.