Aplicação de uma Técnica Inovadora de FISH na Investigação do Atraso Mental Idiopático
INTRODUÇÃO
O atraso mental é uma doença crónica de relevo
socio-económico e familiar indiscutíveis, uma vez que
afecta 2 a 3 % da população geral (1).
As causas do atraso mental são múltiplas e variadas
o que torna difícil e por vezes impossível a sua
identificação, como o comprovam os 40-50% de atrasos
mentais classificados idiopáticos mesmo nos dias de
hoje.
Sendo a “inteligência” uma característica multifactorial com componente hereditária e influenciada por factores
ambienciais é de esperar que o atraso mental possa ser
causado por: 1 - alterações genéticas, monogénicas;
2 - anomalias cromossómicas; 3 - agentes externos
(traumatismos de parto, infecções; agentes químicos,
etc); 5 - combinação de vários dos factores anteriores (1).
A maioria dos indivíduos com atraso mental apresenta
um QI entre os 50-70 (atraso mental leve/moderado)
enquanto que cerca de 10% tem um QI inferior a 50
(atraso mental grave). O “peso” das causas de atraso
mental está relacionado com a gravidade do mesmo.
Assim, os atrasos graves (QI < 50) são em cerca de 3040% dos casos causados por doenças monogénicas ou
cromossómicas, 10-30% são causados por factores ambienciais e os restantes 30-40% continuam a ter etiologia
desconhecida.
Em contrapartida, nos casos de atraso mental leve/
moderado (QI 50-70) apenas 15% são de causa genética,
15% de causa ambiencial e os restantes 70% continuam
a ter etiologia desconhecida (2,3).
Esse “peso” relativo das causas de atraso mental é
complementado com os dados epidemiológicos que
mostram que o atraso mental grave é independente da
origem e distribuição geográfica ou grupo socio-económico, e que está frequentemente associado a anomalias
(1). Pelo contrário, o atraso mental leve/moderado é
mais comum nos grupos socio-económicos mais baixos
e muitas vezes é um achado único (1).
Até há algum tempo atrás, estimava-se que no máximo
as anomalias cromossómicas estavam associadas a
40% dos atrasos mentais graves e a 5-10% dos atrasos
mentais moderados (4). Contudo, todo o citogeneticista
tinha e tem consciência que muitas serão pequenas
anomalias submicroscópicas que passam despercebidas
numa análise citogenética de rotina. Afinal não é possível
detectar com as técnicas de citogenética convencional
alterações menores que 5 megabases (Mb) e mesmo
alterações maiores podem passar despercebidas quando
o padrão de bandas não é suficientemente distinto (5).
O conhecimento destas limitações, as dificuldades
técnicas em rastrear todo o genoma à procura de
rearranjos submicroscópicos e o facto de grande parte
destes envolverem as regiões terminais dos cromossomas
(telómeros) levou a que em alternativa se desenvolvesse
uma nova tecnologia capaz de detectar rearranjos nos
telómeros dos mesmos usando sondas (porções de
ADN) específicas dessas regiões - sondas subteloméricas
para os 24 cromossomas (22 autossomas mais o X e o
Y).
Assim, nos últimos anos, usando estas sondas
subteloméricas, tem sido possível, identificar rearranjos
cromossómicos subteloméricos e submicroscópicos rearranjos crípticos terminais, numa percentagem que
varia entre os 4% e os 16%, responsáveis por atraso
mental até então considerado idiopático (2,4,6-9).
Com base nesta evidência efectuou-se o estudo das
regiões subteloméricas de 50 doentes afectados de
atraso mental. Este estudo retrospectivo teve como finalidade determinar a importância das anomalias cromossómicas subteloméricas como causa de atraso mental
“idiopático” nesta população seleccionada e tentar estabelecer os critérios clínicos que devem presidir à selecção
de doentes para este tipo de estudo.
MÉTODOS
De entre os indivíduos que frequentam a consulta de
Genética do Instituto de Genética Médica (IGM) foram
seleccionados 50 indivíduos para este estudo. Todos
eles já tinham sido observados por geneticista e
submetidos a todas as análises genéticas protocoladas
na investigação de um atraso mental (cariótipo, estudo
metabólico, estudos moleculares, etc.) que se revelaram
normais.
Destes, 31 eram do sexo masculino e 19 do sexo
feminino. As idades variaram entre 1 e 61 anos de idade.
Todos eles apresentavam atraso mental, classificado
como ligeiro/moderado em 26 casos e grave em 14
casos. Em 10 deles não foi possível determinar o grau de
atraso mental.
Anomalias ou dismorfias estavam presentes em
apenas 14 (28%). Existia história familiar positiva de
atraso mental em 32 dos 50 indivíduos (64%) e num deles
essa informação não estava disponível.
Foi colhida uma amostra de 5-10ml de sangue
periférico aos indivíduos seleccionados. Foram também
colhidas amostras de sangue aos pais/familiares dos
doentes em que se encontraram alterações cromossómicas.
A análise por citogenética molecular Fluorescence in
situ hybridization (FISH) foi realizada em metafases
obtidas a partir de culturas sincronizadas de linfócitos, de
acordo com as técnicas de rotina utilizadas no laboratório,
usando o sistema de sondas Chromoprobe MultiprobeTTM segundo o protocolo do fabricante (Cytocell). Esta
metodologia permite analisar, numa só lâmina com 41
sondas, as regiões subteloméricas de todos os
cromossomas (excepto dos braços curtos dos
acrocêntricos, uma vez que estes são constituídos por
ADN ribosomal que, quer delectado, quer duplicado, não
tem qualquer expressão fenotípica). Para cada par de
cromossomas homólogos foram examinadas no mínimo
5 metafases, sendo só consideradas as que apresentavam
sinais inequívocos de hibridação, perfazendo um total de
115 células por indivíduo.
Os estudos dos familiares daqueles doentes em que
se encontraram alterações foram efectuados usando-se
sondas específicas para as regiões subteloméricas dos
cromossomas envolvidos, nomeadamente o braço longo
do cromossoma 2 - Aquarius Probe (Cytocell), e os
braços curtos e longos dos cromossomas 1, 4, 6, e 17 Chromoprobe Choices (Cytocell)
As anomalias nas regiões subteloméricas de 2q foram
interpretadas como polimorfismos de acordo com a
literatura (5).
RESULTADOS
Dos 50 casos analisados, 7 apresentavam alterações.
As alterações citogenéticas encontradas, a sua origem e
interpretação, estão descritas na tabela 1.
Dos sete casos anormais encontrados, cinco apresentavam apenas uma delecção da região subtelomérica
de 2q (casos nos 29, 36, 41, 42 e 49), o caso nº 3 apresentava, para além da delecção em 2q, uma anomalia
que envolvia as regiões subteloméricas dos cromossomas
1 e 4, e o caso nº 45 uma anomalia que envolvia os cromossomas 6 e 17 (Figuras 1 e 2).
A descrição clínica dos casos nos 3 e 45 encontra-se
resumida na tabela 2.
DISCUSSÃO
Neste grupo altamente seleccionado de doentes, foi
apenas de 4% a percentagem de anomalias
subteloméricas encontradas após a exclusão dos cinco
casos que apresentavam unicamente o polimorfismo de
2q.
Este percentagem de 4% coincide com os valores
mínimos encontrados na literatura, se excluirmos os
estudos de Joyce et al e de Van Karnebeek et al que
apresentavam percentagens inferiores (3,10).
Esta variação de percentagem de anomalias
encontradas nos estudos publicados pode ser atribuída
a diferenças em um ou mais dos seguintes factores:
1 - Qualidade das preparações cromossómicas e
“nível” de bandagem onde se realizou o cariótipo
convencional;
2 - Diferentes técnicas de estudo utilizadas para a
detecção dos microarranjos subteloméricos [FISH,
microsatellite markers, high resolution comparative genomic hybridization (CGH), etc];
3 - Critérios clínicos de selecção dos doentes para o
estudo.
No que diz respeito à qualidade dos cromossomas e
nível de bandas (bandas de alta resolução) quanto melhor
é a qualidade dos cromossomas, menor a probabilidade
de não ser detectada uma anomalia cromossómica subtil,
obviamente dentro dos limites da resolução do microscópio e do olho humano. Neste contexto, e apesar de termos consciência do estudo ter sido realizado num grupo
de indivíduos altamente seleccionado, a baixa frequência
de anomalias subteloméricas encontrada, diz-nos indirectamente que um cariótipo com bandas de alta resolução
detecta a grande maioria das anomalias subteloméricas
crípticas, tal como nos afirma Joyce et al e Van Karnebeek
et al (3,10). Se bem que a qualidade dum cariótipo
influencia a taxa de detecção destes rearranjos
seleccionando apenas para posterior estudo os indivíduos
com cariótipo convencional normal, os critérios clínicos e
familiares utilizados na selecção dos doentes são também
fundamentais.
Assim, se forem seleccionados preferencialmente os
casos de maior gravidade no que diz respeito ao atraso
mental, se existirem anomalias congénitas associadas e
uma história familiar de atraso mental positiva, prevê-se
detectar uma maior taxa de casos.
Nos nossos 2 casos positivos (casos nos 3 e 45) o grau
de atraso mental era grave num deles (caso nº 3) e
moderado no outro (caso nº 45). As anomalias ou dismorfias
associadas estavam contudo presentes em ambos
os casos. Tendo em conta o facto de que no grupo dos 50
seleccionados, apenas 14 tinham anomalias/dismorfias
associadas, pensamos que este é um bom critério de
selecção. No que diz respeito à história familiar de atraso
mental, no caso nº 3 existiam três outros familiares
afectados, enquanto que no caso nº 45, havia referência
apenas a um irmão com dificuldade de aprendizagem
(Tabela 2).
Desde que se identificaram os rearranjos subteloméricos submicroscópicos como causa de atraso mental, este tipo de testes tem sido proposto como “ferramenta”
de diagnóstico em indivíduos com esta patologia.
Apesar deste tipo de teste idealmente poder ou dever
ser aplicado a todos os doentes com atraso mental, o seu
custo em tempo e dinheiro é demasiado alto para permitir
um uso indiscriminado. Isto é corroborado com o facto de
que quando não existe enviezamento dos critérios de
selecção clínica e os estudos citogenéticos são de boa
qualidade, a percentagem de casos positivos é muito
baixa (10). Por isso todos os autores são unânimes na
importância duma pré-selecção clínica rigorosa.
Recentemente de Vries et al (11) publicaram um trabalho
em que tentaram estabelecer a lista-guia dos critérios
clínicos e familiares importantes na selecção dos doentes
a serem estudados por esta técnica. Assim, uma história
familiar positiva de atraso mental, um atraso mental
grave e um atraso de crescimento global ao nascer
parecem ser, segundo esses autores, bons indicadores
de anomalias subteloméricas. Quando se tenta avaliar as
dismorfias como possíveis bons indicadores de anomalias
subteloméricas, o estudo acima mencionado refere o
hipertelorismo, as anomalias do nariz e orelhas e as
anomalias das mãos, entre outras. Contudo, estas
dismorfias não eram estatisticamente diferentes das do
grupo controle (doentes com atraso mental e sem
anomalias subteloméricas).
Tentando comparar as anomalias/dismorfias
encontradas nos nossos 2 casos com as publicadas,
verificamos que: 1 - contrariamente ao descrito, ambos
têm crescimento normal; 2 - existem dismorfias faciais, e
outras para além destas, em ambos, se bem que nada de
específico ou característico. Afinal não nos devemos
esquecer que, sob o rótulo “anomalias subteloméricas”
estamos a incluir delecções e/ou duplicações de diferentes
tamanhos e diferentes localizações, com a eventual
presença de genes recessivos anormais no cromossoma
homólogo normal.
A tudo isto junta-se o facto de, nos poucos estudos
existentes até agora, já se terem detectado alguns
rearranjos subteloméricos, nomeadamente delecções,
em indivíduos perfeitamente normais - os polimorfismos
do 2q, Xp e Yp (5).
Assim, dos estudos mais recentes parece poder-se
concluir que a frequência dos rearranjos subteloméricos
(excluindo os polimorfismos) não parece ser tão alta
como alguns estudos iniciais faziam crer. Isto é
provavelmente devido a: 1 - qualidade das bandas de
alta resolução dos estudos citogenéticos efectuados
antes da selecção dos doentes; 2 - critérios de selecção
clínicos e familiares mais exigentes.
É nossa convicção que, neste momento, o teste para
rearranjos subteloméricos não deve ser utilizado como
uma análise de rotina na investigação de um atraso
mental, mas que a sua execução deverá ser precedida de
um cariótipo com bandas de alta resolução de qualidade
e uma selecção clínica criteriosa, idealmente após
observação por um geneticista clínico.
Num futuro que esperamos próximo, os novos
desenvolvimentos técnicos que começam a surgir tais
como a utilização de “array based comparative genomic
hybridization (array CGH)” (12), de “multiplex amplifiable
probe hybridization (MAPH)” (13), e de “multiplex ligation
dependent probe amplification (MLPA)” (14) poderão ser
mais eficientes, mais rápidos e eventualmente mais
baratos, permitindo a pesquisa de rearranjos submicroscópicos (subteloméricos e outros), a um número mais
alargado de doentes com atraso mental. Estudos comparativos e de custo/efectividade destas diferentes tecnologias são ainda necessários.