A Leveza de Dinis
A Leveza de Dinis
Antero Barbosa
Serviço de Pessoal e Expediente, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Júlio Dinis é uma paixão. Que não se apaga nunca.
Dele disse Eça, levianamente: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve,
morreu de leve. Apenas acertou numa das asserções: Júlio Dinis, de facto,
viveu de leve, ou quase não viveu. Mas morrer, não morreu não. E a sua escrita,
muito embora não se possa medir o registo em função de best-sellers, é a que
mais vende edições de autor do século dezanove, passados mais de 130 anos após
a sua morte. Nem Eça, nem sequer Camilo, o suplantam apesar de alguns dos
livros destes escritores serem obrigatórios na escolaridade.
Dinis não escreveu de leve. Escreveu imenso, se atendermos ao reduzido número
de anos que a vida lhe concedeu: apenas 33 incompletos e os últimos amarrados a
uma tuberculose implacável. Fazendo o contraponto com Camilo e Eça, o que
teríamos se tivessem vivido o mesmo número de anos? Eça apenas ecreveria as
Prosas Bárbaras, Padre Amaro e Primo Basílio. Não teríamos Maias, nem
Relíquia, nem Casa de Ramires nem a Cidade e as Serras. Camilo pararia em
O que fazem mulheres. Não se chegaria a escrever o Amor de Perdição, o
Retrato de Ricardina, a Bruxa, as Novelas do Minho nem a Brasileira de
Prazins.
Muito novo, soletrei em selectas literárias os nomes dos autores portugueses e
a lista das suas obras. Aqueles títulos exprimiam curiosidade e na selecta
surgiam alguns retalhos dos seus textos. Um dia, com doze ou treze anos vi
exposto no escaparate de uma papelaria a Morgadinha. Afinal aqueles livros
existiam mesmo e completos. Comprei-o mesmo sem ter dinheiro, que levei roubado
no dia seguinte, o que não evitou que me fosse de novo solicitado pelo correio.
Na capa figurava uma amazona, que mais tarde soube que era Madalena e
Morgadinha. Cheguei a casa, abri-o e foi uma decepção: só letras, pequenas,
nada de gravuras, centenas de páginas. Foi encostado sem ser lido.
Mas no final do ano lectivo, um amigo de meu pai ofereceu-me as Pupilas como
prémio de passagem nos estudos. Li-o de um fôlego e de imediato a Morgadinha,
com as letras todas. Foi um deslumbramento.
Depois foi a leitura dos Serões, alguns magníficos, a Família romance
excepcional de urbe em que raros escritores portugueses vingam e os Fidalgos,
ainda hoje um texto que permanece de pé e actual, sendo decerto o seu melhor
livro.
Mas a paixão foi mesmo (e é) a Morgadinha, livro do mundo dos melhores de
sempre. Fiz um pacto com Dinis: eu leria todas as suas obras e ele permitia que
eu integrasse como personagem a Morgadinha. E assim se fez: entrei na aldeia
no primeiro capítulo, como agora entro em todas as aldeias: primeiro oiço
referências, depois assumo nos arredores, depois penetro no povoado
embrenhando-me nas casas, coisas e cães. Em seguida, conheço as pessoas e os
sítios da aldeia, que é igual à minha e a todas as outras, é a minha. Vou a
todas as casas, às capelas, acompanho os pares enamorados, caso-me com
Cristina.
Ainda hoje se passa assim, sempre que visito alguma aldeia pela primeira vez.
Entro sempre em terras da Morgadinha.
Dinis é o maior arquitecto do romance português. Eça, mesmo vivendo em França e
Inglaterra, não se livra do pudor, do preconceito e do moralismo retintamente
português. Dinis, sem sair de Portugal, é literariamente inglês e aproxima-se
do maior construtor de novelas: Balzac. Ali se encontra sempre a apresentação
(minuciosa), a acção, a tensão e a conclusão, perfeitamente definidas e
encaixadas. Consequência decerto do seu sangue britânico.
Apagaram-se todos os autores contemporâneos e aparentados de Dinis, com realce
para Pedro Ivo. E o que dizer dos textos que mais o influenciaram? Não se vende
o Pároco de Herculano, não se editam os Contos do tio Joaquim de Paganino.
Dinis continua vivo e vendável.
A aldeia em que nasci é um microcosmos com características sociológicas
verdadeiramente sui generis. Tem algumas viúvas por motivos vários, viúvos não,
estes casam-se logo. Até há pouco não havia ocorrido um único divórcio. Mas o
mais curioso é que os jovens se casam, quase todos, e quase todos antes dos
vinte anos.
Dinis casava sempre os pares no último capítulo. Essa é uma das críticas que
lhe é assacada: o escritor em que termina tudo no altar. Certo. Mas será que
esta faceta tem algo a ver com o que se vem passando na minha aldeia, em que os
adolescentes só pensam em casar? Eu acho que não.
CORRESPONDÊNCIA:
Dr. Antero Barbosa
Serviço de Pessoal e Expediente
Faculdade de Medicina do Porto
Alameda Prof. Hernâni Monteiro
4200-319 Porto
e-mail: barbant@iol.pt